Meu corpo tremia em antecipação, fazia alguns minutos que eu encarava a porta procurando coragem para entrar, o medo latente me fazia recuar, conforme os minutos se passavam a ansiedade e o medo apenas cresciam, não teria um modo fácil de fazer isso, reuni a pouca coragem que tinha e entrei...

  Era uma espécie de sala de jogos, com uma mesa de sinuca e uma enorme televisão, havia também sofás e poltronas espalhados pelos cantos, a sala estava sendo iluminada por um abajur e mesmo com a pouca luz vi que as paredes eram abarrotadas de desenhos e fotografias das duas, entendi o que Davi quis dizer com era o lugar delas, eu era a intrusa ali, uma bola se formava em meu estômago o revirando.

  Busquei-a com os olhos, Clara estava jogada em um canto e chorava agarrada a um porta retratos, aquilo me mutilava por dentro, como era possível que sofresse tanto assim, me aproximei com cautela fazendo barulho para que me notasse, me sentia envergonhada, tinha receio de olhar em seus olhos, ainda tímida sentei a seu lado e a abracei fazendo sua cabeça deitar sobre meu ombro, ficamos em silencio por um tempo, pensei em várias maneiras que poderia me desculpar, tudo em vão, por fim só o que consegui dizer foi.

  -Desculpa Clara eu não queria... eu não pretendia... eu só... perdão...

  -Não... –sua voz estava fraca, mas pude a ouvir perfeitamente. –você não entende Isabel...

  A abracei ainda mais forte e virei seu corpo o entrelaçando ao meu de modo que ficássemos uma de frente para outra com ela sentada sobre meu colo chorando baixinho entre a curva do meu pescoço, afastei-a um pouco, nos encaramos por um momento buscando compreensão na nossa dor, sequei uma lágrima que escorria solitária por sua face, isso gerou mais algumas, enxuguei todas elas aproveitei para afagar seu rosto, em uma tentativa de lhe mostrar que estaria ali.

  -Me conta o que aconteceu Clara, me sinto perdida com tudo isso...

  Ela tornou a deitar sua cabeça em meu ombro, sua respiração era forte, percebi que tentava se controlar sem sucesso algum, esperei paciente até que estivesse pronta, minhas mãos deslizavam por suas costas num carinho calmo e delicado, pouco a pouco Clara ia se acalmando até estar pronta para falar.  

  -Beatrize morreu há um ano. –mais lagrimas brotaram. –E a culpa é minha Isabel...

  -Como assim? –então era isso, a garota estava morta, já tinha minhas suspeitas, acho que por este motivo meu choque não foi tão grande, embora tenha me abalado do mesmo jeito, o que não entendia agora era por que Clara se culpava.

  -Eu não queria intenta... eu só... eu.. –ela voltou a chorar compulsivamente perdendo a linha de raciocínio novamente.

  -Hey se acalma. –peguei em suas mãos e as acaricie. –Por que não começa do inicio sim? Como se conheceram?

  Ela me olhou por um momento, depois seus olhos repousaram nas nossas mãos, tentei soltá-las gentilmente com medo dela não estar gostando do toque, Clara as segurou firme e entrelaçou nossos dedos, não pude deixar de notar o quanto sua mão era quente, um sorriso involuntário surgiu, mesmo sabendo que não era o momento para isso, mas aos poucos conforme ela falava este mesmo sorriso foi morrendo em meus lábios.

  -Beatrize era minha prima, nós crescemos juntas, melhores amigas, tínhamos os mesmos gostos, lembro que desde novinha eu só gostava de fazer as coisas se a Bia estivesse junto, ela era meu mundo Isabel, minha vida, nunca pensei em amar tanto alguém como eu a amava, só que... eu não conseguia entender esse amor, não até...-ela se calou, respirou fundo buscando forças para continuar. –Até que ela viajou nas férias com os pais, nós já éramos adolescentes quando isso aconteceu, ela foi passar algumas semanas com nossos parentes da Inglaterra, eu nunca me senti tão sozinha Isa, mesmo cercada de pessoas eu não estava completa eu não... faltava algo... mesmo que inconsciente eu já sabia que... que faltava ela... eu nunca tinha passado tanto tempo longe dela, Isa... e doía tanto... cheguei até a ficar doente.

  -O que aconteceu com ela nas férias?

  -Bia voltou estranha, evitava sair e ela sempre gostou muito de uma festa, começou a se afastar dos nossos amigos e de mim também, então durante a festa de aniversário do Davi eu a arrastei pro quarto e pressionei para que me dissesse a verdade, eu estava morrendo aos poucos longe dela, já não agüentava mais, eu queria a verdade, pensei que eu podia ter feito algo errado, que ela pudesse estar com algum problema então a forcei a falar. –pude ver um brilho nos seus olhos e mais lágrimas se formarem e escorrem pelo seu rosto já umido. –Então quando a pus contra a parede e ameacei nunca mais a ver foi que ela... ela me beijou, disse que me amava, e que não queria me magoar com seus sentimentos, e naquela hora eu finalmente entendi o que eu sentia por ela… Não tinha como ser outra coisa…

  “Eu a amei, amei mais do que a mim mesma, eu estava completa de novo Bia voltou a ficar do meu lado, ela era tudo que eu precisava Isa, eu era tão feliz, só… só dela me olhar daquele jeito eu… eu era feliz... ficamos assim por anos, mantivemos tudo as escondidas... cada segundo com ela era... eu não sei, era irreal de tão perfeito e então Beatrize me pediu para morar com ela.

  -Morar? Tipo um casamento? -embora uma parte de mim estivesse magoada por escutar aquilo a não tinha como deixar de ficar perplexa.

  -Eu fiquei tão assustada Isa, mas ela estava do meu lado, me amando, cuidando de mim... –ela novamente parou para respirar. –Então contamos para nossos pais, íamos ficar juntas com ou sem a aprovação deles...

  “Nós deviamos ter imaginado que eles não iriam aceitar, fizeram de tudo para nos afastar, eu estava há quase três meses sem vê-la, nunca tinha passado por isso, eu adoeci, cheguei a ficar de cama, então meu irmão ficou com pena de mim e começou a me ajudar, ele levava nossos recados, eu estava melhor com isso, conseguimos nos encontrar escondido, mas meus tios acabaram descobrindo, depois disso Davi escutou nossos pais discutindo e minha tia dizendo que a levaria Bia para outro país, foi então que resolvemos fugir, já tínhamos combinado tudo, tinhamos um pouco de dinheiro guardado pra nos manter no começo, eu arrumaria um emprego e mais pra frente faria faculdade, ela entraria para o exército, era o sonho dela, em alguns anos se formaria e viveríamos bem...”

  Clara voltou a chorar ainda mais e se agarrou em mim, eu podia sentir seu coração se rasgando com a lembrança

  -Eu estava a tanto tempo longe dela, eu fui tão fraca Isa, tive tanto medo, eu não consegui Isa eu.. Se pudesse voltar atrás eu teria ido juro que teria, mas naquela hora... Tanto tempo sem ela... eu fui fraca...

  -O que aconteceu com ela?

  -Beatrize deve ter ido me esperar, eu, eu não fui... no outro dia os pais dela vieram aqui, disseram que ela fugiu, eles não sabiam do nosso plano pensaram que ela tinha vindo atrás de mim, mas ela não veio… -a voz de Clara morreu nessa hora, tive que aguardar longos minutos até que ela se recuperasse para continuar. -O carro foi encontrado uns quatro dias depois em um desmanche ilegal, um garoto de doze anos Isa, ele confessou o roubo ele… ele disse que matou ela, ele disse que ela reagiu, ele… ele... tinha um rio perto, eles não acharam ela.. se eu estivesse lá Isa, se eu não fosse tão covarde, se não fosse isso ela…

  -Você… você não teve culpa Clara…

  -Eu tive Isa… eu tive a ideia de fugir, eu escolhi o lugar do encontro… eu fui covarde Isa.. eu… -eu não sabia o que dizer apenas fiquei olhando pra ela, minhas lagrimas escorriam junto as de Clara, não tinha nada que pudesse fazer.  -E então quando eu finalmente começo a superar isso, a tentar seguir com a merd* da minha vida aparece você Isabel.

  -Eu?

  -Quando eu vi você, na fila do pelotão eu… eu pensei que fosse ela, mas você não me reconheceu, então ficamos no mesmo quarto e… tentei tanto me enganar acreditando que podia ser a Bia, que ela só tinha sofrido um acidente e se esquecido de mim, olhei todas as suas coisas, mas você não era ela, não tinha como ser, não tinha a pinta no queixo, não dava o sorriso de lado que eu me lembrava tão bem, não tinha a cicatriz no joelho de quando eu a atropelei de bicicleta… não era a minha Bia...

 “Você tem idéia de como foi duro pra mim conviver ao seu lado? Os mesmos olhos, o mesmo nariz, a letra parecida, até o som da gargalhada, mas você não era ela, nunca seria, e tive que ficar com você, no mesmo quarto, eu fui pra lá seguindo o sonho dela, por ela, e encontro você, uma copia, me lembrando dia após dia que ela não estava lá por minha causa, eu te odiei tanto Isabel… eu… eu… só não sabia o que fazer... acho que até hoje não sei... estar do seu lado é… é olhar pra tudo aquilo que eu perdi...

  Agora eu entendia todo o sofrimento, toda a angustia que eu causava, tudo por causa dessa aparência estúpida, já tinha ouvido falar de pessoas idênticas, mas nunca imaginei passar por algo assim, me afastei dela na mesma hora, eu era apenas uma lembrança dolorosa.

  -Acho que… eu embora Clara… eu nunca podia imaginar… não achei que fosse tão parecida assim..

  -Embora por quê? –ela voltou a me agarrar e me encarou com aqueles enormes olhos azuis.

  -Por que eu te faço sofrer e não quero que você sinta isso… eu não quero te ver desse jeito… não por mim...

  -Não Isabel, você não pode, eu preciso de você, eu não agüentaria, não de novo... não agora...

  Tornei a abraçá-la, ficamos assim por horas, cada uma mergulhada em sua própria consciência, então eu percebi, eu nunca seria sua Beatrize, eu nunca teria um lugar no coração de clara, por mais que eu a amasse, eu não cabia ali, não quando tudo em mim só servia para trazer mais dor, se fosse da vontade dela eu tentaria ficar ao seu lado como amiga, mesmo que doesse, não teria uma chance de ocupar o lugar de Bia, mas quem sabe...

  -Isabel...

  -Está tudo bem Clara, eu vou ficar o quanto você quiser...

Fim do capítulo