Capítulo 6: LIÇÃO N.º 4 –RIA DAS SUAS DESGRAÇAS
Meu amigo rivotril me deu o mínimo de sono para que eu não virasse a mais nova figurante de “The Walking Dad”, mas os sinais da repercussão da notícia que Cris me trouxe na noite anterior, era visível no meu rosto.
-- Pow, Lu me desculpa, eu fiquei pra te dar uma força e capotei... Foi mal. Como você está amiga?
Cris me perguntou se sentando na cama, a essa altura, eu já estava pronta para sair.
-- Sobrevivi à noite... Estou de saída Cris. Deixei café pronto e tem pão de queijo no forno se você quiser... E... Obrigada pela força.
-- Espera, Lu! Não queria dizer isso assim, mas não tenho tempo pra procurar meias palavras... Amiga, você está com uma cara péssima!
-- Ah! Valeu, essa força eu estava mesmo precisando!
-- Luiza, você não acha melhor eu apertar o alarme de incêndio? Ou seja, chamar o Ed pra te socorrer?
-- Caraca! Você está mesmo tentando levantar meu moral?
-- Desculpa, só não quero que a Beatriz tenha o gostinho de ver seu abalo, você vai encontrá-la hoje não é?
Suspirei alto e acenei em acordo.
-- Você sabe ser mulherzinha vai... Dá um reforço aí nessa maquiagem, semana passada você chegou toda trabalhada no poder e elegância, vai chegar uma semana depois com essa cara de tomate em fim de feira?
-- Putz, você está afiada hoje heim? Tem mais algum adjetivo motivador pra mim?
Cris esfregou os olhos, sorriu e respondeu fazendo careta:
-- Pior que não...
Empurrou-me até o guarda-roupas, na porta que abrigava um espelho e acrescentou:
-- Dá uma caprichada, a Bia não vale essa carinha de tristeza e essas olheiras de panda nesse rosto tão lindo.
Depois de seguir os conselhos da minha amiga, segui para a universidade. Obrigatoriamente eu teria que enfrentar Beatriz na coordenação de Farmácia, uma vez que eu teria os primeiros horários naquele curso. Uma das minhas principais qualidades, naquela manhã agiu contra mim. Minha transparência denunciou o que o super corretivo importado disfarçava. Patrícia se aproximou discretamente, enquanto preparávamos um café na bancada:
-- Acho que você já ficou sabendo né? Desculpa Lu, é que você não consegue esconder as coisas...
-- Eu tenho esse defeito horroroso mesmo... Fiquei sabendo sim, se você está se referindo ao noivado da sua amiga.
-- Lu, nem sei o que te dizer, me pegou de surpresa...
-- Patrícia, você não tem que me dizer nada... Agora vou me apressar porque não quero encontrá-la...
Minhas falas tem essa capacidade de atrair justamente o que não desejo, mal conclui minha sentença, e Beatriz adentrava na sala dos professores. Queimei a língua com o café quente, entornando o liquido como quem vira uma dose de tequila. Qual protagonista de uma comédia pastelão fiquei ali tentando soprar minha própria língua, intercalando com a necessidade de mantê-la dentro da boca para não me tornar a versão feminina do Mr. Bean.
-- Bom dia professora Luiza. – A própria Beatriz se dirigiu a mim.
-- Bom dia “porofesssora Beatiriz” - respondi com a língua presa.
Patrícia baixou a cabeça para que seu riso não fosse visto. Beatriz franziu o cenho, mas, manteve a postura sisuda.
-- Sua agenda hoje tem uma brecha para uma reunião rápida comigo? – Beatriz perguntou em tom formal.
-- “Esstarei no laboratolio no fim da tarde”.
-- Tudo bem procuro você lá.
Beatriz se afastou, acho, para meu bem, que ela não me viu com a língua pra fora, abanando com as duas mãos, como se isso fosse minimizar o ardor que eu sentia... Patrícia continuou a rir.
-- Luiza, você é uma figura... Como você consegue isso?
-- Paty você acha mesmo que planejo essas coisas?
-- Elas parecem ser ensaiadas Lu... – Patrícia ironizou.
-- Ensaiadas para eu pagar mico né?
Ainda sacudia minha mão e soprava minha própria língua quando saí da sala dos professores, e me dirigi até a sala de aula. Demorou um pouco até eu poder ter de novo o domínio sobre minha língua dormente.
Os últimos horários me reservavam o reencontro com Marcela. Jéssica, certamente pela embriaguez do dia anterior faltaria à minha aula, se não fosse pela ressaca, seria pela vergonha de me reencontrar tão cedo.
Para minha surpresa, Jessica estava lá, ao lado de Marcela em uma das primeiras filas, praticamente afundada na cadeira, tentando esconder o rosto com um caderno. Marcela, linda, como sempre, naquele dia, o sorriso arrebatador dela, estava amolecado, denunciando sua culpa pela presença da amiga ali, se divertia com o constrangimento de Jessica, inusitadamente, correspondi ao sorriso de Marcela, deixando Jéssica ainda mais tímida.
Rapidamente voltei à minha postura, e dei início à aula. Experimentei um sentimento incipiente de culpa, pela vontade de prender meu olhar na direção de Marcela. O magnetismo que ela exercia sobre mim começava a mexer comigo, ainda de maneira inexplicável, porque meu abalo com o noivado de Beatriz, reabriu uma ferida que nem de longe parecia cicatrizada.
Ao final da aula, alguns alunos, entre eles, Marcela, me procuraram, interessados em ingressar no grupo de pesquisa, fato que me alegrou bastante, tendo em vista que perdi alguns discentes muito dedicados quando se graduaram e migraram para atuações em programas de residência em outras cidades.
-- Calma pessoal, o edital deve estar saindo na próxima semana. Haverá uma seleção sim, desde já, vão atualizando o Currículo Lattes de vocês, e adianto que o histórico das notas também é um ponto que será avaliado.
Alguns risos e cochichos se fizeram quando respondi às indagações. Os alunos se afastaram e timidamente, Jéssica se aproximou:
-- Professora, a Marcela me falou sobre ontem, e... Bem, eu, quero agradecer e pedir desculpas pela trabalheira que dei a senhora... E...
-- Jéssica, não tem motivos para pedir desculpas, você está melhor? – Interrompi notando o desconcerto da garota.
-- Ah... Sim, obrigada por perguntar. Eu quero que a senhora saiba que não é meu costume beber daquela forma e...
-- Espero que não seja mesmo seu costume, seu fígado agradece...
-- Não queria que a senhora tivesse uma ideia errada sobre mim... A Marcela fez questão de me narrar os detalhes da maratona que foi para vocês me levarem para casa...
Sorri, olhei para o lado e vi Marcela sorrindo com o canto dos lábios, encarando-me. Minhas pernas estremeceram, quanta beleza cabia numa pessoa só? Nem estou falando dos atributos físicos somente, estou falando do charme, da sedução, certamente, Marcela não sabia o quanto ela seduzia sem querer com aquele jeito pueril.
-- Desde que você não venha para minhas aulas, embriagada, e que não vomite nos meus pés, apesar de ser o sonho ou impulso de alguns alunos... Está tudo bem.
Jessica sorriu e Marcela a acompanhou.
-- Firmou então professora! – Jessica respondeu menos tensa.
-- E não esqueça de agradecer ao seu porteiro... Ele foi um cavalheiro carregando você nos braços...
-- O Chico? Foi ele que me carregou nos braços? Marcela!
Não entendi, mas a cara de surpresa de Jéssica beirava a indignação. E Marcela, bem essa continha uma gargalhada, colocando as duas mãos na boca. A atitude que remetia a um gesto de criança, para mim tomou ares de encantamento, como se pudesse aumentar ainda mais meu grau de bobeira diante de uma menina.
-- Marcela você disse que o foi o saradão do quinto andar que me carregou! Eu praticamente me derreti pra ele como um sonrisal na água no elevador hoje!
-- Ah eu tinha que levantar sua moral né? Ela ficou em forma de êmese no ponto de ônibus perto da praia...
Marcela fez piada, arrancando um riso discreto de mim, trocamos um olhar por alguns segundos, enquanto Jessica xingava a amiga pela peraltice. O momento foi interrompido pelo vibrado do meu celular no bolso do jaleco. Era Clarisse.
-- Já está vindo almoçar, Luiza?
-- Estou em sala ainda, mas chego aí daqui a pouco, espere-me.
Eu precisava mesmo sair dali. Lembrei-me da minha transparência, com um pouco mais de astúcia, Marcela poderia perceber meu abobamento diante dela. Cheguei à cantina, e depois de me servir sentei-me à mesa de sempre, a qual Clarisse já guardava. Mal me sentei, minha amiga já disparou:
-- Posso saber o que aconteceu sábado? De onde saiu essa sua face mal educada? Certamente pela convivência com a Cris, por que essa foi outra que sequer me fez a delicadeza de justificar a recusa do meu convite.
-- Ai amiga, me desculpe. Eu não estava no clima de festas, só fui pra não te fazer desfeita, e o Ed me arrastou também. A Cris foi sim, encontrou-me na saída do seu prédio, viu meu estado e ela me fez companhia, eu não queria atrapalhar seu climinha lá com a assistente social, eu estava muito deprê, nossa...
-- O Ed também foi outro! Sumiu! Poxa, nem pra ver as fotos vocês ficaram.
-- Clarisse, menos tá?! Essas fotos estão nas redes sociais... Sábado foi um dia horroroso, tive uma briga com a Beatriz, uma recaída na minha dor de cotovelo, a felicidade dos outros estava me incomodando, não queria estragar sua festa com minha nuvem negra...
-- Vou te perdoar por uma razão: compaixão! Fiquei sabendo por acaso do noivado da Bia. Vou poupar você de um puxão de orelhas pela deselegância só por isso...
-- Vai me poupar? Você já me descascou!
-- Como você está? Aliás, nem precisa me dizer, sua cara já diz muito.
-- Eu devo estar um caco então, vou ter que apelar pro Ed de novo... Minha segunda amiga a me dizer hoje que estou a cara da decadência.
-- Você continua linda, deixa de distorcer as coisas, só falei isso porque te conheço muito bem, Lu.
-- Sabe uma pergunta que não me deixa desde que eu soube desse noivado?
-- Qual foi o trabalho que Alicinha fez pra virar a cabeça da Bia desse jeito?
-- Não! – Sorri mexendo os talheres – Eu me pergunto na verdade, o que ela tem que eu não tenho?
-- Luiza, parou! Não entra nessa! Isso não faz sentido, você vinha superando o término dessa relação, agora você retrocede com esse jargão medíocre?
-- Clarisse, me ajude a entender. Eu amei a Beatriz com tudo que eu sou, mergulhei nesse relacionamento...Ai.. Isso está parecendo letra de música da Maria Bethania – Pensei alto – Mas, eu juro que não consigo entender o que a Bia tem com a Alicinha que não teve comigo? O que faltou em mim?
-- O problema é que a Beatriz é uma pessoa rasa! E você mergulhou muito fundo, faltou a você mais amor próprio, faltou a você egoísmo.
Franzi a teste, soltei os talheres, e encarei Clarisse, séria.
-- Olha Clarisse, de todos os conselhos e reflexões que já ouvi, esse foi insuperável. Faltou egoísmo meu... Você aprendeu isso aonde? Na França?
-- Luiza, estou falando sério! Você acabou de dizer, “eu me dei toda para ela”, e você fez isso mesmo, “se deu demais”, gastou energia demais, você orbitava em torno da Bia, fazia tudo por ela, você praticamente ingressou no doutorado dela por ela, e ela só chegou nesse momento da carreira acadêmica dela porque você a colocou lá!
-- Também não precisa exagerar, do jeito que você fala, até parece que a Beatriz não tem os méritos dela no posto que ocupa. Eu só achei uma brecha para a titulação dela dentro da saúde, mas, ela tem capacidade e inteligência suficientes para a função que ocupa.
-- Eu dei um exemplo só, mas, você pensava sempre nela em primeiro lugar. Luiza, olha pra você! Você e linda, uma das mentes mais brilhantes na pesquisa em sua área nesse país, você cativa a todos, até os alunos que te consideram carrasca, e você deixou simplesmente tudo isso em segundo plano para fazer as vontades da Bia, viver os sonhos e desejos dela.
-- Então, o problema é mesmo comigo... Entre eu e um cigarro, preferem o cigarro, entre eu e a versão feminina do “Fuleco”, perco eu...
-- Han? Tem “cannabis” aí nessa sua salada? O que você está falando? Cigarro? A Bia fuma?
-- Ah, não, estava falando da Lúcia, que encontrei na sua festa, quando eu pedi para ela parar de fumar pra nosso namoro dar certo, ela não topou, mas está fazendo isso agora por outra, bem possível que elas noivem também...- Murmurei.
-- Desencana vai Lu. O problema não é com você, na verdade, é, você é boa demais! Tem que exercitar seu lado Malévola.
-- Minha amiga você está insuperável hoje! – Não evitei o sorriso. – O motivo disso é a... Como é mesmo o nome dela?
-- Maira.
-- Isso! Bonita ela, e aí? Está rolando?
-- Por mim estaria! Mas, ela é daquelas do tipo: “saí de uma relação complicada, não quero me envolver”.
-- Xii... Tem uma ex presente na jogada?
-- Sei lá, preferi não falar muito sobre...
-- Mas vocês ficaram?
Clarisse revirou os olhos e suspirou. O suficiente para eu deduzir a resposta positiva.
-- Vou indo para o hospital.
-- Ué, hoje? Mas não é tarde que você se dedica a pesquisa no laboratório de fisiologia?
-- É, mas hoje, tem um paciente na UTI que quero avaliar e...
-- Clarisse sua bandida! Você está indo pra ver a assistente social! Cara lisa!
Clarisse gargalhou, quase se engasgando com a água que tomava.
-- Eu disse que você é uma das mentes mais brilhantes, não disse?
-- Vai com calma, não seja tão disponível para ela... Se ela disse que não quer compromisso, não fique tão fácil assim...
-- Valeu amiga, você está certa, só quero que ela me veja, e sinta saudade... Sabe como é, ver pra querer sabe?
-- Tô ligada! Formou!
Rimos. Depois do intervalo da tarde, sem mais aulas a ministrar, segui para o laboratório de Medicina Molecular, era minha casa naquela universidade. Por ser a professora que mais usava o espaço, tomei a liberdade de me apossar de uma pequena sala, na verdade, era um cubículo, que se transformou em meu escritório, com uma mesa, um armário, e duas cadeiras, era o suficiente para mim. Quando precisava me reunir com o grupo de pesquisa, o fazia pelas bancadas dali, em meio a tubos de ensaio, caixas de acrílico e todos os apetrechos laboratoriais.
Precisava concluir o edital para seleção dos novos membros do grupo de pesquisa. Cumprimentei Regina, a auxiliar responsável pelo laboratório, e me tranquei na sala. O tempo voou, nem percebi a tarde acabar, quando Regina bateu à porta:
-- Dra. Luiza, eu já estou indo, a senhora vai precisar de mim para algo?
-- Já? Que horas são? Nossa! Ah Regina, pode ir, desculpe-me se te prendi aqui, pode deixar, eu fecho tudo e deixo com o senhor Tavares as chaves.
-- Tudo bem, boa noite doutora.
Mal Regina saiu da sala, outra batida na porta:
-- Esqueceu-se de algo Regi... – Fui dizendo baixando o tom de voz.
-- Sou eu, combinei de lhe procurar no final da tarde, não se lembra?
Beatriz estava parada junto à porta. Engoli seco, e pedi que ela sentasse, em um tom formal.
-- Com todo prestígio que você tem no departamento de Medicina, você ainda não solicitou uma sala de verdade para você?
-- Não preciso de mais do que esse espaço aqui, meu trabalho de verdade faço lá fora.
-- Deveria pedir pelo menos um espaço maior para reunir seus pesquisadores, não sei como você aguenta ficar num “imprensado” desses....
-- Nunca fui muito espaçosa Beatriz, estou bem aqui.
-- Essa sua falta de ambição um dia vai fazer a diferença... – Beatriz disse num tom censurador.
-- Engraçado, em outra época, você chamava isso de modéstia, humildade, bom senso...
-- Mas, tem que existir um limite nisso, você tem status acadêmico e fica se contentando com menos do que seu mérito lhe dá direito. E a culpa é sua, você não tem ambição.
-- É verdade Bia, não ambiciono luxos, ostentação. Meu mérito me ensinou isso.
-- Devia ambicionar, as coisas mudam, pessoas podem mudar também.
-- Ah sobre isso eu também aprendi, você me ensinou muito bem isso: “as coisas mudam, as pessoas mudam”. Sua ambição quem te ensinou? A Alicinha? Ela vai inaugurar outro frigorífico com o papai dela?
-- Estava demorando... Estava esperando você soltar sua ironia e seu sarcasmo. Prendeu muito tempo nessa pose de mulher madura e confiante. Vamos lá, mostre seu recalque, Luiza!
Nesse momento meu sangue ferveu, fechei o meu laptop com violência, estreitei os olhos enquanto Beatriz se levantava da cadeira que estava acomodada, como se estar de pé, a fizesse se sentir mais superior a mim do que já externava. Levantei-me também, não permitiria que ela me olhasse de cima.
-- Recalque? Você diminui tudo que sinto em relação a você e a Alicinha como recalque? Que tipo de pessoa mesquinha e doente você é? Quão egoísta e ingrata consegue ser com alguém que foi sua companheira por tanto tempo Bia?
-- Será que é mesmo egoísmo e mesquinhez lutar pela felicidade? Pelo amor?
A retórica de minha ex-namorada chegou a me doer fisicamente, como um beliscão no peito.
-- Você está me dizendo que não me amou? Não foi feliz comigo?
O embargo da voz mostrou uma fragilidade que eu não queria deixar evidente para Beatriz, ela, baixou os olhos e se encaminhou em direção à saída e disse de costas:
-- Não foi para falar sobre nós que vim aqui, Luiza.
Beatriz já estava no laboratório, nitidamente se esquivando da minha pergunta, a segui, no ambiente que já estava vazio, e com apenas uma parte das luzes acesas.
-- Responde, acho que ao menos essa resposta eu mereço.
Beatriz suspirou. Alguns segundos de silêncio precederam o que eu esperava ansiosa, sua resposta:
-- Lu, eu te amei sim, fui muito feliz com você, nem tem sentido uma pergunta como essa, sabe o que vivemos, foi forte, intenso, cheio de ternura, você é uma das pessoas mais generosas, nobres, sabe amar como poucas...
-- E tudo isso não te impediu de faltar com a lealdade comigo?
-- Não pense que eu me orgulho disso, Luiza, eu sei que não agi corretamente com você, foi mais forte que eu...
Pela primeira vez, desde que terminamos, eu enxergava alguma dignidade no discurso de Beatriz, mas, aquilo também despertou a mágoa de uma maneira descomunal, de uma forma que minha polidez e postura magnânima foram relativizados, pela necessidade de expor minha revolta.
-- Então você é uma fraca! Como seu caráter pode ser tão vil? Você se rendeu a uma atração, na primeira oportunidade que teve ao rever seu amor de adolescência, e no lugar do respeito e da lealdade que você deveria ter comigo, você cedeu, me traiu da pior maneira! Traidora e fraca! É isso que você é!
Beatriz deixou uma lágrima cair, enquanto as minhas já escorriam abundantes pelo meu rosto.
-- Não foi fácil para mim...
-- Não foi fácil para você? E pra mim Bia? Você tem alguma noção do que foi para mim? Perder um amor para uma mulher não é algo que se enfrenta sem dor, se morrer um pouco... – Parei de falar aos soluços.
-- Eu seria desleal se continuasse com você apaixonada por outra mulher, não seria justo com nossa história.
-- Mais justo então, foi trair para romper de vez, desatar os laços, rasgar minha alma...
Beatriz se aproximou de mim abruptamente. Segurou meu rosto com as duas mãos, encarou-me, enxugou minhas lágrimas com o dorso de uma das mãos, e disse com a voz mansa:
-- Nunca foi minha intenção te magoar, eu me arrependo de verdade de ter sido fraca.
Encarar Beatriz ali tão de perto, dirigindo a mim um gesto carinhoso, me desarmou, fez aflorar os sentimentos bons que eu tinha (ou melhor, tenho?) Por ela. Fechei meus olhos, me deliciando no toque das mãos de minha ex-namorada, sentindo o rosto dela se aproximar do meu, nossos lábios se tocaram, e a iniciativa foi minha de aprofundar o selo o transformando em um beijo cheio de saudade.
Para minha surpresa, Beatriz não se esquivou, acrescentou mais intensidade ao beijo que se prolongou, acendeu meu corpo, estremeci, rendida a tudo que emergia diante de alguém que agora eu tinha a plena certeza que ainda amava. O beijo não cessou, Bia me empurrou contra a parede ofegante, deixando minhas mãos explorarem os pontos que eu conhecia tão bem, pressionei as mãos na cintura dela, subi pelo colo, apertei seus seios fartos, enquanto Beatriz entrelaçava seus dedos nos meus cabelos, senti o corpo dela tremer também.
Alguns segundos nos separaram e os olhos se encontraram. Tanto para ser lido, tanta coisa implícita naquela entrega, e ambas não conseguíamos expressar em palavras o que aquilo representava. Afastei Beatriz, empurrei-a sem consegui encará-la, minha ferida sangrava, comecei a me censurar por ter me denunciado a ela naquela recaída. Outra vez, Bia me surpreendeu, puxou pelo braço, e quando tentava alcançar com a outra mão, meu rosto mais uma vez, na tentativa de oferecer resistência, acabei por provocar o roçar da pedra do anel na mão direita da minha ex na minha testa.
Triste ironia do destino: o anel de noivado de Beatriz abriu uma ferida no meu rosto. A culpa tomou de conta dela, pude ver isso, e também por enxergar isso, não deixei que ela se aproximasse, ela fez menção de fazê-lo, quando viu uma réstia de sangue surgir no arranhão.
-- Não... Por favor. Bia, sai daqui.
Visivelmente atordoada, Beatriz saiu, esbarrando no balcão. Coloquei minha mão na cabeça, contendo o sangue que molhava minha testa, bem menos do que as lágrimas que salgavam minha boca, depois de gosto dos lábios e língua da minha ex-namorada de novo no meu paladar.
Distraída com minha dor, mais na alma do que no rosto, não percebi a chegada de uma pessoa no laboratório. Fui arrancada daquela dolorosa reflexão por uma voz familiar:
-- Professora Luiza? A senhora está bem?
Marcela se aproximava, e me vendo mais com mais luminosidade, pode ver meu arranhão na testa e meus olhos inchados e vermelhos.
-- Eu estava saindo da biblioteca, a porta estava aberta, vi uma luz aqui... A senhora está machucada!
Marcela se explicava enquanto chegava mais perto. Rapidamente me refiz, não podia me mostrar tão frágil diante de uma aluna.
-- Só um arranhão. Um chifre tentando sair apenas... – Brinquei com minha desgraça.
-- Tem alguma coisa errada aí... Anjo não tem chifres... Deixa eu cuidar da senhora.
As palavras de Marcela, e aquele anúncio: “deixa eu cuidar da senhora”, foi o melhor curativo que meus ouvidos poderiam escutar. Como desejei ser cuidada, e por aquela menina, isso me parecia um bálsamo.
Fim do capítulo
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