Capítulo 4 - Choque de Culturas
Montserrat
Observei o caminho que a refugiada tomou pela sacada do meu prédio e me surpreendi. É o contrário de onde fica o acampamento de refugiados. Ela só pode ser louca, deve estar querendo morrer congelada na rua. Ou pode estar com muito medo dos outros refugiados de verdade.
Bom, ela não é problema meu. Só espero que ela não bata na minha porta pedindo ajuda de novo se esfriar mais tarde. Ela tem o acampamento para ficar junto com os seus ou pode pedir ajuda para outra pessoa. Aposto que se encontrasse Carolina, arranjaria outro lugar para ficar ou até morar.
Coloquei alguns papeis em cima da mesa e comecei a desenhar algumas ideias que tive para a próxima coleção. A cada traço que fazia, vinha o rosto da Sara na minha cabeça. Devo ter ficado com pena da garota mesmo. Mas não é problema meu, o dia da generosidade foi ontem, hoje já é outro dia. Tenho que esquecer o dia da generosidade e daqueles olhos de mel.
...
No meio da tarde, liguei a TV para me entreter já que a minha cabeça estava longe. Tudo o que eu menos estava conseguindo fazer era trabalhar. Assim que meus olhos cravaram na televisão, notei que estava em um canal de notícias local.
"- Uma nova nevasca está para chegar a qualquer momento em Slovenj Gradec. A previsão é que essa seja a pior tempestade de neve dos últimos 30 anos. As autoridades aconselham que as pessoas fiquem em casa e quem não estiver com a casa abastecida que aproveite a próxima uma hora para fazer comprar. A tempestade pode chegar a qualquer momento. Repetindo: uma nova nevasca..."
O repórter continuou falando, mas não prestei mais atenção. Ele estava andando pelas ruas e nessa hora, no fundo dele, um saco azul que estava fazendo uma espécie de cabana chamou a minha atenção. Prendi a respiração quando vi aquele rosto familiar de lado, aquele casaco é muito familiar... É a Sara! Ela realmente optou por ficar na rua. Uma louca. Completamente louca, só pode ser. Será que ela não sabe da tempestade? Claro que não, ela vive nas ruas, não tem contato com notícias. O repórter saiu e disse que iria para casa correndo. Olhei para fora e alguns floquinhos de neve começavam a cair.
- Merda, será que alguém vai ajudar a Sara? - Perguntei em voz alta para ninguém.
Claro que sim. Assim como eu a vi, outras pessoas podem ter visto. Ou não.
Fui até o meu quarto, coloquei um coturno e vesti meu casaco de couro.
- Não acredito que vou ajudar aquela refugiada novamente. Espírito de Carolina, sai de mim!
Sim, eu segui para o outro bairro, que é onde Sara está. A neve está ficando cada vez mais forte conforme eu caminho. Tomara que dê tempo de voltar sã e salva com a Sara.
...
Cheguei no local com o coração disparado. Sara se mantinha muito encolhida e seus graciosos lábios estavam roxos.
- Sara.
- Senhora.
Estendi a minha mão.
- Vem, você não pode ficar na rua.
- Eu prefiro morrer a ser escrava sexual daqueles homens no abrigo ou no acampamento.
Ela tinha medo nos olhos.
- Fique tranquila, vamos para a minha casa.
Ela não pensou mais e aceitou a minha mão.
- Vamos andar rápido.
Praticamente a arrastei. Estava difícil para ela andar sobre a neve, mas se fossemos lentas ficaríamos presas na tempestade.
Chegamos ao meu prédio e a tempestade prometida estava quase acontecendo. Subi com ela o mais depressa que consegui. Assim que abri a porta, ela sorriu aliviada.
- Anda, corre para o banheiro, tome um banho quente e coloque outra roupa - olhei para a mochila que ela carregava - Se bem que, a sua mochila está toda molhada... vou arranjar alguma roupa para você.
Fui até o meu quarto e peguei um conjunto de moletom preto.
- Pronto. Agora vá, antes que fique doente.
Ela seguiu para o banheiro e em seguida fui para o meu quarto. Enchi minha banheira e coloquei sais para relaxar.
- Ah, que delícia - disse assim que entrei na água.
Não sei porque eu estou com a refugiada na minha casa. Sara tem alguma coisa diferente, eu senti vontade de ajudá-la. Sabe-se lá o que a garota passou até aqui. Um pouquinho de abrigo e comida não vai fazer ela querer morar aqui, não é? Está decidido, ela vai ficar mais uma noite. Amanhã eu a convencerei de ir para o abrigo.
Sara
Estava quase congelando quando escutei aquele anjo chamando o meu nome. Senti um alívio por reconhecer que era a Montserrat. Ela estendeu-me sua mão, me salvaria novamente. Mas por um momento pensei que me levaria para um abrigo, recuei. Para o meu alívio, ela disse que me levaria para seu apartamento e cá estou.
Vesti a roupa que ela me emprestou. Hum... como cheira bem e como é confortável.
Saí do banheiro e fui para a sala, sentei-me no sofá e ficarei esperando que ela apareça. Não quero ser abusada de ficar procurando-a pela casa.
O apartamento é bem grande, maior que a casa onde cresci. Só conheci a sala, o banheiro e a cozinha, mas tem uma escada que com certeza leva para o quarto dela. A sala é bem sofisticada, tem um piano em um canto e dois quadros de bom gosto nas paredes. Talvez ela seja rica... espera, ela fala português muito bem, será que ela é brasileira? Fiquei olhando para o retrato dela. Queria saber mais da vida dela, mas não queria parecer uma intrometida.
- Sara.
Ouvi a sua voz se aproximando e sentando-se no sofá.
- Oi, senhora.
- Senhora, senhora, me chame pelo nome e me trate por você, não sou tão velha assim, tenho apenas 34 anos de idade.
- Desculpe-me, foi por puro respeito, jamais pensaria que a senhora... - corrigi-me - que você tenha mais que 30 anos de idade.
- Que gentil! Está frio, vou ligar a lareira.
Ela se levantou e ligou a lareira elétrica. Depois se ajeitou na poltrona e ficou de frente para mim, só com a distância da mesa de centro nos separando.
- Sara, você não quer contar um pouco da sua vida? Sou curiosa.
- Claro. Sou Sara Qubilah Abi-Abib no registro dos meu pais, mas virei Sara Salmen da Costa quando Fátima me adotou. Nasci em plena Guerra do Golfo no Iraque...
E contei toda a minha história de vida, até como cheguei até ali. Relatei que nos últimos 5 meses tenho pegado carona e ando a pé desde que meu dinheiro acabou. Ela não me olhava com pena, observei um olhar imparcial, ouvia tudo atentamente. Eu gostei daquele olhar. Minha situação era crítica, mas preferia aquele olhar ao de pena como muitos faziam. Pouquíssimas pessoas que me olhavam com pena estendiam a mão como ela o fez.
Montserrat
Sara relatava a vida dela com força e coragem, não se fazia de vítima. Terminou falando como chegou até aqui e sorriu timidamente.
- E agora? Como pretende seguir seu caminho? - Perguntei.
- Bem, eu estou aguardando uma autorização para atravessar para a Áustria. Mas, ainda preciso arranjar um emprego e juntar dinheiro para a travessia. Estou pensando em tentar outra cidade.
- E por que não conseguiu nada por aqui?
- Procurei em quase todos os bairros, mas quando digo que sou refugiada eles não querem ou pior...
- Pior?
- Você sabe, escravidão. Comecei a trabalhar em troca de comida para uma senhora, mas ela passou a nem comida me dar mais.
Fiquei em silêncio. Eu também não daria emprego para uma refugiada. Eu sou como essas pessoas que a garota descreveu. Mas chegar ao ponto de escravizar... não, nunca!
- Entendo. E por que você quer ir para a Alemanha?
- Todo mundo está indo para lá, dizem que é o lugar mais fácil para conseguir emprego na Europa.
- Mas você não tem medo de chegar lá e não conseguir nada?
- Não. Procuro não criar expectativas, é claro, pode dar tudo errado. Mas o mundo é muito grande, em algum lugar eu vou me encaixar.
Sorri junto com ela. Sara é fantástica.
- Com certeza. E quanto tempo demora para autorizarem a sua passagem para a Áustria?
- Fiz o pedido assim que cheguei aqui, há 1 mês. Alguns falam em 1 mês, outros 2 meses. Todos os dias eu vou até a delegacia para ver se chegou a autorização, só me resta a boa vontade deles e conseguir um emprego temporário.
- Claro. Quantos anos de idade você tem?
- 25 anos.
- Você é nova. E que faculdade você fazia?
- Medicina - um sorriso iluminado apareceu no rosto dela - como minha mãe. Desde muito nova queria essa profissão.
- É uma profissão esplêndida, tenho certeza de que um dia você voltará para os estudos e será uma grande médica.
Seu sorriso aumentou ainda mais. Eu definitivamente gosto de fazer a garota sorrir. Sua vida nem bem começou e ela já passou por tantas coisas, merece sorrir mais.
Meu pai também é médico. É dono de uma rede de hospitais no Brasil que tem sede no Rio de Janeiro. Seu sonho, é claro, era que eu seguisse a profissão, mas nunca despertei o mínimo interesse. Porém, eu estou mais ligada aos hospitais do que gostaria. Dois anos atrás, meu pai estava quase falindo e eu o socorri comprando 50% do hospital que um dia será meu por herança. Sou uma mulher de negócios e sei bem como ostentei dinheiro, paguei meus estudos e comprei imóveis. Os hospitais são um bom negócio e ajuda muito na minha renda, por isso decidi comprar e manter a minha própria herança.
Olhei para a sacada e vi que a tempestade prometida está aqui. Ainda bem que tive a chance de salvar a Sara e aliviar uma pouco seu sofrimento.
- Vou preparar algo para nós comermos. Fique à vontade, pode ligar a TV, deitar no sofá para descansar, o que preferir. Eu volto quando estiver tudo pronto.
- Não quer ajuda?
- Eu prefiro que você descanse e fique tranquila.
Fui para a cozinha fazer uma das coisas que mais gosto: cozinhar.
Sara
Senti um alívio por contar a minha história à Montserrat, foi uma maneira de desabafar. Eu não costumo reclamar da vida, de maneira nenhuma, tive muita sorte de sobreviver à guerra quando nasci e ter tido a chance de sair da Síria, que virou outra guerra. Tenho forças para enfrentar tudo.
Não vejo a hora de encontrar um lugar para viver. Preciso apenas de um emprego e uma casa. Dignidade.
- Sara, o jantar está pronto.
Essa voz que me chama parece açúcar. É afetuosa e eu me sinto estranhamente bem ao ouvi-la. É de se aquecer qualquer um no frio.
Levantei-me do sofá e fui em sua direção. Logo estava sentada na mesa com ela me servindo.
- Espero que goste, é espaguete à Carbonara.
- Nunca comi, mas pela cara já gostei.
Esperei a dona da casa se servir e sentar-se. Fiz uma pequena oração e dei a primeira garfada.
Nossa que delícia, que prazer em comer aquilo.
- Nossa.
- O quê? - Ela olhou assustada.
- Isso daqui é divino, é o melhor. Como é mesmo o nome?
Ela sorriu.
- Espaguete à Carbonara. É sério que nunca comeu?
- Sim! Já comi espaguete, mas como esse jamais. Você cozinha muito bem, Montserrat.
- Obrigada. Eu adoro cozinhar, é digamos que meu hobbie.
- E qual é a sua profissão?
- Hum... agora é a sua vez de fazer perguntas. Sou estilista e empresária, trabalho com moda.
- Que legal, pensei que fosse atriz ou modelo. Modelo... quase acertei.
- Sim, confesso que quando mais nova já desfilei. Mas sempre quis mesmo desenhar e criar.
Sorri para ela e bebi um pouco de suco.
- Sara, você disse que não é convertida ao islamismo, isso significa que...?
- Que eu ainda não tive tempo de escolher a minha religião.
- Escolher? Como?
- Minha mãe adotiva era muito católica e meus pais biológicos eram islâmicos. Além disso, cresci em um país muçulmano. Acho que é natural que eu fique em dúvida. Minha mãe adotiva sempre me deixou livre para escolher. Com essa confusão toda ainda não sei.
- E você precisa escolher?
- Claro. Uma pessoa sem religião é só mais uma vagando pelo mundo.
- Hum...
Estranhei aquela falta de resposta da Montserrat, mas larguei de mão. Minha curiosidade pela vida dela me fez perguntar o que eu mais queria:
- E seu marido, quando chega?
- Meu marido? Que marido? - fez uma cara confusa.
- Como que marido?
- Sara, eu não sou casada.
- Como não? Uma mulher tem que casar, cuidar dele, ser protegida por ele.
Ela deu risada. O que eu disse de engraçado? Não é possível que uma mulher tão bonita não seja casada.
- Não, mulher não tem que se casar para ter proteção.
Limpei o canto da boca com o guardanapo enquanto a olhava assustada pela sua fala.
- Nossa, como somos diferentes. Bem que uma amiga falava que as mulheres do Ocidente são estranhas.
- Estranhas?
- É... ela me disse uma vez que vocês colocam a profissão em primeiro lugar, que demoram anos para se casarem. Dizem até que muitas não tem filhos porque não querem.
- É, pensamos bem diferentes. Mas você seria médica, uma profissão que exigiria muito de você, e pelo que sei vocês se casam cedo, por que você não casou ainda?
- Eu tive um noivo, íamos nos casar, mas minha indecisão o afastou. Eu não era apaixonada por ele, sabe? Fiquei com medo de me apaixonar ainda por outro homem e não poder viver um amor. Minha mãe me deixou livre para escolher casar-me por amor. Foi melhor assim, hoje ele já está casado com duas e eu procuro exclusividade.
- Então você está no lado do planeta certo, aqui tem essa de ter exclusividade. Embora alguns casais sejam abertos.
- Não sei... eu ouço falar que vocês traem muito. Fora outras coisas absurdas.
Ela levantou-se e recolheu os pratos colocando-o na pia.
- Acho melhor você abrir a sua mente um pouco. Vai encontrar muito mais que mulheres solteiras e gente que trai por aqui. Boa noite.
Parece que ela ficou com raiva. Que estranho.
Fim do capítulo
Pensamentos tão diferentes, mas uma ligação forte.
Por hoje é isso!
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Lino
Em: 28/01/2018
Batiast, a história só tem quatro capítulos mais tô amando Sarita e Montserat , oolh, no começo e já amando o desenrolar dessa trama envolvente. Gosto de suas histórias porque elas têm humor na meduda certa, sem que isso pareça forçado demais , personagens oensando em palavras e frases engraçadas o tempo todo , isso fica chato. Mas suas histórias são ótimas parabéns e cotunheco nos presenteando com sua escrita maravilhosa. Kero o próximo Cap. Hahahahah
Resposta do autor:
Olá.
Eba, que bom que você já está curtindo. "Sarita", adorei ahahahahaha. Ah, obrigada por considerar o humor na medida certa.
Hoje tem mais dois! Abs.
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Baiana
Em: 25/01/2018
A Montserrat vai começar a rever seus conceitos ao conviver com a Sara,sei não,mas não creio que ela vá deixar a moça voltar para a rua, já que o acampamento e o abrigo não são locais seguros.
Resposta do autor:
Será? Será? Montserrat tem um lado bom, mas tem uma visão mais dura da realidade.
Próximo capítulo teremos a resposta, acho que domingo.
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dannivaladares
Em: 24/01/2018
Fiquei emocionada com a atitude de Montserrat em ajudar Sara.
Não culpo Sara por ter uma visão fechada para sexualidade, afinal ela vem de uma cultura diferente, mas um milagre do amor pode abrir seus olhos.
Estou curisosa para saber mais sobre o desfecho dessa estória.
Está interessante! Muito interessante!
Se cuida, B.
Att,
D.V.
Resposta do autor:
Montserrat tem o seu lado bom haha.
Sim, Sara tem uma visão totalmente fechada e digamos que até ingenua por justamente não conhecer o novo mundo que ela entrou.
Ah, faltam bons capítulos ainda haha.
Se cuida também, abs.
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patty-321
Em: 24/01/2018
A mentalidade da Sara e totalmente oriental, cheia de preconceitos mas e pq ela nao conhece outra. A Montserrat ficou mordida kkkk. Se a sara souber q ela e lesbica?
Resposta do autor:
Sim, Sara tem a cabeça muito voltada para o Oriente e terá muitas surpresas.
Olha, não posso dar spoiler, mas será um choque sim.
Abs.
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