Montserrat

    Foi o café da manhã com o clima mais estranho que já presenciei na vida. Fernanda parece não se importar com nada enquanto Carolina se incomoda com tudo. O silêncio só foi quebrado quando a médica oncologista pediu licença para se retirar da mesa. Foi quando eu e a Carol ficamos sozinhas e ela falou:

    - Por que você saiu correndo de casa daquele jeito? Eu fiquei preocupada. Nós tínhamos que conversar, você nem me deixou explicar.

    - Não precisa de explicações.

    - Seu advogado já entrou em contato comigo. Visitar Annie com sua supervisão? É sério isso, Mon? Precisamos disso? Já te pedi perdão por ter feito tudo do jeito que fiz. Eu sei que deveria ter sido mais honesta... Mas, sou eu, Mon, a mesma Carolina de sempre. Sei da sua capacidade de vingança e temo por isso. Até hoje não entendo como você teve coragem de humilhar o seu pai daquele jeito. Por tudo que vivemos, não brigue comigo.

    - Não é engraçado como não temos o total controle das nossas vidas? Podemos fazer a programação que for, mas no final temos que aceitar certas coisas difíceis de engolir. Quando te conheci, achei que ficaria com você para sempre. Logo depois meu mundo desabou pois achei que não aceitaria a minha gravidez. Mas foi tudo ao contrário, você se tornou até mais mãe do que eu, soube lidar com os primeiros meses da nossa filha melhor e sabe até hoje - sorri para ela. - De maneira inesperada, vi que não te amava como antes. O amor esfriou e eu achei mais justo terminar de maneira amigável. Sabe por que fiz questão de ser de maneira amigável? Porque meu pais se separaram brigando como dois animais irracionais e... eu jamais quis deixar de te amar. Você me ensinou tanta coisa, me ajudou tanto. Se não fosse por você, sabe-se lá se eu não continuaria com aquela vida de aparências ou coisa pior. Você me ensinou a ser mulher, sabe? Mesmo eu errando como já cansei de errar, mesmo depois do que eu fiz com o meu pai, você jamais me abandonou. Hoje, eu te amo como eu amo a Sônia e te quero para sempre comigo. Desculpe-me pelo meu advogado, ainda não consigo me controlar. Estava com raiva e com o orgulho ferido. Mas você é e sempre será a Carolina. Espero que você esteja e seja muito feliz com a folgada, digo, Fernanda. Não aguenta ver uma brasileira, hum?

    Carolina deu risada e levantou-se da cadeira emocionada. Abriu os braços me esperando, levantei e me joguei nela.

    - Ah, Mon. Eu também te amo... como uma grande amiga, finalmente. Aposto que tem o dedo da Sara nessa sua mudança. Por mais que faça besteira, você é uma boa ouvinte e é por isso que nunca desisti de você. Agora o mundo já sabe a grande pessoa que você é.

    - E parece que uma parte não está gostando muito - desfiz o abraço.

    - Tenho certeza que é uma minoria. Grandes pessoas já se manifestaram a seu favor. Estão até convocando protesto a seu favor para parar essa investigação ridícula sobre as suas contas. Você não tem nada ilegal, não é?

    - Não e você sabe muito bem disso. Por que a pergunta?

    - Você confia mesmo no Carlos? - Questionou-me.

    - Carlos? Por que o Carlos entrou na conversa? - Estranhei.

    - Foi ele quem entregou todas as doações e a ajuda aos refugiados. A descrição toda bate.

    - Não pode ser, Carol. Carlos é o meu melhor amigo, cresceu junto comigo. Tudo bem, quando teve a demissão nós perdemos um pouco do contato e depois do que aconteceu com a Annie eu não tive tempo de procurá-lo. Mas... é impossível, não é?

    - É? Ele tinha acesso a quase todas as contas, te ajudava a cuidar do dinheiro da empresa e foi de lá que você tirou a maior parte das doações.

    Voltei a me sentar na cadeira. Eu fui traída pelo meu melhor amigo.

    - Por que o Carlos fez isso? Nós não brigávamos tanto e... mas que merd*! Desgraçado!

    - Agora não adianta reclamar, um dia nós vamos descobrir porque ele fez isso. Temos que pensar agora em um jeito de parar com as fake news que estão soltando sobre você na internet. Eu preciso que você fique na sua por um tempo e deixei-me cuidar de toda parte política.

    - Por que todo mundo está falando para que eu fique em casa e não faça nada? Até a minha mãe me ligou hoje cedo para dizer a mesma coisa. Além de perguntar se tudo que estão falando é verdade e que eu estava desperdiçando dinheiro com isso.

    - Gertrude deu sinal de vida logo para falar besteira?

    - Ela está no Brasil e foi lá no hospital. Acredita que ela me questionou por que eu coloquei a Sônia como a chefe de tudo?

    - Você não precisa nem dizer o que ela disse, sei bem das besteiras que Gertrude fala - Carolina pediu para ser poupada.

    - Ela vai querer me matar quando descobri que não estamos mais juntas e eu estou com uma mulher que já foi refugiada - gargalhei.

    - Ei! Você e a Sara estão namorando? Eu sabia! Eu falei para a Fernanda que achei muito estranho você passar a noite justamente aqui. Vocês se entenderam, afinal?

    - Não sei se estamos namorando, ainda não rolou uma conversa de verdade. Mas passamos a noite juntas e fizemos algumas declarações. Também já rolou um desentendimento.

    - Ah, aposto que sim. Sara não vai baixar a cabeça para você, Mon. Não a conheço tão bem, mas pelo pouco que já vi, sei que é uma menina forte. Se você quer ficar com ela, terá que aprender a não bater de frente. Aliás, ninguém merece o seu mau humor e suas patadas gratuitas, peça desculpa para a Fernanda.

    - Eu não! Ela comeu a omelete que eu fiz com tanto carinho para a Sara. Folgada essa sua namorada.

    - Lembra-me muito esse seu lado irônico e autoconfiante.

    - Deve ser mal do tipo de mulher que você se apaixona... - Carolina confirmou. - Temos que contar para a Annie sobre a nossa separação.

    - Vamos fazer isso juntas depois, sim?

    Concordei. Como se não tivesse raiva dela minutos atrás, voltamos ao momento em que ela começou a lavar a louça que eu passei a enxugar. Me livrar de todo peso da raiva que senti foi a minha melhor decisão. Carolina é minha família.

...

    Esperei a casa estar em absoluto silêncio para sair do quarto que estou dividindo com a Annie e ir para quarto da Sara. Foi difícil ficar o dia inteiro com ela por perto sem poder abraçá-la, beijar sua boca ou dizer alguma coisa boba. Por outro lado, no final da tarde, eu, a Sara, a Fernanda e a Carol ficamos conversando por horas e acompanhando a dispersão da manifestação. Assim que o reforço chegou, os covardes saíram correndo da cidade. Tudo está mais tranquilo, já estou até planejando voltar para casa amanhã.

    Bati na porta de leve, mas não obtive resposta. Abri a porta para ver que  Sara está com o fone de ouvido e o laptop no colo no meio da cama. Linda, pensei. Entrei no quarto, fechei a porta em seguida. Foi quando ela olhou na minha direção e abriu o seu melhor sorriso.

    - Falei a pouco com a Sônia que me disse que você já contou a novidade. Ela está tão feliz.

    - A única pessoa importante que falta saber é a Annie. Amanhã, eu e a Carol vamos conversar sobre o nosso divórcio com ela.

    - Annie é uma menina legal, sei que sempre vai querer ver as mães dela felizes.

    Sentei-me na ponta da cama e esperei Sara me dar um beijo. Segurei a sua mão quando ela fez menção de voltar para a posição que estava antes.

    - Eu tenho que te perguntar uma coisa, não consigo dormir com dúvidas sobre nós.

    - Que dúvidas? - Sara assustou-se.

    - O que te fez mudar de ideia? Desculpe-me, mas eu tenho que saber onde estou pisando. Primeiro você fugiu de mim, disse que jamais ficaria com uma mulher na sua vida. No Brasil disse pela Fernanda que queria conversar para colocar um ponto final na nossa história. O que te fez ir até a minha casa, me beijar, dizer que me ama e fazer amor comigo?

    - Eu entendi que o amor que sinto por você é maior que todo preconceito que um dia tive. Quando eu descobri que te via não como uma amiga, mas como uma pessoa que eu desejava, foi assustador. Você sabe, eu cresci ouvindo barbaridades sobre o homossexualismo. Na verdade, desejar outra pessoa a não ser para ter filhos já era pecado na minha cabeça. Eu achei que me afastando, te esqueceria. Eu... eu... eu tentei te esquecer... como vou te falar isso...

    - Eu sei que você teve um namorado, Sara.

    A médica sorriu sem graça por eu ter adivinhado a sua fala.

    - Claro que você sabe. Então, eu tentei me entregar para um homem e sofri mais ainda. Não por ser homem, mas por não ser você. Desde a Síria já me encantava por garotas, mas quando eu tentava conversar com qualquer pessoa, era logo cortada e me reprimi mais ainda. Só comecei a me questionar novamente o que sou desde que te conheci. Mas ainda fiz o que você já sabe. No Brasil, pensei que tivesse lhe perdido para sempre. Nunca passou pela minha cabeça que te encontraria de novo e quando te encontro você está casada. Eu pensei que tivesse conseguido te esquecer, mas isso é impossível. Mas ainda não era problema, eu ainda não estava totalmente preparada. Depois que você foi embora, caiu a ficha que eu jamais te esqueceria e que nossa sina era viver uma longe da outra. Ainda bem que estava errada. Com a sua separação e quando te vi na televisão discursando sobre o meu povo, apaixonei-me ainda mais. Eu não quero mais fugir do que sou. Eu te amo.

    - Você tem certeza de que não vai se questionar mais? Eu não vou aguentar outra separação de você, Sara. Não nasci para sofrer por amor e a única coisa que você me fez, desde que comecei a me apaixonar por você, foi sofrer. Eu acho que te esperei demais para ainda ter que esperar se você vai se assumir ou não. Juro que pensei que teria paciência, mas você já me fez te provar e agora eu... eu quero namorar com você.

    - Está me pedindo em namoro, Mon?

    - Estou, claro. Eu quero construir uma vida com você.

    - Não se preocupe, eu tenho certeza do que quero. Eu escolhi o amor ao invés do preconceito. Eu aceito.

    - Que sorte a minha por conseguir que você se aceite e por escolher essa que vos fala que está transbordando de emoção.

    - Faz amor comigo, faz? Eu preciso te sentir de novo.

    - Eu adoro os seus pedidos, minha namorada.

    A segunda noite foi tão ou ainda mais intensa do que a primeira. Sara já entendeu todos meus gostos e pelo jeito promete melhorar ainda mais.

1 semana depois...

    A segunda-feira chegou mais rápido do que o esperado. Com a cidade de Slovenj Gradec mais calma, depois de seguir o conselho da Carolina, fiquei o resto da semana passada e o final de semana apenas em casa. O que eu não posso reclamar, já que minha companhia foi a melhor: Sara. Se eu a amo mais? Com certeza. Depois de tanto tempo, finalmente a vida está sorrindo para mim de novo.

    Entrei no meu ateliê que está sem nenhuma lembrança do vandalismo praticado.

    - Muito bom dia, Caco - disse sorridente.

    A cara do meu funcionário estava no mínimo surpreso, para não falar chocado.

    - Bom dia, senhora. João já está trazendo o seu café.

    - Obrigada, Caco. Sempre muito eficiente, gosto assim.

    É claro que o Caco ficou sem graça. Incrível como a paixão muda as pessoas. Imagina como ficarei quando me casar com a Sara? Freei meus pensamentos. Casar? Será que a Sara aceitaria se casar comigo? Antes eu preciso me divorciar no papel da Carolina. Logo depois pretendo pedi-la em casamento. Será um grande dia.

    " - Daqui quatro meses eu tenho um desfile para fazer em Paris. Se tudo correr bem, pretendo assumir o nosso romance para a imprensa lá.

    - Por que temos que assumir para a imprensa?

    Peguei um pouco do creme que ela estava espalhando pelas pernas após o banho e comecei a massagear o seu pé direito.

    - Eu sou uma pessoa famosa. Querendo ou não, um dia você será vista comigo ou vão acabar correndo atrás da novidade. Vai por mim, esconder essas coisas é sempre pior.

    - Eu não sei se estou a sua altura. Vai ter um monte de modelos por lá, eu conheço muito bem o seu trabalho.

    - Não diga bobagens, Sara. Não se preocupe que nós não vamos subir em cima de um palco e anunciar que estamos juntas. Quando eu digo que podemos assumir algo, digo ir com você, posar para as fotos e quando algum jornalista perguntar quem é você, direi que é Sara Salmen, minha namorada.

    - Entendi. Mesmo assim, acho desfile uma coisa muito chique para uma simples médica.

    Dei risada e aproveitei para elevar a sua perna para deslizar minha mão sobre ela.

    - As estrelas são as modelos. É uma pena você ser baixa para o ridículo padrão de desfiles imposto, senão te colocava para usar a minha melhor roupa para desfilar. Que tal tirar fotos? Linda assim pode ser uma modelo fotográfica de sucesso.

    - Nunca! Eu amo o que eu faço, eu amo ser médica. Você me acha tão bonita assim, de verdade?

    - Tão bonita não! Linda. Gostosa. Sedutora. Atraente. Cheirosa."

    Entrei na minha sala e liguei meu computador sorrindo pela lembrança. Meu e-mail virou uma caixa de pessoas me dando apoio e outras me culpando pelos atentados. Incrível como uma mentira pode se espalhar de maneira rápida e de uma forma que muitos acreditem. Estou vendo que vou passar a manhã toda respondendo os apoios e enviando os que contém ameaças à polícia.

    - Bom dia, minha Deusa - João entrou na minha sala após bater na porta.

    Como sempre, posicionou-se perto da porta.

    - Bom dia, querido - sorri.

    - A senhora me chamou do quê?

    - De querido, João. É isso que você é para mim, um menino querido e dedicado. Estou sabendo dos seus croquis no curso que está fazendo e gostei muito.

    - Minha Deusa, como você ficou sabendo disso? Não te contei que estou fazendo o curso para moda.

    - Pois é, e eu não entendi o porquê de não falar. Sua professora que aposta muito no seu talento me mandou umas fotos por e-mail. Por que nunca me contou do desejo de desenhar roupas?

    - Bem, eu não tinha dinheiro para pagar. Agora que minha irmã terminou a faculdade e a minha mãe terminou de construir a casa dela, sobrou uma grana e estou investindo em mim.

    - Você é incrível, João.

    Foi nítida a emoção do meu funcionário predileto, que os outros não ouçam isso. Que um dia João me perdoe por descontar o meu mau humor nele por diversas vezes.

    A caixa média que estava em suas mãos chamou a minha atenção. Vermelha e com um bilhete em cima.

    - E essa caixa bonita? Ganhou presente ou são meus cafés?

    - É uma encomenda para a senhora. Eu estava no caminho da cafeteria quando fui abordado por uma mulher elegante que mandou te trazer esse presente. Está um pouco pesado.

    João chacoalhou a caixa para tentar ouvir o que tinha dentro.

    Uma forte luz cegou meus olhos. Um estouro fez meu coração acelerar.

    Apaguei.

Fim do capítulo