Capítulo 9: LIÇÃO 7 – FIQUE ATENTA AOS SINAIS
Marcela permaneceu calada pelo trajeto, alheia ao percurso que eu fazia. Mesmo tendo que estar concentrada na direção, eu não conseguia deixar de procura-la com meus olhos, e quão angustiada eu fiquei ao notar lágrimas verterem silenciosamente naquele lindo rosto.
Segui pelo caminho que eu me lembrava de tê-la deixado com a amiga, no dia do porre de Jessica, deduzi, que eram colegas de apartamento. Em frente ao prédio que a deixei em outra ocasião, estacionei, só então Marcela desviou o foco da atenção para mim.
-- Você está bem? Quer que eu suba com você? – Perguntei, mansamente.
-- Por que estamos em frente ao prédio da Jéssica?
-- Não é aqui que você mora?
Marcela riu, e mesmo com o nariz e as bochechas vermelhas, denunciando seu choro recente, ela conseguia trazer ao seu rosto aquele sorriso que iluminava qualquer ambiente, meus olhos pareciam sofrer o impacto de uma flash de câmera fotográfica: minha visão se perdia, diante de tanta luz.
-- Não, professora, eu moro com meus pais, na zona leste da cidade. Aqui, mora a Jéssica.
Ela ainda tinha a fala enrolada, explicava lentamente, com dificuldade de concatenar o pensamento.
-- Ah... Eu pensei que... Mas, me diga, onde você mora...
-- Professora, não quero, não posso ir pra casa assim...
-- Mas... Onde você quer ir?
Marcela ficou calada, como se experimentasse decepção, ou pelo menos, era isso que eu queria acreditar. Rapidamente, a menina decidiu:
-- Já que a senhora me trouxe para cá, vou ficar aqui. Ela... Jéssica, deixa a chave...A reserva em um esconderijo, vive perdendo a bolsa... Fico aqui mesmo, obrigada, professora, pela carona.
Eu não esbocei reação, não sabia o que fazer, ou pelo menos supor o que Marcela queria ao me pedir para que a tirasse da festa. A menina saiu do carro, sem esperar minha resposta à despedida e ao agradecimento. Observei ela cambaleando até a porta do prédio. Não hesitei, e como um reflexo, saí do carro e a segurei pela cintura dizendo:
-- Você não vai ficar sozinha, hoje, sou eu que vou cuidar de você.
Surpresa, foi a vez de Marcela não esboçar reação. Conduzi-a de volta para meu carro, e a levei para minha casa. No trajeto, ela só repetia, o mesmo discurso, coisa típica de pessoas embriagadas:
-- Eu não estou acreditando, que aquele Mané estragou minha festa. Quem ele acha que é? Quem ele acha que eu sou? Eu sou o que? A Marcela da calourada! Eu não sou periguete... Eu não sou...
O discurso se repetia, as vezes só algumas sentenças, outras vezes, sentenças repetidas em sequência. Nas três primeiras vezes eu respondi, nas outras, eu me detive a rir apenas. Chegando ao meu prédio, estacionei na garagem, e levei Marcela até meu apartamento, segurando-a pela cintura, uma vez que ela não conseguia se manter em postura fixa. Eu pensava o que diabos eu estava fazendo, trazendo uma aluna bêbada para minha casa, isso era completamente inapropriado, e inédito na minha carreira. Eu era uma das professora mais sérias, e censurava veementemente amigos da classe que se envolviam com alunos.
No entanto, Marcela não era uma aluna qualquer, e principalmente, eu não conseguia imaginar, nem muito menos aceitar que minha atração por ela era real. Impus-me uma barreira surreal, atribuindo a Marcela o papel de menina intocável, proibida pra mim.
Meus planos eram objetivos: preparar o sofá cama do meu escritório, que sempre abrigava meus amigos que dormiam em minha casa, e preparar algo para que ela comesse, oferecer-lhe um banho, coisas do tipo que sempre fiz com meus amigos em porre.
-- Marcela, você quer tomar um banho? Tem toalhas limpas no armário do banheiro, vou providenciar uma roupa leve para você usar, depois, toma um café comigo?
-- Tá, professora.
A menina disse isso, com um tom desconfiado, encostada na parede.
-- O banheiro, é a segunda porta, vou deixar a roupa no quarto vizinho, tudo bem?
Marcela acenou em acordo, segui para meu quarto, enquanto abria o closet para pegar os itens que precisava, ouvi os passos de Marcela se aproximando, e me surpreendi com ela ali no meu quarto.
-- Eu preciso dizer uma coisa a senhora...
-- O que houve? Não está se sentindo bem?
-- Não, não mesmo.
Marcela se desequilibrou e de pronto a segurei, ficamos a poucos centímetros, ela encarou minha boca, e eu fugi do seu olhar, não resistiria por mais um centésimo de segundo se permanecesse ali. Coloquei-a sentada em minha cama.
-- Sente-se, antes que você caia. – Disse nervosa.
-- Eu preciso dizer uma coisa...
-- O que, Marcela? Quer vomitar? Quer que eu te leve à emergência?
-- Não, eu quero dizer uma coisa...
A insistência dela, me fez criar um milhão de hipóteses, fantasiei Marcela se declarando para mim, e mesmo desejando isso, sabia que o mais sensato era evitar aquele tipo de conversa. Eu estava vulnerável, carente, sofrera mais uma vez a humilhação de Beatriz e Alicinha, e ela por sua vez, estava fora de si.
-- Marcela, é melhor você tomar seu banho, depois comer algo e descansar, amanhã você vai acordar com uma baita ressaca...
-- Professora, preciso que a senhora saiba, eu não sou aquilo que o Henrique falou!
Marcela me interrompeu, falando mais alto. Olhei a com certo alívio, sentei ao seu lado na minha cama e disse:
-- Eu sei, não precisa se justificar comigo.
-- Eu preciso sim! Não quero que a senhora pense que eu sou uma vagabunda, como aquele filho da mãe me tratou... Não posso ficar mal na fita com a senhora.
-- Ei... Calma, só quem ficou mal na fita comigo, foi o tal garoto. Ele já é meu aluno? Se for, está ferrado comigo!
Marcela deixou um sorriso de satisfação escapar.
-- Não, ele não estuda na mesma universidade. A senhora acredita mesmo em mim?
-- Claro que sim, Marcela.
Os nossos olhos se encontraram, e como se fosse possível, enxerguei com mais precisão a beleza no rosto daquela menina, de tão perto, os seus olhos ficavam ainda mais lindos. E quando a aproximação se tornou de novo mais perigosa, eu levantei a barreira e me pus de pé rapidamente anunciando:
-- Vou pegar uma roupa para você usar depois do banho. Enquanto você toma banho, eu preparo algo para comermos.
Eu já estava de pé, quando Marcela segurou minha mão. Acho que minha palidez, taquicardia e o gelo nas mãos foi instantâneo.
-- Professora, muito obrigada.
A mão dela, macia, tão pequena, tão suave seu toque, olhei achando encantadora até suas unhas curtas, eu conseguia enxergar nos detalhes mais banais um brilho, uma estrela a mais no corpo, na personalidade daquela menina.
-- Não há o que agradecer.
Apertei sua mão e desvencilhei a minha com dificuldade.
-- Marcela, tome banho aqui mesmo no meu banheiro, já que você já está aqui. Tome, um pijama confortável, está ficando frio. Vou preparar algo na cozinha, já venho.
Fiz questão de demorar o maior tempo possível, preparando um café forte, e acompanhamentos. Arrumei o sofá cama, e voltei com passos lentos ao meu quarto. Marcela não fazia barulho, bati antes de entrar, e não tive resposta, como a porta não estava trancada, adentrei lentamente, e a vi, deitada na minha cama, com apenas a parte de cima do pijama, em sono profundo.
Que imagem linda!
Não estou me referindo SÓ às curvas de Marcela, expostas naquela micro calcinha. Estou me referindo a linda imagem daquela menina de pele vistosa, os traços delicados e simetricamente perfeitos, apesar de não ser esse contexto, o repouso de Marcela, lhe dava um aspecto angelical. Não a observei com malícia, a pureza do meu olhar me assustava, o sentimento que me invadia era diferente, limpo, pacificador. Com muito cuidado para não acordá-la, ajeitei-a na minha cama, envolvi-a com o cobertor, apaguei as luzes e, antes de fechar a porta, olhei-a novamente, involuntariamente suspirei.
Tomei o lugar dos hóspedes em minha própria casa. No sofá cama, deitada, abri meu notebook, fucei as fotos da festa de Patrícia, como quem cata motivos para justificar o sofrimento, busquei as imagens que registravam Alicinha e Beatriz. Ressenti o que passei naquela tarde, e mais uma vez, aquele amargo da humilhação deixou minha mente pesada. Vez por outra antes de dormir, fui até meu quarto, me certificar do bem estar da minha linda hóspede. Em todas as vezes, ajeitei-a na cama, uma vez que ela sempre estava à beira de uma queda, pelo tanto que se mexia dormindo. Lancei mão de um artifício que as mães fazem com bebês, e a cerquei de travesseiros, obviamente, não evitei o riso solitário, diante daquele cuidado maternal com Marcela.
Observá-la não era só um cuidado a mais no seu estado, era um pouco egoísta. Só o fato de sentir a presença de Marcela, inexplicavelmente amenizava o ranço que minha alma experimentava. Nem mesmo recorri ao meu amigo Rivotril naquela noite, eu não queria “apagar” e deixar de velar o sono da minha hóspede. E assim, entre cochilos, eu passei minha noite, hora eu revivia o pesadelo da discussão com Alicinha, hora eu me refugiava no cuidado com Marcela em meu quarto. Da varanda da sala, vi o sol nascer. Noite mal dormida, e o crescimento do rancor chegava ao seu ápice. Minhas reflexões naquele tempo me fez identificar os sinais que eu não estava atenta o suficiente até então.
Sinais de que não havia mais um “nós” entre eu e Beatriz, deixamos de ser um casal quando ela escolheu Alicinha, preterindo nossa história, como não vi esse sinal do fim? Sinais de que não havia nada a ser reconstruído, quando Beatriz me colocou na condição de clandestina na nossa recaída. Sinal que o caráter da Bia era fraco, quando ela deixou que sua atual noiva, desdenhasse de mim, em uma postura deplorável. Os sinais estavam todos ali. Não existia mais um “nós”, mas se desfazia um nó na minha ignorância sentimental: decretado enfim o ponto final naquela história.
Preparei um café da manhã, daqueles, que estava acostumada a fazer para meus amigos de ressaca. Entretida nas minhas reflexões e afazeres de anfitriã, não dei atenção ao meu celular desde o dia anterior, e como era de se esperar: centenas de mensagens e ligações perdidas dos meus amigos, inclusive da Clarisse, que há dias não falava comigo. Respondi sucintamente, a ela, Ed e Cris. À Patrícia, me detive a tranquiliza-la, afirmando que estava bem, agradecendo a preocupação. Enquanto montava a mesa para o café, depois de uma conferida em Marcela, ainda dormindo em minha cama, meu celular tocou, era Clarisse.
-- Oi! Resolveu “desentrigar” de mim? – Perguntei irônica.
-- Não estava intrigada de você, para com isso!
-- Pensei que ia precisar ir te pedir perdão de joelhos, pelo que não sei exatamente...
-- Ai, Luiza! Vai ficar com sua ironia mesmo? Essa hora da manhã? Depois de não me atender, não responder mensagem. Estávamos preocupados com seu sumiço, tive que me desdobrar para não deixar o Ed ir aí, afinal, não sei se você estaria acompanhada...
-- Pode ir parando... – Interrompi.
-- Ué! Não tenho motivos?
-- Clarisse... Não vamos falar nisso, não agora, não por telefone...
-- Ok. Está em casa?
-- Sim, estou.
-- Vim fazer umas compras aqui na feirinha perto do seu prédio, vou levar umas coisinhas para tomar café com você e conversarmos.
-- Mas, é que...
-- Entrando no túnel, vai cair a ligação, até já...
E a ligação caiu, e o celular dela ficou fora de área. Ótimo! Clarisse, mal me perdoou pela recaída com Beatriz, e ia encontrar Marcela na minha cama, dessa vez, minha amiga me jogaria aos lobos! Sem nada fazer, lá estava eu, metida de novo em uma confusão.
Era fácil se eu contasse com a sorte de Marcela não despertar tão cedo. Manteria minha amiga na cozinha, tomando café e inventaria uma desculpa para sua visita ser breve, uma visita à casa dos meus pais! Pronto, já tinha uma desculpa para apressá-la.
Em poucos minutos, Clarisse pedia autorização para subir. Abri a porta da cozinha, convidando-a para entrar. Minha amiga me abraçou rapidamente e colocou alguns itens sobre o balcão da cozinha.
-- Fez o café? – Clarisse perguntou.
-- Sim.
Clarisse foi se servindo sem cerimônia, era de casa.
-- Argh! Que café forte! – Olhou em volta, fazendo careta – Suco desintoxicante? Xi, você está de ressaca?
-- Não... Eu comi besteira demais ontem... E errei a mão no café, tá forte né? Foi mal...
Disfarcei e puxei outro assunto.
-- Você trouxe aquele croassant de queijo com ervas? Jura?
-- Trouxe, sei que você adora o daquela padaria...
-- Ai! Você é demais Clarinha!
-- Nossa, faz tempo heim?
-- O que?
-- Que você me chama assim: Clarinha.
-- Você só tem me dado bronca ultimamente, nunca mais fez essas fofuras comigo! Talvez, seja por isso que não te chamei mais assim.
-- Dei bronca porque você mereceu! porr* Luiza...
-- Tá bom, tá bom... Olha, só pra evitar que você me dê mais bronca, deixa eu contar... Ontem fui no aniversário da Patrícia, já estava vindo embora quando a Alicinha me abordou, pedindo meu preço para deixar a noiva dela em paz, rolou um barraco básico, e o resultado disso, é que eu enterrei definitivamente, em cova profunda, ou melhor incinerei, qualquer vestígio de esperança ou delírio de retomar minha relação amorosa com a Beatriz.
-- Espera, não entendi. A Alicinha te ofereceu dinheiro pela Bia?
Clarisse gargalhou, e eu a acompanhei nas risadas. Detalhei o que se passou, e mesmo com as caras e bocas de censura, minha amiga me escutou pacientemente, e no final de tudo, deixou escapar a frase típica dela:
-- Joga a terra, argamassa, enterre e concretize!
-- Isso mesmo, sepultar!
Eu tentava esconder ao máximo minha apreensão, o medo de Marcela surgir na porta da cozinha, desorientada, só com a parte de cima do pijama, passou a me atormentar. Era hora de jogar a estorinha para me livrar de um possível flagrante de Clarisse.
-- Clarinha, estou adorando sua companhia, mas... Eu prometi a meus pais que iria passar o dia com eles, vou subir a serra...
-- Ah! Não precisa se explicar amiga, entendi. É bom você ser paparicada um pouco mesmo hoje.
Meu celular tocou na sala e me apressei em pegá-lo, era justamente minha mãe. Murphy me ama! Para evitar o diálogo que denunciaria minha mentira, fui andando até a sala para falar, para minha surpresa, Clarisse veio logo atrás de mim, quando a olhei ela sussurrou para que eu lesse seus lábios:
-- Vou pegar meu casaco que esqueci aqui, está no closet?
-- Sim...Não! Espera mãe, não falei com a senhora...
Atrapalhação total, e não deu tempo eu evitar Clarisse alcançar o meu quarto.
-- Mãe, aguenta aí, ligo daqui a pouco.
-- Você sempre diz isso e nunca liga.
-- Mãe, é rápido! Beijo!
Corri, e puxei Clarisse que estava parada à porta. Catatônica, queixo caído. Marcela, dormia o sono dos justos, alheia a sua bundinha arrebitada exposta, porque nem os travesseiros estavam mais na cama, nem muito menos o cobertor a protegia. Clarisse olhou-me com a censura que só vi nos olhos da minha mãe, quando me flagrou beijando a Aline no meu quarto, minha melhor amiga na adolescência. No corredor, eu pedi:
-- Calma! Não é nada disso que você está pensando!
-- Dá pra ser um pouquinho mais original?
Cochichávamos. Eu me comportava como se estivesse mesmo diante da minha mãe. Clarisse tinha esse talento: despertar o temor de suas lições de moral, talvez pelo fato de estar quase sempre certa.
-- Não me veio frase melhor, porque realmente, não é nada disso do que você está pensando!
-- Luiza! Essa menina é maior de idade? Você perdeu o juízo depois que da briga com a Alicinha? Vai agir como a Cris, agora?
-- Ei! Ela é maior de idade sim! É do quinto semestre de medicina!
-- O que? Ela é uma aluna?!
-- Shiii. Ela é uma aluna sim, mas, não é o que você está pensando!
-- Luiza, ela está só de calcinha, na sua cama!
-- Ow! Ela não está só de calcinha!
-- Não importa, está seminua, na sua cama! E você com essa cara de culpa, como não percebi?! Essa conversa de ir visitar seus pais era pra me tirar daqui, não era?
-- Era... Mas...
-- Luiza, a Beatriz acabou com sua sanidade! Uma aluna? Quantas vezes já não discutimos sobre isso?! Vai entrar nesse caminho, vai abrir precedentes?
-- Clarisse, pode parar! Não comece a dissertar sobre ética na relação aluno-professor, eu estou tentando lhe dizer, que ela é sim aluna, está na minha cama, mas, não aconteceu nada entre nós!
Puxei Clarisse pelo braço e mostrei o sofá-cama montado e ainda bagunçado, no meu escritório.
-- Eu dormi aqui! Olha!
Entramos no escritório, e Clarisse, ainda intrigada, mantinha sua postura de desconfiança. Cruzou os braços, e indagou:
-- Desde quando, você traz alunos para dormir na sua casa, pior na sua cama?
-- Clarisse, pega leve. Não é um hábito, Marcela é uma exceção. A menina bebeu demais, dei uma carona, porque ela é uma aluna especial, enfim, outra hora te conto detalhes. Ela pegou no sono na minha cama, e a deixei dormindo, e dormi aqui!
-- E você encontrou essa menina na rua, perambulando, bêbada?
-- Claro que não! A Marcela não é disso!
-- Ai, desculpa, a Marcela... O nome dela é Marcela. Já que ela não é “disso” – fez as aspas com os dedos – Aonde você encontrou a Marcela, bêbada?
-- Na calourada. – Balbuciei com tom de culpa, sentindo que lá vinha outro chilique.
-- Oi? Você foi na calourada? Ow ser estranho, abandona esse corpo, devolva minha amiga!
-- Eu saí meio sem rumo, e aí, achei os convites que comprei para ajudar, e achei que era um sinal, e fui, ainda bem, assim, pude ajudar a Marcela, preencheu meu tempo, minha cabeça.
-- Sei...
-- Não está acreditando em mim? Clarisse, quando eu menti para você?
-- Hoje? Dizendo que ia visitar seus pais na serra pra me despachar e eu não flagrar sua mais nova pupila na sua cama!
-- Primeira vez! Para evitar essa cena, sabia que você pensaria o pior!
-- Luiza... O que você está me escondendo?
Eu e essa mania de ser transparente... Clarisse certamente captou nas entrelinhas, e naquele contexto todo, o quão especial Marcela já era para mim. Insistir em me mostrar indiferente, eu estava tão confusa, nem eu mesma me entendia, como explicar a alguém, e externar o fascínio por uma menina?
-- Nada! Não viaja, Clarinha! Deixa eu acordar essa menina, nem sei onde ela mora, com quem mora, devem estar preocupados.
-- Vou te ajudar nisso...
-- Clarisse, não. Ela nem te conhece, vai acordar de ressaca e morrendo de vergonha, por estar desse jeito na casa da professora, por favor, mais tarde almoçamos juntas, ou vamos ao cinema, pode ser?
-- Luiza...
-- Clarisse, por favor...
Ela concordou, insatisfeita, isso era evidente.
-- Tá... Ligo mais tarde.
Clarisse deixou meu apartamento, e eu, preocupada com o avançado da hora, segui para meu quarto, objetivando acordar Marcela. Sentei-me no pequeno espaço que ela deixou na cama, ela estava deitada na diagonal, imagino, se ela dividisse com alguém uma cama, quão complicado seria...
-- Marcela... – Mexi nos seus ombros – Marcela, acorda, já está tarde...
Meu tom de voz baixo, certamente não despertaria uma pessoa em estado normal, o que dirá de ressaca. Na verdade eu tinha mesmo pena de despertá-la de seu sono, tão linda, tão angelical, contemplei-a e insisti em acordá-la, quando notei ela se mexendo, apertando os olhos.
-- Professora Luiza? Eu... Tô sonhando?
-- Não sei... Você consegue abrir seus olhos mais um pouco? Ou a dor de cabeça já está pesando nos seus olhos? – Brinquei.
-- Aai... Estou acordada sim... Que dor filha da mãe! Pensei que fosse sonho, acordar do lado da senhora... Peraí! Onde eu estou? Ou melhor, onde nós estamos?
Marcela estava tão confusa, seu tom era cômico para mim. Tentando se ambientar, ela olhava em volta do quarto, levantou o cobertor e deixou escapar:
-- Puta que pariu! Eu estou só de... Professora... Isso é o quarto da senhora?
Gargalhei, não me contive com a reação dela, as bochechas lindas, estavam mais rosadas pela timidez.
-- Sim, é meu quarto.
-- Mas... Eu fiz algo com a senhora? A gente... Ai meu Deus!
-- Ei! Calma aí... Como assim você fez algo comigo? A gente, o que?
-- Professora, eu não lembro de quase nada... Como eu vim parar aqui?!
-- Fui a calourada, e você me encontrou, teve um desentendimento com um garoto abusado, pediu que eu te tirasse de lá, e que não podia ir para casa naquele estado, então, eu a trouxe para cá, e depois que você tomou banho, pegou no sono, e só acordou agora, quase nove da manhã.
-- Ai meu Deus!
Marcela deu um salto da cama, tonta, quase se espatifou, se eu não tivesse de pronto para segurá-la. Alguns segundos, e a menina percebeu seus trajes e voltou para cama na mesma rapidez, repetindo:
-- Ai meu Deus!
Não conseguia conter meu riso, Marcela conseguia demonstrar ser tão atrapalhada quanto eu.
-- Eu superei a Jéssica, cara, não acredito!
-- Pelo menos, não vomitou meus pés, se isso te consola.
-- Já é um consolo, mas, não diminui minha vergonha!
--Não há motivos para envergonhar-se, está tudo bem. Mas, acho melhor você ligar para alguém, sei lá, você saiu sem dar satisfações na festa... Seu celular está aqui na cabeceira.
-- Tenho que ligar mesmo!
-- Vou deixar você à vontade, depois venha para cozinha, preparei um café forte para você, e acho que você também precisa de um analgésico, não é?
-- Definitivamente, sim!
Saí do quarto, com a curiosidade aflorada. Para quem ela precisava ligar? Ora, Luiza! O que isso te interessa? Meus devaneios logo tiveram outro foco: sonho? Seria um sonho acordar do meu lado? O que Marcela quis dizer com isso? Ah, quantos delírios, quantas hipóteses! Minha cabeça fervilhava, como aquela menina mexia comigo, a desconfiança de Clarisse tinha mesmo fundamento, Marcela estava rompendo uma barreira histórica em minha vida, e eu, tinha medo de atestar o porquê disso.
Em poucos minutos, Marcela chegou à cozinha, vestida na roupa que usara no dia anterior. Rosto limpo, mas, as marcas do porre estavam evidentes.
-- Nossa! Que mesa farta! Não precisava se incomodar, professora. Agora estou mais sem graça ainda, dando tanto trabalho...
-- Shi... Você é minha hóspede, só estou cuidando de você, coisa que você já fez outras vezes por mim não é?
-- Trocamos os papéis – Respondeu sem graça se sentando.
-- Tome esse analgésico, e beba esse suco, você ainda não pagou farmacologia, mas, vai aprender que tudo que você está sentindo, é efeito da desidratação das células que o álcool provoca.
-- A doutora é a senhora, não ouso questionar, apesar da cor ser meio estranha... O gosto deve ser parecido né? – Fez careta.
-- Melhor do que o gosto de cabo de guarda-chuva que você está sentindo agora... Vamos, não enrola, toma tudo.
-- Ai, quando a senhora manda assim em mim, parece minha mãe... Ops, desculpa.
Marcela se desculpou ao notar minha expressão mudar quando ela de novo, me comparou à sua mãe.
-- Então seja uma menina obediente, e tome tudo de uma vez só!
Provoquei, sabendo que ela não gostava de ser chamada de menina. Fez bico imediatamente e franziu o cenho manifestando sua insatisfação com o título de menina. No entanto, obedeceu.
-- Argh... Essa é a hora que eu vomito?
-- Não, essa é a hora que você toma o café que lhe preparei.
Fui servindo Marcela, percebendo que era observada todo instante. Ela bebericou o café forte, repetiu a careta, aliás, ela fez isso a cada gole, a cada mordida que dava nos biscoitos.
-- Eu agora, me lembro de algumas coisas... Aquele zé ruela do Henrique me disse uns absurdos não foi?
-- Sim, acho que era esse o nome dele.
-- Ele me paga...
-- Esquece isso Marcela, não vale a pena.
-- Estragou minha festa! Justo quando a senhora chegou! Ainda não acredito que a senhora foi mesmo à calourada! Ai professora, tá me dando muita moral, viu?
-- Pois é, também acho. Mas, recebi um sinal e atendi, a minha socorrista precisava de mim.
-- Sinal?
-- É, você não acendeu o holofote com a imagem do morcego? Sou o Batman, você está na minha bat caverna, agora sabe meu segredo.
Brinquei arrancando aquele sorriso estonteante de Marcela.
-- Saber seu segredo... Isso seria uma informação valiosa!
-- Valiosa pra que? Pretende me chantagear? Não esperava isso de você.
-- Nossa, a senhora está sempre na defensiva professora! Por que pensa só nas coisas ruins? Por que eu chantagearia a senhora? Seria uma informação valiosa, por que assim poderia conhecer melhor a senhora, só por isso.
Fiquei sem palavras, que habilidade Marcela tinha de fazer isso: me deixar sem palavras. Engoli seco, baixei a cabeça e disfarcei meu constrangimento tomando um gole de café.
-- Mas, fique tranquila, fora a suspeita da senhora ser o Batman, não sei nada mais do que a senhora me revelou, isso me basta para admirá-la, e ser ainda mais grata, primeiro por minha amiga Jéssica, agora por mim. Muito obrigada.
-- Não precisa agradecer, você é uma aluna especial, Marcela. Era minha obrigação.
-- Aluna especial... Fez por obrigação... – Marcela repetiu minhas palavras num tom decepcionado.
-- Eu quis dizer que...
-- Tudo bem, professora, não precisa se explicar, entendi. Eu vou indo, tomei tempo demais da senhora, e já lhe dei muito trabalho, está tarde, preciso ir.
-- Não precisa se apressar, me deixa te levar em casa ao menos.
-- Não, imagina, a senhora já fez demais! Pego um táxi, rapidinho estou em casa.
Sem protelar sua permanência para meu desgosto, Marcela se levantou, pegou sua bolsa de alça transversal, e antes de sair pela porta da cozinha, se aproximou de mim, e beijou minha face. Aquele ósculo suave, acendeu um calor insano em mim. Foi uma fração de segundos, mas um turbilhão de sensações se fez, devo ter ficado paralisada, e corada também, porque percebi no canto dos lábios da menina, um riso discreto se formar.
-- Até amanhã, professora.
Deixou minha casa, antes mesmo que eu recuperasse minha voz e lhe respondesse. Os lábios macios de Marcela em meu rosto deixou uma marca invisível e misteriosa em mim, o suficiente para roubar minha paz.
Fim do capítulo
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