Capítulo 10: FARO JORNALÍSITICO
Renatinha ficou mais do que planejara, permaneceu toda a semana, e nesse tempo, tornou-se admiradora fiel de minha nova namorada. Luiza parecia encantada com minha amiga, mas como eu esperava o vírus lésbico da Renata, teve vida curta, tive que intervir algumas vezes, especialmente quando ela deu em cima de Fábio descaradamente, para a fúria de Elaine e desconfiança de Marisa.
Eu continuava com sucesso na direção da Folha de Nova Esperança, que aos poucos ganhava fama na região, e investia no jornalismo investigativo, tanto para o jornal, no que dizia respeito à atuação das madeireiras nos arredores e no assassinato da família do embaixador do Brasil em Honduras, seguindo a pista da matéria que vi nas coisas de Marisa.
Não foi fácil, há dez anos a internet não era tão popular, para ter acesso às matérias feitas na época sobre o assunto, tive que pedir ajuda a Márcinha, minha amiga e colega jornalista, que me enviou por fax e por e-mail tudo que foi divulgado na época, e a leitura desse material me deixou profundamente intrigada.
O embaixador, sua mulher e duas filhas, foram assassinados por guerrilheiros hondurenhos, o país atravessava uma guerra civil na ocasião, na qual, o Brasil era mediador do conflito entre o governo ditatorial e antigos deputados que faziam a resistência contra o governo. Haviam suspeitas que a resistência da guerrilha fosse patrocinada pelo tráfico de drogas e de armas, especialmente da Colômbia e México, o assassinato da família do embaixador Alcides Campos Muniz poderia ser uma espécie de recado dos traficantes guerrilheiros contra a atuação do embaixador na pacificação do conflito, uma vez que não era de interesse dos criminosos que a guerra civil cessasse, por que dessa forma, os lucros do tráfico de drogas e de armas sofreriam.
Muitas interrogações surgiam na minha mente de posse dessas informações. Por que Marisa guardava aquela matéria antiga? O que eram aqueles negativos de fotos? O que ela tinha haver com a família do embaixador?
Eram muitas as dúvidas e hipóteses formuladas, mas nenhuma me convencia, aquele mistério me perseguiu, até me influenciou na escrita do romance, que continuava acumulando uma legião de fãs na internet, que motivava ainda mais a investir nesse hobby tão sério pra mim.
Marisa e eu nos víamos praticamente todos os dias, fazíamos planos para viagens, saímos juntas sempre e freqüentemente dormíamos na casa uma da outra, mas toda essa proximidade ainda não me deixava segura, nem à vontade para perguntá-la sobre o motivo de ela guardar a tal matéria de jornal e o conteúdo daqueles negativos.
Cerca de um mês de nosso namoro, Marisa apareceu de surpresa em minha sala, enquanto eu lia no meu notebook um material novo sobre minha investigação particular acerca da guerrilha de Honduras.
- Ahá! Peguei você no flagra não é Alexandra!
Com o susto adicionado à minha culpa, derrubei porta-lápis, agenda e um monte de papéis que estavam próximos ao notebook na minha mesa, a confusão de itens espalhados pelo chão distraíram Marisa que se agachou para recolher as coisas, e foi o tempo suficiente para que eu fechasse os arquivos abertos no notebook.
- Que susto Marisa! Flagrante de que?
- Estou começando a achar que você está mesmo me escondendo algo...
- Eu? Escondendo?
- Pela sua reação à minha entrada repentina falando em flagrante... Acho que você está me escondendo algo que um seqüestro desse notebook me revelaria...
Marisa foi se aproximando da minha mesa, deslizando seus dedos por cima do meu notebook a essa altura desligado e fechado. Empalideci, suei frio, não consegui disfarçar meu nervosismo.
- Bobagem Mah, só me assustei com sua entrada mesmo... Não vai me dar um beijo?
Acho que até meus lábios estavam gelados, Marisa deu-me um selinho e franziu a testa:
- Alex, o que está acontecendo? Por que tanta tensão?
- Nada Mah! Vamos indo? Estou faminta!
- Na verdade eu vim te avisar, que não posso almoçar com você hoje minha linda, tenho que substituir um colega numa palestra no campus de Serra Linda, só volto a noite... Desculpe-me.
Fiz bico, dei de ombros e respondi:
- Fazer o que né... A gente se vê a noite?
- Tenho plantão hoje, esqueceu?
- Droga... É verdade... Então, boa palestra.
Despedi-me de Marisa e fui à sala de Daniel convidá-lo para almoçar comigo já que minha companhia acabara de furar nosso almoço.
- Dandan, almoça comigo? Por favor, amigo... Odeio comer sozinha...
- Sardenta adoraria, mas tenho que ir à Serra Linda agora...
- Não vai almoçar?
- Acho que vou almoçar por lá mesmo...
- Posso ir junto?
- Claro sardenta! Vou adorar ter companhia na viagem, você não tem nada urgente pra hoje a tarde?
- Não, está tudo em ordem... Deixa chefinho...
- Vamos lá!
No fundo minha animação tinha um motivo oculto, aproveitaria a ida à Serra Linda para assistir à palestra de Marisa no campus da universidade de lá, uma surpresa, já que não nos veríamos o resto do dia.
Depois de um almoço divertido com meu amigo Daniel, deixei-o em uma reunião na prefeitura da cidade, e segui para o campus da universidade de Serra Linda, me dirigindo com pressa até o salão de atos, onde supus que a palestra de Marisa fosse ministrada. Encontrei as portas fechadas, o segurança do campus não sabia nada sobre uma suposta palestra de uma médica, até estranhou, uma vez que aquela universidade, não oferecia nenhum curso na área de saúde.
Inconformada, percorri os prédios do campus buscando informações sobre alguma palestra que estivesse sendo dada naquele horário, caminhada inútil, nenhum funcionário sabia coisa alguma sobre tal evento. Decepcionada com a mentira de Marisa saí dirigindo pela cidade sem destino certo, tinha que esperar até o fim da tarde para vir com Daniel para Nova Esperança. Parei em uma lanchonete próxima ao mirante da cidade, antes de descer do carro, avistei um carro conhecido, não era possível, era o carro de Marisa!
Olhei ao redor, e numa mesa mais afastada, vi o que eu não queria Marisa sentada com a morena fatal, Larissa. Conversavam com uma expressão séria, e eu, experimentava a amarga sensação de estar sendo traída, me via sem forças até mesmo de sair do carro e dar o flagrante em minha namorada, mesmo não estando evidente o caso amoroso entre elas, a mentira de Marisa foi o suficiente para me dar a certeza que ela me enganava com a tal Larissa.
Observei elas se levantarem e entrar no carro de Marisa, não tive dúvidas, me escondi quando passaram por mim, e resolvi segui-las. Meu instinto jornalístico não combinava com minha ausência de sangue frio para controlar minhas emoções, enxugava minhas lágrimas enquanto dirigia, temendo o que podia ver em instantes.
Cerca de quinze minutos depois, as duas pararam numa propriedade com um galpão aparentemente abandonado, escondi o carro atrás de árvores na estrada e me aproximei a pé do galpão a fim de tentar ouvir ou pior, ver algo.
Minha caminhada clandestina pelo mato me rendeu muitos carrapichos presos à minha roupa, e muitas picadas de insetos. Escondi-me atrás de uma carroça velha, e por uma fresta, espionei o encontro de minha namorada com sua suposta amante.
Larissa entregou um pacote, e orientou:
- É para sua proteção, guarde com cuidado, mas esteja preparada para usar se necessário, em breve venho ficar com você todo tempo, até resolvermos essa situação.
- Larissa, eu não agüento mais isso...
- Eu sei Lisa, mas essa tortura está terminando.
Estranhei o nome Lisa, pensei ter ouvido mal. Larissa segurava os ombros de Marisa sem aprofundar a carícia, o que me deixou em dúvida sobre o caráter romântico daquele encontro. A madeira velha daquele galpão me traiu, estava apoiada ali com o rosto colado na madeira para enxergar através da fresta, quando a madeira apodrecida se desfez e caí para dentro do galpão, coberta de feno.
Larissa e Marisa se assustaram, a morena fatal, sacou uma arma e apontou para mim empurrando Marisa para trás dela, sacudi o feno e ainda esparramada na palha e berrei:
- Calma! Sou eu!
- Alexandra? Meu Deus, mas o que você está fazendo aqui? – Marisa disse espantada.
Eu não sabia o que responder, o que poderia dizer? Vim aqui espionar você meu amor... Nada justificava minha presença ali, naquelas condições.
- Vi seu carro parado aqui... Eu vim com o Dan, ele está na prefeitura, aí fui na faculdade, você não estava lá...
Eu falava rápido, quase sem parar para respirar, sem uma sequência lógica, completamente atordoada especialmente pela aparência de desaprovação de Marisa diante de minhas atrapalhadas explicações.
Larissa estava boquiaberta, e Marisa visivelmente impaciente e irritada me interrompeu:
- Espera aí Alexandra... Você está me seguindo? Estava me espionando?
- Nãaaaaooo, imagina Mah... Foi por acaso... Mas o que você está fazendo aqui mesmo com essa daí?
- Alex não mude de assunto... Você estava escondida me espionando, veio de Nova Esperança para averiguar se eu estava mesmo dando palestra?
- Pois é e você não estava!
Marisa colocou as mãos na cabeça, mostrando indignação balançava a cabeça enquanto Larissa avisou:
- Eu tenho que ir, vou deixar vocês à vontade, mantenho contato... Até mais.
Marisa me olhava com um olhar de decepção sincera, que me fez repensar a minha atitude, mas no fundo eu me julgava certa em cobrar explicações dela:
- Fala Marisa, por que você mentiu assim pra mim? Tudo isso para encontrar-se com sua amante?
- Como é que é? Você é louca Alexandra, louca!
Marisa saiu furiosa do galpão, e eu a segui sacudindo o resto de palha que se confundia com os meus cabelos.
- Você não vai sair daqui sem me explicar o que aconteceu aqui Marisa!
- Descubra, você não é uma jornalista? Investigue! De mim você não terá nenhuma resposta!
- Marisa, você mentiu, não havia palestra nenhuma no campus da universidade daqui, fiz papel de idiota procurando você lá, pra te fazer uma surpresa.
- Ah, mas com certeza isso você fez! Uma surpresa e tanto! Não esperava que você chegasse a esse ponto.
Marisa não parava para me responder, berrava a caminho do carro, quando eu a alcancei, segurei-a pelos braço, e retruquei:
- Agora nós temos um compromisso, me deve explicações, fala Marisa!
- Eu vim ministrar sim uma palestra, no estúdio do curso de cinema da universidade, faz parte de uma preparação dos atores que farão papel de residentes de medicina no trabalho de conclusão de curso, eles queriam tirar dúvidas, trocar experiências como uma espécie de laboratório das personagens. Mas se você não acredita em mim, pergunte à sua repórter, ela fez uma matéria sobre isso, estava lá fotografando tudo com o Artur.
- Mas eu fui lá... E... O que você estava fazendo com essa Larissa aqui?
- Você não já deduziu tudo? Que eu vim me encontrar com minha amante? Então, foi isso!
- Não é justo, antes você não me dizia por que não tínhamos compromisso, agora que temos você se sente ofendida por eu perguntar?
- Nosso compromisso está acabando agora! Não posso continuar um relacionamento com uma pessoa que me espiona, me segue, me interroga, em suma: que não confia em mim.
- Como é que é? Você está terminando comigo?
- Estou Alexandra, vai ser melhor assim.
Marisa bateu a porta do carro e saiu em disparada, me deixando com o coração dilacerado e um amontoado de dúvidas. Caminhei até o carro com o rosto banhado em lágrimas, não sabia se arrependida por ter dado vazão à minha curiosidade e feito acusações à Marisa, ou se magoada pela reação dela, mas uma coisa era certa, estava perdida imaginando minha vida sem ela.
Liguei para Daniel aos prantos, fato que apressou meu amigo, fazendo-o antecipar o fim de sua reunião e me trazer de volta à Nova Esperança. Preocupado com meu estado, especialmente por que não consegui expressar o que motivara minhas lágrimas, Daniel me levou para sua casa, preparou-me um chá calmante, serviu-me e alguns minutos depois ele perguntou:
- E agora, você pode me falar o que aconteceu?
Respirei fundo e narrei os acontecimentos da tarde, Daniel parecia espantado diante de cada detalhe que eu falava, provavelmente nunca imaginou que sua amiga sardenta fosse capaz de atitudes de espionagem explícita.
- Minha amiga eu nem sei por onde começar, mas, com certeza existe um grande mistério envolvendo nossa doutora, e com certeza ela não tem caso nenhum com essa morena fatal.
- Você acha?
- Sim Alex. Mas entendo a reação de Marisa, não deve ter sido nenhum pouco agradável ser surpreendida assim pela namorada, depois receber acusações como as que você fez.
- Dandan! Não tenho sangue de barata! Como você reagiria?
- Primeiro de tudo, eu não faço esse tipo de surpresa para meu namorado, segundo, não me prestaria ao papel de detetive, por que eu particularmente gosto que respeitem minha privacidade, por isso tento não invadir a de ninguém.
- Nossa, que lição de moral...
Daniel riu e continuou:
- Alex, como já te falei, nunca vi Dra. Marisa com nenhum relacionamento fixo com alguém esse anos que ela está aqui, você é a primeira, e você no primeiro mês de namoro apronta uma dessas?
- Dan você é meu amigo mesmo?
Daniel riu mais uma vez e segurando minha mão respondeu:
- Sou, e por isso estou te falando essas coisas, procure Marisa, peça desculpas, conquiste a confiança dela para que ela mesma te revele o que quer que seja que ela guarda em segredo...
- Então tenho que parar também minha investigação?
- Que investigação?
Fiquei sem graça de revelar ao meu amigo meu empenho nas investigações sobre o assassinato da família do embaixador, desde que vi o recorte da matéria nas coisas de Marisa.
- Alex, responde!
Levantei-me e andando pela cozinha, mexendo nas peças decorativas fui revelando ao meu amigo o teor de minhas investigações, para o espanto dele.
- Para de andar e larga meus biscuits antes que você quebre tudo! Alexandra mais uma vez não sei o que falar, não sei se brigo com você por mais essa indiscrição, ou se brigo por você não ter me dito isso antes!
Daniel disse isso tomando da minha mão uma faca a qual eu segurava como brinquedo.
- Esse mistério está tomando ares de romance policial... E você disse que a tal Larissa sacou uma arma quando você apareceu de surpresa no galpão?
- Sim...
- O que será que havia nesse pacote que ela entregou a Dra. Marisa?
- Não sei, nem suponho, e nesse momento, é o que menos me interessa, eu preciso mesmo é me entender com minha namorada Dan, me ajuda!
- Tudo bem, vou te ajudar.
Sorri e abracei o Dan, quando ele disse:
- Antes de tudo, vamos tirar esse feno e os carrapichos da sua roupa, e esse cheiro de galinheiro!
Sorri tímida, Daniel me levou até o quarto de hóspedes, enquanto eu tomava um banho demorado, ele pessoalmente pegou uma muda de roupas em minha casa. Depois de refeita daquela situação de desespero, sentei na cama atenta ao plano de meu amigo para me desculpar com Marisa.
- Então sardenta, honestidade acima de tudo, fale para Marisa como você se sente quando ela lhe esconde coisas importantes, fale sobre sua insegurança sobre essa Larissa e que sua intenção a princípio não foi de segui-la...
- Mas Dan, estou magoada com a reação dela, como ela me tratou, não sei se quero me desculpar, mas também não quero perdê-la.
- Uma coisa de cada vez... Converse primeiro, esclareça as coisas, dê-lhe a oportunidade de se explicar, a situação de mais cedo de fato, não era a ideal para esclarecimentos...
- O que faço então?
- Chame-a para conversar, mas espere ela se acalmar um pouco... As coisas esfriarem...
- Ela vai dar plantão hoje, então... Amanhã ligo pra ela, vou para casa Dan, valeu pela força amigo.
- Outra coisa Alex: essas investigações, cuidado, seja lá o que for, se Marisa descobrir que você anda xeretando, algo que supostamente ela esconde a relação, ela vai se sentir invadida, vocês se conhecem há muito pouco tempo, determinadas coisas exigem tempo para consolidar confiança.
- Você tem razão Dan...
Vim para casa refletindo nas coisas que Dandan me falou, apesar da minha trapalhada eu estava convicta que Marisa me devia explicações, lembrava-me do pouco que eu sabia dela e milhões de hipóteses surgiam à minha mente, instigando ainda mais minha curiosidade. Quem era Larissa? Que pacote era aquele que ela entregou a Marisa? E sua familiaridade com a arma e o instinto de proteger Marisa? Seria uma policial? Segurança particular? Assassina? Meu Deus! Aquele pacote seriam drogas? E se Marisa fosse traficante e Larissa sua fornecedora? Aí ela teria motivos para me esconder tanta coisa... Acaso ela tinha algo haver com o assassinato do embaixador?
Eu precisava fazer tantas perguntas a Marisa... Senti medo de me envolver nessa história, mas minha paixão por Marisa era mais forte, como se lutasse contra meu bom senso, remexi meu notebook relendo o material que eu tinha sobre o mistério do assassinato da filha do embaixador, e ali algo me chamou a atenção, a entrevista do embaixador a uma revista de circulação nacional, falando sobre o regime ditatorial do governo hondurenho:
- “A guerrilha tornou-se um negócio lucrativo para todos: governo, exército, traficantes e guerrilheiros, só a massa de inocentes perde nessa empresa de guerra, por isso, não há interesse dos que tem o poder nas mãos para acabar com esse negócio, mas penso que estamos nos aproximando de um momento crucial na história desse povo, em breve Honduras terá um novo horizonte”.
O atentado aconteceu dois meses após a publicação de tal entrevista, deixando evidente que o embaixador sabia que um novo poder mais justo se instalaria naquele país, portanto, os assassinos dele e de sua família poderiam ser qualquer um entre governo, traficantes e guerrilheiros.
A noite avançava e eu mergulhava na leitura de artigos sobre a história dos últimos dez anos de um país que eu só conhecia de amistosos da seleção brasileira de futebol, entretanto, eram tantos nomes a investigar relações, que comecei a acreditar que eu não seria capaz de desvendar aquele mistério diplomático sozinha, nem ao menos sabia se eu ainda queria seguir com isso.
Eu queria mesmo me entender com Marisa, sentia uma falta absurda dela, de ouvir sua voz antes de dormir, do cheiro dela nos meus lençóis, do calor do seu corpo junto do meu... Não resisti, e em mais uma das minhas super idéias, resolvi que iria esperá-la em sua casa, na sua cama, precisava sentir-me perto dela, não ia mesmo conseguir dormir tamanha a ansiedade que eu estava.
Segui para a casa de Marisa, ao me lembrar que ela esqueceu a cópia da chave de sua casa no jaleco em meu carro, dessa vez minha surpresa tinha que dar certo.
Cheguei a casa, estacionei, e quando coloquei a chave na porta, ouvi um “bip” estranho, deduzi que fosse meu celular descarregando, entrei na casa de Marisa, acendendo as luzes e ouvi um barulho se intensificando, abri minha bolsa, e confirmei, não era meu celular, segui para o quarto, e para minha surpresa, a porta não abria, nunca percebi que Marisa trancava a porta do quarto ao sair de casa.
Dez minutos depois de entrar na casa de Marisa, ouvi barulho de carros se aproximando, coisa não muito comum, a noite, era difícil o trânsito de carros por ali. Em minutos vi luzes vindas do lado de fora da casa, me assustei, e fui me aproximando da porta, quando ouvi um estrondo, como se alguém arrombasse a porta.
Policiais armados invadiram a casa, me dominando em segundos, jogando-me no chão e me algemando enquanto anunciavam:
- Não se mova!
Completamente atordoada, eu só repetia:
- Eu não fiz nada! Eu entrei com a chave!
Os policiais me colocaram de pé, e me sentaram no sofá ainda algemada, acenderam as demais luzes da sala e disseram:
- Vamos esperar ela chegar.
- Seus policiais, eu conheço a dona da casa, sou amiga dela, entrei com a chave dela, não sou criminosa...
A essa altura eu já soluçava de tanto chorar. Os policiais se entreolhavam, cochichavam, e eu repetia:
- Liguem para Marisa, ela vai confirmar...
- Dra. Marisa já está a caminho, fica caladinha aí.
Em pouco tempo que para mim foi uma eternidade, Marisa chegou enfim:
- Alexandra! O que houve aqui? Você está machucada? Espera aí, você está algemada?
- Diz pra eles Marisa que não sou uma ladra...
- Doutora, o alarme disparou, quando chegamos aqui essa moça estava aqui dentro de sua casa. – Um dos policiais falou.
- Soltem-na, ela está falando a verdade.
Imediatamente os policiais me soltaram, eu tremia, meu rosto estava banhado em lágrimas, Marisa se aproximou de mim, agachou-se ficando com os olhos na altura dos meus e perguntou:
- Você está bem?
Eu chorava compulsivamente, enquanto os policiais se justificavam:
- Doutora, só cumprimos nossa obrigação, o alarme disparou, viemos o mais rápido de podíamos, a senhora sabe que estamos sempre atentos aqui na sua casa.
- Tudo bem senhores, obrigada, mas está tudo bem, minha amiga não sabia do alarme eletrônico, foi só isso, boa noite.
Os policiais saíram e Marisa me trouxe um copo de água, me serviu e me perguntou:
- Está mais calma?
Balancei a cabeça positivamente e Marisa prosseguiu perguntando:
- E agora você pode me dizer o que faz aqui?
- Queria te fazer uma surpresa... Esperar você aqui, quando chegasse do plantão... Senti falta do seu cheiro...
- Ai Alexandra... Você e suas surpresas... Você poderia estar presa a esse momento se eu não pudesse sair do plantão para conferir o que aconteceu em minha casa, já pensou nisso?
- Na verdade não pensei nisso, eu estava com sua chave... Não sabia desse alarme.
- Foi instalado há poucos dias, esqueci de te dizer.
- Estranhei a porta do seu quarto trancada, nossa que susto a porta sendo arrombada, fui jogada no chão, algemada...
Eu ainda me tremia do susto, com certeza aquilo me deixou traumatizada. Marisa me olhava demonstrando compaixão, e quando pegou minhas mãos suadas e geladas eu pensei que meu coração rasgaria minhas roupas para pular no chão...
- Está tudo bem agora. – Disse Marisa.
- Na verdade não está tudo bem, por isso fiz essa loucura, hoje mais cedo, você... Terminou tudo...
- Alex...
- Escute-me primeiro Mah... Eu sei que te fiz acusações, que a situação foi ridícula que dei a entender que sou uma louca, mas, eu juro, não fui àquela cidade para te seguir por não confiar em você, queria assistir sua palestra e aproveitei que o Dan iria para uma reunião lá...
- E não se satisfez ao não me encontrar e saiu me procurando pela cidade?
- Foi uma coincidência te ver na lanchonete no mirante da cidade, vi seu carro e depois vi você com a Larissa, me desesperei e sim... Segui vocês duas.
Baixei minha cabeça envergonhada, relembrando a cena no galpão.
- Mah, eu sei que errei, mas não foi com a intenção de invadir sua vida, eu quero te conhecer melhor, e você tem tantos segredos...
- Alex escute-me você agora. Eu sei que meu comportamento pode parecer estranho algumas vezes, que você acha que te escondo muitas coisas, mas, há um motivo para que eu aja assim. Quando vi você ali, coberta de palha, deduzi tudo como uma inconseqüente atitude ciumenta, depois as acusações, fiquei transtornada...
- Eu sei, foi uma situação constrangedora de fato.
- Mais do que isso Alex. A questão é que falei coisas sem pensar... Passei o resto do dia pensando em você, me perguntando se você me perdoaria, se me entenderia.
Marisa apertava minhas mãos com os olhos marejados, e eu continha minha vontade em abraçá-la imediatamente, mas eu precisava aproveitar aquele momento para saber o que queria dela.
- Marisa, o que há entre você e a Larissa, por que você se encontrou com ela em outra cidade?
A expressão do rosto de Marisa mudou. Levantou-se, colocou as mãos no bolso da frente da calça e me respondeu:
- A única coisa que posso te dizer a respeito de Larissa, é que não temos nem nunca tivemos uma relação amorosa.
- Isso você já me disse, mas por que esses encontros?
Marisa se aproximou de mim, segurou mais uma vez minhas mãos e pediu:
- Alex, preciso te pedir uma coisa muito importante.
- O que Mah?
- Confie em mim.
- Mas Mah...
- Escute-me, eu não posso falar nada por enquanto a você, pra minha e sua própria segurança, mas não quero te perder, eu... Gosto de você, você não imagina o quanto... Mas você precisa confiar em mim, sem espionagem, sem acusações...
- Marisa você não confia em mim?
- Acredite em mim, não é uma questão de confiança, não posso revelar algumas coisas, e se você me quer tanto quanto eu quero você, nosso namoro terá que ser nessas condições.
- Não sei se sou capaz disso Marisa, você está me pedindo demais.
- Eu sei que sim, por isso nunca aceitei namorar com ninguém, por que nenhuma mulher aceitaria tais condições, mas o que estou sentindo por você me motiva a te pedir esse pequeno sacrifício, por que te quero muito, gosto de verdade de você.
Obviamente aquela declaração de Marisa mexeu muito comigo, meu impulso era de aceitar qualquer condição e beijá-la consolidando nossa reconciliação, mas eu não podia ser tão irresponsável, haja vista que eu tinha quase certeza que não conteria minha curiosidade, depois de iniciar a investigação sobre a relação de Marisa com o assassinato da família do embaixador.
- Marisa, eu tenho medo de não conseguir confiar assim cegamente...
- Alex, só há essa forma de continuarmos nosso namoro... Vamos tentar?
- Tudo bem Mah, vamos tentar... Aceito essa condição por um motivo forte.
- Que motivo?
- Eu estou caidinha por você...
- Caidinha é? Isso eu acredito... Lembra de quando nos conhecemos? Você vivia caindo e eu te segurando...
Sorri enquanto Marisa se aproximava de mim, acariciou meu rosto e disse:
- Estou completamente rendida a você Alex, por isso quero fazer as coisas darem certo.
- Vamos fazer dar certo então...
Puxei seu rosto para perto do meu e beijei-lhe com todo desejo de tê-la comigo inteira. Em minutos estávamos coladas no sofá trocando beijos quentes em meio ao toque de nossas mãos pelo corpo um da outra, nos entregando a paixão urgente.
Aquela noite, apesar de estar nos braços de Marisa, não dormi em paz. Eu me conhecia, e sentia que aquele mistério sobre a vida de Marisa, ia me importunar todo tempo, e não estava convencida que queria de fato cessar as investigações.
Deixei Marisa dormindo e saí para trabalhar. Daniel já me esperava na minha sala ansioso:
- Liguei pra sua casa a noite toda, como você não atendeu, imaginei que estivesse com Marisa, e aí se entenderam?
- É, não resisti, quase fui presa por invasão de domicílio, mas no fim das contas nos entendemos.
- Ainda bem! Mas que história é essa de quase ser presa?
Narrei o acontecido, enquanto meu amigo caía na gargalhada.
- Mas, voltamos com uma condição, que sinceramente não sei se vou conseguir respeitar.
- Que condição?
- Confiar nela e não fazer perguntas sobre a relação dela com Larissa, enfim, não segui-la...
- Você acha que não pode confiar nela?
- Dan, e minhas suspeitas sobre a relação dela com esse atentado da família do embaixador? E todas as hipóteses que construir? Tudo que tenho investigado? Não vou conseguir esquecer isso.
- Entendo, mas você terá que fazer esse sacrifício...
- Tenho medo de estragar tudo.
- Então nem vou te contar o que descobri.
Daniel já se levantou e caminhou até a porta quando saltei na frente dele:
- O que você descobriu?
- Alex! Pra que mexer nisso? Você quer ou não salvar esse namoro?
- Quero, mas... Só curiosidade, fala Dan!
- Ai e eu louco pra contar, vou morrer engasgado se não repassar a fofoca!
Daniel gargalhou de um jeito afetado, denunciando a Lady Gaga que vivia nele.
- Fala bicha! – Berrei.
- Então sente aí mona, e escute.
Sentei-me ansiosa roendo as unhas enquanto Daniel prosseguia falando:
- Toda mídia divulgou o atentado contra o embaixador e sua família, mas o que ninguém comentou, foi que o segurança do embaixador, era também o motorista do carro oficial no dia do atentado, e o seu corpo nunca foi encontrado.
- Mas eu li todas as reportagens, a presença desse motorista e o sumiço do corpo dele não foi mencionado em nenhuma delas, como você sabe disso?
- Curiosidade não é defeito só seu, ontem depois que você me falou aquelas coisas, mexi meus pauzinhos...
- Que pauzinhos?
- Mona o mundo homossexual tem suas conexões, em todo canto, em todos os setores e escalões, tem sempre um viado que conhece outra bicha fofoqueira, e logo a globalização colorida chega até mim!
Daniel fazia pose de estrela de cinema quando se referia a ele mesmo e eu não continha minha ansiedade em conhecer as fontes dele:
- Dandan como você teve acesso a essas informações?
- Sardenta, eu namorei um funcionário do ministério das relações exteriores, hoje o bofe está poderosérrimo, está sendo enviado para o consulado do Canadá! Bastou eu ligar, usar minha voz sensual e ele me deu o telefone de outra biba que trabalha no escritório central onde os registros de funcionários do ministério que morreram em serviço são arquivados. O viado se derreteu, e abriu o verbo, não foi difícil ele encontrar os arquivos sobre o caso, especialmente por que, pelo que ele me disse, ainda está sendo investigado, mas existem vários pontos que são sigilosos.
- O que você justificou para pedir essa informação?
- Ah eu falei que estava ajudando uma amiga num trabalho de faculdade de relações exteriores, cujo tema era política de países que sofrem com as guerrilhas. Claro que ele me fez jurar que esse dado aí não seria divulgado, sob pena de mandar me prender, imagina eu linda numa cadeia?
- Isso só aumenta o mistério e as hipóteses... Ou seja, atiçou mais ainda minha curiosidade Dan.
- Pois é menina, também estou curioso, e agora? O que faremos?
- Faremos? Eu não posso continuar investigando isso Dan, se Marisa descobre, está tudo acabado entre nós.
- Ai que pena...
- Mas você pode continuar investigando!
- Eu? Surtou racha? Não tenho talento pra isso, só sou intrometido mesmo...
- Dan... Eu preciso saber! Faz isso por mim...
- Sardenta, será que você não entende que eu investigar e te dizer dá no mesmo?
- É você tem razão...
Baixei a cabeça, me conformando em sufocar minha frustração em não concluir minha pesquisa, mas aquela nova informação ficou martelando em minha cabeça, o mistério aumentava, e eu comecei a sentir a curiosidade me atiçar fisicamente, meu corpo coçava, e durante o dia aquele desconforto foi aumentando na hora do almoço, ao entrar em minha sala para me convidar para almoçar, Dandan me surpreendeu com um grito escandaloso:
- Aaaaaaaaaaaaaaai!
- O que foi bicha?
- Sardenta, suas sardas evoluíram, você está parecendo um corte de tafetá de bolas vermelhas! Um horror!
- O quê?
Levantei-me assustada e corri para o banheiro, ao me ver no espelho me assombrei com a visão que tive de mim mesma. Não eram pintas vermelhas pelo corpo, eram erupções! Depois de atestar meu estado de pipoca minha ansiedade aumentou e sintomas como falta de ar, taquicardia surgiram.
- Dan não consigo respirar!
- Meu Deus, vamos pro hospital Alex!
Daniel saiu me arrastando espalhando a purpurina de tão nervoso que estava. Senti meus lábios incharem e meu pânico só se intensificava, especialmente com os gritos agudos de meu amigo quando olhava para mim.
Chegamos ao hospital rapidamente, pensei em ligar para Marisa para que ela me encontrasse lá, entretanto, não queria interromper as aulas dela. Minha intenção não foi respeitada por Diego quando me viu dar entrada na emergência do hospital, ligou para Marisa levantando a suspeita de que eu estaria sofrendo uma espécie de choque anafilático.
Marisa chegou em menos de quinze minutos no ambulatório que eu estava, já que a universidade era vizinho ao hospital. Eu já estava sendo medicada, conseguia respirar melhor, quando Marisa entrou apressada e assustada, segurou minha mão e me perguntou:
- O que houve linda?
- Não faço a menor idéia Mah... O médico me perguntou algo sobre alergia, se comi algo diferente, ou se tomei alguma medicação, mas não, não sei o que houve.
Nesse instante, o médico que me atendeu entrou e chamou Marisa para conversar, enquanto Daniel se aproximou ansioso:
- Como você está se sentindo sardenta?
- Um pouco sonolenta...
- Pelo menos a boca da escrava Anastácia está se desfazendo...
- Jura? Pensei que ficaria com os lábios da Angelina...
Rimos alto, chamando a atenção de Marisa e do colega médico, minha namorada franziu a testa como que pedindo para eu me comportar, em seguida se aproximou de mim me avisando:
- Alex, você ficará aqui essa noite, em observação, sendo medicada, de manhã faremos alguns exames, aparentemente não se trata de reação alérgica ou choque anafilático como meu aluno, que aliás precisa estudar mais sobre esse assunto me disse. Tem mais características de uma urticária, mas você está passando por algum estresse? Alguma ansiedade?
Meio sem graça, desconfiada olhei para Dandan e disfarcei:
- Não Mah, nenhuma grande ansiedade...
Claro que nem um pouco convencida disso, Marisa fingiu que aceitou minha resposta e me pediu que uma enfermeira me levasse até o apartamento que eu ficaria internada. Daniel se ofereceu para pegar algumas roupas em minha casa, enquanto minha namorada me assegurava que passaria a noite comigo.
O cuidado dela comigo só contribuía para que eu me apaixonasse ainda mais por ela. Marisa se preocupava com cada detalhe que melhorasse meu conforto. Minha consciência pesava, provavelmente minha urticária era conseqüência de todo meu estresse movido por minha curiosidade e ansiedade por ter que abrir mão de investigar a ligação de Marisa com a morte da família do embaixador.
Aos poucos toda aquela coceira pelo corpo aliviou, Marisa deslizava pelo meu corpo compressas umedecidas com cânfora, penso que o alívio se deu mais por causa do carinho do que propriamente pela substância.
- Espero que você não use esse tipo de tratamento para todas suas pacientes Mah...
- Você não é minha paciente Alex... Se fosse, o exame seria mais completo, a massagem então...
- Dra. Marisa!
- Ué... Nunca ouviu falar do meu toque de médica?
- Não ouvi, mas senti...
Marisa sorriu e deixou escapar um:
- Ui...
- Ainda estou parecendo um morango gigante?
- A aparência está bem melhor, está coçando muito ainda?
- Até que não, sentindo só um pouco de queimação.
- A medicação está fazendo efeito, precisamos investigar o que causou essa urticária.
- Não gosto de hospital, quero ficar aqui muito tempo não Mah...
- Ninguém gosta Alex, mas, vamos fazer de tudo pra sua noite aqui ser agradável, amanhã, você sai.
- Como você vai fazer minha estada aqui ser agradável?
Apesar de estar bem melhor da tal coceira, eu ainda sentia, e Marisa não conseguia conter o riso ao me ver tentar instalar um clima sensual em minha voz, enquanto coçava meu pescoço.
- Pra começar, vou providenciar seu jantar, e trazer uns brinquedinhos para nós.
- Brinquedinhos? Mas aqui no hospital Marisa?
- Ué, o que tem? Tem até terapia com isso sabia?
- É???
Minha cara assombrada despertou uma gargalhada de Marisa. Na minha cabeça, milhares de hipóteses sobre esses tais brinquedinhos. Nada inocente, só me lembrava dos sites lésbicos que visitei, e as lojas sexy shop, e inúmeras fantasias tomaram de conta de minha mente, imaginando Marisa de posse dos tais brinquedinhos como “consolos” presos a tiras de couro, diante do meu leito.
Enquanto eu divagava nos meus delírios, Marisa me avisou:
- Não demoro, Diego ficará aqui com você.
Beijou minha bochecha quente e rosada pelas urticárias, acariciou meus lábios e saiu. Não demorou para Diego chegar e me fazer companhia.
Uma hora depois, Marisa chegou junto com Daniel, ambos carregando sacolas, na minha cabeça os brinquedinhos de Marisa deviam estar bem escondidos, e eu estava ansiosa para usá-los.
Daniel ficou fazendo piadas sobre meus pijamas, repetia que a última vez que vira algo tão rosa foi quando completou a casa da Barbie. Depois de muitos risos, o casal de amigos nos deixou a sós.
- Como sei que a comida desse hospital não é lá grandes coisas, trouxe uma comidinha pra você, leve, mas saborosa.
- Estou morrendo de fome...
Marisa dispôs os potes com a comida sobre a mesinha perto da janela do quarto. Espalhou os pratos, talheres, guardanapos e me ajudou a sentar, arrastando o tubo de soro preso a minha veia. E como eu não podia movimentar minha mão direita, Marisa praticamente me serviu a comida na boca, com um sorriso lindo no rosto, limpando o canto da minha boca com o guardanapo.
Aquele momento que poderia ser banalizado para alguns, para mim foi um dos momentos mais intensos de carinho e intimidade entre nós. Nem queria que aquela refeição acabasse, trocamos olhares que beiravam o ridículo de tão abobados que pareciam.
- E você não vai comer Mah?
- Depois de você.
Não escapei da sobremesa de hospital: pudim de leite. Mas servido por Marisa foi o doce mais saboroso que já experimentara. Mas minha ansiedade era de fato pelos brinquedinhos.
- E você trouxe os brinquedinhos?
- Ansiosa heim Alex!
Sorri tímida, olhando para Marisa enfim jantar depois de me servir.
- Então, em que sacola estão os brinquedos?
Perguntei enquanto remexia nas sacolas trazidas por Marisa.
- A curiosidade matou o gato sabia?
Marisa estapeou minha mão, censurando minha ansiedade ao mexer nas sacolas. Como se quisesse prolongar minha tortura de curiosidade, Marisa demorou mais do que nunca para concluir o jantar. Ajudou-me a me acomodar no leito, retirou o jelco da minha veia, e disse:
- Vamos brincar agora.
Arregalei os olhos, enquanto Marisa abria as sacolas, retirou uma pequena caixa, e aproximou do meu leito uma bandeja móvel, colocando sobre ela a tal caixa. Meu coração acelerado e minha respiração igualmente rápida denunciavam minha ansiedade, até que Marisa perguntou:
- Já jogou “scramble”?
- O quê?
Não acreditei quando Marisa abriu a caixa, espalhando pela bandeja o tabuleiro com as pecinhas de madeira com letras pintadas.
- Scramble Alex, esse joguinho de formar palavras...
- Era esse o brinquedinho que você trouxe?
- Não só esse... Trouxe WAR também, prefere esse? Ah, também trouxe UNO, gosta?
Minha cara de decepção deve ter sido cômica, porque Marisa não conteve a risada.
- O que você esperava Alex? Baralho? Dominó? Damas? Gamão? Xadrez?
- Não sei o que eu esperava...
Fiz cara de criança emburrada, enquanto Marisa montava no tabuleiro: “bicuda”. Não conseguindo esconder minha irritação descabida, respondi “chata”.
- Menos letras... Estou ganhando então! – Disse Marisa empolgada.
E nesse clima, nosso diálogo se instituiu no tabuleiro do jogo, até que respondendo a uma provocação de minha namorada que insistia em fazer piada da minha óbvia decepção, fugindo de todas as regras do jogo, bagunçando a ordem do tabuleiro, montei a sentença: “foda-se”. Depois de arregalar os olhos, espantada, Marisa caiu na gargalhada:
- Alexandra! Que modos são esses? Você quer mesmo que eu me foda?
Cruzei os braços, dei de ombros fingindo não me importar com a exortação dela.
- Você é muito mal-humorada, trouxe os joguinhos para te distrair, sua mal agradecida!
- É a melhor distração que você pode me oferecer?
- Aqui sim! O que você espera? Que eu faça um streap-tease para você em pleno quarto do hospital que eu trabalho?
- Não seria má idéia...
- Ok, até posso fazer isso, no dia que você fizer isso no jornal, aí, farei o mesmo aqui.
- É um desafio?
- Considere como você quiser.
- Desafio aceito! Agora tire essas letrinhas da minha frente antes que eu monte mais palavrões e me beije logo!
- Posso saber desde quando você manda em mim?
- Estou doente, não me contrarie!
Marisa afastou a bandeja, sentou-se ao meu lado no leito e beijou minha bochecha suavemente, e eu como sempre estabanada, puxei-a para cima de mim, entretanto, o movimento brusco acertou o controle remoto da cama que estava entre mim e Marisa, e assim, a cabeceira da cama que estava inclinada subiu de vez, e minha testa atingiu em cheio a boca de minha namorada que se afastou num reflexo de defesa, acertando mais uma vez o controle remoto que dessa vez ergueu o parte de frente da cama, nos deixando assim, presas com as partes extremas da cama quase que fechadas, separadas apenas por nós duas espremidas.
- Ok Alex... Se você queria dar uns amassos em mim no leito de hospital, você está conseguindo, literalmente!
- Você fazendo gracinha nesse momento?
- Deixa de abuso!
Marisa alcançou enfim o controle remoto e enfim conseguiu inclinar corretamente a cama, levantou-se e disse:
- Você é um perigo viu... Até doente!
Marisa dizia isso esfregando a mão pelos lábios machucados.
- Seu mau humor acabou com meu espírito esportivo viu... Não quero mais brincar, vou preparar minha aula de amanhã.
Sentou-se na poltrona ao lado da minha cama, abriu o seu notebook enquanto eu lhe olhava constrangida pelo meu comportamento arredio e mal educado.
Marisa parecia concentrada olhando para o seu notebook, enquanto eu fingia me distrair mudando os canais da TV, mas todo tempo desviava meu olhar para ela na esperança que ela me olhasse. Nesse meio tempo, a enfermeira entrou, instalou mais um soro na minha veia, cumprimentou Marisa que manteve sua expressão de concentração, sem me dar qualquer vestígio de atenção.
A noite avançava, e o silêncio do quarto só era quebrado pelo barulho da TV, eu sequer conseguia pensar em um assunto para puxar com Marisa. Peguei no sono provavelmente por efeito da medicação que fora administrada. Despertei sem saber ao certo quanto tempo dormi, abri os olhos e Marisa estava de pé ao lado do meu leito de braços cruzados, e me perguntou:
- Você não se esqueceu de me contar nada Alexandra?
- Han?
- Estava aqui navegando na internet, e descobri que você está me escondendo algo...
Gelei imediatamente, na minha mente só imaginava algo relacionado com minha investigação sobre a morte da família do embaixador, mesmo sem saber como ela teria descoberto algo do tipo navegando na internet...
Engoli seco e perguntei gaguejando:
- Eu... Eu... Escon... dendo... O quê?
- Sua dupla personalidade...
- Han?
- Seu codinome como escritora... Quando você ia me dizer que é um sucesso como escritora de romances na internet?
- Ah! Isso?
- Ué, tem algo mais que você me esconde?
- Não! Imagina! E não te escondi isso, só esqueci-me de dizer.
Marisa franziu a testa, sentou-se na poltrona e revelou:
- Fiquei triste ao ler o romance que li no seu notebook publicado em um site bombando de comentários, uma legião de fãs, leitoras, e eu, sua namorada, que te incentivei, te dei a sugestão, você se quer me disse...
Notei de fato tristeza no comentário de Marisa, e só aí me dei conta do quanto fui indelicada com ela, não compartilhando um fato tão importante da minha vida, afinal, escrever era minha paixão, e ela, além de me inspirar, me incentivou a continuar e publicar.
- Mah, desculpe-me, não foi intencional, foi displicência, tenho que reconhecer, mas não era meu intuito te esconder isso, já faz um tempo que comecei a publicar, e nesse meio tempo, nós brigamos nos afastamos...
Marisa deteve-se a balançar a cabeça positivamente, como se quisesse encerrar o assunto, olhou para o tubo de soro e avisou:
- Vou ao posto de enfermagem pedir que venham trocar seu soro.
Saiu e não voltou, a enfermeira avisou:
- Doutora Marisa pediu que avisasse que ia à lanchonete tomar um café, que voltava logo.
- Obrigada.
Respondi triste, convencida que Marisa estava chateada com razão. Não podia permitir que uma banalidade como essas instalasse um clima estranho entre nós. Levantei-me da cama com o intuito de ir à lanchonete, pedir perdão a Marisa, e acabar com qualquer mal estar. Saí do quarto arrastando o suporte de soro, caminhando pelos corredores do hospital em direção à lanchonete, sem me importar com os olhares das pessoas que eu encontrava pelo caminho.
Minha aparente fuga do quarto foi frustrada pela enfermeira:
- Alexandra? Aonde você vai?
- Eu vou... Usar o... É o telefone público! Onde tem um?
- Você precisa fazer uma ligação essa hora?
- Sim! É urgente!
- No final do corredor tem um Alexandra...
Saí andando na direção que a enfermeira orientou, me esquivando do olhar dela, desci uma rampa, lembrando que a lanchonete era no andar térreo do hospital. Estranhei o cenário, ninguém nos corredores, várias portas fechadas, deduzi que o silêncio e o pouco movimento seriam por conta do horário, ouvi barulho e como uma autêntica fugitiva entrei na primeira porta aberta para me esconder.
Bati a porta por dentro apoiando meu ouvindo contra ela a fim de escutar melhor o barulho das pessoas se afastando. Quando me virei em direção ao interior da sala, soltei um grito de pavor. Um corpo nu sobre uma mesa de mármore, estático, pálido, pois é, eu entrei no necrotério do hospital, e para meu desespero, a porta emperrou.
Esmurrei a porta, puxei de todas as formas a maçaneta, antes de começar a berrar, e para acentuar o drama, vi meu braço inchar de repente e minha veia doer, deduzi que o soro não estava mais na minha veia. Arranquei o jelco da minha veia, e o sangue esguichou pelo meu braço.
Cenário de terror, presa num necrotério com um defunto, banhada de sangue... Toda memória de filmes de zumbis, possessão demoníaca, fantasmas veio à tona, e eu fiquei praticamente colada à porta suando frio. Minha imaginação fértil conseguia até ver a barriga do pobre coitado do morto se mover, e todo meu esforço para abrir a porta ou fazer com que alguém me ouvisse, parecia inútil.
Avistei um aparelho de telefone, praticamente pregada às paredes, saí andando até ele assombrada, com os olhos esbugalhados em direção ao defunto. Tirei o telefone do gancho e não ouvi sinal algum, apertei todas as teclas, certamente cada setor do hospital tinha um ramal, e eu, não sabia o número de nenhum.
Aqueles minutos trancada com um morto no necrotério pareceram uma eternidade, nem sei ao certo quanto tempo se passou, mas, foi tempo o suficiente para desenvolver um laço de confiança com o Sr. Zé Gordinho, de perto, ele até que parecia simpático e atencioso.
- O senhor não vai ressuscitar não né? Vai ficar quietinho, jura? Só me meto em confusão sabe, eu só queria me entender com minha namorada, vacilei com ela, olha só onde fui me meter...
Era mais uma expressão do meu desespero, dialogar com um corpo, provavelmente o cheiro de formol do local estava me dopando, sentia-me zonza, já estava recostada na mesa de mármore, quando ouvi barulho de vozes vindas do corredor:
- “Como uma paciente evapora do hospital assim? Ela fugiu? Os seguranças não viram nada?”
- “Doutora, ela passou por mim procurando um telefone público, disse que precisava fazer uma ligação urgente”.
- “E aí ela sumiu! Arrastando um tubo de soro, dopada de antialérgicos!”
Na ânsia de chegar à porta e avisar que eu estava ali, saí tonta, puxando o lençol que cobria a parte debaixo do corpo, tropecei e derrubei a mesa do instrumental, caindo com uma estrondosa trilha sonora.
Ao menos a trapalhada dessa vez contribuiu a meu favor, a enfermeira, um segurança do hospital e Marisa entraram no necrotério, encontrando-me no chão, com o braço coberto de sangue cercada de pinças e tesouras, segurando o lençol do defunto, agora, totalmente exposto em sua nudez e banhas.
- Meu Deus! Alexandra!
Não consegui falar, mas acenei com o lençol, Marisa correu em minha direção preocupada:
- O que aconteceu? Você está machucada?
Ajudando-me a levantar, Marisa observava meu braço, procurando algum corte, finalmente respondi:
- Estou bem, o sangue foi do soro que tirei da veia...
- Mas como você veio parar aqui?
- Longa história... Mas juro que não sou necrófila!
Marisa não conteve o riso, a enfermeira e o segurança se entreolharam, até que o funcionário do necrotério chegou:
- Que invasão é essa? Que bagunça! Doutora Marisa?
- Nada demais Jarbas, estamos de saída.
Marisa tomou a postura séria de profissional, e chamou a enfermeira para nos acompanhar até o meu quarto, lá a enfermeira limpou meu braço, reinstalou o soro, e eu, com aquela cara de criança que acabara de aprontar,olhava Marisa de braços cruzados observando o procedimento.
A sós finalmente, Marisa quis saber dos detalhes de minha nova trapalhada. A risada dela ao ouvir minha narrativa não me constrangia, pelo contrário me dava o alívio que estava tudo bem entre nós.
- Você já se aventurou demais por hoje moça, hospital é lugar de repouso, e você não deixou nem o pobre do morto descansar...
- O Zé Gordinho...
- É... Ele mesmo... Como você consegue se superar heim? Minha trapalhona predileta... Tudo isso só por não conseguir ficar longe de mim uns minutinhos?
Sorri enquanto Marisa acariciava meu rosto.
- Descanse agora... Estou aqui na caminha do lado, se precisar de mim, é só chamar, boa noite.
Beijou meus lábios como se devolvesse minha paz.
Fim do capítulo
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Anji
Em: 04/01/2018
Me segurei muito pra nao ri em voz alta pois essa hora na minha casa todos estao dormindo, essa coisa do soro é complicado, ja tive internada e fui durmi na posicão contraria em que o soro tava sendo ministrado, aconteceu que acabou saindo o jelco e foi sangue pra tudo que é lado muito sangue mesmo, tive a brilhante idéia de erguer minha mao pra cima tirar tudo e parou de sair sangue, minha sorte que a enferneira e a auxiiar era gente boa e nao ficaram bravas e me ajudaram a me limpar.
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