Marijuana Breath
Pov-Cosima
É engraçado o jeito como as coisas podem ser evitadas, basta não menciona-las, basta fingir que está tudo bem. Assim, evitamos conversas constrangedoras, brigas e...consciência limpa.
Lembro de um simples truque ensinado por minha madrinha. Foi bem na época que minha mãe e eu brigávamos por ter me assumido homossexual. Tia Ruth me orientou a encher a boca com água enquanto minha mãe chovia ódio e desgosto, assim eu não poderia falar nada, apenas ouvir as asneiras que, na época, minha transtornada mãe dizia. Muitas brigas foram evitadas, foram sim, mas aquelas palavras nunca foram esquecidas e jamais serão, pelo menos não por mim.
Na manhã de meu aniversário, após o escasso dialogo com Delphine, nem de água precisei. Robyn e eu apenas ficamos paradas em minha sala enquanto a música que tocava ia desaparecendo entre o eco das paredes. A Morena preparou três baseados, deixou dois comigo e levou um com ela quando foi embora. Eu sabia que a veria no Colin ao cair da noite, em minha festa "surpresa". Meus amigos são péssimos em esconder algo importante, não é necessário de muito para entender quando algo está fora do normal, o quê nos leva à barulheira que Felix fazia no corredor. Minutos após Robyn partir, decidi vestir um traje mais cabível para o frio lá fora, e então ouvi a porta de meu vizinho bater violentamente. Como a pessimista que às vezes sou, já imaginei Scott e Felix sendo assaltados. Entretanto, quais são as chances de assalto domiciliar em um prédio fechado no Canadá? Pois bem, eu tinha que investigar o quê estava rolando.
Toquei a campainha pelo menos quatro vezes antes de ser atendida. Felix abriu a porta com um olhar assustado e face pálida, mais do que o normal. Então reconsiderei as chances de realmente ser um assalto.
"O quê tá acontecendo?" Questionei preocupada.
"Nada!" Respondeu rapidamente.
"Felix, fala logo! Se for sobre minha festa, eu já sei sobre tudo ." Informei sarcasticamente, "Abre a porta!"
"Você é uma estraga prazer, nunca mais farei festa surpresa pra você!" Clarificou ainda usando seu corpo como um obstáculo em meu caminho.
"Sai da frente, eu quero ver o quê vocês estão tramando." Forcei meu peso contra o dele.
"Cosima, para!" Inclinou seu tronco e braços na disputa.
E feito duas crianças sem nada a fazer, ficamos ali perdendo tempo e gastando energia por um breve minuto.
"Chega! Quer ver mesmo? Então, entra." Soltou a porta de repente, o quê fez com eu caísse para dentro do apartamento de Scott de maneira agressiva.
Newton e suas malditas leis.
Estirada ao chão, levantei minha cabeça e avistei o desacordado corpo de Delphine no sofá. Levantei imediatamente para socorrer Dra. Cormier.
"Delphine! Delphine!" Peguei em suas geladas mãos finas de dedos longos.
"Ela desmaiou." Informou Felix.
"Como assim, do nada?" Perguntei extremamente necessitada por respostas.
"Eu ainda não sei como, apenas encontrei com ela na entrada do prédio. Ela estava suando, tremendo e completamente perdida, e então caiu nos meus braços." Fe gesticulava com seus lábios carnudos e mãos presas à cintura, "A pressão dela caiu, mas ela tá respirando bem. Daqui a pouco ela acorda, calma!"
"Santa merd*! Acho que sei o porquê." Clarifiquei ao entender minha culpa.
"Então fala..." Felix parou em minha frente para melhor analisar meu desespero.
"Bom, Delphine entrou no meu apartamento para deixar um bolo lá pra mim, mas ela não esperava encontrar Robyn nua na minha cama." Suspirei antes de continuar, "Ela foi embora, então eu a segui. Conversamos um pouco no corredor, ela me entregou as chaves de casa e seguiu seu caminho."
"Você não acha que esse seu joguinho foi longe demais?" Fe tinha o dom de fazer o ruim ficar pior.
"Não é um joguinho Fe, eu só queria saber com quem realmente vale a pena ficar. Eu só queria me sentir amada, só isso." Sentei ao lado de Dr. Cormier, abaixei minha cabeça e aceitei que os limites que foram ultrapassados por mim mesma.
"Cos, Delphine vai ficar bem, mas tá na hora de parar. Você precisa decidir logo." Senti sua mão em meu ombro pesado.
"Odeio admitir, mas você está certo." Confessei.
"Eu sempre estou certo, você que é teimosa demais." Retrucou ironicamente.
Permaneci ali naquela sala por mais um tempo antes de deixar que meu amigo arrumasse a bagunça que meu péssimo julgamento havia feito. Quando fui embora, voltei para meu apartamento, onde encontrei sujeira por todo lado, não necessariamente uma sujeira física, esta era pior, era algo que eu não via, apenas sentia.
Passei a manhã até o cair da noite deitada em minha cama fumando meus estimados baseados, comendo de colher o bolo que Dra. Cormier havia feito, atendendo telefonemas de congratulações, e assistindo "Rick and Morty". Risadas semi soltas e corpo inanimado. O telefone voltou a tocar por volta das 19:00.
"Já que você sabe da festa, não demora para aparecer no Colin." Pelo o tom da voz e o número no visor, só poderia ser o irritadinho do Felix.
"Não dá pra cancelar?" Questionei sem o menor ânimo.
"Não dá, tá todo mundo aqui." Informou.
"Até Delphine?" Não sei onde eu queria chegar ainda.
"Delphine? Claro que sim! Depois de te ver com a Robyn, ela desmaiou, acordou e foi a primeira a chegar pra te ver com a ela de novo." Fe era sarcástico demais, ácido demais, porém suas palavras nunca castigavam em vão.
"Tá bom, Felix. Daqui 30 minutos eu chego." Sem despedida, desliguei o telefone.
Olhei para os lençóis bagunçados com cheiro de outra mulher, avistei o quê restou no bolo e estudei a brisa na qual eu me encontrava. Caminhei até o chuveiro e lá permaneci tempo suficiente para ser desperta. Vesti calças jeans e um pulôver preto com vermelho. Selecionei um sobretudo que combinasse com meu cachecol e novamente caminhei até o banheiro, onde aprontei uma básica maquiagem e borrifei bastante perfume. Por fim, busquei por minhas botas e bolsa, e então parti com meu carro até o apartamento de Colin. Durante o percurso tentei ensaiar caras que marcassem surpresa, mas nenhuma delas pareceu natural, então terminei com meu último baseado para ter a brisa como desculpa.
Quem não tem cão, caça com gato...ou é o contrário? Foda-se, estou cansada demais para pensar em algo além da culpa de ser amada por duas mulheres, e na mesma medida, fazer ambas sentirem-se queimando no fogo que eu mesma ateei.
A festa tinha todos os convidados já esperados, Scott, Mud, Felix, Colin e Robyn. Todos nós bebemos e comemos, em alguns momentos, até dançamos um pouco. Com um bolo grande e repleto de velas apagadas por mim, meus amigos cantaram o clássico "parabéns" de maneira desafinada pelo álcool, e então chamaram dois Ubers para estendermos a comemoração em uma balada próxima ao centro da cidade. Era domingo à noite, mas as pessoas dançavam como se fosse sexta-feira. Os casais encontravam-se em um momento particular deles enquanto eu bebia meu segundo Cosmopolitan.
"Hey!" Capturei aquela voz de porcelana sem precisar encarar sua dona.
"Robyn! Hey." Respondi sorrindo.
"Desculpa ter saído daquele jeito, mas senti que você precisava ficar sozinha." Ela não tinha o porquê se desculpar, entretanto, ela não quis causar maior tensão entre nós.
"Olha, eu realmente precisava ficar sozinha, mas acho que estou melhor agora." Afirmei ao tomar um longo gole de minha bebida.
"Pedi para tocarem uma música para você." Confessou.
"Sério, qual?" Questionei mirando no verde daqueles olhos famintos.
Ela mexe comigo, não há como negar.
Robyn levantou o dedo indicador ao ar, "Essa!".
Eu não conhecia a música, mas a melodia era convidativa, e a letra era uma direta bem na cara.
"I tried to tell you a hundred times
Love can kill you and make you cry
I'm not the monster under your bed
I'm just the voices inside your head"
A Morena buscou por minha mão e me levou para pista de dança. Pousando seus braços ao redor de minha cintura, olhou em minha íris com desejo e um sentimento de "quero mais".
"Somedays we may go our separate ways, oh
These drugs they get the best of me
Rolling torches underneath the table
These drugs will be the death of me".
Seu aroma penetrou em minhas narinas feito heroína em viciado. Suas mãos se apossavam de meu corpo feito LSD em cabeça fraca. Seu olhar acelerava meu coração feito pinos de cocaína.
"So kiss me with your marijuana breath
I can be your cure for loneliness
A little something to help you forget
So kiss me with your marijuana breath
I can be your cure for loneliness
A little something to help you forget"
A Morena degustou minha saliva com sua sorrateira língua. Ao ritmo das batidas da música, nossos corpos remexiam-se dependentes de cada acorde e nota. E com olhos cerrados, imaginei Delphine, ali, entregue a mim. Ficou claro que meu tempo com Robyn estava chegando ao final, e isso me incomodou. Não é saudável ser tão viciada em drogas de elementos opostos um ao outro. Não é razoável injetar tesão e tragar amor. Não é sensato usar a dor como desculpa para o despudor. Entretanto, permanecer-se sóbria é um desafio maior do que a desintoxicação.
"O quê você vai fazer semana que vem?" Ao final da música, Robyn perguntou.
"Não faço a mínima ideia, por quê?" Em minha cabeça só havia a conclusão dos experimentos para Charlotte.
"Porque é Natal. Sei que pode ser estranho para você, mas meu irmão vai dar uma festa no loft dele e pediu para te convidar." Tudo o que eu quero é passar o feriado com o cara que transou com Delphine.
"E você não acha que será estranho?" Questionei sarcasticamente.
"Acredito que seja de início, mas depois de umas tequilas tudo ficará bem." Clarificou, "Pensei que seria ruim para você ficar sozinha, já que Scott vai passar com a família da Mud e Felix vai voltar para Rhode Island."
Eu não tinha pensado nisso. Eu realmente ficaria sozinha no natal.
"Bom, eu te respondo mais pra frente, pode ser?" Perguntei ainda contida em seus braços.
"Como preferir." Concordou.
Entre canções agitadas e bebidas degustadas, permanecemos festejando até o começo da madrugada. Após inúmeras fotos e risadas espontâneas, decidimos ir embora. Cada casal com seu próprio destino, porém evitei convidar a bela Morena para dormir junto a mim, optei por ficar só, e talvez esta fosse a melhor escolha que fiz naquele final de semana.
*********
Pela manhã da segunda-feira com o ácido sabor de ressaca, aprontei-me para mais um dia de trabalho. Em meus experimentos paralelos com Delphine, permaneci ocupada pela esperança de curar Charlotte e de ter algo permanente com a linda mulher concentrada em tubos de ensaio custosos. Nossos momentos eram silenciosos, porém promissores. Na realidade, a semana toda foi bem promissora...exceto aquela maldita sexta-feira.
Dra. Cormier e eu havíamos acabado de extrair as vacinas das proteínas isoladas. O procedimento final seria injeta-las nos camundongos, assim teríamos como observar as reações. Uma seria fatal e a outra seria a cura para a jovem menina e o velho rabugento.
"Bom, agora é só esperar até segunda-feira para ver o resultado final." Delphine era cautelosa no trabalho, mas completamente impulsiva em suas ações diárias.
"Então é isso?" Questionei sorridente.
"Por enquanto, sim." Retrucou demonstrando suas absurdas covinhas em suas bochechas rosadas.
Antes que pudéssemos perceber, nossos braços entrelaçaram-se em um abraço incapaz de ser descrito por qualquer vocabulário já descoberto.
Foi breve, porém confortante.
Ao notarmos a vulnerabilidade na atmosfera, nos afastamos minimamente. Eu respirava fundo, ela arrumava seu longo cabelo loiro.
"Como vai passar o natal?" Questionei ao analisar a ideia de ficarmos juntas no feriado.
"Não sei ainda, talvez eu passe com Paige e Art." Respondeu incerta, "E você?"
Eu não poderia falar sobre meus planos para o evento na casa de Pallo com Robyn. Não depois de faze-la desmaiar no meio da rua após o desencontro em meu apartamento.
"Vou ficar com o pessoal." Improvisos nunca foram meu forte, principalmente quando feitos na presença de alguém que me conhece como ninguém.
"Entendi! Bom, espero que se divirta." Afirmou cabisbaixa antes de começar a escrever nosso penúltimo relatório.
Eu a observei mover a caneta no papel. Delphine sabia exatamente como usar suas palavras e termos técnicos, porém nunca soube dizer algo que me fizesse ter certeza sobre nós.
Ouvimos o barulho da porta sendo agressivamente aberta, e ao virarmos para compreender quem estava entrando no laboratório, capturamos a indesejada figura de Dr. Leekie caminhando em nossa direção juntamente com dois seguranças.
"Então...você não sabia de nada, Delphine?" O velho amargurado fuzilava Dra. Cormier com detalhes de uma conversa somente deles.
"Aldous, possivelmente chegamos em algum lugar com tudo isso. Dr. Niehaus desenvolveu uma vacina para ser usada com os bernes em você e em outras cobaias também." Ver Delphine ter que se explicar para um homem era triste e injusto. Ela é a cientista mais brilhante que já conheci e, com certeza, não merecia responder à alegações como aquelas.
"Dra. Niehaus e sua desobediência. É incrível como ela conseguiu te usar para tanta audácia! Não vou mais amenizar o peso de tanta imprudência e quebra de protocolo. As saídas com Charlotte, os experimentos paralelos ao programa de estágio e o envolvimento com um superior." Leekie falava com tanta propriedade, só podia ser falta de sex* e felicidade, "Dra. Cormier, assuma seu papel e faça o que combinamos."
Como assim? O quê eles haviam combinado?
"Aldous, nós temos o que precisamos, isso não é necessário!" Delphine soava desesperada. Partia meu coração vê-la assim.
"Não me importa! Assuma sua posição antes que eu a tire de você." Demandou Leekie antes de partir, porém os dois seguranças que ele trouxe permaneceram plantados ali.
"Cosima, me perdoe." Pude sentir todo pesar em seu tremulo timbre.
"Tá tudo bem, Delphine. A culpa não foi sua." Busquei por suas mãos. Estavam tão frias, quis aquece-las com meu corpo morno pelo nervosismo.
"Dra. Niehaus." Suspirou aflita, "Seus serviços prestados ao Instituto não são mais necessários. Em 24 horas, você receberá uma avaliação final e um documento sobre a demissão. Os seguranças ajudarão a mover seus pertences, e o carro e apartamento permanecerão ao seu dispor até sua partida de volta aos Estados Unidos. O Instituto tem como responsabilidade pagar por sua passagem e seguro viagem."
"Termine isso por nós, Delphine!" Sussurrei ao entregar as vacinas secretamente a ela.
"Eu sinto muito, Cosima." Disse com olhos lagrimejando infinitamente.
Acompanhada dos homens de preto, cheguei ao lounge e juntei tudo o que me pertencia. Tive a sorte de estar sozinha, já era o fim do expediente, todos haviam partido e não havia ninguém para assistir minha triste despedida.
Aquela foi, com toda certeza, a pior sexta-feira da minha existência, e por mais que eu quisesse a visita de Cormier, sei que isso a colocaria em piores lençóis com Dr. Leekie, então pedi para que ela não se aproximasse até meu último dia. Noticiei meus amigos sobre minha demissão, porém todos estavam viajando, a única pessoa que tive por perto foi Robyn, quem insistiu para que eu passasse o natal com ela e seu irmão. Minha passagem tinha data marcada, às 14:00 da segunda-feira, apenas dois dias para permanecer em território Canadense com meu visto de trabalho.
Era véspera de natal, a neve brilhava em brancura e frio. Aprontei-me para a festa com as roupas que ainda não haviam sido guardadas em minhas malas. Um vestido justo e lilás, o mesmo sobretudo preto com o cachecol do mesmo tom, porém com detalhes em cinza.
Ao chegar no loft de Pallo, fiquei maravilhada com os quadros e posters distribuídos pelas paredes de tijolos escuros. Havia muita bebida e comida, a música estava alta e clara. As pessoas ali eram da mesma tribo que o solteirão, todos ricos, porém simples de sua peculiar forma. Foi impossível não imaginar minha Delphine dançando com seu ex na imensidão daquele cômodo, bebendo naquela cozinha moderna, sorrindo ao fumar seus cigarros na varanda próxima à mesa de bilhar.
"Você veio!" Robyn exclamou correndo em minha direção.
"Sim!" Confortei-me em seus braços.
"Vamos beber, você merece, já que vai embora amanhã." Clarificou em tom normativo.
"Eu topo!" Concordei seguindo a bela moça até o bar.
Tomamos duas doses de tequila Patron e escolhemos Balley's para o restante da noite.
"Cosima, que bom que veio." A voz de Pallo era rouca e forte, perfeita para um cantor de rap.
"Sim! Obrigada pelo convite." Agradeci honestamente.
"Magina! Fiquei sabendo que você vai embora amanhã." Robyn, pelo jeito, não escondida nada de seu irmão.
"Na verdade, vou embora dia 26, mas como hoje é quase natal, não tem problema." Brinquei ao corrigi-lo.
"Cara, é verdade! Hoje ainda é dia 24!" Exclamou Robyn embaraçada por sua própria confusão.
"Tá tudo bem, isso não muda o fato de que vou embora." Amenizei a gravidade entre nós.
"Bom, então deixa eu aproveitar você, vamos dançar!" A Morena atrapalhou a conversa para me levar novamente ao bar, onde tomamos mais tequila enquanto dançávamos ao som de "Again", por Noah Cyrus.
O álcool em minhas veias contrabandeou sentimentos ilegais para aquele momento. Robyn cobria meu corpo com suas mãos e caricias, mas minha cabeça estava bem longe dela. Ali, minhas intenções para com a Morena ficaram mais do evidentes.
"Preciso ir ao banheiro!" Gritei para sobressair a música e o descaso.
"Usa o do Pallo, o da sala deve estar um nojo." Aconselhou contida em seus passos harmoniosos.
Então fiz meu caminho entre o mar de pessoas sorridentes naquele loft bem decorado. Separado por uma cortina, estava o quarto do solteirão. Sua cama estava simetricamente bagunçada, com os travesseiros amontoados, do jeito que Delphine deixa. Recusei-me reviver cenas não vividas por mim. Apressei-me e adentrei o banheiro, onde fiz o que precisava fazer, lavei as mãos, olhei-me no espelho e parti. De volta ao mesmo cômodo, pendurada em um pedestal próximo à televisão, avistei uma camisa cinza escuro. E de repente, eu a reconheci. Caminhei em direção à roupa, de longe já pude sentir o cheiro. Na realidade, todo aquele quarto cheirava à pele que eu conhecia muitíssimo bem. Peguei a camisa e a segurei junto a mim.
"Cosima, o quê faz aqui?" Pallo adentrou o local com suas perguntas e curiosidade.
"Robyn disse para usar seu banheiro, e ao sair encontrei isso daqui." Estendi a peça em sua direção, "Você e Delphine continuam juntos?"
"Primeiramente, devolve aqui!" Tirou a camisa de minhas mãos, "E não, não estamos juntos, mas isto é a única coisa que eu tenho dela. Eu e essa camisa, duas coisas que ela deixou para trás."
"Você esqueceu de me incluir nessa conta também." Brinquei com enorme peso em meus ombros.
"Ela não te deixou, Cosima. Você saberia o quê é ser deixado para trás por Delphine Cormier. É algo fora do ordinário, algo que te queima as entranhas e te faz perguntar em meio aos certos acertos, onde exatamente você errou." Pallo falava como se eu não soubesse quem Delphine realmente fosse.
"Nós amamos a mesma mulher." Afirmei irritada.
"Não, Cosima. Você ama quem Delphine virou, eu a amo desde quando aquele sorriso ainda era plenamente feliz." Clarificou em revolta.
"E como ela era?" Questionei sarcasticamente.
"Ela era doce, aventurosa, com um olhar curioso e uma alma inteira. Ela não acreditava tanto no amor por conta dos pais, porém quando me conheceu, eu a fiz entender o quê o amor poderia ser." Pressionou a cinza camisa contra seu traje escuro, "Eu a fiz ser a mulher fria que ela se tornou. E você teve a chance recuperar tudo aquilo que ela foi, mas não conseguiu. Você tem noção do que eu daria para ter Delphine de volta?"
Em minha frente havia um homem com mais feridas do que um veterano de guerra. Bem ali, havia um homem repleto de arrependimentos e desilusões.
"Você deveria estar lá com ela. O único lugar onde eu gostaria de estar." Informou por fim.
"Você tem razão." Concordei, "Delphine nunca me deixou, eu a deixei, eu segui minha vida." Expliquei, "E minha vida nunca foi tão incompleta assim."
"Então vai! Ainda há tempo para vocês." Aconselhou com um sorriso torto e expressão salgada pelas lágrimas que caiam.
Retirei-me do cômodo e, apressadamente, procurei por Robyn. A moça dançava com seus cabelos ao ar.
"Hey, preciso ir! Sinto muito." Evitei detalhar meu destino, porém ela sabia exatamente onde estava prestes a ir.
"Você tem certeza?" Questionou em triste tom.
"Sim! Me desculpa." Respondi quase sem pensar.
Dei uma última estudada no corpo da bela Morena. Aquela seria nossa despedida, e ela não poderia ter sido melhor, pois há certas coisas, certas palavras que precisam ser evitadas.
Já em meu carro, não soube para onde ir primeiro. Gostaria de ver Charlotte uma última vez, e o horário seria propicio para tal. Leekie não estaria no Instituto, afinal, já era natal.
Com rapidez e cautela, dirigi até o estacionamento. Desci de meu veículo e caminhei até a entrada como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse sido demitida. O segurança permitiu minha entrada, então segui ao quarto da menina no terceiro andar. Pelas paredes de vidro, consegui entender que ela não estava lá, então perguntei sobre seu paradeiro para o segurança do andar. O homem vestido em terno preto, com braços cruzados, sem a menor empatia, informou que Charlotte havia sido transferida para uma clínica particular, pois houve um retrocesso em seu tratamento. Tentei obter mais informações, porém ele desconhecia o paradeiro da menina.
Em total desespero e angustia, apressei meus passos até a sala de Delphine. Eu conhecia o código de entrada e também sabia onde as vacinas estariam, na incubadora próxima ao lavabo. Cautelosamente digitei o código de acesso, a data que começamos a morar juntas. Encontrei os conteúdos, um vermelho, outro azul. Colocamos corantes para reagir e evidenciar as diferenças, porém ainda não havíamos descoberto qual vacina seria a cura e qual seria a fatal mistura. Sem tempo para estudar melhor a situação, amedrontada por perder Charlotte, a imprudente irresponsabilidade tomou conta de meu ser. Com uma seringa esterilizada sobre a prateleira, apliquei a vacina azul. Minhas veias sentiram o calor do líquido, meus pés e mãos formigavam, meu coração pulsava em ritmo assustadoramente acelerado. A reação levaria quatro horas para ter efeito. Se fosse a vida ou a morte, eu teria quatro horas para fazer tudo o quê não fiz em 23 anos.
Eu não sabia especificamente onde Delphine poderia estar, talvez na Paige, talvez em um bar qualquer ou até mesmo com outra pessoa. Entretanto, todos os ossos de meu corpo exigiram para checar seu apartamento antes de qualquer outro lugar. Desci até o estacionamento novamente, com pressa e sem a mínima cautela, cheguei ao gigantesco prédio em quinze minutos. O porteiro já me conhecia, então me deixou entrar. Andei pelos corredores e elevador, caminhei aos saltos até a porta toda enfeitada com guirlanda e luzes coloridas.
Delphine em espírito natalino? Algo não está certo!
Amedrontada por provavelmente estar batendo desesperadamente na porta errada, pausei meus impulsos para respirar profundamente...
Talvez ela não estivesse lá.
Talvez eu nunca mais a veja.
Talvez Charlotte morra.
Talvez tudo isso seja um pesadelo.
Gritando mais alto e batendo mais forte, tentei ser atendida pela última vez. Exausta, debrucei meu corpo contra a porta. Foi quando alguém a abriu e me segurou.
"Cosima!" Ah! Aquele sotaque, aquela sílaba tônica no lugar errado, "O quê aconteceu?"
A face rosada, os olhos gigantes, os lábios finos...aquela era Delphine, a minha Delphine.
"Acho que fiz merd*." Exclamei em voz baixa.
A música que tocava era muito familiar, "Come Away With Me", por Norah Jones. Avistei uma taça de vinho pela metade sobre a mesa próxima à uma árvore de natal inteiramente iluminada e decorada.
"O quê você fez?" Questionou impaciente.
"Bom, fui visitar Charlotte, e me disseram que ela estava internada em uma clínica particular. Pensei que ela estivesse morrendo, então injetei uma das vacinas em mim." Dizer aquilo em voz alta soou completamente irresponsável e impulsivo. A perfeita descrição sobre quem sou.
"Você fez o quê? Enlouqueceu?" Sua mão segurava meu rosto cansado, "Charlotte não está internada, ela está dormindo na minha cama. Eu menti para tira-la do Instituto, ela está bem." Aquilo me trouxe enorme alivio, mas também causou grande arrependimento.
"Não acredito! Foi em vão?" Indaguei ciente da merd* que havia feito.
Delphine deitou meu corpo no sofá, mas não sem antes apoiar minha cabeça em seu colo.
"Quando você injetou a vacina?" Perguntou olhando para o relógio em seu pulso.
"Faz uns quarenta minutos." Respondi lutando contra o seco em minha garganta.
"Você já deve estar sentindo os primeiros efeitos! Não acredito em tamanha estupidez, Cosima." Seu tom era carregado de sermão e raiva.
"Escuta, eu fodi tudo, exatamente tudo! Eu não deveria ter seguido em frente, eu não deveria ter colocado você e Robyn nessa posição...me perdoa." Confessei em súplicas contra tempo banal.
"Vai ficar tudo bem, meu amor." Ouvi-la me chamando de amor foi como assistir minha alma sendo lavada. Afinal de contas, eu ainda era seu amor, e ela o meu.
"Volta pra mim?" Implorei olhando em seus olhos molhados.
"É claro que sim! É tudo o quê quero!" Seus dedos acariciavam minha face delicadamente, "Precisamos ir ao hospital, Cos!"
"Nós duas sabemos que não vai adiantar, os órgãos entrarão em falência total em duas horas no máximo." Expliquei ao tentar amenizar a tremedeira em todo meu corpo, "Delphine, eu só passei aqui para te dizer adeus e dizer o quanto te amo."
"Cala boca! Você só pode estar brincando! Não atreva me deixar agora, vai dar tudo certo." Eu mal conseguia ouvir sua voz, minha cabeça começou a latejar de tamanha dor.
Certas coisas podem ser evitadas, certas palavras podem ser não ditas, certos momentos não precisam existir. Mas quem sabe quando ou o quê dizer? Quem consegue controlar os impulsos mais imprudentes? Se é errando que se aprende, se eu sair dessa, com certeza aprenderei a esperar. Talvez esse seja meu problema, querer tudo agora e de uma vez só. Entretanto, morrer naqueles braços não me pareceu ser uma má ideia, mesmo assim, o quê eu realmente queria era passar o resto de meus longos dias com Delphine, e se possível ao lado de Charlotte também.
A verdade é quem ninguém está preparado para errar, para acertar. Apenas vivemos tentando evitar o pior, seja por medo ou respeito, por ódio ou por amor. Ser irresponsável pode até soar corajoso, mas na realidade ser assim é estupido demais, e as consequências uma hora ou outra te acham, nem adianta se esconder. A vida nunca perdoou, muito menos a morte.
Aos poucos senti meu corpo parar de funcionar, as pálpebras pesaram e a respiração diminuiu. Entretanto, ela mantinha seus olhos em mim, eu não os via claramente, mas senti cada movimento que eles observavam.
Eu deveria ter aproveitado mais, deveria ter me casado, ter passado mais tempo com minha mãe, tentado encontrar meu pai, dizer aos meus amigos o quanto os amo. Entretanto, o meu maior arrependimento, com a total certeza, é ter pensado que eu sempre teria mais tempo. Tempo para viajar, tempo para curtir, tempo para amar, tempo para perdoar, tempo para lembrar e para esquecer. Mas quem sabe quando, exatamente, a gente deixa de viver?
Antes de adormecer, pude sentir o peso dos lábios de Delphine nos meus. Pude reconhecer a música que tocava naquele momento final, "Will You Still Love Me Tomorrow." Eu costumava ouvir essa canção com minha mãe, e a letra me lembra muito meu relacionamento com a loira chorosa colada em mim.
"Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning star?
I like to know that your love
Is love I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?"
Se o amanhã chegar, direi o quanto a amo, pedirei sua mão em casamento. Se o amanhã chegar, ligarei para minha mãe, dizer que sinto sua falta, dizer que vou me casar.
E se o amanhã não chegar, espero não lamentar o ontem, e sempre me lembrar que hoje passei meus últimos momentos nos braços da mulher que amo.
E você? Se o amanhã chegar, o quê vai fazer?
Fim do capítulo
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