Sara

    Cheguei no apartamento tropeçando nas minhas próprias pernas. Não esperei o elevador. Aproveitei que o prédio não é tão alto e subi as escadas. A lembrança do dia que fugi da Montserrat naquele lugar me fez correr mais angustiada. Alguma coisa aconteceu com ela e é horrível a sensação de desconhecimento do que ocorreu.

    Meu laptop me irritou ao ligar em câmera lenta. A página de notícias carregar então foi pior ainda. Ou a minha pressa foi a inimiga. Finalmente pude ler na primeira manchete: Montserrat Schubert was accused of encouraging illegal immigration to Europe for the anti-immigrant party (Montserrat Schubert foi acusada de incentivar a imigração ilegal para a Europa pelo partido anti-imigrante). Isso não faz nenhum sentido. Cliquei no vídeo legendado. Um homem esbravejando em um microfone aparentemente no Parlamento de algum país se materializou dizendo:

    "Um senhor que trabalhou para a senhora Schubert, aquela estilista casada com a deputada eslovena Carolina Radejovsky, a qual os senhores conhecem muito bem por sua agenda progressista contra a verdadeira família, entregou-me inúmeros papéis nos quais está bem claro o seu envolvimento em abrigos para refugiados espalhados pela Europa. Não basta fazer isso apenas no país que mora, a senhora Schubert ainda tem investido em abrigos na França, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e no país vizinho Eslováquia. Ora, senhores e senhoras aqui presentes, sabemos muito bem que dar dinheiro para essas pessoas é fazer com que sintam mais vontade de imigrar para o nosso continente. Quantos terroristas essa mulher não abrigou nos últimos dois anos? Sim, senhores! Dois anos é o tempo que ela promove ações para suporte que esses refugiados entrem em nossos países. Estão aqui, extratos e mais extratos de generosas supostas doações de bem, mas que no fundo tem a intenção de destruir a nossa cultura ocidental. Se você, na sua casa, conhece alguma vítima dos últimos atentados, peço que cobrem a conta da senhora Montserrat Schubert. Não à toa, ela é uma imigrante, lésbica e acredito que deve ser expulsa da Eslovênia o mais rápido possível. Agora sabemos de onde vem tanto dinheiro para refugiados e vamos investigar a fundo as contas dessa senhora que talvez esteja até metida com tráfico! Ou será que moda realmente dá esse dinheiro? Questionem. Tenham uma noite, senhores e senhoras e tentem dormir sem serem atacados por refugiados".

    Quanto ódio nesse senhor. Sua boca é como uma metralhadora de ofensas. Via-se que ele babava de ódio enquanto proferia palavras contra imigrantes e o nome da Montserrat. Sua mão dava pequenos socos na mesa e estava com algumas partes brancas de tanto que apertava. Houve aclamação e vaias pelo seu discurso. Outros homens parecidos com ele o abraçaram e começaram a cantar o que parece ser um hino, não entendo bem.

    Meu coração está em pedaços por ouvir palavras contra as pessoas que passam diariamente pela mesma situação que passei. Mesmo morando no Brasil, tenho acompanhado os discursos de ódio que está fechando cada vez mais a Europa. Eu me sentia impotente, pois estava longe e não podia fazer muita coisa. Mas a emoção e alegria são inenarráveis por saber que nos últimos anos a Montserrat fez pelos refugiados a mesma coisa que fez por mim.

    Se o amor que sinto pela Montserrat pode crescer ainda mais, tenho certeza de que o que já é grande, está ainda maior. Eu amo essa mulher com todas as minhas forças. Eu a amo, agora, sem medo. Se um dia eu pensei que só existia uma forma de amar, estava errada. Se algum dia duvidei do amor entre duas pessoas do mesmo sex*, amaldiçoou meus pensamentos. Eu sou aquilo que quero ser. Eu sou aquilo que meu coração ama. Eu amo a Montserrat.

    Liguei a televisão para saber se ainda estavam falando da mulher que amo. Fernanda acabou assinando alguns canais do Brasil, mesmo assim me surpreendi ao ver a Mon entrar ao vivo falando português.

Montserrat

    Se o dia já tinha sido uma aflição sem tamanho pela bomba que a Carolina jogou para cima de mim, agora acabou de explodir tudo. De forma totalmente estarrecida, vi na TV o discurso de um deputado do Partido Nacional Esloveno na Assembleia Nacional. Sou acusada, de maneira errada, por ser quase uma provedora de terroristas na Europa. Foram tantas mentiras proferidas através de um discurso tão nojento que sinto vontade de vomitar. Será que alguém vai dar bola para isso? Bem, pelo que vejo na internet e na TV, já estão dando atenção demais.

    O meu celular tocou. ‘Assessora' brilhava na tela. Raramente falo com as pessoas que promovem a assessoria para a minha empresa. Sempre deixo as decisões terceirizadas. Estranhei.

    A conversa foi longa. Uma tal de Kristen me alertou para o perigo e pediu para que eu não me pronunciasse durante os próximos dias. Segundo a assessora, ela vai soltar uma nota oficial dizendo que são acusações falsas e que eu apenas doei para instituições que abrigavam refugiados por se humanizar com as situações extremas.

    Achei a assessora um tanto covarde. Uma das poucas verdades que o deputado disse foi que doei para abrigos. Ele só esqueceu de mencionar que ajudei essas pessoas a se inserirem na sociedade, dando a chance de eles terem os mesmos direitos que qualquer outra pessoa. Por que eu devo ficar calada em uma situação em que sou acusada por absurdos? O homem deu a entender que sou traficante! O telefone do ateliê não para de tocar, e-mails não param de chegar e mensagens no celular estão se acumulando.

    Peguei minha bolsa, decidida a ir direto para casa. Sei que disse para a Annie que passaria na casa da Charlotte para vê-la, mas eu não tenho cabeça para isso. Eu preciso é deitar-me na minha cama e ter uma boa noite de sono. A internet é instantânea, amanhã será um outro dia, tudo ficará bem.

    Quando cheguei perto da porta, ouvi um barulho de conversa. Abri para ver quem era. Quase fiquei cega com inúmeros flash que saiu das câmeras fotográficas dos jornalistas. Não é possível que a assessora não tenha previsto isso. Como eu vou sair daqui agora?

    Abaixei minha cabeça e coloquei minha bolsa no meu rosto para me proteger. Tropeçando em algumas pessoas e microfones, consegui quase chegar no meu carro estacionado. Foi quando uma pergunta se sobressaiu por ser em português:

    - A senhora não vai se defender das acusações feitas pelo deputado Alekst Korošec? Ele a ofendeu, não? Também sou brasileira e me senti ofendida.

    Sorri para a jornalista. O Globo Repórter tem razão quando encontra brasileiros em todo lugar do mundo.

    - Tanto tenho orgulho das minhas origens que vou te responder em português. Eles dizem que vão ajudar. Eles quem? As autoridades dos países? Quem são essas pessoas para dizer que partes do mundo é exclusiva para alguns? Discursos como desse deputado e de outros homens com seus paletós, protegidos e privilegiados, entram facilmente nas cabeças fracas de outras pessoas. Eles não são tão diferentes dos terroristas que abusam do discurso de ódio com o mesmo objetivo. Eu já fui ignorante como esse homem. Infelizmente, já me achei exclusiva no mundo e deixei sair da minha boca palavras parecidas com as dele. Até que resolvi conhecer o desconhecido. Foi fazendo trabalhos voluntários que percebi a real situação dos refugiados. Diferente do que o deputado falou, não patrocinei a vinda de nenhum refugiado. Estranha-me que o deputado não se incomodou por eu estar fazendo o trabalho que eles não cumprem nem para seus eleitores. Com o meu dinheiro, vi jovens refugiados se qualificarem para emprego mudando de vida. Com o meu dinheiro, ajudei famílias a se estruturarem no país que fugiram para sobreviver. Um refugiado, deputado, não escolhe sair do seu país, ele está fugindo da morte certa. Vocês, cidadãos comuns, não estão em guerra. Não são nós contra eles. Quem promove a guerra são as autoridades que se apoiam em discursos como desse deputado esloveno. Você que está me ouvindo - olhei diretamente para a câmera. - Você pode fazer o bem para esses refugiados. Eu faço o que eu posso e não me arrependo quando vejo o sorriso de esperança das crianças indo para a escola pela primeira vez. Vocês também podem, entrem nessa guerra de discursos pela paz comigo.

    Quando terminei de falar, a jornalista brasileira sorriu e me agradeceu. Os outros ficaram sem entender nada, mas eu não me importei. É questão de segundos para que legendem e todos entendam o meu recado.

    Eu estou de alma lavada.

....

    Cheguei em casa estranhando um movimento maior desde o centro da cidade até os bairros próximo que moro. Mesmo assim, respirei fundo de alívio. Que dia! Espero que eu não tenha mais nenhuma surpresa. Eu mereço um pouco de sossego. Tomara que a minha entrevista cesse as acusações e o discurso do deputado contra mim. Carolina deve estar possessa com essa polêmica toda. Pensei em ligar para ela, mas ainda não me sinto pronta para isso.

    Adentrei o meu quarto, tirei minhas botas e comecei a tirar minha camisa social branca. O toque da campainha me fez parar.

    - Era só o que me faltava, jornalista invadir a minha casa - bufei.

    Continuei desabotoando a camiseta, mas não consegui ignorar o toque mais uma vez que dessa vez me fez parar. Achei melhor atender ou pelo menos verificar quem é pelo olho mágico. Vai que a Charlotte resolveu prazer a Annie.

    No caminho, comecei a abotoar a camisa tudo de novo, ajeitei-me melhor e olhei no olho mágico. Meu único sentimento foi o medo. Tenho medo da minha mente estar me traindo e me fazendo imaginar o que os meus desejos mais profundos querem ver.

    Abri a porta devagar. Não estou louca. Ela está aqui. Sara bateu na minha porta. Inacreditável.

    Pedi para que ela entrasse com um aceno nas mãos. Deixei a porta deslizar pelos meus dedos. Assim que bateu, tranquei-a. Fiquei com medo de olhar para trás e não ter ninguém. Mas ela está aqui, sorrindo como nunca.

    Eu não acreditei quando os seus braços passaram pela minha cintura. Sara me abraça emocionada.

    - Você é incrível, Mon. Obrigada por cuidar do meu povo. Obrigada por brigar por nós. Eu te amo.

    Afastei um pouco a mulher que ocupa meu coração e mente, mas mantive minhas mãos nos ombros dela. Seus olhos fitaram os meus com coragem. O mel parece derreter-se. Eu não ouvi coisas, Sara disse que me ama.

    Fechei meus olhos quando seus dedos da mão direita começaram a fazer carinho no meu rosto. Aproveitei e fiz o mesmo subindo as minhas mãos para sentir a pele macia de seu rosto. Quando abri os olhos, a vi beijar a minha mão de forma carinhosa. É a deixa para que eu complete o que faríamos anos atrás, antes de sermos interrompidas.

    Não encontrei nenhuma resistência quando senti a respiração dela ansiosa na minha boca. Perto demais, nossos olhos não se desgrudavam. Nossos lábios se encontraram. Antes que eu fechasse os meus olhos para a entrega, Sara fechou os dela. A partir dos primeiros toque, esqueci-me de todos os problemas. Minha concentração voltou-se para sentir o gosto que sempre desejei.

Sara

    Os lábios da Montserrat são macios e firmes. Eu fiquei um pouco sem reação pela sensação enlouquecedora de que o seu beijo me proporcionou de primeira. Senti sua mão na minha nuca, isso fez com que eu acordasse para aproveitar o momento. Parece que a boca da Mon é o lar que sempre procurei. Nas suas mãos é onde me encaixo. Minhas mãos adoram o contato com a sua pele coberta pela camisa social. Eu estou  adorando brincar ao mesmo tempo com a sua boca na minha e minhas mãos em suas curvas.

    Para encontrar ar e respirar, encerramos o beijo. Um delicioso beijo. Com nossas testas ainda unidas, Montserrat aproveitou para unir nossos lábio mais uma vez antes de levantar a cabeça.

    - Desse sonho não me deixe acordar - sorriu ao dizer.

    - Parece mesmo, mas posso te garantir que não é sonho - seu sorriso cresceu ainda mais. - Você estava certa. Sempre esteve. Eu senti algo por você, da mesma forma que você sentiu por mim. Foi aos poucos, sabe? Quando nos abraçávamos, cozinhávamos ou simplesmente sentávamos juntas para conversar. Eu já sabia que o que eu sentia não era uma simples amizade. Desejei sentir essa sua língua na minha, como fizemos agora. Senti que te pertencia. Eu te amei todos esses anos em silêncio, com medo de que fosse errado. Fiquei dias de estômago vazio como punição quando tive sonhos nos quais estávamos nos beijando como agora. Eu era uma ignorante e sofri por isso. Eu poderia ter evitado todo esse sofrimento se tivesse entendido que o amor é a lei maior.

    - O amor nunca é uma estrada certinha e reta. Às vezes faz curvas que demoramos aceitar e entender. Nós precisamos passar por tudo isso para crescermos como seres humanos e mais ainda para fortalecer o amor que em um primeiro momento pode ser fraco. Se para mim era fácil dizer que te amava, talvez não valorizasse da mesma forma que vou te dizer agora: Eu te amo, Sara.

    - Eu te amo, Montserrat.

    Nossos lábios se acharam com facilidade. Agora com mais intensidade e intimidade. Suas mãos firmes na minha cintura me puxaram para que nossos corpos se tocassem. Dar uns amassos com meu ex-namorado não chegam nem aos pés do que é a sensação de estar nos braços da pessoa que se ama de verdade.

    Ouvi vozes que pareciam em sintonia para dizer alguma frase. Montserrat deve ter ouvido também já que olhou para trás assustada após nossas bocas se separarem.

    - Você está ouvindo? Está se aproximando - Montserrat preocupou-se.

    - Parece que estamos em um estádio de futebol. Ouço gritos de protestos de uma torcida quando um árbitro marca uma falta inexistente.

    - É... protestos! Droga.

    Montserrat separou-se de mim e correu para a janela. Tirou um pouco da cortina para ter a visão para a rua. Quando abaixou sua cabeça, senti medo.

    - Eu nunca vi essas pessoas aqui na cidade. Pela quantidade de carros, eles vieram de fora. É um protesto contra mim, eles não estão para brincadeira.

    - Temos que sair daqui!

    - Como, Sara? A rua está toda bloqueada por eles... Espera! Podemos pedir ajuda para o vizinho de fundo e sair pela casa dele na rua detrás.

    Corremos para os fundos da casa, um jardim pouco cuidado foi o cenário que me deparei. Pouco importava no momento, salvar as nossas vidas é o mais importante. Ainda mais agora que pretendo uni-las para sempre.

    Com muita gentileza, o vizinho nos ajudou a escapar das pessoas que estavam gritando para que a Montserrat deixasse o país emprestando seu carro. Alguns chamavam-na de traidora e pediam para que ela abrigasse os refugiados na casa dela já que ela quer tanto ajudar. Mal sabem que ela fez isso e essa refugiada foi uma ingrata. Imagino o que falariam se descobrissem que essa árabe refugiada beijou outra mulher e apesar de toda tensão está se sentindo nas nuvens.

    Montserrat nos levou para o apartamento que nos apaixonamos. Não existe melhor lugar no mundo para recomeçar. O cheiro dela está de volta aquele lugar que cheio de significados.

    - Acho que estamos protegidas. Quase ninguém sabe que eu morei aqui e confio nos vizinhos - disse assim que entrou no apartamento.

    - Eu estou com medo pela sua integridade física. Pessoas com ódio são incapazes de raciocinar e dialogar, sempre partem para a violência.

    - A polícia local foi avisada. Estão cercando a praça para dispersar os preconceituosos, não se preocupe. Tudo ficará bem.

    Assenti para ela e olhei ao redor.

    - Você se importa de trazer aquele seu retrato maravilhoso para cá? - Apontei para onde ele ficava na sala.

    - Qualquer pedido seu é uma ordem, Sara - respondeu me abraçando pela cintura e afundou seu rosto no meu pescoço.

    - Então eu quero um beijo também.

    - Hm... onde foi parar aquela Sara que gritou quando viu as minhas pernas?

    Senti meu rosto queimar. Eu estou me sentindo tão à vontade com ela que não consigo medir as minhas palavras. Eu apenas a desejo no momento.

    - Assim você me deixa sem graça, Mon - abaixei o meu olhar.

    - Eu prefiro essa Sara, sem pudor nenhum. Eu não vejo a hora de sentir o seu toque nas minhas pernas outra vez. Sabe que tive que tomar um banho gelado naquele dia? - Deu risada.

    - Hoje você não terá que tomar nenhum banho gelado - ousei.

    Montserrat olhou surpresa para mim. Seu rosto queria sorrir, mas se conteve.

    - Sara... eu posso esperar... - ponderou.

    - Não me faça perder a coragem, Mon. Eu sei muito bem o que quero, porque quero. Eu não vou conseguir ficar na mesma casa que você e evitar que meu corpo queira o seu.

    A única coisa que se ouviu nos próximos minutos foram o estalar de nossos beijos mais profundo. Em seguida, Montserrat me puxou para andar na direção do seu antigo quarto.

    - Eu estou... no quarto de hóspedes...

    Ela não tinha condições de falar, apenas entendeu o recado e me guiou até o local. Quando me deitei na cama, Montserrat passou as pernas por mim e sentou-se no meu quadril. Retirou a sua camiseta, em seguida tirei seu sutiã vermelho. Eu fiquei parada, admirando e sem saber o que fazer exatamente. Percebendo isso, Mon pegou minha mão e colocou em cima de um deles. A partir daquele momento eu entendi que toques são fundamentais e deliciosos. Não demorou para que ela tirasse a minha roupa e me deixasse apenas de calcinha.

    Mordi os lábios quando passei minhas mãos nas pernas dela. Aquela pele tão macia como da primeira vez que a toquei. Ela saiu de cima de mim e me pediu para que eu beijasse as pernas dela. Atendi seu pedido só para vê-la se deliciar com meus lábios passando por toda a extensão. Montserrat tem um corpo fantástico, mas eu já tinha elegido a parte que mais gosto.

    Voltando para cima de mim, sem quebrar o contato com os meus olhos, senti minha calcinha deslizar e sair pelas minhas pernas. Com alguns beijos na minha barriga, Montserrat desceu e vi estrelas como nunca tinha visto na minha vida pela forma que ela deslizava sua boca na minha intimidade.

    Montserrat, minha estrela maior.

    - Eu te amo - murmurei sem forças.

    - Eu também te amo, meu amor. Minha Sara.

Fim do capítulo