Capítulo 5 - Até que a tempestade vá embora
Montserrat
Eu estava quase gostando da garota, mas ela é uma preconceituosa e tem a cabeça na Síria. Ainda que tenham muitos com a mente dela por aqui, ela com certeza vai ficar assustada ao descobrir as novidades que a vida tem para oferecer a ela. Sara é nova, tem capacidade de aceitar as diferenças melhor do que aqueles velhos conservadores que querem mandar na vida alheia. Mas eu não serei a pessoa que ensinará, não tenho paciência para isso.
Peguei o meu celular e tinha 4 chamadas perdidas da Carol. Liguei para ela em seguida.
- Hey, beautiful.
- Mon, está tudo bem? Por que você não atendeu?
- Ih, o que foi? Não somos mais casadas - dei risada. - Está tudo bem comigo sim e você?
- Tudo certo. Mas eu continuo preocupada com você... ah já sei, está com alguém?
- Não.
- Mon, não minta. Desculpa, não queria atrapalhar.
- Onde eu ia arranjar alguém com essa nevasca lá fora? Está louca, Carolina?
- Estou brincando com você! Que mau humor é esse?
- Não estou de mau humor, estou cansada.
- Eu estou morrendo de tédio, não tenho nada para fazer. Estou com medo de cancelarem uma reunião de campanha que eu tenho amanhã por causa da neve e é bem provável que isso aconteça.
- Será que essa nevasca vai continuar?
- Os jornais dizem que sim.
- Merda.
- Por quê?
- Nada - tentei disfarçar.
Do jeito que a Carolina me conhece, é perigoso ela descobrir que abriguei uma refugiada em mais algumas perguntas.
- Está me escondendo alguma coisa?
- Não. Eu só acho uma merd* ter que ficar trancada em casa.
Bingo! Ela vai acreditar.
- Isso é verdade. Com essa neve, sem chance de você ver a Annie, não é?
- Carol, eu não tenho como sair de casa. Mesmo.
- É uma ótima desculpa, Mon.
- Você sempre acha que eu tenho alguma desculpa. Desde o começo você já sabia que eu era assim, por isso ela mora com você.
- Eu só queria que você pensasse nela um pouco. Eu moro com ela, mas isso não deixa de ser apenas um detalhe.
- Assim que a nevasca passar, vou ficar com ela o dia inteiro. Satisfeita?
- Depende, se você encara isso como uma obrigação... - bronqueou.
- Claro que não, Carol. Não é uma obrigação e você sabe muito bem disso. Até parece que eu sou tão relaxada assim.
- Está ficando, como já deve ter notado.
Fiquei conversando com a Carol até tarde, os mesmos discursos de anos que ela não cansava de falar.
...
Acordei no outro dia bem cedo. Eu não sabia o que fazer. Não quero sair do meu quarto e ter que pedir para Sara sair da minha casa, mas ao mesmo tempo quero sim que ela vá embora. Afinal, nossas ideias são incompatíveis.
Talvez, não sei, eu pudesse mostrar para ela que aqui as mulheres têm vontades e podem mostrar seus desejos. Que dúvida!
Peguei o meu notebook para passar o tempo, ainda é muito cedo. Logo de cara, na primeira página, li a notícia de que as autoridades pediam para a população permanecer em suas casas, outra nevasca atingirá a cidade novamente.
Essa nevasca só pode estar de brincadeira. Até quando isso?
Não tenho coragem de mandar a Sara embora. É só uma menina. Se ao menos ela fosse para um abrigo. Mas que merd* eu estou pensando? Ela morre de medo de lá, foi assaltada por eles, quase violentada. Que mundo é esse? Por que logo eu que morria de medo de refugiados e não queria nem chegar perto, agora tenho uma na minha própria casa e pelo jeito continuarei abrigando-a? Gosh!
Continuei navegando na internet e respondi a alguns e-mails.
Olhei para o relógio e notei que me distraí demais. Minha barriga ronca de fome.
Passei pela sala e vi que Sara ainda dorme tranquilamente. Liguei a lareira elétrica e fui para a cozinha preparar o café da manhã.
Sara
Acordei e fui direto para o banheiro. Montserrat já deve estar acordada, só pode ter sido ela que ligou a lareira. A casa já está tão quentinha, como é aconchegante.
Depois de ir ao banheiro, voltei para a sala e dobrei os cobertores. Mais um dia incerto começava, notei que ainda cai muita neve do lado de fora. Desejei estar no meu país com a minha mãe. Desde que a guerra começou, eu não tenho um minuto de paz.
Fui para a cozinha, precisava saber se tenho que ir embora. Quem sabe até não consigo ficar para o café da manhã.
Quando atravessei a porta da cozinha, meus olhos se arregalaram e eu fiquei em choque. Montserrat estava praticamente nua! Ela vestia um short que deixava toda a suas pernas de fora. Não bastava os braços de fora?
- Aaaaaaaah - gritei. - Desculpa, desculpa.
Me virei e fechei os olhos depois de ver a Montserrat pulando de susto.
- O que aconteceu? Por que você gritou? Desculpa pelo quê? - Montserrat perguntou.
- É que você... você... você está quase nua.
- Quem está quase nua aqui?
- Você. Eu deveria ter esperado você colocar uma roupa para levantar-me, desculpa.
Ia me retirar quando ouvi aquela voz doce me chamar.
Montserrat
- Sara.
Respira e vamos lá Montserrat, não perca a paciência, pensei. Manter a calma e conversar, é isso que eu tenho que fazer. Não posso deixá-la morrer. Porque, se eu expulsá-la agora esse será o destino dela, a morte.
- Sara, olha para mim.
Ela continuava de costas e parada.
- Sara, acompanhe-me. Temos que conversar.
Coloquei minhas mãos nas costas dela e a guiei até o sofá, já que mantem seus olhos fechados.
Coloquei ela sentada no sofá e sentei-me também. Peguei a coberta, respirei fundo e cobri as minhas pernas.
- Eu já cobri as minhas pernas Sara, pode olhar.
Aos poucos ela abriu os olhos e pareceu envergonhada.
- Sara, escuta. Eu sou uma mulher ocidental, certo?
Ela balançou a cabeça.
- Então, é normal eu usar short. Eu não encontrei um pijama completo ontem e resolvi usar esse short com uma blusinha para dormir. Além do mais, aqui é a minha casa e eu não vou ficar policiando as minhas atitudes ou roupas. Te respeito, respeito muito, sei que você tem os seus costumes, mas não achei que você fosse tão antiquada assim. Você nem cobre o seu corpo ou seu cabelo com aquele véu.
Deixei a brecha para ela falar. Sem olhar para mim ela disse:
- Não é um simples véu como está dizendo. Faz parte de um símbolo cultural e religioso. Temos o Hijab, o que cobre apenas o cabelo, orelhas e pescoço. Geralmente são coloridos. Há também o Chador, cobre o corpo todo, mas não tem mangas e deixa o rosto de fora. Já o Niqab cobre o corpo e o rosto, deixando apenas os olhos de fora. Imposto por lei em países como Irã e Arábia Saudita. Por fim temos a Burqa, que cobre também os olhos, existindo apenas uma tela. É a mais polêmica também.
Não movi meus lábios para dizer nada. Ao mesmo tempo que entendi sua colocação ao mostrar a minha ignorância sobre o assunto, ansiei para entender o porquê de ela não usar nenhuma daqueles símbolos. Trocamos olhares, Sara por fim entendeu meu questionamento.
- Não sou convertida, você sabe. Usava o Hijab por respeito na escola por respeito, mas nunca precisei de fato. Quando saí de casa, trouxe comigo apenas um, mas acabei o perdendo. Desculpa, Montserrat, não quis te dar uma lição. Eu... eu... apenas levei um susto ao te ver aquela maneira tão à vontade, por um momento esqueci completamente que estou na Eslovênia.
- Você nunca tinha visto uma mulher de short?
- Só em propagandas e de longe. Meus professores sempre pediram para desviar os olhos para não ver.
- Então você estudou em uma escola islâmica?
- Não exatamente. Os professores eram, mas a escola não.
- E na faculdade? Não chegou a ter aulas com consultas?
- Apenas cadáveres. Além disso, só posso me especializar em crianças.
Ela finalmente olhou nos meus olhos. Ah, Sara, não seja tão conservadora, pensei.
- Desculpa mesmo Montserrat. Você está certa, é a sua casa e pode se vestir como quiser. Eu tenho mesmo que me acostumar já que vou viver na Europa.
- É isso - sorri para ela - posso tirar a coberta?
Ela olhou receosa e assentiu.
Tirei aos poucos e me levantei. Ela olhou fixamente e depois sorriu me acompanhando ao levantar-se também.
- Bem, o café está pronto. Vamos?
Andei com ela ainda receosa com as minhas pernas de fora. Acabei achando graça daquilo no final.
Sara
Eu tenho que parar de olhar as pernas da Montserrat. Aliás, eu tenho que me dar conta de que estou na Europa. As pessoas são diferentes umas das outras por aqui. Mas Montserrat é diferente de tudo que já tive contato. Na verdade, ela é a primeira pessoa que eu estou tendo algum contato que não seja policial ou voluntária. Ela representa tudo aquilo que minhas amigas falavam sobre as mulheres do Ocidente: vive sozinha, não tem filhos, trabalha e se veste de forma estranha. Estranha não, diferente. Da mesma maneira que ela deve achar estranho eu cobrir o meu corpo. Ela me olhava e depois desviava o olhar. Montserrat não pode ser ruim, não mesmo.
- O que você quis dizer ontem com "acho melhor você abrir a sua mente um pouco. Vai encontrar muito mais que mulheres solteiras e traição por aqui"?
Ela respirou fundo.
- Para evitar justamente esse constrangimento que nos aconteceu.
- Não, Montserrat. O que eu vou encontrar além de mulheres solteiras e traição?
Ela olhou nos meus olhos, hesita para responder.
- Embora aqui não tenhamos ainda a tão sonhada total liberdade, as coisas por aqui já estão em outro... digamos, para frente.
- O que eu vou encontrar aqui? - Refiz a pergunta.
- Tudo o que sua mãe, suas amigas e seus professores disseram. Tudo. O que pode ser errado para vocês, para mim e para tantas outras pessoa não é.
- E traição é certo?
- Não! Claro que não. Mas cada um sabe o que faz, ninguém vai preso por isso. Esse negócio de traição não é geral, não é libertinagem por aqui.
- Menos mal.
Ela assentiu e levantou-se. E se eu olhei para as pernas dela de novo? Sim. Mas já estou me acostumando.
- Você usaria um short?
Fui pega de surpresa com a pergunta da Montserrat.
- Não.
- Mesmo se estivesse calor?
- Montserrat, de onde eu venho é muito calor.
- Verdade.
Ela sorriu.
- Foi você quem lavou a louça de ontem? - Montserrat mudou de assunto.
- Sim. Desculpa se as deixei na mesa, mas eu não sabia em que lugar as colocar. Além disso, foi uma maneira de agradecer por me deixar passar mais uma noite aqui e a comida.
- Sobre isso, temos que conversar.
Montserrat
Aproveitei a brecha que Sara me deu para conversar sobre sua estadia no meu apartamento.
Voltamos para a sala e nos acomodamos no sofá. Olhei para a garota com pesar. Sorri de lado ao encarar seus olhos arregalados. Medo e compreensão.
- Sabe, Sara, parece que os nossos destinos não querem se separar, pelo menos por enquanto. Uma nova tempestade está por vir e até a neve ser eliminada das ruas não posso deixar que você saia por aí. Por isso... - eu não tive coragem de pedir para ela ir embora como planejei - é... - hesitei - Você quer ficar aqui até que seja seguro sair pelas ruas?
O sorriso dela iluminou a sala.
- Não acredito, está falando sério?
Eu falo sério? As palavras saíram da minha boca sem que me desse conta. De onde veio essa proposta maluca? Será meu subconsciente?
- Sim - respondi a ela.
- Eu não posso acreditar. Nem sei como agradecer. É claro que eu aceito.
- Se quiser pode continuar lavando a louça, nunca gostei muito.
- Mas é claro! É o mínimo que eu posso fazer.
- Eu estou brincando com você. É minha hóspede e terá todo conforto do mundo.
Sim, aceitei a refugiada na minha casa e me sinto bem por isso.
- Acho que você pode explicar como as coisas são por aqui. Não pensei que eu fosse tão ingênua com o mundo - Sara empolgou-se.
- Se você estiver disposta a compreender, tenho certeza de que tudo ficará mais fácil no futuro. Você não é obrigada a ser como a gente, mas pode ter uma boa convivência com todos.
- Sim! Acho até que exageraram um pouco.
Sorri admirando aqueles olhos de mel. As batalhas a fizeram crescer quando ainda não era a hora pois Sara tem um ar inocente. Posso sentir o quanto sofrerá quando der de frente com certas verdades.
Fim do capítulo
Aos poucos a Sara está sendo introduzida as novidades e Montserrat gostando dela.
Comentar este capítulo:
mtereza
Em: 08/02/2018
Muito ingenui mesmo a Sara apesar de ser estudante de medicina
Resposta do autor:
Bem, pode ser que ela tenha parado nas figuras dos livros, ela não chegou ser médica. Além disso, mais para frente você saberá a especialização dela. Também, é diferente ver e sentir desejo. Ela nunca viu uma mulher de tão perto.
Abs.
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patty-321
Em: 31/01/2018
Dois mundos opostos. Mas a sara e joven e a mente ainda nao ta consumida pela ideologia oriental muçulmana. Então as duas irao ensinar e aprender uma com a outra. Choque de culturas muito interessante.
Resposta do autor:
Ensinar e aprender são umas das melhores coisas do mundo, não?!
Abs.
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Baiana
Em: 28/01/2018
É,as duas vão ensinar e as duas vão aprender. A Montserrat vai parar de julgar uma pessoa so pq ela é uma refugiada,vai passar a ter mais empatia com o próximo,em contrapartida a Sara vai perceber que o mundo é maior que a Síria,as pessoas e seus costumes sao diferentes e nem por isso estao erradas ou cometendo pecado,e não demora ela vai começar a se inserir nesse novo mundo.
Resposta do autor:
Tudo tão simples assim...
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