Boa tarde a tod@s,
Devido a questões pessoais, estou fugindo um pouco ao nosso horário usual mas mantendo o nosso dia, então segue o próximo capítulo de AEL.
Contudo, preciso lhes apresentar duas incríveis mulheres que agora farão parte mais ativamente da trama. São elas a Emanuelle Chermont (Manu) e a Melanie Verger. Dessa maneira, segue a foto de como eu as imagino.
Espero que gostem e que deixem a sua opinião nos comentário.
Capítulo 36 As Memórias de Melanie Verger
A incredulidade e o estarrecimento nem se quer chegavam perto de definir o que Delphine estava sentindo naquele instante com aquele livro em mãos. Não conseguia acreditar que desconhecia algo assim, algo aparentemente tão intimo e pessoal de seu grande amor. Estava realmente impressionada com o seu desconhecimento daquilo e sentia que precisa entender o porquê de sua ignorância.
Acariciou a capa ainda sob o plástico que o envolvia, com denotada devoção enquanto se perguntava em que momento da vida da Melanie ela o havia escrito. Com cuidado e reverência, o retirou de sua capa plástica e verificou que era feito dos mesmos materiais usados nos livros da Ordem e lembrou-se que foi ela quem escolhera cada detalhe, desde o papel e a tinta, até a capa para a produção daquelas importantes obras.
- Foi em Amsterdã... – Suspirou baixinho, lembrando-se do dia exato quando compraram tudo o que precisavam para o registro das memórias da Ordem do Labrys, ideia que fora da própria Melanie pois ela defendia o fato de algo tão grandioso e antigo merecia os devidos registros, mesmo que tivessem de ficar em segredo e se só pudesse ser acessados por integrantes daquele grupo fechado. E com o livro em mãos, Delphine pode constatar que Melanie também tinha outros planos em mente. Riu docemente, pois sabia o quanto sua amada era surpreendente. E ali, mais de 300 anos depois ainda conseguia surpreendê-la.
Hesitou algumas vezes antes de abri-lo, pois estava completamente tomada pela emoção e a expectativa do que poderia encontrar ali dentro. Tinha a certeza de que ele não existia antes de terem se conhecido justamente pelos materiais que era feito, o que lhe dizia que ele fora escrito em algum momento após o envolvimento delas.
- Mas quando? – Questionou-se baixinho enquanto continuava a acariciá-lo com carinho. Olhou em direção ao quarto e viu que o silêncio imperava ali, indicando que Cosima estava no mais profundo dos sonos e suspirou enquanto se recostava no sofá, preparando-se para a leitura que faria. Por um segundo, questionou-se se deveria, pois era algo pessoal e que talvez Melanie não quisesse que ela soubesse, afinal de contas nunca lhe contou sobre ele nem tão pouco o deixou para ela. Pelo contrário, ele fazia parte do seu legado que foi entregue a Cosima.
Foi inevitável experimentar uma pequena pontada de frustração com aquilo, mas resignou-se, pois sabia que deveria confiar no julgamento de Melanie. Aprendera aquilo a duras penas e ao longos dos anos em que estiveram juntas. Novamente riu das lembranças que dançaram em sua mente e espreguiçou-se, depositando seus pés sobre a mesa. Foi então que esbarrou sem querer no notebook de Cosima que saiu da tela de descanso e evidenciou um arquivo aberto que continha uma data que imediatamente capturou a atenção de Delphine e fez seu sangue gelar.
“Nice, 14 de setembro de 1660.”
Aquela data antecedia o pior dia de toda a longa existência de Delphine! Evitou com todas as suas forças, pensar naquele dia, mas as imagens vieram a sua mente como uma enxurrada, com a clareza e a nitidez de um filme. Os sons, os cheiros... Tudo veio à tona. Seu estomago revirou e foi impossível para ela, segurar as lágrimas. Soltou o livro de lado e levou ambas as mãos ao rosto e como se fosse envolvida pela mais profunda das dores, soluçou tamanha era a violência da dor que as lembranças lhe causaram.
Esforçou-se ao extremo para não fazer muito barulho e acordar Cosima, pois sabia que se ela a visse daquela maneira, diante daquele livro, seria impossível de explicar qualquer coisa com um mínimo de sanidade. Respirou fundo várias vezes, buscando controlar seu coração e o latejar de sua cabeça. Só então olhou de lado e viu que o livro havia caído ao seu lado com a capa aberta e então Delphine pode ver que havia uma dedicatória ali e seu nome estava nela.
Com a mão trêmula, o alcançou e assim que leu as primeiras palavras, mordeu os lábios e cerrou os olhos com força, expulsando inúmeras lágrimas que insistiam em vir à tona.
Aquele livro de memórias de seu grande amor havia sido escrito para ela! Tentou se preparar para o que leria, mas sabia que seria em vão, pois nada que ela pudesse imaginar, poderia prepara-la para o que encontraria naquelas palavras e isso ficou evidente já na dedicatória inicial.
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Ao meu grande, único e eterno amor, Evelyne Chermont!
Eve, Minha vida! Cada palavra, cada sentimento e cada lágrima contida nessas páginas são para você e por você. Aquela que me ensinou o que era a vida e a como amá-la da forma mais intensa já imaginada.
Minha amada! Sei o que me acontecerá no dia que se segue a esse, mas não o temo. Não temo meu destino, pois sei que fui sua e sempre o serei. Sinto isso com uma certeza que sei que dúvidas, afinal finges ser descrente não é mesmo? E essa é uma das coisas que mais amo em você, a força com que defendes o que acreditas e o que não acreditas. És minha fortaleza, meu porto seguro e meu lar.
Portanto, em meus últimos dias, aqui de meu cárcere, eu lhe escrevo e lhe dedico as minhas memórias que também são suas. Rogo às deusas para que esse livro chegue em suas mãos e lhe traga conforto após minha partida.
A amo com todas as forças de meu ser. És minha vida, minha paixão, meu destino. E o que vivemos foi, é e sempre será o mais extraordinário dos amores.
Fique viva! Fique viva por mim, por nós e por nossas irmãs!
Com amor,
Melanie Chermont (como eu adoraria que fosse)
Nice,14 de setembro de 1660
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As lágrimas caiam aos montes e um sorriso bobo completava a expressão de Delphine que lia aquela dedicatória repetidas vezes e aquela assinatura peculiar garantia a legitimidade daquele texto pois aquele era um dos segredos mais íntimos entre elas. A vontade de Melanie ser possuir o sobrenome de Evelyne e de sua mãe.
Delphine Sabia agora que deveria ler aquelas palavras, aqueles relatos, mas lhe doeu saber que ela os escreveu enquanto estivera encarcerada, nas masmorras de seu próprio lar, o Palácio Verger. Na sela bem ao lado da sua e ela nem se quer sabia disso.
Sentiu-se estremecer ao lembrar-se de toda a dor que fora infligida a seu corpo por repetidos dias. Tudo o que lhe fizeram todas as dores, ferimentos e torturas não foram nada perto de seu maior sofrimento. Era impossível para ela não lembrar-se de tudo aquilo com aquele livro em mãos. Contudo os momentos de maior tristeza e dor que viveu foram antecedidos pelos mais plenos e felizes de toda a sua existência. Até aquele momento. Voltou a olhar para o quarto e sorriu imensamente, pensando que toda a dor, toda a espera e sofrimento valeram a pena. Ela estava em sua vida novamente. E como aquele pensamento lhe acalentando a alma, virou a primeira página e logo voltou a se surpreender com mais uma lembrança vivida que teve. A impressionante memória de Melanie que, mesmo presa, lembrava-se de todos os pequenos detalhes, até mesmo das datas.
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Nice, 12 de maio de 1655.
Eu poderia começar minhas memórias desde a minha mais tenra infância com as lembranças da minha adorada mãe Julianne. Ah Eve, eu adoraria que você pudesse tê-la conhecido. Certamente vocês teriam gostado uma da outra. Minha vida era completamente diferente enquanto ela esteve comigo, antes que a amargura e a tristeza a levassem.
Foi graças a ela que desde muito cedo eu desenvolvi meu gosto pela leitura. Ela sempre me dizia que os livros tinham o poder mágico de libertar nossas mentes e nos fazer viajar. Até hoje eu lamento ela ter tido a infelicidade de ter casado com Armand, e sempre que eu a questionava sobre isso ela me sorria docemente e dizia que tudo tinha um motivo de ser e de que ela precisou casar com aquele homem desprezível para que eu pudesse existir.
Recordo-me que foi justamente em uma dessas vezes que a questionei sobre como eu nasci. De como acontecia a concepção. Ela estava escovando meus cabelos do jeito que só ela fazia e estávamos em meu quarto, com as minhas amas junto a nós. Ela olhou para Alba e trocaram olhares confidentes, foi então que, com certo embaraço, ela me explicou como funcionava e para que serviam as genitálias de meninos e meninas. À medida que ela narrava aquele evento, foi me dando um retrocesso em minhas entranhas e eu disse em náuseas:
- Jamais deixarei que um garoto coloque o negócio dele em mim!
Alba e minha mãe riram da minha atitude inocente. Mal sabiam elas que eu dizia a verdade não é mesmo? Eu havia acabado de completar 10 anos de idade. Foi nesse mesmo dia que fiz a pergunta que quase custou a vida de Alba. Em toda a minha ingenuidade e desmedida curiosidade eu quis saber mais.
- Mas e se eu não quiser ficar com garotos e só quiser ficar com meninas? Eu posso?
Minha mãe ficou séria e apreensiva com aquela pergunta, pois era um assunto considerado pecado, punível com a morte, como bem sabes e ela não soube como me responder aquilo, mas Alba sabia já que aquela era a condição dela e eu só vim saber disso muitos anos depois.
- Sim menina Mel! Isso é possível de acontecer embora seja algo proibido. – Ela disse em tom de cochicho. Alba sempre foi uma amiga de minha mãe e alguém a quem sempre amei. – É considerado pecado pela Igreja.
- Então que dizer que sou uma pecadora? – Me desesperei
- Porque diz isso Melanie? – Minha mãe ficou visivelmente preocupada.
- Porque só quero estar com a Anne, a Victória e a Nicoleta... – Disse em um só folego enquanto percebia o semblante aliviado de mamãe, pois eu me referia às minhas amigas.
- Não Melanie. Não és pecadora! Mas esqueça isso certo? Veja como ficou? – Mamãe havia terminado de trançar meu longo cabelo. Lembra que eu o detestava? Mesmo você dizendo que o amava. Mas o meu desgosto se devia ao fato dele me lembrar, constantemente de quem eu era filha. Mas como era mesmo que você dizia?
“O vermelho de seu cabelo é vivo e vibrante! Me lembra paixão e amor! O de seu pai é frio e opaco, me lembra morte.”
Sempre tinhas algo para me dizer que me animava. E dizias que eu era a otimista.
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Delphine pausou a leitura enquanto procurava se recompor de tudo o que estava vivenciado naquele instante, pois o poder daquelas palavras tinham a capacidade de fazê-la se transportar até àquela época, como se pudesse vivenciar a tudo. E voltou a reconhecer o poder que Melanie tinha sobre ela, o de sempre lhe fazer mostrar o que tinha de melhor.
E estava experimentando aquele poder novamente. Estava sendo modificada em seu intimo pela pessoa que repousava alheia a tudo aquilo, há poucos metros dali. Considerou-se uma pessoa privilegiada por poder ser verdadeiramente amada por seres tão lindos.
Mas queria saber mais e então retomou sua leitura.
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Mas, aquela breve e inocente conversa sobre a concepção chegou aos ouvidos de meu pai através de uma das amas de minha mãe, a quem meu pai frequentava seus lençóis. E esse, enfurecido, castigou Alba com intensidade, quase lhe causando a morte e fazendo-a perder a visão de um dos olhos. Essa foi a punição por ela ter me falado sobre o mais “nefando” dos pecados segundo meu pai e a igreja católica.
Como odiei meu pai e a maldita igreja naquele dia!
Mas, deves estar se perguntando por que escolhi esse dia para começar a narrar minhas memórias aqui. Mas foi justamente para destacar o momento exato em que eu havia despertado paras as curiosidades que me levariam até a você.
Não sei se lembras, mas alguns anos depois eu acabara de completar 18 anos e havia convencido meu pai a me deixar viajar à Paris sob o pretexto de começar a preparar o meu enxoval para um possível casamento iminente, pois, segundo ele, eu já deveria estar casada naquela altura.
Na verdade eu realmente desejava retornar a Paris, aonde eu não ia desde a morte de mamãe, a mais de sete anos. Precisava respirar aquela atmosfera, ir à ópera, à biblioteca e contemplar as maravilhas que existiam ali graças ao Sr. Gutemberg e a sua fabulosa máquina de prensar e reproduzir livros. Para a minha sorte, apenas Alba e Penelope foram comigo e não se importavam em nada com as minhas escapadas para as exposições ou saraus. E eu precisava, desesperadamente, conhecer a novíssima Biblioteca Richelieu-Louvoi, inaugurada a menos de 20 anos e com um acervo maravilhoso de livros medievais e da antiguidade clássica. Foi numa dessas idas que a minha vida começou a mudar completamente.
Eu estava imersa em minha leitura da Ilíada, para ser mais precisa, eu lia o trecho em que trazia o relato da participação das Guerreiras Amazonas ao lado dos troianos, foi quando percebi um movimento estranho de um grupo de quatro mulheres assim que uma delas mostrou algo às demais. Como bem sabes, a curiosidade é meu mal e logo Homero perdeu todo o meu interesse que agora pertencia àquelas mulheres. As vi partindo para os fundos daquele imenso salão e não me contive e as segui. Pude perceber que elas se vestiam de forma diferente, nada extravagantes como as mulheres de Paris daquele momento, pareciam não seguir a ultima tendência em moda e inclusive usavam peças que lembravam roupas masculinas.
Não ousei ir até o corredor que estavam, me contive em entrar num anterior e enquanto fingia ler algo sobre direito canônico, procurei ouvir tudo o que tinham a dizer e vi quando retiraram de um dos livros uma espécie de folheto. Foi então que ouvi, pela primeira vez, o sobrenome que mudaria minha vida para sempre.
“Chermont!”
Sabes do que estou falando não é? Aquelas mulheres haviam encontrado um dos folhetos convocatórios para uma reunião secreta que seria ministrada pela famosa – no submundo feminino europeu – Emanuelle Chermont. Era a forma que a Ordem utilizava para disseminar suas ideias e buscar novas adeptas, além de tentar identificar aquelas que possuíam algum dom especial.
Contudo, aquilo me instigou a querer saber mais, porém algo que elas comentaram em seguida aguçou ainda mais a minha curiosidade.
- Será que “ela” estará lá? – Uma mulher de cabelos negros questionou às demais.
- Faz tempo que ela não participa das reuniões da mãe dela. – Outra ressaltou.
- Ah... Como as reuniões são mais interessantes com a presença dela – Suspirou uma terceira. – Mas uma de nós teve o privilégio de ter estado nos braços da deusa... – Todas se dirigiram para uma mulher morena, de feições perfeitas e cabelos escandalosamente curtos.
- O céu existe ‘mes amis’! – Abanou-se! – Assim como o inferno, na mesma proporção. – A vi mudar de expressão instantaneamente. Não compreendi bem a que se referia ela. Perdoe mas eu ainda era uma moça ingênua.
Então eu ouvi aquele famigerado apelido pela primeira vez.
- ‘La Déesse de Malheur’[1]! – As três suspiraram.
Ambas sabemos a quem aquelas mulheres se referiam, não é mesmo? Mas naquele momento eu não tinha dimensão a que elas queriam dizer, mas fiquei ainda mais interessada. E hoje, recordando aquele breve diálogo entre elas, sinto uma pequena pontada de ciúme me consumir. Sei agora que era sem motivo algum, mas você merecia sua fama!
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A loira que lia aquelas memórias riu, deliciada com o reconhecimento da culpa e do título que possuía naquela época e que muito bem definia o seu estilo de vida. Tão condenável para a época e justamente por isso ela o adorava. Mas tudo mudou no dia em que elas se conheceram. Retomou.
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As vi depositarem o folheto de volta no mesmo livro e o devolverem a estante exatamente para que outras tivessem acesso a ele. Esperei que se afastassem o suficiente e corri para ver o que leram. E lá estava aquele nome e aquele símbolo. O labrys, logo abaixo do nome de Manu. Mas, como bem sabes, aquela não foi a primeira vez que me deparei com aquele símbolo.
Essa vez a que me refiro se deu quando eu era mais jovem e voltava de uma de minhas incursões proibidas para cavalgar e aproveitar a natureza. Havia perdido a noção da hora e já caia a noite quando eu retornei e só havia uma janela desprotegida para que eu subisse e pudesse entrar por ela sem ser vista. Escalei os três pisos até lá e me vi dentro de uma das salas privadas de papai. Várias velas iluminavam sua mesa, indicando que ele esteve ali há pouco, estudando aqueles textos. Não me contive e os olhei. E logo esse mesmo símbolo chamou minha atenção, pois ele marcava uma série de folhas que haviam sido rasgadas de algum lugar e estavam repletas de desenhos, letras e símbolos que eu desconhecia até então.
Mas fui pega!
Foi nesse dia que ganhei a primeira das inúmeras cicatrizes que aquele homem faria em mim. Refiro-me a essa que tenho logo abaixo de minha sobrancelha esquerda, que foi devido ao corte profundo causado pelo choque de minha cabeça contra a quina da mesa onde estavam aqueles textos e para onde ele me lançou com violência, me deixando desacordada por alguns instantes.
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Delphine cerrou os punhos e os lábios. Lembrando de todas as atrocidades que aquele crápula cometeu contra a própria filha e pela milionésima vez, arrependeu-se de não tê-lo matado quando teve a chance. Antes dele se tornar a besta imortal que iria destruir a sua vida. Recostou a cabeça novamente, desviando o olhar do livro. Precisava afastar as dolorosas lembranças causadas por ele. Lembranças de tudo e de todas as pessoas que ele tirou dela. Não poderia deixar a ira consumi-la. Não ali. Tudo o menos precisava era perder o controle em pleno apartamento de Cosima. Respirou fundo e buscou seu autocontrole. Assim que tranquilizou sua aflição e prosseguiu.
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Mas falemos de coisas mais interessantes! Decorei todas as informações daquele panfleto e decidi que iria até lá. Mesmo que precisasse sair escondido de minhas amas, uma vez que o encontro iria ocorrer num horário não recomendável para moças andarem na rua sem a companhia de suas amas ou de um homem.
Corri para a residência onde estávamos hospedadas e passei a contar as horas. Procurei disfarçar ao máximo a minha ansiedade, mas falhei, pois Alba me conhecia desde que nascera e percebeu que algo estava me deixando daquela maneira e é claro que quando me despedi para me recolher mais cedo do que o usual ela teve a certeza de que eu escondia algo. E assim que desci pela janela sem maiores esforços, ela me esperava embaixo, vestindo uma capa escura discreta e me estendendo outra. A olhei assustada de início, mas depois a agradeci com um sorriso cumplice. E mais uma vez ela proferiu aquela mesma frase.
- Menina Mel, não tens jeito! – E seguimos as duas para o endereço que eu havia memorizado. Afastamo-nos um pouco do centro e quase 1h de caminhada depois avistamos pequenos grupos de mulheres que me pareceram suspeitas. Decidimos segui-las e não teve erro. Logo estávamos passando pelo pórtico de um palacete que pertencia a Madame de Degrasi.
Lembro-me como se fosse hoje do estranhamento que senti ao ver tantas mulheres reunidas em só lugar sem a presença de nenhum homem e o que mais capturava a minha atenção era o fato de ver tantas delas de mãos dadas a trocarem carícias umas com as outras. Meu estarrecimento era evidente e Alba tentou me tranquilizar, justamente lembrando-me daquela conversa que lhe custou um de seus olhos e lhe obrigava a usar um discreto tapa-olho.
Algo foi despertado em mim naquela noite. E assim que adentramos o casarão e retiramos nossos casacos eu experimentei algo até então inimaginável para mim. Todas as mulheres ali me olharam com denotado interesse e, muitas eu diria até com cobiça. Eu já havia despertado aquela reação em rapazes, mas nunca em mulheres e aquilo me assustou a principio, mas muito rapidamente passou a me agradar. Mas logo as atenções voltaram-se para outra pessoa. E foi a primeira vez que estive frente a frente com a grande Emanuelle Chermont, até então uma estranha para mim.
Nunca havia visto uma mulher como aquela. Tão altiva e tão segura de si. De uma elegância e charme impressionantes. Lembro-me exatamente como ela estava vestida. Um maravilhoso vestido azul turquesa, a cor que ela mais adorava. Ele era justo em seu abdômen e deixava o colo de seus seios escandalosamente à mostra, assim como seus longuíssimos braços. Mas o que mais me chamou atenção nele foi que, ao contrário das demais, ela não usava sinta nem armação para acentuar suas curvas, pois ela sempre dizia que eram “amarras” de nossas liberdades.
Era como se ela se bastasse. Não precisasse de nada nem de ninguém ao seu lado, mas ainda assim ela possuía uma aura aglutinadora e assim que iniciou sua fala, arrebatou toda a plateia e capturado o meu fascínio pleno. E quando começou a falar, parecia que toda a plateia estava vibrando devido como se uma pulsação nos tivesse atingido. Eu juro que era algo que poderia ser sentido no ar. A maestria com que ela falava sobre o poder feminino e sobre a deusa mãe era apaixonante. Muitas suspiravam, outras acenavam intensamente concordando com tudo o que ela dizia e por várias vezes era aplaudida de pé.
A eloquência e segurança de sua fala, aliada a sua maturidade só vistas em homens que falavam em público era outra faceta impressionante dela. Mas entenda, não estou dizendo que achei a Manu masculina ou coisa do gênero. Muito pelo contrário ela era a mulher mais linda que já havia visto e em nada perdia a sua feminilidade.
Era como ela sempre dizia: ‘uma mulher não precisar agir como homem para ocupar seus espaços de fala e de poder’. Era soberba! Foi então que aconteceu. Os olhos azuis celestes dela me alcançaram no exato momento em que eu tecia, mentalmente, um rasgado elogio.
“Que mulher sensacional e inspiradora”
“Agradeço pela gentileza!” Ela havia me respondido enquanto proferia uma frase que nada tinha a ver com aquilo que ‘conversávamos’ e então estreitou os olhos e sorriu sugestivamente para mim, mas percebeu o quão chocada eu estava.
“Calma criança!” “Não precisas ficar assustada!”
Foi a primeira vez que eu experimentei a Conexão com alguém Eve!
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Delphine deixou sua boca entreabrir. Desconhecia aquele fato. Sabia que Manu e Melanie também se comunicavam mentalmente, mas não sabia quando havia sido o primeiro contato nem como. Teve reafirmada a certeza de que se surpreenderia ainda mais com aqueles relatos. E não pode deixar de ser tocada pela perfeita descrição de sua mãe.
Evelyne a idolatrava e desde muito pequena assistia aos discursos de sua mãe completamente encantada, desejando secretamente ser como ela quando crescesse. Deixou sua mente viajar até o dia em que fora “flagrada” imitando sua mãe, discursando diante do espelho. Devia ter a idade da Pequena Manu na época e lembrou-se do olhar de orgulho que recebeu da mulher que mais admirava.
- Mon petit révolutionnaire![2] Delphine sussurrou o apelido pelo qual a mãe se referia a ela quando era criança. Uma nova lágrima escorreu por seu rosto.
Foi inevitável não lamentar-se por tudo que a fez passar! Toda a ida e o desgosto. Prosseguiu.
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Passamos a noite “conversando” mentalmente em meio a sua fala, mas eu queria saber muito mais sobre aquilo e então ela me pediu que a esperasse ao final da reunião só que Alba estava preocupada com o adiantado da hora. E então eu disse que retornaria até ela. E o fiz, no dia seguinte.
Logo após o café da manhã eu literalmente corri até o palacete Degrasi e encontrei Manu nos fundos da casa, em meio a um imenso jardim, com plantas suspensas e vários jarros espalhados. A observei de longe e pude ver que ela usava roupas simples, não lembrando em nada o vestido da noite anterior, e que tinha a parte de trás de sua saia presa e mais erguida, para lhe facilitar os movimentos. Os lindos cabelos loiros estavam presos sob um lenço da mesma cor do vestido e pequenas manchas de areia escura sujavam seu belíssimo rosto. Ainda de costas para mim ela me saldou.
É uma mulher realmente extraordinária. Antes mesmo que eu pudesse dizer algo ela foi me falando das plantas que tinha em mãos e para quais males elas serviam. Até mesmo males do coração, ela me confidenciou e sorriu com uma piscada de olho.
Então, como bem me conheces, fui logo a soterrando de perguntas, todas as quais ela respondeu de forma ambígua, pois muitas ainda não deveriam me ser reveladas. Disse-me que, para o meu bem e o das mulheres que iam aquelas reuniões secretas, ela usava a alcunha de Madame de Degrasi para manter longe aqueles que discordavam de eventos como os que ela organizava e já associavam a seu nome verdadeiro. Porém, desde o primeiro instante disse-me que, entre aquelas paredes eu deveria chama-la apenas de Manu.
De imediato, nos simpatizamos uma com a outra e o meu encantamento só aumentava, à medida que eu percebia o quão inteligente e culta ela era. Você poderia falar sobre absolutamente qualquer assunto com Manu que ela sabia desde botânica a astronomia. Recitava filósofos com precisão e cantava e tocava o cravo como poucos.
Ela me lembrou muito a minha mãe.
Mas sabe o que é curioso? Desde o primeiro momento em que eu disse de quem era filha que ela não mudou em nada comigo. Hoje, sabendo de tudo que sei a cerca da história dela com o meu pai, isso só me faz amá-la ainda mais.
Sabes que a minha relação com ela só cresceu e daquele dia em diante, todos os demais eu passei com ela, em sua companhia. Lendo, conversando, a acompanhando a saraus e também aprendendo a lidar com esse dom que eu tinha e os demais, que foram surgindo à medida que ela me preparava para algo que até então eu desconhecia.
Foi ela quem me apresentou ao Sr René Descartes e a todo seu revolucionário pensamento, levando-me a adorar os números e os cálculos. Ela expandia minha mente e minha alma como jamais imaginei ser possível.
Quando chegou o momento de meu retorno a Nice, elaboramos um plano para que continuássemos nos encontrando. Foi então que convenci o meu pai a ter a Madame de Degrasi como madrinha de bons modos, com a desculpa de me preparar ainda mais para ser uma moça da alta sociedade francesa e uma ‘boa esposa’. A verdade era que ele pouco se importava comigo, pois estava muito mais preocupado em suas atividades junto à Igreja o que foi, naquele momento, a minha sorte.
Mudei-me para Paris, mas não para o palacete Degrasi e sim para o castelo Chermont onde pude ter os primeiros contatos com as demais mulheres da Ordem do Labrys e ter um pouco da dimensão do que significava fazer parte daquele grupo.
Logo fui percebendo o que estava realmente acontecendo. Manu estava me preparando para fazer parte da alta cúpula da Ordem, para estar a seu lado junto às demais, pois segundo ela, eu era preciosa demais e meu lugar certamente era na Ordem.
Eve entenda! Naquela época Manu estava muito magoada com você e por mais que eu insistisse, ela não me contava quase nada a seu respeito, nem permitia que as demais contassem.
E hoje vejo que, na relação que estabelecemos, ambas buscávamos suprir faltas insubstituíveis. Eu a minha mãe e ala a você!
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Copiosas lágrimas voltaram a rolar dos olhos de Delphine!
- Perdoe-me mamãe! Se eu soubesse que o meu tempo com você seria tão curto... – Disse com a voz embargada. Estava sendo uma experiência surreal ler aquilo tudo. Reviver um passado tão distante, descobrir nuances da história que ela pensava conhecer por completa, mas que estava constatando que não. Estava enganada. Havia muito por saber ainda.
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Mas aqueles meses na companhia dela e das demais mulheres da Ordem foram quase tão bons quanto o nosso tempo juntas meu amor, mas agora eu gostaria de lhe contar a respeito de algo que nunca lhe falei ou mostrei. Algo que segue junto com essas memórias.
Minha curiosidade me impeliu a explorar cada cômodo daquele imenso castelo medieval e foi assim que descobri alguns dos segredos da Ordem guardados num quarto secreto, logo após a biblioteca.
E lá estava você!
Ainda menina, mas já com a impertinência que é uma característica sua. Era uma belíssima tela que fora pintada com perfeição e registrava cada traço seu ao lado de Manu. Fiquei extasiada como a semelhança entre vocês e foi impossível não imaginar o quão linda deveria estar depois de adulta. Aliei a esse pensamento os relatos que sempre ouvia das moças que frequentavam os saraus da Manu. Preciso confessar-lhe que desde que ouvi as primeiras descrições a seu respeito tive variadas impressões a seu respeito, porém o meu amor e devoção à Manu me fazia querer ter raiva de você, só que por alguma razão eu não conseguia.
Mas estavas tão linda naquela pintura, tão inocente, que decidi guarda-la comigo. E fiz um pequeno esboço, um desenho daquela tela e é esse que certamente está em suas mãos agora.
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‘O famigerado desenho’! Pensou Delphine. Aquele que fora apresentado por Cosima em sua aula, aquele que lhe desconcertou por completa, aquele que a fez temer Cosima... Ele fora feito por Manu! Ela o guardou em segredo por todos aqueles anos. Suspirou ainda mais tocada.
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Mas Manu me achou ali.
- Você desenha muito bem Melanie! – Ela me disse, parada atrás de mim. Eu estava sentada no chão e levantei num pulo só. Gaguejei e tentei me explicar, mas ela apenas me olhava com atenção, com uma expressão distante e em seguida focou no quadro.
- Essa tela foi pintada pouco antes dos nossos problemas começarem! – Finalmente Manu decidiu externar e falar sobre você. Sobre vocês.
- Quantos anos tinha a Evelyne nessa tela? – A questionei com voz trêmula, ainda sob o efeito do susto e do poder intimidador da Manu.
- Ela havia acabado de completar 11 anos. Essa pintura foi um de seus presentes. – Manu aproximou-se ainda mais do quadro e ergueu sua mão vagarosamente. Temi que ela fosse fazer algo com a tela, mas ela apenas o acariciou e afastou a poeira depositada em alguns pontos. Pensei em dizer algo, mas achei por bem espera-la estar pronta para contar-me algo mais. Porém nada foi dito por longos minutos e quando eu já ia saindo da sala e continuou.
- A Evelyne é o grande amor da minha vida Melanie! – Havia muita emoção na voz dela. Quando voltei a me aproximar, vi que ela havia repousado a testa sobre a mão espalmada em sua imagem e quando ela ergueu o rosto, vi suas lágrimas.
Confesso que aquilo me assustou demais, pois em todos aqueles meses em que estivemos juntas, eu sempre a vi tão alegre e positiva. Uma verdadeira fortaleza, mas que naquele instante estava completamente desarmada e vulnerável.
Por favor, meu amor não sinta pesar por essas palavras ou esses relatos. Nem tão pouco desista de prosseguir com a leitura. Peço-lhe que continues comigo, pois tenho muito a lhe contar sobre nós e sobre sua mãe.
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Como Melanie a conhecia tão bem! Sabia que aquelas verdades iriam lhe doer, mas o que ela não conseguiu prever foi o tempo que levaria para aquele material chegar até ela. Queria poder voltar no tempo e questionar sua mãe sobre essa e todas as outras escolhas que ela tomou para o seu bem e o bem da Ordem. Mas era impossível. Precisava buscar algum tipo de conforto e de respostas nos vestígios do passado que agora chegavam até ela.
Lhe doía a alma ver a dor que causara em sua mãe e voltou a se arrepender por tudo que fizera e pela decepção que foi. Há séculos vinha tentando se redimir e liderar a Ordem buscando se aproximar só um pouco que fosse, da grandiosidade de Emanuelle.
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Então ela continuou, a seu ritmo e a seu tempo, contar-me a história de vocês.
- Todo o sofrimento, tudo o que enfrentei todas as minhas perdas, perderam o significado quando segurei a Eve em meus braços pela primeira vez. – Ela suspirou enquanto me olhava e me estendia os braços. – Mas lhe falarei sobre essas perdas em um outro momento. Ela nasceu aqui mesmo, nesse castelo, há 24 anos, numa noite de lua cheia, exatamente como essa de hoje e aquilo era um sinal. A própria Ártemis a abençoou, beijando-lhe a face com seus raios! Ah Mel... Ela era a coisa mais linda e maravilhosa que todas nós já havíamos visto e assim que ela veio ao mundo as Anciãs leram o destino dela e viram quão grandiosa ela seria. Acredita que ela mal chorou enquanto era examinada pelas Anciãs?- Era impossível para mim não me emocionar com tudo o que ela dizia.
- E já dava para saber que ela seria tão grandiosa assim tão novinha? – Minha curiosidade, como sempre.
- Eve sempre foi surpreendente e isso ficou claro já quando ela nasceu, no exato instante em que ela chorou, ainda sendo erguida sobre mim, uma inusitada tempestade irrompeu bastante fora de época. – Manu estufou o peito com orgulho e eu fiquei chocada com aquela informação.
- Nossa! Tão nova e tão poderosa!- Voltei a contemplar a tela.
- E esse poder só crescia. E isso era muito bom, mas também muito ruim e perigoso na mesma proporção. – Senti meu sangue gelar naquele momento. – Pois as Anciãs estavam divididas acerca do que viam dentro da Eve. Umas viam a luz mais poderosa, mas outras viam trevas assustadoras que poderiam ser facilmente manipuladas por nossos inimigos?
- Você se refere ao Martelo? – Questionei ainda inocente e sem saber quem era o líder daquela irmandade.
- Sim! Mas eu olhava para a Eve, a criança mais doce e esperta que existia, com os olhos verdes brilhantes e os cabelos com cachos lindos e desobedientes e não conseguia ver mal algum. Então fui contra a determinação das Anciãs! – Seu semblante mudou drasticamente. Ela ficou séria e com uma postura rígida.
- Que determinação? – Fiquei realmente atenta aquilo. Mas percebi que Manu ponderou por alguns instantes, enquanto me olhava profundamente nos olhos, como se estivesse medindo as implicações do que estava prestes a me contar.
- A determinação de não treiná-la! De não preparar a Eve para ser a minha sucessora! – Soltou como se um peso lhe fosse tirado das costas.
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Delphine soltou o livro, completamente incrédula com o que acabara de ler. Jamais soube daquilo. Nuca passou por sua cabeça que alguém poderia questionar a sua posição. Além... Dela mesma. Ergueu-se e perambulou pela pequena sala. Sua cabeça girava enquanto algumas peças pareciam se encaixar enquanto outras, que imaginava estarem bem presas, se soltaram dentro de sua mente. Levou ambas as mãos a testa de forma exasperada. Sempre sentiu o temor daquelas mulheres em relação a ela, mas não fazia ideia do quanto. Necessitava de mais.
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– Mas elas não viam o que eu via Mel! A luz e a bondade da Evelyne. Então eu e a Izabelle, minha Protetora como sabes, decidimos escondê-la e treiná-la. Fomos para o interior da França onde ela poderia estar protegida e seria preparada. Numa velocidade impressionante, desenvolveu seus dons, ao ponto que aos 10 anos já havia me superado em praticamente tudo. Conseguindo bloquear sua mente à minha.
- Pelas deusas! 10 anos Manu? – A questionei estarrecida. Eras uma criança capaz de vencer a Mestra mais poderosa que a Ordem do Labrys já tivera. – Pelo que li, as mais poderosas da Ordem levam décadas para aperfeiçoar e dominar seus poderes. – Ela apenas deu de ombros e para mim ficou claro que realmente eras extraordinária.
- Em uma certa ocasião quando eu precisei me ausentar do castelo, eu a deixei sobre a guarda de Izabelle e de algumas outras irmãs da Ordem. Mas a Eve cismou que queria sair para explorar e ir até a cidade. É claro que todas tentaram impedi-la, contudo e sem esforço algum ela usou o poder de sua mente e trancou todas as portas do castelo, pretendo todas as mulheres dentre dele. Deixando apenas a do quarto dela aberto para que fugisse.
- E ela conseguiu chegar até a cidade? – Preocuopei-me.
- Por pouco não. A interceptei na estrada, quando retornava e a contive à duras penas e precisei barganhar com a oferta de servi-lhe todos os doces que ela quisesse.
- Nossa!
- Sim! Porém, logo após os 13 anos, o pouco controle que ainda me restava sobre ela não mais era suficiente. Evelyne queria ver o mundo. Não queria ficar confinada pelas paredes de um castelo no meio do nada. Até que, certa noite, ela convenceu, sem esforço algum, um grupo de comerciantes a levarem-na para a cidade mais próxima, Loches.
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E lá estava mais uma das recordações que Delphine queria evitar embora, ainda nos dias de hoje, ela não se arrependesse de nada do que fez.
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Vi que Manu começava a sentir sua voz embargar e tentei imaginar o que ela poderia estar sentindo ao me relatar tudo aquilo. Era impossível para mim. Então ela me contou o que aconteceu com você.
- Loches não era uma cidade tão pequena, e como tal, possuía todos os atrativos e perigos de qualquer cidade daquela época e, infelizmente... – Ela pausou para tomar fôlego. – A Eve foi deixada numa região da cidade conhecida como o baixo meretrício. Aquela menina sempre foi diferente de qualquer pessoa que você possa imaginar Mel. Ela inocentemente se encantou com a liberdade das moças que trabalhavam naquelas ruas e estabelecimentos e elas se encantaram por ela, contudo, os homens que perambulavam por aquele lugar encantaram-se ainda mais. – Disse com ódio saindo entre os dentes. Me arrepiei da cabeça aos pés e senti um frio terrível na barriga sobre o que ela poderia relatar a seguir.
– Os relatos que nos chegaram contam que três deles a abordaram e ela quis se esquivar e acabou levando um tapa no rosto. Uma das mulheres partiu para defendê-la, porém mais outros três homens se aproximaram e começaram a espanca-la. – Pausou seu relato e pude ver uma sombra sobre o rosto dela. Eu sabia que algo ruim aconteceu naquele dia. – As demais começaram a pedir ajuda aos passantes mais muitos nem ligavam e outros assistiam empolgados. Porém, o que esses conseguiram se lembrar foi que ouviram um grito estridente, como o dia uma criança, mandando que parassem e então, todas as lamparinas e velas da rua começaram a apagar e a pouca luz da noite só permitiu que vultos fossem vistos e esses eram dos seis homens, que haviam sido erguidos simultaneamente. Uns dizem que foi a mais de dois metros do chão, outros que foi menos, mas... O que realmente importa é que todos foram virados de cabeça para baixo ainda no ar e foram empurrados contra o chão, violentamente.
Eve! Eu não conseguia nem se quer imaginar a dimensão do que eras capaz até a Manu me contar aquilo. Acredito que nem mesmo ela o era. E certamente aquele era o maior temor dela.
- Eles... Morreram?
- Três deles sim, os demais nunca mais foram os mesmos. – Lamentou-se. – Ela parecia derrotada. – Entenda, ela era apenas uma criança. Eu deveria ser capaz de controla-la, mas não o fui. E de fato ela se mostrou uma ameaça para todas nós.
- Mas o que aconteceu com ela?
- Ela saiu do transe em que ela estava e quando viu o quão machucada aquela jovem mulher que tentou lhe ajudar estava desesperou-se. De imediato as pessoas não associaram o evento a ela, pois ainda estavam tentando compreender e socorrer os sobreviventes, mas isso não tardou muito. Porém ela novamente manipulou algumas pessoas a levarem ela de volta ao castelo, só que ela não estava sozinha. Havia levado a moça com ela, pois acreditava que eu e a Izabelle poderíamos ajuda-la. Ela estava certa.
- Então a mulher sobreviveu? – A questionei ainda em choque com o que estava ouvindo, pois estava vivenciando e convivendo com algumas mulheres com dons especiais, mas nada, nem de longe se aproximava daquilo.
- Sim. Ela se chamava Adele e não tinha mais do que 18 anos e já carregava as marcas da vida infeliz que levava. Mas apesar delas, era uma jovem muito bonita.
Preciso fazer uma pausa aqui para me desculpar previamente por qualquer comentário com cunho ciumento que eu possa tecer em relação à Adele certo? Sei que ela foi seu primeiro amor e alguém importante para você,
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- Sua boba! Não precisas ter ciúmes da Adele.... – Riu de si mesma ao perceber que estava “conversando” com o livro. Achou bom, pois suavizou o peso daquela dura lembrança. A lembrança dos primeiros homens que matou. Os primeiros de muitos.
E lembrar-se daquela mulher que fora algo que muito bem poderia ser descrito como o seu primeiro amor, lhe trouxe ainda mais pesar. Imediatamente lembrou-se da outra Adele que conheceu e que, ironicamente também fora resgatada da vida nas ruas, mas para essa ela apenas reservou a confiança de gerir um de seus negócios. Sua boate.
‘Ah Adele...’ Suspirou.
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- Como ela era? – Não tenho bem a certeza do porque, mas naquele instante ela me interessou. Hoje sabemos os motivos.
- Ela era um pouco mais alta que você, tinha a pele um pouco queimada pelo sol e os cabelos e olhos eram cor de mel. E nos dias que ela ficou no castelo, se recuperando, a Evelyne não saiu do lado da cama dela. E foi ali que eu tive a certeza que minha filha era ainda mais diferente e que certamente sofreria muito mais por isso. – Ela me olhou com olhar de dúvida, novamente ponderando se deveria me contar algo, mas optou por sim. – Certa vez eu tive uma desconcertante experiência com a Evelyne, pois a encontrei... Se tocando enquanto espiava a Adele tomar banho.
Amor, aquela informação da Manu me deixou escandalosamente constrangida, quase como se fosse eu a flagrá-la e meu rubor era evidente assim como o dela.
- E sabe o que é mais incrível? A Evelyne não se constrangeu, pelo contrário, disse o quanto era importante e natural aquela experiência que sempre fora incentivada entre os meninos e como boa revolucionária que era, achava que também deveria sê-lo para as meninas também. O resultado daquele evento é que eu passei a usar tal fala em alguns de meus discursos e muitas mulheres vieram me agradecer muito entusiasmadas após experimentarem.
Eu fiquei ainda mais impressionada com você pois nada em você poderia ser considerado previsível e controlável. Isso só aumentava meu fascínio e curiosidade. Ao ponto de eu que quase sempre correr para ver que era sempre que algum visitante era anunciado. Mas Manu prosseguiu em seu relato.
- Contudo, não pudemos nos demorar mais naquele lugar. Logo os boatos de que fora uma bruxa que causara o evento há algumas noites na cidade se espalharam. Em poucos dias o tribunal da Inquisição mandou seu circo para Loches. Felizmente, deixamos o castelo naquela mesma madrugada.
- Voltaram para Paris?
- Sim, onde a nossa rede nos protegeu e nos escondeu.
- Adele foi com vocês? – Perguntei com fingido desinteresse, mas Manu era a mais perspicaz das pessoas e captou algo no ar. Tenho certeza.
- Sim. E nos dois anos seguintes ela morou conosco no castelo e durante esse período ela e a Eveleyne desenvolveram um... Relacionamento mais... Intimo. E a Evelyne rebelde e incontrolável pareceu coisa do passado. – Desculpe amor, mas eu odiei a Adele naquele instante sem nunca tê-la conhecido. – A Eve a ensinou a ler e escrever e ela a iniciou em vários outros assuntos. – Manu não quis ser mais específica em respeito a minha inocência. Eu poderia não saber com detalhes o que um relacionamento intimo entre duas mulheres seria, mas não era tão inocente assim.
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Delphine gargalhou sozinha no escuro.
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- Mas por que a Adele só ficou dois anos com vocês? – Vi que novamente o semblante da Manu ficou duro, porém com certo pesar.
- Ela adoeceu! Uma doença que desconhecíamos. Algo em seu sangue o deixava fraco e em pouco tempo ela definhou e com ela toda a alegria e entusiasmo da Eve. Gastamos rios de dinheiro trazendo médicos de Londres para trata-la, mas nada surtia efeito. Então, em um ato de desespero a Eve implorou por algo impensável. Ela apelou para que salvássemos a vida da Adele com magia, que ela sabia que existia, pois dominava de cor todas as escrituras secretas das antigas Anciãs.
- Mas isso era possível? Quer dizer, salvar a vida de alguém com magia? – Eu precisava saber. Novamente Manu me encarou e ponderou se deveria me contar mais aquele segredo. Afinal de contas eu era filha de Armand Verger. Poderia muito bem estar me aproximando dela com outras intenções ou a mando de meu pai. Mas Manu sempre confiou em mim!
- Muito difícil e pouco provável, mas era possível sim! Mas seria magia obscura e nenhuma de nós ali se sentia apta a realiza-la nem estávamos dispostas a correr os riscos implicados. Não saberíamos o que poderia acontecer àquela pobre mulher. Mas Eve não aceitou aquilo. E teve um ataque de fúria e que acabou ferindo algumas de nós. Ela só parou quando a Adele a chamou pouco antes de seus últimos suspiros.
Eve, eu não posso, se quer imaginar o que tenhas sentido naquele dia, mas espero, do fundo de meu coração, que eu possa tê-la amado como merecias.
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Delphine novamente estava atônita e completamente tomada pela emoção do que lia. Não fazia ideia de que Melanie soubesse se quer da existência de Adele, quanto mais de tantos detalhes. Voltou a sentir mais aquela dor de mais uma perda das muita que experimentou. Estava sendo demais para ela, mas não conseguia parar.
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- Alguma coisa em Evelyne se foi junto com Adele! Pois os dias que se passaram ela se isolou do mundo. Não falava com nenhuma de nós, mesmo tendo ferido algumas de nós. Ela parecia não se arrepender de nada daquilo e então, em um dia comum, como qualquer outro, ela acordou e saiu desse castelo para só retornar mais de um ano depois. Completamente mudada. Não era mais uma menina inocente. Não havia mais aquela luz dentro dela e então ela ia e vinha. Trocávamos pouquíssimas palavras e ela nem se quer ficava aqui no castelo. Mas eu sempre sabia por onde ela andava, a nossa rede de informantes da Ordem sempre dava um jeito de me informar. Sei que ela está no Novo Mundo nesse exato momento, pois recebi uma carta há dois dias. E são justamente esses informativos que me relatam que, por cada lugar que ela passa, mortes misteriosas de homens acontecem.
Assustei-me com aquela informação dada com tanta naturalidade por Manu. E ela percebeu o meu choque e tentou me tranquilizar, o que foi impossível naquele momento.
- Se lhe serve de consolo, todos os que ela matou era assassinos, estupradores ou abusadores de mulheres. Entenda criança, a Evelyne é uma predadora em todos os sentidos da palavra Melanie. – Manu usava de honestidade comigo em cada palavra. – Só que dessa vez, fazem mais de dois anos que não a vejo. E as notícias que recebo indicam que ela está indo cada vez mais longe, como se quisesse se afastar de mim e da Ordem. Sendo assim, não me resta outra opção que não preparar uma outra pessoa para assumir o seu lugar como minha sucessora. – Eu temi o que viria a seguir.
- E essa mulher é você Melanie!
[1] A Deusa da Perdição em francês.
[2] Minha pequena revolucionária em francês.
Fim do capítulo
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patty-321
Em: 15/03/2018
Caramba! Qdo penso q não podr ficar melhor, vem.um capitulo desses. Demais. Extraordinario. Cara dar um filme muito show essa tua estoria, não e exagero. Sou completamente apaixonada por este universo. Melanie, que estória. Manu. A eve foi muito rebelde, caiusou preocupações terriveis pra sua mae. Ai q mordo de ansiedade para ler o próximo. bjs.
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