Capítulo 29 A Velha Cabana
A Ilha do Falcão -- Capítulo 29
A Velha Cabana
Natasha foi até a mesa, sentou-se de frente para Leozinho e encarou-o pensativamente.
-- Os últimos barcos de pescadores que estavam em alto-mar já voltaram?
-- Acabei de confirmar com o pessoal da guarda costeira, todos já voltaram.
-- Ótimo -- Natasha encostou-se em sua cadeira e disse com uma voz sufocada -- Não quero que digam depois que não avisamos.
-- Não precisa se preocupar com isso. Todos nesta ilha sabem que você tem um coração enorme.
Natasha soltou um riso.
-- Pelo menos, eles respeitam os avisos da defesa civil. Afinal, a ilha do Falcão está bastante acostumada com a força das tempestades que se formam na costa catarinense. Sempre que eles atingem a região, os moradores se preparam e as enfrentam sem maiores problemas.
-- Essa promete ser uma tempestade e tanto -- Leozinho meneou a cabeça com firmeza.
Natasha suspirou, mas não mudou de expressão, quando o gerente comentou sobre a tempestade.
-- Nada assusta você, chefe?
-- Não tenho medo de tempestades. Você já deveria saber que as tempestades castigam mais o lado leste da ilha. As poucas pessoas que moram por aqueles lados, nesse momento devem estar em abrigos aqui no centro da ilha.
Ele apoiou os cotovelos sobre a mesa, brincando com uma caneta entre os dedos.
-- Não estava falando só da tempestade.
Leozinho continuou com os cotovelos sobre a mesa.
-- Estou falando de tudo.
Natasha disfarçou um sorriso ao ouvi-lo.
-- Meu avô sempre disse que a melhor maneira de vencer nossos medos e nossos sofrimentos é enfrentá-los com coragem e de frente -- sua expressão tornou-se sombria -- Para ser bem sincera, Leozinho, as coisas simples é que me deixam desnorteada.
No final da tarde, entretanto, ficou evidente para Carolina, que não seria nada fácil enfrentar a tempestade. A maré estava subindo rapidamente. As ondas pareciam querer arrastar todos os rochedos com sua força. O mar, que no dia anterior parecera um lago, agora estava violento e assustador.
A moça parada junto da porta da cabana observou o céu escuro. Seu rosto não demonstrou nenhum medo, quando o silêncio foi quebrado pelo rugido dos trovões. A tempestade estava se aproximando, o céu cada vez mais escuro.
A escuridão rapidamente cobriu o sol, Carolina sentiu o vento lhe bater na pele com força. Era assombroso.
-- É o momento de me recolher.
Com um suspiro derrotado, entrou na cabana, trancou a porta e verificou se todas as janelas estavam bem fechadas.
Entrelaçando os dedos, sentou-se no sofá. A forte tormenta estava pronta para desabar sobre a ilha. Ela inclinou-se para trás e abraçou os joelhos. O vento agitava as árvores, era a fúria da natureza que sacudia toda a cabana.
A luz apagou e o dia virou noite.
Carolina respirou fundo tentando recuperar a calma. Não havia dado a devida importância aos conselhos de Elisa, agora estava arrependida.
-- Eu não posso morrer sem antes te ver, Talita -- sussurrou, triste e assustada -- Não posso!
Carolina levantou o olhar e ficou pálida quando viu a parede escura de concreto desabando como um papelão. Ela caiu e ficou imóvel, um pequeno corpo no chão. O coração dela pulou para a garganta enquanto toda a cabana desabava sobre si.
Talita pulou de susto e derrubou um copo, que espatifou-se no chão.
-- Caralh*! -- Doutor Vicente soltou o palavrão, mas logo se arrependeu -- Desculpe, saiu sem querer -- o médico olhou para ela, estava pálida, nem se mexia -- O que aconteceu? Doutora!
Talita não podia falar; estava assustada, trêmula.
-- Preciso voltar para a ilha, doutor -- ela disse de repente -- Algo de muito ruim está acontecendo.
-- Não precisa voltar. É só dar um telefonema e tudo estará resolvido.
-- Você não entende, doutor Vicente -- havia uma expressão de desespero que lhe cortava a respiração -- Uma pessoa está me chamando e eu não posso abandoná-la.
-- Quem está chamando? Não entendo! -- o médico estava confuso.
-- Uma amiga, eu estou ouvindo... -- ela continuava perturbada -- Não sei o que significa, mas preciso ir.
Talita caminhou até a porta e, antes de sair, olhou o cardiologista firmemente nos olhos.
-- Eu voltarei. Assim que puder.
Natasha estava encostada na porta do box esperando Carol terminar o banho.
-- Tudo bem aí? -- perguntou com voz divertida -- Faz quase uma hora que você está no chuveiro, o banheiro está parecendo cena do filme "O Nevoeiro".
-- A Marcela já trouxe as minhas roupas? -- ela perguntou, hesitante, observando o vulto da empresária do outro lado do box.
-- Ainda não, mas já deve estar chegando. Abre a porta que eu te ajudo a secar-se.
-- Não! -- berrou Carol, sua voz saiu um pouco mais alta do que desejava.
-- Por que não? O que tem demais eu querer ajudar a minha irmã a secar-se?
Carol queria escorrer pelo ralo. Não conseguia ver Natasha com os mesmos olhos que via Marcela. Para a empresária podia ser a coisa mais natural do mundo toda aquela intimidade, mas para ela, era embaraçoso demais. Torturante demais.
Com cuidado abriu uma frestinha da porta do box e colocou a mão para fora.
-- Passa a toalha -- agora sua voz saiu como um cochicho.
-- Deixa de ser recatada, Carol. Sou sua...
Natasha foi interrompida por batidas na porta.
-- Deve ser a Marcela. Já volto.
Era a sua grande oportunidade. Ela saiu do chuveiro, secou-se rapidamente e enrolou a toalha ao redor do copo. Quando abriu a porta do banheiro, arregalou os olhos assustada ao ver Leozinho diante dela com uma bolsa na mão.
-- O que você faz aqui no quarto? -- Carol berrou, apertando a toalha junto ao corpo -- Pelo jeito privacidade é algo impossível nessa ilha!
-- Está com medo que eu lhe agarre? -- Leozinho deu uma risadinha irônica -- Só se for para roubar esse seu brinco de gatinho. Que coisinha mais fofa! -- o rapaz colocou a bolsa sobre a cama e se virou para sair -- A paladina defensora dos oprimidos, pediu para lhe entregar. São roupas secas, Natasha contou que você foi pega de surpresa pela chuva e que parecia um pinto molhado.
Carol revirou os olhos e pegou a bolsa que estava sobre a cama.
-- Onde ela está?
-- Na sala, conversando com o rapaz da defesa civil.
Depois que Leozinho saiu, Carol se vestiu e enfiou-se debaixo das cobertas. Ela tinha pavor de trovão, e relâmpagos.
Com os olhos fechados ela sentiu seu pé ser beijado.
-- Que pé macio -- Natasha sussurrou, baixo, o sotaque sensual causou arrepios por todo o corpo da ruivinha.
-- Sua maluca! -- Carol lutou para simplesmente respirar. Ela não esperava por esse gesto.
Natasha espreguiçou-se, se deitou ao lado de Carol e ficou observando a irmã. Um silêncio confortável se fez naquele momento.
-- Não deveria ter saído com uma tempestade dessas se formando.
-- Não imaginei que viria tão rápido -- defendeu-se.
-- Nunca mais faça isso -- disse Natasha, com seriedade.
Carol cruzou o olhar com o dela, cabeça erguida.
-- Você me parece do tipo dominadora -- sustentou o olhar de desafio.
Natasha esfregou o maxilar, pensativa.
-- Você acha?
-- Acho -- respondeu prontamente, sem titubear.
Natasha sorriu.
-- Sou dominadora e não aceito ser contrariada. Ainda lhe dou umas palmadas! -- ameaçou ela.
Um trovão fez Carol rolar para cima de Natasha agarrando-se ao seu corpo com braços e pernas.
-- O que foi isso? -- a empresária puxou Carol para aninhar-se nos seus braços -- Está com medo?
Carol balançou a cabeça afirmativamente e tapou os ouvidos com as duas mãos para não ouvir os trovões.
-- Não tenha medo, pois estou aqui e vou cuidar de você -- Natasha apertou-a de encontro a si e a fez sentir-se segura.
Carol aceitou o carinho, estava gostoso demais para recusar.
-- Nat.
-- Hum?
-- Você já se apaixonou? -- arriscou perguntar ao perceber que ela estava serena e de bom humor.
-- A última vez que me apaixonei, o Mar Morto ainda estava hospitalizado.
A resposta foi bem estilo Natasha, sempre com uma piadinha sem graça.
-- E o que aconteceu? Por que não deu certo? -- A pergunta podia parecer indiscreta, mas tinha que fazer. Estava tomada pela curiosidade.
Ela hesitou antes de responder, inclinou a cabeça para trás e ficou olhando para o teto.
-- Trata-se de um assunto muito chato e eu prefiro não falar nele -- Natasha pareceu irritar-se.
Carol corou e apressou-se em se explicar.
-- Não foi minha intenção invadir sua intimidade, apenas preocupação de irmã.
Surpresa, Natasha arqueou as sobrancelhas. "Preocupação de irmã", era tão confortante ouvir aquilo. Ela precisava de amor fraternal. Receber e dar. Esse tipo de amor, na sua opinião, era verdadeiro.
-- Há cinco anos conheci uma mulher em uma balada em Floripa, ela procurava por emprego e eu não pensei duas vezes, contratei-a como recepcionista do hotel -- Natasha permaneceu em silêncio por alguns momentos, depois continuou: -- Não demorou muito pra gente engatar um namoro. Ela era meiga e carinhosa. Bem, tivemos períodos alegres e tristes em nosso relacionamento. Coisa normal, como todo casal. Ela estudou, formou-se em fotografia, fez pós e muitos cursos no exterior. Após essas especializações, ela começou a ficar mais independente. Era como se tivesse rompido correntes.
-- Como assim, Natasha? -- a história de Natasha despertou a atenção de Carol.
-- Ela dependia do meu dinheiro para tudo, só depois das especializações é que começou a ser chamada para alguns trabalhos. Trabalhos pequenos que não rendiam muito dinheiro, mas eu achava legal já que ela estava fazendo o que sempre amou, que era fotografar -- Natasha calou-se por um instante e, depois, continuou: -- Até que há dois anos, ela recebeu a proposta de um trabalho na África. O resto da história você já deve imaginar. Resumindo, "amor verdadeiro é pizza bem quentinha, o resto é armadilha de satanás pra fazer você se iludir".
Carol não soube o que dizer. Até certo ponto, sentia-se feliz por Natasha confiar nela e se abrir, mas o assunto a deixara constrangida. Natasha não fazia ideia o quanto estava correta.
Carol tinha muitas perguntas povoando a sua mente, porém, achou melhor não insistir.
-- Estou muito feliz com a sua volta. Preciso de alguém verdadeiro ao meu lado. Preciso esquecer o passado. Desde a morte do meu avô e a decepção com Mariana, tenho me dedicado demais aos negócios. Preciso curtir a vida, gastar minhas energias com coisas mais interessantes -- Natasha afastou os cabelos da testa de Carol e em seguida deu um beijo no local -- E você? Tem alguém em especial?
-- Não, não tenho ninguém.
-- Ainda bem -- disse sorrindo -- Sabia que Eva era tão ciumenta, que todas as noites contava as costelas de Adão? Eu sou assim, então, abra bem o olho. A pessoa escolhida tem que passar por uma minuciosa avaliação.
-- Bobinha! -- Carol aninhou-se. Os braços protetores de Natasha, faziam com que ela esquecesse que, lá fora, o vento rugia e a chuva devastadora os obrigavam a permanecerem no hotel, como se fossem prisioneiros.
Logo Carol adormeceu, sentindo o perfume delicioso da irmã.
A tempestade foi embora. O vento e a chuva pararam de castigar a ilha e o litoral catarinense. Agora apenas se ouvia, um teimoso pinga-pinga e o sol, que vez ou outra aparecia, era fraco e branco.
Natasha tomou o café da manhã, vestiu uma calça jeans e uma camiseta branca. Colocou um boné de beisebol e tênis para caminhada. Passou pela cozinha, pegou uma bandeja com frutas e frios e retornou ao quarto.
-- Acorda, princesa! Trouxe seu café.
Carol moveu-se, resmungou e escondeu o rosto no travesseiro.
Natasha sorriu.
-- Desculpe acordar você tão cedo, mas tenho que receber o pessoal da defesa civil. Segundo eles, houve queda de árvores, casas derrubadas, muros caídos, inundações e alagamentos registrados em vários locais da ilha.
Carol levantou a cabeça.
-- Alguma vítima?
-- A princípio, não. Os moradores dessas localidades conhecem muito bem o poder destrutivo de uma grande tempestade. Assim que recebem o alerta, eles procuram imediatamente os abrigos.
-- Se perdermos bens materiais poderemos recuperá-los, em maior ou menor tempo, com maior ou menor esforço. Porém, a vida de quem amamos, quando perdemos, não podemos mais recuperar -- Carol fez um carinho no rosto da empresária -- Vá, e por favor, ajude as pessoas que perderam as suas casas.
Natasha sentiu vontade de abraçá-la. De abraçá-la bem apertado, como se fosse louca.
Carol olhou para a boca de Natasha e então ergueu os olhos para os olhos profundamente verdes, a expressão confusa. Um arrepio involuntário percorreu seu corpo. Sabia que a forma com que a fitava não era a de uma irmã carinhosa, agora sabia o que estava acontecendo. E não era nada bom.
Natasha atravessou a enorme recepção, acenando brevemente para os funcionários da segurança que a estavam aguardando.
-- Venham comigo! -- ela continuou caminhando em direção a saída -- Já sobrevoou a ilha, Erivaldo?
-- Não, chefe. O vento continua muito forte. Tentei decolar, mas fui obrigado arremeter e na segunda tentativa quase não consegui pousar por conta dos ventos.
-- Alguma novidade, Rambo?
-- A tempestade deixou estragos e um rastro de destruição. De acordo com a Defesa Civil, os locais mais afetados foram as encostas do lado leste.
-- Menos mal -- Natasha colocou as mãos nos bolsos e respirou fundo -- Prepara o jipe para mim. Vou até a costa leste da ilha, acho que dessa vez a velha cabana não resistiu.
- Vai sozinha, chefe? Não acha melhor que eu ir junto?
- Não, Rambo. Prefiro que fique e comande tudo por aqui. Qualquer problema eu uso o rádio do jipe para entrar em contato com você.
Logo depois, Natasha entrou no carro e saiu cantando os pneus.
Fim do capítulo
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