Capítulo 7: LIÇÃO N.º 5 – E SE TROPEÇAR, NO CHÃO NÃO HÁ DE PASSAR...
O cuidado de Marcela comigo beirou gestos sensuais, mas, não propositalmente, pelo menos acho que para ela não. As mãos delicadas, quase infantis pelo tamanho, maciez, da futura médica, me sensibilizaram. Sem que eu controlasse, uma lágrima escapou, a menina franziu o cenho e perguntou curiosa:
-- Está doendo tanto assim?
Eu meneei a cabeça, Marcela numa atitude que por pouco não me tirou o bom senso, soprou no meu arranhão, ao perceber minha expressão se afastou, desculpando-se:
-- Eu sei... Vacilei não é professora?
-- Hã?
-- Acabei de soprar alguns organismos, quem sabe até alguns patogênicos, no seu tecido lesionado.
-- Ah! – Sorri, disfarçando meu rubor – Pois é, doutora, lembrou-se de microbiologia e patologia, acho que você vive mais em sala de aula do que eu...
-- Entre a microbiologia, e o que minha avó e minha dizem e fazem professora, eu ainda fico com elas, e elas sempre faziam isso quando cuidavam dos meus machucados...
-- Argumento bem pouco científico não?
-- Mas empiricamente aceito, para mim, quase uma evidência científica!
O tom seguro de Marcela, acompanhado de um sorriso com o canto dos lábios seriam suficientes para me derrubar daquele banco. Mesmo sob efeito da minha recaída diante de Beatriz, aquela menina conseguiu sem esforço, minimizar minha dor, e me despertar um sorriso leve no meu rosto marcado pelas lágrimas.
-- Estou curiosa Marcela. Você que fala tão empolgada de metodologia científica, por que não se engajou no grupo de pesquisa quando cursou essa disciplina comigo?
Perguntei em um tom mais formal para impor menos intimidade entre nós.
-- Talvez, se eu tivesse sido sua aluna nessa disciplina, eu teria me engajado.
-- Não foi minha aluna em metodologia? Mas eu leciono aqui há mais de quatro anos...
-- Que decepção professora... Eu sou um achado, lembra-se? Com certeza, a senhora não teria esquecido de uma aluna marcante como eu.
Marcela me interrompeu, disse isso enquanto caminhava até a pia para lavar as mãos.
-- Consegui transferência para cá semestre passado, no campus que eu cursava no interior, não tinha muito incentivo à iniciação científica no curso de medicina. – Marcela explicou.
-- Hum, então você é uma menina do interior...
-- Não sou uma menina... – Marcela murmurou. – A senhora sempre se refere a mim assim, como uma menina.
-- Isso te ofende?
-- Não gosto, parece pejorativo, soa como se me visse como uma moleca imatura e inconsequente.
Calei por segundos, sem argumentação para a defesa que Marcela fazia de si própria.
-- Não te julgo assim, Marcela. É só uma expressão, não tem conotação pejorativa.
-- Para esclarecer, antes que a senhora me chame de novo de menina do interior, eu não sou do interior, mas na chamada do SISU, a concorrência para o campus do interior foi menor, então, só consegui entrar lá...
-- Então, sua família tem muita influência, deve conhecer gente importante para ter conseguido sua transferência.
-- Meu pai costuma dizer que o importante na vida não é conhecer muita gente, mas sim, conhecer gente certa.
-- É, talvez seu pai tenha razão, e pelo jeito, conhece gente certa.
-- Meu pai é esperto! – Marcela riu - Mas, a influência, foi do meu padrinho e tio, irmão de minha mãe. Longa história.
-- Entendo... Posso saber o que você ainda faz na universidade essa hora?
-- Estou fazendo um bico aqui de socorrista, captei que tinha uma professora precisando de um curativo, vim prontamente.
Marcela disse esbanjando aquele sorriso que mexia comigo de maneira inexplicável.
-- Tem talento também para vidente, ou humorista... – Brinquei.
-- Ah professora, em menos de vinte minutos, a senhora já me chamou de menina, quase levei o título de caipira, e agora de palhaça? Assim, vou levar pro lado pessoal! E olha, que nesse meio tempo, a senhora teve de mim a titulação de anjo!
Confesso que a reflexão de Marcela me deixou desconcertada, eu estava sendo mesmo desagradável com a menina que só me tecia elogios, e estava ali me ajudando, respondendo ao meu interrogatório e principalmente, demonstrando toda sua discrição e ética, uma vez que não inquiriu os motivos pelos quais eu estava ali sozinha com cara de choro e machucada.
-- Você tem razão Marcela, estou sendo deselegante com você. Perdoe-me.
-- Outro vacilo! Coloque, uvas, morangos, chocolates em minha boca, mas palavras não! Não chamei a senhora de deselegante! Isso seria uma mentira, e uma injustiça sem tamanho!
Nocaute técnico produção! Alguém chame os paramédicos! Aquela menina acabara de me atirar ao chão com meia dúzia de palavras. Menina, sim! Naquele momento era mais seguro para mim, enxerga-la assim, como uma menina, exatamente como as outras alunas, apesar de saber que nem de longe Marcela era como as outras. Minha imaginação fértil, foi longe, imaginando-me colocar uvas, morangos e chocolates naquela boca rosada... Depois veio a dificuldade de interpretar o final da frase, ela teria me chamado de elegante? Foi isso mesmo?
-- Alguém já te disse que você está no curso errado? Você daria uma ótima advogada! Tem resposta pra tudo, e deixa a gente sem argumentos!
-- Minha irmã vive me dizendo isso... Mas, eu vou usar esse talento só para o mal mesmo... Não vou usar isso pra defender ninguém não...
Marcela deixou um sorriso enigmático nos lábios. Qualquer nuance do sorriso dela era encantador, incrível o poder de sedução que se desenhava naqueles contornos, tudo em sintonia, olhos, boca, bochechas.
-- Então, terei que tomar cuidado com minhas perguntas a você daqui por diante, sabendo desse seu talento.
-- Fica esperta professora!
-- Mas então... O que você faz de verdade a essa hora ainda por aqui?
-- Não te convenci com minha resposta anterior?
Balancei a cabeça negativamente.
-- Droga, terei que exercitar mais meu talento teatral, isso também é útil, especialmente para enrolar professor... Minha mãe sempre cai...
-- Ah! Está me comparando à sua mãe? Como assim, Marcela? – Disse indignada, cruzando os braços.
-- Xi, a senhora falou igualzinho a ela agora! – Marcela gargalhou. – Antes que a senhora dispare um sermão igual a ela, vou logo responder, o que aliás, eu já disse, estava na biblioteca, estudando farmacologia.
-- Talento para atriz você não tem, não colou viu?
-- Eu não estou encenando, estava mesmo estudando fármaco! Estou me preparando para a prova de seleção do grupo de pesquisa.
-- Marcela! Eu acabei de preparar o edital, como você já está estudando para a prova?
-- Imagino que a senhora vá repetir algum conteúdo né? Estou me antecipando, estudando pelo edital do ano passado. Professora, eu li todos os artigos que os membros do GRUFARMA publicaram nos últimos dois anos.
Minha expressão denunciou a pouca credibilidade que dei ao comentário que Marcela fez.
-- Estou falando sério, a senhora ainda vai se surpreender muito comigo, professora.
-- Desculpe-me Marcela, ao invés de retribuir sua gentileza e cuidado, estou questionando seu empenho nos estudos. Prometo me redimir.
-- Já que é uma promessa, aceitaria um convite meu?
Gelei, empalideci, com receio retruquei:
-- Convite?
-- A senhora sabe que a gente, eu digo a gente aluno, promove umas festas aí de vez em quando para angariar uma graninha para nossa festa de formatura, bom, esse semestre, a festa da calourada, será nossa turma a responsável. O segundo semestre organizou o trote, mas a festa, será nossa sala que organizará.
-- Eu, em uma festa dos calouros?
-- Sim, algum problema? Não me diga que a senhora é do tipo de professor-deus, que não se rebaixa ao convívio dos pobres mortais e inferiores seres: alunos.
Marcela foi sarcástica, praticamente me intimidou com a pergunta.
-- Eu só nunca me imaginei... É uma festa de jovens...
-- Ah! Parou! Assim vou te pedir “a bênção” professora! Falando que nem uma velha! Nem minha mãe fala assim: “festa de jovens”.
Não me contive com o jeito despachado de Marcela responder à minha resposta patética. Sorri desconcertada.
-- Eu falei como uma velha né?
-- Praticamente como uma paciente geriátrica! – Marcela respondeu – Professora, dá uma força pra gente... Leva uma galera, amigos chamam outros amigos, e aí mais gente bebe, a gente lucra mais...
Imaginei “minha galera” na festa de meus alunos: Cris querendo catar tudo que é menina bêbada, o que não seria coisa difícil de encontrar, Ed levando o cortejo de amigos que sambam melhor do que muita rainha de bateria, e a outra ala de “boys magia” exibindo os músculos malhados em calças e camisas apertadas, essas últimas, seriam as primeiras a serem retiradas para exibir os gominhos dos abdomens na metade da festa.
-- Acho que não tenho “uma galera” para levar, mas... Quando será mesmo?
-- Sábado, começa com uma feijoada... Vai ter um pagode, vai ser maneiro!
--Prometo pensar com carinho. Agora, deixe-me retribuir seus socorros, e te dou uma carona, está ficando tarde.
-- Relaxa professora. Estou de carro.
-- Ah! – Suspirei decepcionada.
-- Mas, está mesmo ficando tarde, daqui a pouco começam a me ligar, me monitorando... Preciso ir. -Marcela disse alcançando o celular no bolso -- Só falar, já começou...
Estranhamente senti um misto de ciúme e curiosidade com a fala de Marcela. Quem estaria lhe ligando? Monitorando? Namorado? Namorada? Mas o que isso me interessava?
-- Estou indo professora, a gente se vê por aí, e, toma cuidado aí com esses acidentes de trabalho!
Marcela deu uma piscadela de olho seguido de um sorriso sapeca. Fiz um aceno qualquer, ainda perdida nos meus devaneios de hipóteses.
Em casa, antes do banho o qual eu esperava que me devolvesse um mínimo de paz, encarei-me no espelho, vendo aquele arranhão deixado pelo “noivado” de Beatriz, eu senti o peso daquela marca na minha alma. Passei meus dedos nos lábios tentando rememorar o gosto de Bia na minha boca. Enquanto deixava a água do chuveiro lavar meu pranto, deixei-me invadir pelo pensamento em Marcela, como se quisesse de novo o bálsamo para minha dor.
De repente, eu estava ali, apelando para a lembrança da leveza e beleza de uma menina, para enfrentar um sentimento de mágoa tão denso que me dominava quando pensava em Beatriz. Ao mesmo tempo, o desejo despertado e a saudade tomavam uma proporção que me machucavam ainda mais. Sabe aquelas asneiras que a gente comete na vida, que nada que você invente justifica? Aquela noite me reservava uma dessas asneiras: peguei o celular, e em uma atitude automática, disquei o número de Beatriz.
Deve ter chamado apenas duas vezes, tempo suficiente para recuperar minha sanidade. O que eu estava fazendo? E se Beatriz estivesse com Alicinha ao lado? Joguei o celular na cama, como se ele fosse um objeto maldito, qual não foi minha surpresa quando percebi o aparelho vibrar, no display, o nome Beatriz. Relutei em atender, afinal de contas, poderia ser a noiva da minha ex, retornando a ligação para “tomar satisfações” comigo.
Engoli seco. Faltou-me coragem para atender, mas, quem me ligava era insistente. Peguei o celular, mentalmente eu já tinha uma desculpa, se fosse Alicinha a ligar, se fosse Beatriz, bem, eu não tinha mesmo ideia do que falar.
-- Alo?
-- Lu...
Era Beatriz. Segundos de silêncio, respirações descompassadas. Falamos ao mesmo tempo qualquer coisa, e paramos afim de escutar uma a outra, mais silêncio.
-- Você me ligou? – Beatriz perguntou.
-- Eu... Queria saber se... O que você queria ao me procurar hoje? – Improvisei uma desculpa.
-- Ah... Era isso? Você ligou por isso? – Bia indagou frustrada.
-- Você acabou saindo sem me dizer o motivo de ter me procurado.
-- Foi, acho que perdi o foco, aliás, perdemos...
-- Bia, eu...
-- Lu, acho que precisamos falar sobre o que aconteceu hoje...
-- Não, Bia... Não precisamos, não quero, você está noiva de outra mulher! Não podia ter acontecido nada entre nós, eu só queria entender, porque?
-- Eu não sei! Você acha que eu planejei te beijar? Eu não sei dizer o que estou sentindo, não sei explicar!
-- Então, como nem eu, nem você sabemos explicar, não há o que conversar...
-- Preciso desligar!
A interrupção no nosso diálogo para mim só tinha uma razão: Alicinha devia ter chegado, e eu, me senti a amante, a outra. Sensação horrorosa! Pior do que isso, fiquei inquieta, por que afinal, Beatriz estava tão mexida com o nosso encontro como eu. Previ que aquela seria mais uma noite com meu companheiro rivotril. Vesti uma camiseta velha, deixei minha caixa de lenços a postos na mesa de cabeceira, e comecei a destrinchar minhas reflexões chorosas e doloridas. Cenário comum para mim nos últimos tempos, meu quarto escuro com a TV no mudo, meu edredom me aconchegando, e meu rosto banhado em lágrimas.
-- Eu tinha que te ver...
Beatriz apareceu na porta do meu quarto me surpreendendo.
-- Bia? O que você faz aqui? Como você entrou?
Disse assustada, enxugando meu rosto, sentando-me na cama.
-- Eu ainda tinha as chaves... E eu estou aqui, por que...
Beatriz não falou mais nada, se jogou na cama, segurando-me pelo pescoço. Avançou sôfrega na minha boca, sugou meus lábios, dei espaço para sua língua me tomar. Quando dei por mim, Beatriz já pesava seu corpo sobre o meu, e eu já lutava para me desfazer das peças de roupa dela. A essa altura, Bia já me deixara desnuda, demonstrando sua urgência em me tomar.
Entreguei-me ao desejo, à vontade de ser dela novamente. A intimidade construída no tempo que passamos juntas, nos dava a liberdade do toque mais sensual, da exploração dos pontos mais sensíveis. Quanta saudade explodiu naquele momento, e não era só a minha, aquilo estava claro. Beatriz beijou meu corpo, colocando a língua entre os lábios, intercalando beijos e lambidas no meu colo, nos meus seios, me levando a loucura.
Facilmente nosso encaixe se fez, inundadas pela excitação nítida no roçar dos nossos sex*s, até Beatriz erguer uma das minhas pernas, posicionando a dela por baixo, deixando assim nossos grandes e pequenos lábios mais abertos para a entrega mútua, clit*ris inchados sendo massageados num movimento perfeito, sincronizado, firme, Beatriz sabia como entrar em mim, sabia como me fazer dela, enquanto me amava, ela me encarava, nos seus olhos eu podia ler: Você é minha. Eu lia, e dizia em voz alta:
-- Entra forte, eu sou sua!
-- Sim, você é minha...
Beatriz gemia antes de deixar um suspiro rouco anunciar o ápice que alcançava, e eu por conseguinte, sentindo meus músculos estremecerem por inteiro. Ficamos abraçadas, por alguns segundos permiti-me nada falar, deixar aquele momento imaculado, eu amava Bia, isso estava óbvio e para meu desespero, não fazia a mínima ideia do que ela sentia por mim. Eu era dela de novo, mas o que isso representava?
-- Você está com fome? Quer que eu te traga algo?
Quebrei o silêncio, enquanto Beatriz afagava meus cabelos, com meu corpo sobre o dela.
-- Não... Estou bem, fica aqui... – Beatriz respondeu e beijou minha cabeça.
-- Bia, eu sei que não é hora de falarmos nisso, mas...
-- Então, não falemos... Por favor, Lu.
-- Mas... O que está acontecendo?
Sai do conforto dos braços de Beatriz para encará-la. Precisava ver o que seus olhos diziam.
-- Luiza, estou mais confusa do que você, não sei te dar as respostas que você merece e precisa. Por favor, me abraça, fica aqui...
Beatriz apontou para seu peito, e eu a atendi, a abracei, evitei encarar os olhos marejados dela, eu já estava denunciando com minha transparência de alma o quanto a amava, não queria estar nas mãos dela, dependente das decisões dela. Com meu rosto colado no seu peito, ouvi as batidas aceleradas do seu coração, podia supor a angústia que a assolava, e a minha tinha a mesma proporção.
Algum tempo se passou, possivelmente ela tenha cochilado, mas, eu não, continuava no meu emaranhado de hipóteses acerca do meu futuro com ela, e na pior das situações a ausência de futuro com ela depois daquele momento de paixão. Minha confusão mental foi interrompida com a voz de sono de Beatriz:
-- Que horas são?
Levantei-me, alcancei o celular e respondi:
-- Passa da meia-noite.
-- Eu tenho que ir.
-- Claro... – Baixei os olhos, supondo o motivo.
-- Luiza, não faz isso...
-- O que? Ficar triste por que você tem que ir embora pra dormir com sua noiva? Aliás, o que você disse a ela antes de vir para cá?
-- Não disse nada, ela não está na cidade... E eu estava me referindo a você fazer essa cara de bicho de pelúcia pra me dissuadir a não ir embora...
Fiquei sem jeito, um sorriso sem graça escapou, triste também, quando concluí mentalmente:
-- “Está fazendo com Alicinha o mesmo que fez comigo, esperou ela viajar para traí-la”.
-- Eu tenho mesmo que ir Luiza.
Beatriz ficou de pé, vestiu-se lentamente, eu evitei assistir seus gestos, exercendo a árdua tarefa do autocontrole em não deixar o choro se apresentar. Bia se aproximou, beijando meu rosto e se despedindo:
-- A gente se fala... Só preciso de um tempo para entender o que está acontecendo.
-- Hunrrum... Bia... Não me procure, exceto, se você tiver alguma resposta a me dar.
Finalizei deixando clara minha condição para revê-la. Ela acenou em acordo, com um olhar confuso e triste. Naquela noite, precisei de novo do meu amigo tarja preta, eram perguntas demais ecoando em minha mente, não podia dormir com todas elas sendo gritadas.
O dia seguinte, não consegui evitar o brilho da pele, pois é, o senso comum é sábio demais as vezes: sex* faz bem a pele, e como! Deveria ser prescrito pelos dermatologistas. Desci pelo elevador até cantarolando, o que endorfinas liberadas na corrente sanguínea não fazem a uma mulher! Evidente que dei uma caprichada no visual, inconscientemente, ou melhor, conscientemente mesmo, entrei na ideia (um tanto quanto absurda considerando todo o contexto, mas perfeitamente plausível para uma pessoa apaixonada) de reconquistar Beatriz. Se aquela recaída foi por desejo, eu precisava atiça-lo.
-- Bom dia!
Disse entrando na sala dos professores no curso de farmácia. Alguns mais cordiais responderam, outros me ignoraram, fato comum naquele cenário. A formalidade contrastava com a falta de educação dos docentes, isso me chocava, mas, naquele dia, eu nem liguei, estava com um bom humor fora do comum, já que minha situação com Beatriz estava mais ferrada do que no dia anterior.
Segui o costume de sempre, assinar o livro de ponto, conferir meu material no armário, encher minha garrafinha de água no bebedouro e preparar uma xícara de café. Nesse momento, Bia chegou, com o mesmo bom humor. Trocamos um sorriso cheio de malícia seguido de um cumprimento trivial:
-- Bom dia professora.
Beatriz seguiu sua rotina igualmente dando orientações para a secretária, falando com alguns professores, mas, seu olhar sempre voltava a mim. E eu, parecia um boneco “joão bobo” me balançando toda, disfarçando meu nervosismo. Patrícia que de boba não tinha nada, observou de longe nossa troca de olhares e logo se aproximou de mim cochichando:
-- Se eu não conhecesse seu gosto musical, diria que você está ensaiando o “lepo lepo” enquanto mexe esse açúcar aí...
Sorri alto. Patrícia me acompanhou. Percebi que estava dando muita bandeira mesmo, me policiei, inclusive no flerte com minha ex-namorada.
-- Você vai me contar o que está acontecendo, ou eu vou ter que perguntar à outra parte interessada? – Patrícia inquiriu.
Dei de ombros, beberiquei o café, mantendo meu silêncio com um sorriso, o selando. Confiava na discrição de Patrícia, mas, não queria passar dos limites que a delicadeza da situação impunha, principalmente porque ela era mais amiga de Beatriz do que eu, não cabia a mim contar o que estava acontecendo.
-- Tenho que ir, está na minha hora. Paty, se você souber o que está acontecendo, promete me contar?
Perguntei displicente, dando uma piscadela de olho para a colega e saí da sala. O celular vibrou, só aí percebi as muitas mensagens no “whats up” que não respondi de Cris, Ed e Clarisse.
-- “Amiga, dia corrido! Mas não esqueci de você! Como você tá?” “Lu, manda notícias, estou preocupada”; “Caralh*, vou ter que ir aí?” “Porr* Luiza! Você já está dopada?!”
Pelo gradiente de cumprimentos a xingamentos, dá pra supor que eram as mensagens da Cris né?
-- “Amapô como você está?” “Quer sair hoje? Sei lá, algo leve, um terreiro de macumba pra encomendarmos um despacho, kkkkkkkkkkkkkkk” “ Monaaaaaaaaaaa cadê tu cão?”
Ed seguia o mesmo gradiente, com menos xingamentos do que Cris, é verdade.
-- “Lu, estou em casa, se precisar conversar, sair um pouco, me liga!”.
Clarisse, sempre mais comedida, se fazia presente do jeito dela. Respondi o mesmo, só copiei e colei nas janelas do aplicativo:
-- “Estou bem, nos falamos mais tarde, estou entrando em aula agora, beijos”.
Outro símbolo do aplicativo aparecia no display, pensei que fosse a resposta de algum deles, surpreendi-me quando vi que era outra conversa, Beatriz dizia:
--“ Você está mais linda hoje... Almoça comigo?”
Meu coração acelerou, não escondi um sorriso emocionado, depois de um emotion tímido, e outro soltando corações, respondi:
-- “Posso dizer o mesmo de você... Almoço sim, te espero no lugar de sempre?”
-- “Passa na minha sala quando acabar suas aulas”.
-- “Ok, até mais tarde”.
-- “Até, boa aula”.
E lá estava ele, o sorriso idiota nos lábios junto com minha distração naquele chat, só podia resultar em um desastre, esbarrei numa coluna, e claro, me desequilibrei e se não fosse o movimento ágil, dela...
-- Opa! Peguei!
Lá estava ela, me segurando pela cintura: Marcela. Olha a confusão que eu conseguia me meter até no nível emocional da coisa: derretida pela ex-namorada, que estava noiva de outra, depois de uma tórrida noite de paixão e ao mesmo tempo, tremendo mais que gelatina nos braços lindos, delicados, de uma menina, que me deixava sem ar. Como assim Luiza? Você acabou de marcar um almoço com a Bia! E está aqui com essa cara de idiota olhando para Marcela? A propósito que tal você sair dos braços dela?
Minha louca reflexão durou segundos, e quando me fiz a última pergunta, despertei de um transe, me afastando abruptamente de Marcela, que logicamente estranhou minha reação:
-- Professora, agora sei porque não posso ficar longe da senhora...
-- Han?
Devo ter ficado muito vermelha, a observação de Marcela, com certeza foi inocente, mas, ela conseguia despertar sei lá o que em mim: encantamento, atração, curiosidade, carinho, cuidado. O sorriso vivaz dela se fez e me desestruturou:
-- A senhora está sempre precisando de uma socorrista como eu, sorte da senhora que faço hora extra sempre! Se não, agora estaria precisando de outro curativo aí na testa.
-- Ah! É verdade... - Respondi sem graça. – Obrigada, de novo.
-- Tranquilo, professora, precisando estou por perto!
Marcela se afastou com um aceno, e aquele sorriso: Oh my God! Difícil até retribuir o gesto. Era um abalo que não correspondia a racionalidade. Acompanhei a aluna caminhando como se hipnotizada, meu delito foi flagrado pela própria, como se atraída pela força do meu olhar, ela virou o rosto e se deparou comigo ali, ainda olhando na sua direção, outro sorriso, e andou três passos de costas, deu-me outro aceno, e eu correspondi, meio abobalhada certamente.
Até chegar a hora do almoço, eu estava impaciente, contando cada minuto. Devo ter ministrado uma das aulas mais chatas da vida, por que eu mesma queria que ela nem existisse, queria correr para a sala de Beatriz e beijá-la de novo.
Corri para a coordenação do curso de farmácia, no final do período.
-- Lígia, a professora Beatriz está? – Perguntei a secretária.
-- Está sim professora Luiza.
-- Está com alguém?
-- Não, a senhora quer que eu avise que quer lhe falar?
-- Pode deixar, obrigada Lígia, eu mesma vou.
Do corredor, ouvi a voz de Beatriz sobressaltada:
-- “Não se preocupe professor, está praticamente pronta a tese, e o artigo envio até a próxima semana (...) Vou cumprir os prazos professor, foi um atraso normal (...), eu sei que o senhor já solicitou a qualificação (...) Certo, nos encontramos na quinta, bom dia professor”.
Bati à porta e Bia autorizou minha entrada:
-- Pode entrar!
-- Oi...
Falei com um sorriso tímido, Beatriz sorriu, e se levantou, me surpreendeu com um selo demorado nos lábios.
-- Oi. Que bom te ver!
-- Algum problema? – Perguntei receosa depois de ouvir parte da conversa com o seu orientador, deduzi.
-- Nada demais... Vamos almoçar?
Beatriz desconversou, mas, notei a preocupação no seu rosto.
-- Bia, me fala, algo que eu possa ajudar?
-- Já disse Luiza, não é nada demais. Vamos?
-- Vamos.
Não insisti, deixei que Bia ficasse à vontade para me falar os problemas nos seus prazos do doutorado, implícitos naquele diálogo que eu escutara por acaso. Saímos da universidade como era nosso costume quando namorávamos. A sensação era que eu estava voltando no tempo, era a mesma Beatriz que me conquistara, era a rotina que eu tinha saudades, da nossa intimidade, cumplicidade.
-- Podemos ir no seu carro? – Beatriz perguntou.
Aceitei de pronto, nem questionei, para mim, o melhor seria não raciocinar muito sobre as atitudes e palavras de Beatriz, se o fizesse, com certeza eu nunca estaria ao lado dela naquele momento. Antes de entrar no meu carro, avistei de longe, Clarisse me encarando com os braços cruzados. Flagrante, não tinha defesas. Nem ousei cumprimenta-la, nem ao menos olhar meu whats, com certeza ela me descascaria em segundos.
No trajeto, Beatriz, ligou o som do carro, estranhou a playlist:
-- Annita? Sério, Lu?
Ruborizei, fiquei envergonhada.
-- Ah... Ela tem me ajudado nesses dias... – Brinquei.
-- Você já teve amigos melhores...
Bia fez graça, me arrancou um sorriso. Fez um carinho no meu rosto, o que além de me emocionar, me arrepiou. Olhei para ela quando paramos no sinal, Beatriz estava com um semblante angustiado, mas igualmente linda. Retribui o gesto afagando seus cabelos, e a puxei para um selinho, que ela correspondeu.
Parei em um restaurante chinês que era um dos nossos preferidos, e mais perto da universidade também. Com a intimidade que tínhamos, sentamos à mesma mesa de sempre, reconhecemos o garçom que nos atendia com mais frequência, que já antecipou-se aos nossos pedidos, quase imutáveis.
-- Bia, o que a gente está fazendo?
-- Ativando os anticorpos contra a toxoplasmose? – Beatriz brincou – Com esse tanto de peixe cru que estamos comendo, espero mesmo que nosso sistema imunológico esteja bem!
-- Olha só que entendida de imunologia a pedagoga! – Fiz graça – Mas... Bia, você sabe do que estou falando, o que está acontecendo conosco?
-- Não sei, juro que não sei, Luiza.
-- A gente tem que descobrir, não podemos ser tão irresponsáveis com nossos sentimentos.
-- Eu sei disso. Para mim, é ainda mais complicado, você sabe...
Olhei para sua mão direita e murmurei:
-- Complicado, claro. Você que nunca foi impulsiva, realmente, está complicando sua vida...
-- Não me julgue assim, Luiza. Eu senti sua falta nesse tempo, senti saudades, mas não tinha ideia do tamanho da falta que você me faz, que a gente faz, até te ter de novo... Até ter você perto... Eu não estava preparada para descobrir isso.
-- Você não estava preparada para descobrir que sentia minha falta, mas estava para ficar noiva da mulher com quem você me traiu há quatro meses?
-- Quando você fala essas coisas, eu vejo o tamanho da mágoa que deixei em você, sabe, nem combina com você um sentimento desses. Você é a pessoa mais generosa e nobre que conheço, eu me odeio por despertar esse tipo de sentimento turvo na sua alma.
-- Para, Bia. Você não tem que me enrolar elencando aí qualidades que eu nem sei se tenho mesmo...
-- Não estou te enrolando, Luiza. E você tem todas essas qualidades sim, e muitas outras!
-- Então, afinal, o que estamos fazendo aqui? Por que estamos almoçando juntas, como nos tempos que namorávamos? Por que esse clima de romance, porque essa DR?
-- Não sei!
Beatriz jogou o guardanapo na mesa e encostou a testa nas mãos juntas sobre a mesa. Como eu desejei não conhece-la tão bem como a conhecia, dessa forma, eu não leria nos seus gestos a sinceridade de sua angústia.
-- Bia, você precisa descobrir então. Eu preciso de respostas. Eu estava seguindo minha vida sem você, estava te esquecendo, até você aparecer no laboratório e me beijar e dar espaço para tudo mais que aconteceu, ontem e hoje...
-- Você estava conseguindo me esquecer? Assim tão rápido? Tem outra pessoa?
Eu ri, e dessa vez, não foi de nervosismo, foi mesmo com ironia.
-- Acho que os papéis nessa pergunta estão meio invertidos não acha?
-- Nossa! Quando você apela pro sarcasmo, tem mesmo alguma coisa aí escondida... Sério? Já tem outra pessoa na sua vida?
De repente o almoço parecia um duelo, sobre quem conhecia mais quem.
-- Não tem ninguém! Quem trouxe outra pessoa pra nossa vida foi você Bia! E numa rapidez resplandecente. – Disse apontando com os olhos o seu anel de noivado. – Traiu, me feriu, e parece ter tomado gosto pela coisa, porque está de novo, traindo, mas dessa vez, a outra sou eu!
Os olhos de Beatriz marejaram, e me arrependi imediatamente das minhas palavras.
-- Bia, desculpe-me, não quis dizer isso...
-- Mas disse, Luiza. Eu não devia mesmo estar aqui...
-- Então, vamos sair daqui, ou você prefere ir de táxi?
Destilei sem pudor minha mágoa e minha dor, acenando para o garçom trazer a conta.
-- Luiza... – Beatriz segurou minha mão. - Para... Eu estou aqui com você, para você... Não sei explicar o que está acontecendo...
-- Está se sentindo sozinha, porque sua noiva está viajando?
-- Você acha mesmo que te procurei por isso?
Respirei profundamente, eu sabia que não era isso.
-- Estou tentando entender... Só isso.
O garçom se aproximou, Bia retirou a mão que estava sobre a minha, pagamos a conta e saímos dali. No carro, Beatriz pegou o celular que tocava, constrangida, demorou a atender, até que eu disse:
-- Atende, é ela não é?
Beatriz acenou em acordo. Atendeu timidamente.
-- Oi (...), sim, está tudo meio corrido (...), é, desliguei o celular (...) Preciso terminar umas coisas aqui para levar para meu orientador Alicinha, depois nos falamos (...) Beijos.
Constrangida, Beatriz, ficou encarando o celular, mexendo no aparelho, e o silêncio no carro, nos incomodava.
-- Bia...
-- Luiza, por favor. Eu sei, menti... Estou no meio de um furacão de sentimentos, não tenho o direito de te pedir nada, aliás, nem mereço você aqui comigo, mas, me dá um tempo para que eu organize essa avalanche de acontecimentos em mim...
-- Não vai ser muito tempo...
Beatriz aproveitou o sinal fechado, o mais perto da universidade, quando nos despediríamos, puxou meu rosto e me beijou demoradamente.
Minha magoa estava ali comigo, mas meu amor por ela também. Se ela estava em um furacão, eu rodopiava em um ciclone sem foco, perdida. Outra asneira ousei cometer, liguei para o meu colega, orientador de Beatriz.
-- Boa tarde professor Marcos.
-- Professora Luiza? Como vai?
-- Bem, e você?
-- Surpreso com sua ligação, já que você descumpriu nosso acordo, sem uma comunicação prévia.
-- Perdão professor, mas, que acordo?
-- Entendi que quando você me recomendou a professora Beatriz Vasconcelos como orientanda no doutorado, você seria co-orientadora, já que a área afim dela não é a nossa. Aceitei, porque você se encarregaria de coloca-la no seu grupo de estudos, aproximando-a da minha, da nossa, linha de pesquisa, no entanto, fui comunicado por ela, que você a tirou do seu grupo.
-- Marcos, se você entendeu isso como acordo, não vejo em que ponto o descumpri. A professora Beatriz fez parte do meu grupo de estudos por mais de um ano, período no qual, ela publicou e levou com essas publicações o seu nome junto. Publicou o suficiente já para conseguir pontuação nos seus créditos para o doutorado, e por consequência, foi a que mais contribuiu para a sua pontuação e a pontuação do seu programa de pós-graduação no triênio. Acompanhei seu currículo lattes, ora Marcos, foi às custas do meu grupo de pesquisa e por consequência da sua orientanda que você é o professor com mais publicações na sua universidade.
Disparei, segura das minhas colocações, intimidando o colega, que calou por segundos.
-- Mas, na reta final, você a tirou do seu grupo, certamente por motivos pessoais que não me cabem saber.
-- Não, Marcos, não foram por motivos pessoais, se o fosse, não caberia mesmo a você saber. Mas, o fato da professora não fazer mais parte do meu grupo de pesquisa, não desfaz o mérito que ela conquistou até agora, e por ter sido minha indicação, estou ligando para você para saber como está o andamento da tese dela, já que você já solicitou a qualificação, sem me comunicar também, como co-orientadora, eu deveria estar na banca, e no entanto, não fui comunicada.
Outra vez, deixei meu colega sem palavras. O diálogo animoso, permeado pelas palavras formais, típicas entre pesquisadores, que cá pra nós, vivem nutrindo seus egos gigantes, tomou ares de cobranças, entendendo que eu não estava intimidada, Marcos respondeu formalmente, com um discurso polido, que no fundo eu sabia que escondia a raiva dele em assumir minha razão:
-- Luiza, você está certa, fui mesmo negligente com você, perdoe-me. Solicitei a qualificação da tese da professora Beatriz, e creio que não haverá empecilhos para a aprovação e logo marcaremos a defesa.
-- Muito bom saber disso. Então suponho que a tese esteja concluída, na fase de ajustes finais, é isso?
-- Sim, tenho uma reunião agendada com ela para definirmos detalhes, e pedi um artigo com parte dos resultados dela, com a carta de aceite de um periódico, a defesa será mais tranquila.
-- Excelente, obrigada pela atualização das informações Marcos, aguardo as datas e a confirmação da qualificação. Até mais.
Conhecendo o tamanho do ego do meu colega, eu sabia o quanto tinha irritado minha ligação, mas, era necessário, ele pressionava Beatriz, e no fundo eu sentia um pouco de culpa. Mesmo que não fosse mais meu desejo, eu estava envolvida no doutorado dela, Marcos tratou de me colocar como co-orientadora, obrigando-me a fazer parte do trabalho dele, configurando que se tratava de uma troca de favores tácita.
Minha tarde foi tomada por atividades burocráticas na pró-reitoria de pós graduação e pesquisa. Finalmente escolhera meus novos parceiros professores no grupo de pesquisa e publiquei o edital de seleção dos novos discentes.
Cheguei ao laboratório e uma visita inesperada estava no meu cubículo, Regina se apressou em avisar:
-- Doutora Luiza, a professora Clarisse está lhe aguardando.
Eu sabia que eu estava ferrada. Clarisse não me mandou mensagem, não me ligou, apareceu de surpresa no laboratório, porque assim, eu não poderia evita-la. Entrei na minha salinha, e minha amiga estava lá de braços cruzados, sentada na minha poltrona.
-- Oi Clarisse.
-- Então, eu devo te internar, ou acionar a polícia?
-- Oi?!
-- Sim, Luiza, só você ter enlouquecido de vez, ou estar sendo vítima de chantagem, justifica o que eu vi naquele estacionamento hoje!
Suspirei, sentei-me na cadeira à frente da minha mesa, procurando as melhores palavras para explicar à minha amiga o que não tinha explicação.
-- Clarisse, “keep calm, ok?”
-- Calma? Ow Luiza! Acho que você não está raciocinando direito. Você entrou no seu carro com a Beatriz, com cara de culpada! Desembucha logo o que está acontecendo! Você estava arrasada ontem pelo noivado dela com a Alicinha, e hoje sai pra almoçar com ela, como a namoradinha? Qual é, Luiza? Vai fazer papel de amante?
-- Ei! Pega leve...
-- Desculpa, mas não dá! Tratamento de choque é o que você precisa!
-- Eu não planejei isso Clarisse. Dá pra você se acalmar e parar de me julgar?
Clarisse se levantou e se sentou do meu lado, sacudiu a cabeça, respirou profundamente e indagou:
-- Luiza, me fala, você não reatou com a Bia não é?
-- Não sei...
-- Luiza, me diz, por favor que você não teve uma recaída com a Beatriz!
Calei, e meu silêncio gritou a resposta que minha amiga não queria ouvir.
-- Puta que pariu, Luiza! O que foi que houve? Amnésia? Será que eu vou ter que te lembrar do que a Beatriz fez com você?
-- Não, não precisa. Olha, Clarisse, eu juro, não planejei isso, nem ela. Depois de meses, ontem aqui estávamos a sós, falando sobre nós, e pintou um clima, acendeu tudo em mim, isso mexeu com ela também, está tudo confuso ainda, agora ela é noiva, e ela está traindo a noiva comigo e...
-- Pera! Você está me dizendo que, vocês ficaram ontem e hoje de novo? Luiza, você está querendo o que? Vingar-se da Alicinha? Qual é o seu problema?
-- Nossa, por um momento pensei que estivesse falando com a Clarisse, mas não, deve ser a Cris disfarçada, cadê minha amiga sensata e sensível?
-- Olha, “taí” uma coisa que eu quero testemunhar, a Cris te descascando quando souber disso...
-- O que é isso? Vai transformar agora essa questão em uma audiência pública? Fazer uma mesa redonda para discutir a polêmica? Quem sabe um reality show e deixar o público decidir? Quando foi que eu abdiquei dos meus direitos de fazer minhas escolhas e dar a vocês essa tarefa? Por que, assim, do nada, eu tenho que dar satisfações a todos vocês, e ouvir vocês darem o veredito sobre minha vida amorosa?
Retruquei irônica, deixando clara minha indignação. Clarisse, fez menção de responder, mas engoliu as sílabas desconectadas.
-- Clarisse eu sou muito grata a vocês pelo cuidado, pelo carinho e amor que vocês, meus amigos fiéis, leais, tem comigo, juro que não é ingratidão. Mas, eu sou uma mulher, não uma menina que não sabe o que quer. Eu nunca neguei meu amor por Beatriz, tanto, que deixei à mostra minha ferida quando ela me deixou, quando ela noivou com outra com a qual me traiu. Sim, nós tivemos uma recaída, não só eu, ela também. Nesse momento, eu não sei explicar o que está acontecendo conosco, mas não é uma traição vil, uma atitude irresponsável por si só não. Vingança? Acha mesmo que eu me submeteria a esse papel?
-- Tá ok, desculpe-me Luiza, eu me excedi. Não tenho mesmo o direito de te julgar, nem de ditar suas decisões. Mas pela lealdade que tenho a você, e conhecendo sua integridade e generosidade como conheço, eu não posso deixar de manifestar minha desaprovação, porque eu não confio nas boas intenções da Bia, nem muito menos do sentimento dela por você, perdoe a minha sinceridade, mas não dá para acreditar em uma pessoa que trai tão facilmente, se você não parou ainda para calcular a dimensão disso sugiro que você o faça, antes de se transformar no segredinho sujo da sua ex. E sobre submissão, sabe, eu entenderia melhor a mesquinhez de uma atitude vingativa nesse caso, do que você se submeter a dar uma outra chance a essa mulher.
-- Não fala assim... Você vai ficar contra mim? Vai se chatear comigo?
-- Luiza não se trata de ficar contra você, eu sou sua amiga, estarei sempre a favor do seu bem, por isso, sim, estou chateada, por que você está fazendo uma grande besteira, você vai sofrer mais e eu já sofro por você desde agora.
Clarisse se levantou e saiu sem se despedir. A reação da minha amiga não me trouxe uma sensação boa. Sempre confiei no bom senso dela, e não me lembro de uma única vez que Clarisse tivesse sido tão dura no seu julgamento acerca de qualquer evento em minha vida. Fiquei pensativa acerca da minha conversa com ela, tentei me concentrar nos artigos enviados por ex-alunos para correções, mas, não consegui.
Decidi ir para casa mais cedo, estava saindo do laboratório quando recebi uma ligação de Ligia, secretária do curso de farmácia.
-- Professora Luiza, boa tarde, a senhora poderia vir na coordenação dar o parecer de alguns processos de aproveitamento de disciplina?
-- Mas, agora Lígia?
-- São alunos bem insistentes, professora, a senhora sabe como eles são...
Sorri, imaginando o quanto os alunos sabem enlouquecer a pobre da secretária, cobrando decisões que não dependiam dela.
-- Tudo bem, estou indo Lígia.
Sentei-me em uma das mesas da coordenação, e me fixei na tarefa da análise das ementas dos processos, fiz rapidamente, acostumada com essas deliberações em todos os inícios de semestre. Antes de sair, olhei pelo corredor, na direção da sala de Beatriz, as persianas estavam abertas, e ela concentrada, encarando o notebook. Meu ímpeto me fez acenar para ela, pedindo permissão para entrar, com um gesto ela autorizou.
-- Eu conheço essa sua expressão, dedos cruzados segurando o queixo... O que está te deixando tão tensa?
-- Você me conhece mesmo... Mas, não quero falar nisso... Vem cá...
Beatriz fechou as persianas, e fez sinal para que eu me sentasse em seu colo. Não resisti. Atendi ao convite. Beijei seus lábios suavemente, ela sorriu.
-- Bia, isso não está certo...
-- Eu sei... Mas, você é tão linda, tão doce, me traz tanta segurança, paz, sinto tanto sua falta...
Beatriz acariciou meu rosto e me beijou, dessa vez, um beijo mais longo. Minha vontade era insistir nas perguntas que precisavam de respostas, mas, fugi dessa necessidade, voltei meus olhos ao notebook que estava aberto e li rapidamente o que estava na tela.
-- O que é isso? Um artigo da sua tese?
-- Deveria ser...
-- Deveria?
-- Eu deveria estar com ele pronto, mas travei na metodologia... Eu odeio isso de metanálise, odeio estatística!
-- Bia... O software faz tudo, deixa eu te mostrar... Abra aí seu banco de dados... Você pediu para o Leandro fazer a estatística como te indiquei?
-- Sim, paguei uma pequena fortuna a ele né?
-- Ele cobra caro, mas, é muito competente.
Beatriz abriu o software com os dados da sua tese, e fui delimitando o que ela poderia usar para o artigo, eu dominava o conteúdo da tese dela, uma vez que a orientava mais do que o próprio Marcos. Em menos de meia hora, deixei todo o esqueleto do artigo pronto para Beatriz seguir.
-- Ah Luiza! Eu te amo sabia?
De repente, fiquei séria. Beatriz falou de maneira displicente, provavelmente nem ela calculou aquela frase no contexto que estávamos vivendo. Levantei-me e notei que ela caiu em si.
-- Você não tem o direito de brincar com isso. – Fiz menção de sair da sala, Bia me segurou.
-- Luiza! Espera! Eu não queria brincar com isso... Saiu sem querer... Queria agradecer, dizer que você é demais... Eu... Foi uma expressão sabe?
-- Cala a boca, Bia! – Bradei indignada.
-- Lu... Não foi isso que eu quis dizer, eu...
-- Eu sei que você não me ama, você já me provou isso... Eu vou indo...
-- Luiza, espera, por favor. Não posso deixar você sair assim...
-- Você não tem que deixar mais nada, só me deixa em paz Beatriz!
Beatriz tomou a frente da porta impedindo minha saída.
-- Você não vai sair assim...
-- Para com isso, sai da minha frente, Beatriz. Isso tem que parar, e se você não honra esse anel de noivado que está exibindo nesse dedo, eu vou honrar minha integridade e ficar longe de você.
-- E vai ignorar o que aconteceu conosco?
-- Vou!
-- Vai nada!
Sem me deixar defesas, Beatriz avançou na minha boca. Apesar de excitada, e profundamente tentada a ceder ao meu desejo, a empurrei.
-- Não, não, para. Não posso permitir que você faça isso comigo, eu não vou fazer isso comigo!
-- Luiza, me dá um tempo, por favor. Eu preciso entender o que está acontecendo, deixa eu assimilar isso dentro de mim, não me rejeita, não me julga...
-- Eu vou repetir, e vou pedir isso como um favor a você: se ainda resta algum respeito a mim, por favor, só me procure, quando tiver certeza absoluta do que quer, e isso implica em tirar esse anel do dedo, e estar livre para conquistar minha confiança de novo, do contrário, trate-me apenas como sua colega de trabalho.
Sai pisando firme, contendo as lágrimas, eu precisava arcar com as consequências da minha recaída, mas não podia retroceder no meu processo de me refazer, de estar inteira comigo mesma.
Fim do capítulo
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Lerika
Em: 24/11/2017
Beatriz está manipulando a Luiza pra conseguir concluir o doutorado.
Não dá pra julgar o egoísmo de uma pessoa desesperada.
Acreditomesmo que esse impulso da Bia está fazendo ela enxergar a nova Luiza. A Lu é apaixonante e acho que ela não perceber isso a torna ainda mais atraente. Deve ser pisciana
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