A fortiori por Bastiat
CapÃtulo 18 - Andreia
Patrícia
- Ah não, campainha de novo não. O interfone está quebrado por acaso?
Estava tentando fazer a Laura comer alguma coisa quando fomos interrompidas.
- Eu atendo - falei e levantei-me da cadeira.
- Olha no maldito olho mágico antes de abrir. Se eu fizesse isso ontem teria evitado tanta coisa.
- Está bem.
Olhei pelo olho mágico e fiquei branca, azul, verde, rosa... um arco-íris. Pouca emoção para um dia só, não? Abri a porta devagar e eles sorriram ao me ver.
- Desculpe-nos o incômodo, a Laura mora neste apartamento?
O homem que falava eu reconheci da TV.
- Sim - lembrei de respondê-los depois do choque. - É neste apartamento mesmo. Podem entrar, ela está na cozinha.
A Laura é a cara da mãe dela, como nunca notei isso antes?!
Não sei se fiz bem em deixar eles entrarem direto. Mas são os pais dela e será bom para ela vê-los.
- Me acompanhem, por favor. É por aqui. - Os dei a direção.
Laura parecia estar alheia a nossa chegada na cozinha, brincava com o bolo no prato.
Laura
- O bolo não está bom? Ainda não aprendeu a fazer nem um bolo decente, Laura?
Eu devo estar louca, tinha acabado de ouvir a voz do meu pai. Olhei para o lado e vi a minha mãe sorria emocionada e o meu pai que sorria também. Eles estão aqui. Depois de tudo que fiz, estão na minha frente. Olhei para a Patrícia que está mais afastada, de braço cruzado.
- Para que fazer bolo se eu posso comprar um pronto? - sorri. - Pai! Mãe!
Deixei o meu garfo de lado e levantei. O cabelo grisalho do meu pai me fez ter a noção exata de que eu fiquei fora por muito tempo. Mesmo o assistindo às vezes pela TV, só me dei conta agora.
- Filha, meu amor.
Eu não vi a aproximação da minha mãe. Apenas senti os seus braços envolvendo o meu corpo. Ela me apertava tanto que doía. Mas eu entendi tudo, eu também sou mãe, queria abraçar as minhas filhas assim também. Lágrimas começaram a rolar. Não sabia se pela emoção do momento ou da lembrança das minhas filhas.
Meu pai abraçou nós duas ao mesmo tempo. É bom receber carinho.
Não sei por quanto tempo ficamos assim, apenas curtindo o abraço, mas foi por muito tempo.
Quando nos separamos ficamos olhando um para o outro. Tanta coisa para ser dita e explicada.
- Você está bem? - minha mãe perguntou.
- Estou viva.
- Eu deveria te encher de cascudos, mas prefiro te encher de beijos.
- Mãe!
Ela me abraçou mais uma vez.
- Vamos para sala, lá podemos nos acomodar melhor.
Olhei para a Patrícia que estava em silêncio esse tempo todo. Lembrei de apresentá-la.
- Mãe, pai! Esta é a Patrícia, minha companheira.
Ela sorriu e meus pais prontamente a cumprimentaram. Patrícia dizia apenas "é um prazer" e sorria.
Peguei na sua mão e fomos para a sala. Meus pais sentaram juntos no sofá e eu sentei no mesmo sofá que eles. A Patrícia resolveu sentar na poltrona. Ela sabia que aquele momento era meu com os meus pais, mas que ela estaria por perto para o que eu precisasse.
- Então podem começar a falar tudo o que sei que mereço ouvir. Só não peguem muito pesado que a Camila já fez todo serviço ontem.
- Ela fez isso com todo o direito. Não tiro a razão dela! Onde você estava com a cabeça quando escreveu aquela carta e partiu com a Marina? - Minha mãe perguntou.
- Eu estava desesperada. Queria fugir de uma paranoia que imaginei. Eu... escrevi na carta os meus medos. Queria evitar aquilo tudo. Não achei outra solução, não pensei, não medi as consequências. Foi isso.
- Eu não criei uma filha louca, Laura. Você não podia ter feito o que fez.
Eu mordi a minha língua para não a lembrar que não me criou. Apenas abaixei a cabeça.
- Onde você esteve todo esse tempo? - Foi meu pai quem perguntou.
- Bem, logo depois da minha fuga morei no interior do Espírito Santo por alguns meses e depois fui para a França. Morei em Paris até o ano passado e vim para São Paulo.
- Veio para São Paulo por que pretendia ir para o Rio depois?
- Não. Eu trabalho para o 'Le Monde', eles abriram uma redação aqui para acompanhar a América Latina e eu aceitei ser editora-chefe e correspondente especial.
- Sabia! - meu pai sorriu. - Sabia que era você quem escrevia no caderno político sobre o Brasil e a América Latina. Seu jeito de escrever é único no mundo. Deveria ter associado sua escrita com a assinatura "L.N.D.", mas não acreditei que morasse em Paris. Você detesta a França.
- Parece que minha estratégia funcionou, não é? Paris seria o último lugar no mundo que vocês me procurariam.
Minha mãe permanecia quieta, apenas observava a conversa entre meu pai e eu.
- Você realmente não queria ser encontrada. Por quê?
- Tive medo. A Camila ameaçou que eu não veria mais as meninas com a nossa separação.
- Mas você poderia ter ficado e lutado.
- Tive medo de perder. Hoje não faz sentido nenhum o que eu fiz, mas na época eu achei uma ótima solução.
- Por que você continuou a fazer investigação mesmo depois do atentado e de ter dito que não faria mais?
- O jornalista tem um compromisso com a sociedade. Eu adorava aquela adrenalina, era apaixonada por jornalismo investigativo.
- Não fale isso no passado. Agora sei muito bem quem manda aqueles e-mails com a ponta do iceberg para investigar. Você continuou trabalhando esse tempo todo.
- Pois é, descobriu. Mas eu só mandava a desconfiança.
- E nunca errou.
- É. Eu sei.
- Obrigado.
Nós dois sorrimos um para o outro. Patrícia também sorria. Ela sabe que aquilo é uma realização e tanto para mim. Minha mãe estava pasma com todo aquele diálogo, aquela não era uma conversa para falar sobre trabalho.
- Nós procuramos tanto por você, filha. Você ficou esse tempo todo fora, tive tanto medo de ter acontecido alguma coisa com você - minha mãe finalmente falava.
- Desculpa. Quero pedir desculpas para os dois.
- E agora Laura?
- E agora o quê, dona Andreia?
- A Verônica disse de manhã que a Camila não pretende conversar com você para chegarem a um acordo. Ela vai ficar com as meninas.
- Sim, ela deixou isso bem claro ontem.
- Nós vamos conversar com ela quando voltarmos para o Rio. Ela não pode fazer isso.
- Boa sorte.
- Laura, você está desistindo das suas filhas?
- Elas devem me odiar agora que sabem de tudo. A Marina nem vai sentir a minha falta, eu sou uma péssima mãe.
- Não é isso que dizem aquelas fotos ali - foi meu pai quem disse isso olhando para a parede à sua frente.
Olhei para a sequência de fotos minha com a Marina penduradas na parede como se fosse um quadro só. A primeira foto é dela com um aninho nos meus braços. A segunda ela tinha dois anos, eu estava mordendo a sua bochecha. A terceira eu estou sentada e ela em pé me dando selinho, estava completando três anos. A quarta, com quatro anos, estamos cheias de tinta e mostrávamos as nossas mãos sujas sorrindo. A quinta, nós estamos assoprando a velinha dela de cinco anos de idade, vesgas. A sexta é em um parque de diversões, seu presente de aniversário de seis anos, ela estava em cima dos meus ombros. Na sétima, é nítida a semelhança, nós ostentávamos o mesmo sorriso e os nossos olhos cor âmbar quase fechavam-se. Depois há um desenho dela, típico desses que crianças fazem nas escolas, está escrito com uma letra enorme e desengonçada "Para a melhor mãe do mundo". A oitava foto ela está vestida de bailarina e eu a abraçava feliz. Ela tinha arrasado na sua apresentação. A nona é a mais recente, já estávamos em São Paulo e eu segurava um bolo com nove velas, esperando ela assoprar.
- Laura - era a voz da Patrícia. - Você é a melhor mãe do mundo. Ela te ama, te admira.
- Não... não adianta.
- Elas com certeza vão te perdoar quando vocês conversarem.
- Eu... - engoli o que eu estava prestes a dizer - deixa para lá.
- Você ia dizer que não me perdoa até hoje pelo o meu abandono. Mas você não disse porque sabe que está fazendo a mesma coisa agora.
Refleti em silêncio as palavras da minha mãe.
- São histórias diferentes - murmurei.
- Laura, já fugimos demais dessa conversa, chegou o nosso momento. Nós precisamos conversar.
- Patrícia, você não quer me mostrar o resto da casa?
Meu pai queria nos deixar sozinhas.
- Sim, claro. Vou te mostrar o quarto da Marina, tem muito mais fotos das duas lá.
Eles subiram as escadas e eu só olhei para a minha mãe quando eles sumiram das minhas vistas. Ela estava emocionada e iniciou a conversa que mais aguardou e a que eu mais fugi na vida.
- Eu me sinto culpada pelo que você fez.
Olhei sem entender para a minha mãe. Do que ela está falando?
- Eu deveria ter notado que você estava seguindo os meus passos na profissão, que você assim como eu estava trabalhando demais.
- Essa é a coisa mais idiota que você poderia me dizer neste momento.
- Laura, por que você me odeia?
- Eu não te odeio, mãe.
- Eu te dei tudo do bom e do melhor. Te dei os melhores colégios, viagens internacionais, as melhores roupas. Fiz o que tinha que ser feito, não te deixei com qualquer um, te deixei com os seus avós.
- Eu sou muito grata aos meus avós, mas a verdade é que eles nunca me quiseram de verdade.
- Eles não eram lá muito amorosos, eu sei, fui criada por eles. Ok, demorei alguns anos até ajeitar a minha vida, mas te levei para morar comigo e tentei compensar as minhas falhas com você.
- Vamos começar a ser bem sinceras aqui. Só me levou para morar com você porque o pai pediu isso. Você estava completamente apaixonada por ele e achou que se posando de boa mãe iria impressioná-lo ainda mais.
- Não foi assim, Laura. Ele me fez enxergar o erro que eu estava cometendo sim, mas eu também queria me aproximar de você. Eu só queria consertar a nossa relação.
- A nossa relação não tinha conserto.
- Você não me deu uma chance, filha.
- Você não me deu escolhas, mãe.
Havia muita mágoa ali.
- Por que tanta raiva, Laura? Eu não te abandonei completamente.
Resolvi revelar para ela algo que escondi a minha vida toda.
- Eu não sei quando passou a me amar, mas antes você me considerava um erro. Algumas vezes que foi me visitar, repetiu para a vovó que eu fui um erro e que se arrependia de ter me tido.
Minha mãe engoliu seco. Vi a sua respiração ficar pesada, esfregar as suas mãos uma na outra e ela não conseguiu falar.
- No meu aniversário de oito anos, o vovô cobrou a sua presença mais cedo, lembra? Eu fiquei a semana inteira falando para os meus amiguinhos da escola que a minha mãe estaria na festa. Na verdade, ninguém acreditava muito que você era a minha mãe. Você chegou bem tarde aquele dia, depois de cortar o bolo, não me deu a menor atenção. Eles pararam de dizer que eu era uma mentirosa, mas eles passaram a me dizer que você não gostava de mim. Para pior tudo, naquele dia você disse que eu estava atrapalhando a sua vida.
"Estava esperando na porta do quarto dos meus avós a minha mãe sair para poder dar um abraço e agradecer pelo presente. Inocentemente me sentia tão feliz até ouvir:
- Eu cheguei a tempo, não cheguei? Eu tinha uma festa muito mais legal com os meus amigos do trabalho, larguei tudo para estar aqui e o senhor ainda reclama?
- Se fosse para aparecer no final da festa era melhor não ter vindo, Andreia - meu avô estava nervoso.
- A minha presença nem era tão importante. Eu contratei o melhor buffet da cidade e gastei uma nota com a decoração. Comprei aquela maldita boneca que ela tanto queria. Fiz todas as minhas obrigações. Tenho certeza que ela se distraiu com tantas coisas que nem se lembrou que tem mãe.
- É aí que você se engana, Andreia. Ela ficou a festa inteira perguntando por você.
- Porque ela é dramática. Não sei de quem ela puxou tanta fraqueza. Eu estou cansada e quero dormir. Boa noite, pai.
- Não, Andreia. É hora de me ouvir. Você teve ela porque quis e tem que levar a Laura com você. Eu e a sua mãe já estamos velhos demais para ficar cuidando de uma criança. A nossa parte já fizemos quando criamos você.
- Realmente, tive porque quis. Mas me arrependo TANTO! TANTO! Essa menina só atrapalha a minha vida.
- Tarde demais para se arrepender, Andreia. Vai levá-la com você amanhã mesmo. "
Tremi com a lembrança.
- Essa foi a primeira vez que eu ouvi que você estava arrependida. Depois disso você ficou dois meses inteiros sem aparecer, eu só te via pela TV. Pensei que tinha deixado de abandonado de vez. Mas hoje sei que ficou com medo de ter que me levar com você.
- Eu... eu... eu não sabia que você tinha escutado isso. A única coisa que eu me arrependo de verdade, é de ter dito isso e você ter escutado. Eu estava sendo pressionada pelos meus pais para criar você, mas eu não me sentia segura. Não... não estava preparada para ser mãe. Eu não me arrependo de tido você, Laura.
Lágrimas já rolavam pelos meus olhos. Eu queria muito acreditar nas palavras dela, mas um bloqueio impede.
- Você não precisa dar desculpas agora.
- Não são desculpas. Eu estou sendo sincera com você. Eu errei, errei muito e assumo toda a culpa. Hoje, mais do que nunca, eu sei que isso tudo que aconteceu com você tem uma boa parcela dos problemas que criei para você.
- Talvez sim, talvez não. Sinceramente? Não sei. Também não me interessa. Eu destruí o meu casamento, não foi você. Não se culpe por isso.
- Você teve medo de ser abandonada por uma pessoa que te amava... de novo.
- Meu maior medo era ver as minhas filhas passar pelo que eu passei. De não conseguir me afastar do meu trabalho e perdê-las aos poucos. Eu tentei dar o meu melhor para a Marina porque eu não podia voltar atrás. Mas falhei a mesma coisa. Eu poderia ter aprendido com os seus erros, mas os cometi sem ver.
- Me perdoa, Laura? Me perdoa?
Pensei de cabeça baixa por um bom tempo. Quando levantei, vi nos olhos da minha mãe lágrimas de arrependimento e esperança.
- É claro que te perdoo, mãe. Só quem também já errou feio sabe como é cometer um e se arrepender.
- Obrigada, meu amor. O seu perdão vai me ajudar a te ajudar.
- Eu só preciso agora de um abraço.
Nos aproximamos e nos abraçamos como nunca fizemos antes. Um abraço de perdão. Um abraço de consolo. Um abraço de mãe e filha.
Senti o perfume do meu pai. Ele e a Patrícia com certeza ouviram o final da conversa e resolveram descer quando encerramos com o abraço.
- Fico feliz que vocês tenham se perdoado. Agora você, Laura, precisa se recuperar de tanta emoção e colocar a cabeça no lugar. Tudo ao seu tempo. Estamos com você nessa, Laurinha.
Ri do modo que o meu pai me chamou, ele sabe que detesto apelidos.
- Obrigada, vocês são maravilhosos.
Olhei agradecendo a minha mãe, meu pai e a Patrícia.
- Um almoço, quase jantar, delicioso cairia bem para este reencontro, não é? - Patrícia sorria.
- Com certeza, querida - respondi. - A Patrícia cozinha muito bem.
- Eu posso ajudar? Assim eu conheço mais a minha nora! - Minha mãe se empolgou
- Acho uma ótima ideia, eu até ajudaria também, mas continuo péssima na cozinha.
Rimos juntos, é bom voltar à família.
- Filha, posso trazer a Lívia e o Bento? - Meu pai perguntou.
- Claro! Por que eles já não vieram para cá?
- Achamos melhor uma conversa entre nós.
- Eles estão enormes, não é? Estão com 19 anos, se não me falhe a memória.
- Exatamente. Enquanto vocês preparam o almoço, quase jantar, eu vou buscá-los.
Patrícia
- Filha, como você se virava na cozinha em Paris?
- Eu morava com o Sérgio. Ele que sempre cozinhou.
- O Sérgio? Ele esteve com você esse tempo todo?
- Sim, até hoje. Ele mora no apartamento de baixo.
- A última vez que o vi foi há dois anos. Você tinha notícias nossa?
- Não! Ele nem me disse que tinha te encontrado. Ele vinha uma vez por ano para renovar o contrato de aluguel do apê dele e eu sempre pedi para que não dissesse nada sobre vocês. Eu sabia que se tivesse acontecido alguma coisa grave ele me falaria, como na morte da vovó e em seguida a do vovô. Quando ele chegava e ficava quieto, sabia que estava tudo bem.
Acompanho a interação da Laura com a sua mãe enquanto preparava risoto de palmito. Minha sogra é um amor de pessoa, antes tinha me enchido de perguntas típicas de mãe zelosa.
- Patrícia? - Laura chamou a minha atenção.
- Oi, amor, disse alguma coisa?
- Estava comentando que você estava no carnaval do Rio. Meus pais estavam lá no domingo também.
- É, foi maravilhoso.
Laura arqueou uma sobrancelha.
- Aconteceu alguma coisa?
- No carnaval? Não! Nada disso que você está pensando.
Só a irmã da sua ex que deu em cima de mim descaradamente no Carnaval. O mundo é realmente pequeno. Mas claro que não posso contar isso para a Laura. Não quero nem mais contato com essa gente.
- Eu quis dizer se aconteceu alguma coisa com você...
- Comigo? Não, eu estou bem. Estava apenas distraída.
- Estava pensando em que?
- Eu? Em nada. Estou concentrada no risoto.
A companhia tocou.
- Deve ser o Carlos, vou abrir a porta para ele.
A dona Andreia foi atender a porta.
- Você ficou com alguém lá?
- Claro que não! Para de me ofender desse jeito! Eu só tenho olhos para você.
Ela me olhou desconfiada. Até parece que não tinha até sugerido que eu ficasse com quem quisesse. Laura realmente é uma incógnita.
- Está tudo pronto! - Eu disse sobre a comida.
- Está um cheiro ótima essa sua comida, Pati! - Senhor Carlos elogiou entrando na cozinha. - Seus irmãos estão lá na sala.
- Eu já vou. Vamos, Patrícia?
Laura veio até mim e segurou na minha mão. Ela estava insegura, pude perceber. Caminhamos juntas até a sala. Seus irmãos sorriram.
O Bento é a cópia do pai, alto, queixudo, cabelos bem pretos e olhos em um tom castanho bem escuro. Já a Lívia parecia a mãe, exceto pelos olhos do mesmo tom de castanho bem escuro.
- Bento, Lívia... vocês realmente cresceram.
A Laura falou, mas continuava agarrada na minha mão.
- Oi, Laura - o cumprimento partiu da Lívia.
- Vão lá dar um abraço na irmã de vocês - Dona Andreia empurrou os gêmeos.
Os dois abraçaram a Laura timidamente e a minha mulher parecia mais uma pedra. Em seguida eles me cumprimentaram com beijinhos no rosto.
- Bonita essa sua amiga, Laura - seu irmão sorriu maliciosamente para mim.
- Ela é companheira da sua irmã Bento - Carlos disse como se fosse uma bronca.
Laura parecia estar alheia a tudo que acontecia, acho que ela nem ouviu o que o irmão dela disse.
- É... vocês me dão licença? Vou subir só um minutinho e já desço.
- Amor, o almoço já vai ser servido.
- Eu já desço.
Fiquei sem graça, mas eles não pareceram ligar muito. Os gêmeos ficaram entretidos no celular e os pais da Laura engataram uma conversa comigo.
Laura
O cigarro que eu tragava parecia me relaxar. Foi muita tensão para um dia só. A conversa com a minha mãe terminou de me esgotar por hoje. Mas eu fiquei muito feliz com a presença e apoio dos meus pais. Achei esses anos todos que seria ignorada por eles se um dia retornasse.
Desci as escadas e estavam conversando normalmente.
- Podemos almoçar, pessoal.
- Ótimo, temos que aprovar os dotes culinários da Pati - meu pai sorriu.
- Já estão chamando-a de Pati?
- Claro.
Sorri e percebi que estava sendo analisada pela Patrícia, tomara que ninguém tenha sentido o cheiro de cigarro.
Sentamos à mesa. Não estava com nenhuma fome, coloquei o mínimo de comida possível e mesmo assim não achava que irei comer. Não desce nada. Uma bola de tristeza está parada no meu pescoço.
Patrícia estava toda sem graça com os elogios pelo almoço. Se não fosse o momento trágico, aquela reunião familiar seria apenas sorrisos e brincadeiras.
- Sua irmã, Laura, está no primeiro ano de Biomedicina. Demorou um ano para decidir, mas acredito que ela está no caminho certo, vejo como adora o curso. Já o Bento ainda está pensando no que fazer. Ele só quer saber de festa. Falei para ele fazer um curso de DJ e se profissionalizar logo já que gosta tanto.
Dona Andrea não mudou nada, sempre tentando controlar os filhos.
- Daqui a pouco ele vai decidir, não força.
- Não é forçar. Você foi tão decidida, desde pequena você tinha uma tendência para ser jornalista - minha mãe direcionou o ataque para meus irmãos agora. - A Laura sempre foi centrada, estudou muito e veio para São Paulo correr atrás da carreira. Vocês deveriam seguir o exemplo dela!
- Claro, mãe! Ela é muito centrada mesmo. Vou ter duas filhas e sumir com uma delas para seguir o belo exemp...
- Bento! - foi meu pai que advertiu.
O silêncio foi geral. Eu não sabia se me escondia ou se enfrentava aquele menino que tanto lembrava as minhas respostas afiadas quando mais jovem.
Eu estava prestes a responder quando senti aquele enjoo típico de quem vai vomitar. Não sei como levantei, nem como cheguei ao meu banheiro, quando vi já estava ajoelhada sobre a privada colocando para fora todo o estresse.
Senti uma mão ajeitando os meus cabelos para trás. É a Patrícia.
Levantei e lavei minha boca, meu rosto e finalmente olhei para ela. Em silêncio pedi para não fazer perguntas.
- Está melhor, meu amor?
- Estou.
- Vamos descer?
- Vamos.
Quando cheguei na sala, todos olharam para mim assustados pela minha repentina saída da mesa.
- Fiquei com o estômago irritado, mas eu estou bem.
- Quer que eu compre algum remédio, filha?
- Não, mãe. Mesmo assim, obrigada. Eu quero ficar sozinha, se vocês não se importam.
Patrícia me olhou indignada. Sabia o que estava pensando: eu estou expulsando as visitas.
- Já estávamos indo mesmo. Tchau Laura. - Meu pai me abraçou.
- Deixei o meu número e o do seu pai também, qualquer coisa liga.
Minha mãe me abraçou forte.
- Eu gostei muito de te ver, Laura, precisamos nos ver de novo para botar o papo em dia - disse minha irmã que me abraçou despedindo-se.
- Desculpa qualquer coisa, eu não quis dizer aquilo. Foi bom o almoço.
Fingimos sorrisos, mas ainda bem que pelo menos Bento não tentou um abraço.
Despediram-se da Patrícia e saíram.
- Laura, amor...
- Eu quero ficar sozinha, Patrícia.
Segui para o quarto da minha filha e deitei em sua cama. Peguei seu ursinho predileto, o Monstro, abracei e senti seu cheirinho. Ela adorava dormir com ele.
Camila
Estava lavando a louça do jantar com a Vero. Marina ainda não desceu do quarto e recusou o prato de comida que a Vero levou para ela.
- Estou cheia de problemas para resolver e nem sei por onde começar.
Olhei para a Vero na esperança de que ela pudesse me ajudar.
- Diga.
- Preciso contratar uma babá para ontem, fazer compras para a Marina, inclusive um dormitório. Preciso também fazer a matrícula dela na escola já que as aulas começam semana que vem e amanhã eu volto para o trabalho.
- Caramba. E eu aqui pensando que meu maior problema é a Patrícia não atender o celular.
- Você ainda não desistiu dessa tal de Patrícia?
- Nem vou desistir.
- Ela é casada. Ca-sa-da.
- Eu sei disso, não precisa ficar repetindo toda hora. Enfim, sobre os problemas, podemos resolver as compras no final de semana.
- Sim.
- E sobre contratar uma babá, vai ficar esquisito colocar uma desconhecida aqui com a Marina assim. Eu fico aqui com elas até encontrar alguém.
- Vero, não!
- Elas passam quase o dia todo na escola, Cah. Eu fico no ateliê até a hora de buscá-las, sem problema.
- Certo.
- Essa da escola será complicado, você tem que descobrir onde a Marina estudava e pedir os documentos para a transferência.
- Mas para isso tenho que entrar em contato com a Laura.
- Exatamente.
- Isso só em último caso, vou tentar resolver por aqui.
- Ainda acho que você deveria ser amigável com a Laura, tentar conviver pacificamente.
- Nem pensar!
- Camila, não vamos nem entrar em questão de legislação. Você não pode negar o direito das meninas de terem outra mãe. A Laura é mãe delas também!
- Enquanto eu fiquei aqui desesperada, com a minha vida parada, ela foi ser feliz em Paris. Refez a vida profissional dela e a vida pessoal também.
- Não seja rancorosa, Camila! Você nunca foi assim.
- Eu era uma completa idiota, isso sim!
- Pois para mim você está sendo idiota agora.
- Eu? - perdi o controle. - Você já viu como ela está? Ela parece ainda mais bonita do que antes. Está linda, Verônica!
- Camila, você está morrendo de ciúmes!
- Não fale bobagem.
- Você ainda gosta da Laura.
- Claro que não! Eu não suporto a Laura.
- Minha irmã, você nunca esqueceu a Laura. O que você quer hoje é se vingar dela. Você não pode fazer isso, só vai sair dessa história mais machucada.
- Eu não vou me vingar de ninguém. Estou fazendo justiça.
- Não faça isso com você, com a sua vida. Você sempre foi amorosa.
- Eu continuo amorosa, mas só com quem merece e a Laura não merece. Vamos encerrar essa conversa por aqui.
- Cah, não conte comigo para essa suposta vingança.
- Não tem nenhuma vingança.
- Espero que não mesmo - Vero deu um beijo no meu rosto e saiu.
Laura, por que o nosso amor tão grande terminou dessa maneira? Tudo o que eu precisava na vida era de seu carinho antes de dormir, de um final de semana cheio de abraços, beijos e passeios, um jantar em família, seu olhar só para mim. Mas você sempre sonhou em ser grande, sempre levou à máxima que o trabalho dignifica o homem. Só esqueceu que me fez apaixonar por você e que o nosso amor não era tão forte assim para suportar uma concorrência que era você mesma. Nosso amor foi quebrado em mil pedacinhos.
Patrícia
Ouvi um barulho de chave rodando na fechadura da porta da sala. Será que vem mais emoção para o dia de hoje? Não sei se aguento.
- Oi, Pati.
- Oi, Sérgio! Que susto. - Me ajeitei sentada no sofá.
- Desculpa, é que eu tenho a chave.
- Eu sei. É que o dia hoje foi tão surpreendente que qualquer movimentação agora já fico alerta.
Sérgio gargalhou e sentou-se do meu lado.
- Dia difícil? - Perguntou-me.
- Foi um dia emocionante.
- Emocionante?
- Os pais da Laura estiveram aqui.
- Dona Andreia e o seu Carlos?
- Sim, Andreia Neves e Carlos Dopollus.
- E a Laura está bem?
- Depois que eles saíram, ela está naquela né...
- Fechada.
- Sim.
- Um cigarro atrás do outro.
- Sim.
- Alternando entre estar bem e estar no fundo do poço.
- Exatamente.
- Está acontecendo tudo de novo.
- O que está acontecendo de novo?
- Nos primeiros meses em Paris, Laura parecia ser duas. Uma era a mãe zelosa, amorosa e calma. A outra se entregava aos cigarros, bebidas e sempre queria estar sozinha. Eu até tentei levá-la a um psicólogo para fazer acompanhamento, mas se ela foi em três sessões foi muito.
- Será que ela pode surtar ou desenvolver algum problema sério? - não escondi a minha apreensão.
- Não, o problema dela é não conseguir encarar as coisas de frente. Ela encara o presidente dos Estados Unidos em uma entrevista e se sai muito bem, mas quando o assunto é a vida dela...
- É uma pena.
- Realmente. Mas ela conseguiu sair dessa lá em Paris e vai sair aqui também. Ainda mais agora que tem você ao lado dela.
- Tem eu, você, e agora os pais dela.
- E como foi o reencontro?
- Melhor do que eu imaginava. Confesso que estava tensa com a reação de ambas as partes, mas vi ali muita saudade, compreensão, perdão e amor. A Laura lavou as roupas sujas com a mãe dela, foi uma conversa de explicações e entendimentos. Parece que eles estão dispostos a ajudar a Laura com os erros do passado, vão até conversar com a tal de Camila para que resolva os problemas.
- Que maravilha, Pati! São grandes aliados. A Laura temia eles e a reação deles.
- Sérgio, você que acompanhou de perto tudo, como era a relação com a mãe dela na adolescência? Eu ouvi o finalzinho da conversa delas e fiquei me perguntando sobre isso.
- Embora a minha amizade com a Laura seja antiga, ela não me conta tudo que sente. A única coisa que eu posso expressar para você é a minha opinião.
- Diga, por favor - ansiei por esta resposta, quero entender a Laura.
- Imagina como deve ter sido difícil a mudança radical na vida da Laura quando ela saiu de sua vida tranquila na casa dos avós. A Laura não fazia a mínima ideia de como era conviver com a mãe e teve que lidar com aquelas pessoas em cima dela querendo saber mais e mais da filha dos âncoras queridinhos do Brasil. Todos tratavam a Laura como uma pessoa pública. A vida dela se tornou um inferno e uma boa parcela dessa culpa foi da própria mãe. A dona Andreia, infelizmente, não teve discernimento e não protegeu a filha. Laura não teve chance de escolher se queria ou não aquele tipo de fama.
- Mas Sérgio, os pais dela são jornalistas e não celebridades.
- Digamos que a dona Andreia não pensava assim. Ela é uma ótima profissional, mas tem a vaidade da profissão como defeito. Era muito comum ver entrevistas dela por aí, frequentava programas de entretenimento e não fazia muita questão de não falar da vida pessoal. Se você procurar na internet, vai encontrar várias fotos da Laura nova. Na adolescência, os paparazzi perseguiam ela no shopping, em festas. No colégio ela era o centro das atenções, todos puxavam o saco dela e isso a irritava muito. Só mudou um pouco quando ela veio para São Paulo estudar. Acho que tudo isso fez muito mal para a Laura. Quando ela me contou que estava pensando em ser jornalista, chorou.
- Chorou?
- Sim, ela não queria ser jornalista. Mas ela admirava a profissão e seus pais incentivavam. Tomada a decisão difícil, decidiu tentar dissociar a imagem dela dos pais e até conseguiu fazer seu nome brilhar sem eles - Sérgio sorriu orgulhoso da amiga. - Laura tornou-se uma excelente profissional e ao mesmo tempo tentava não aparecer na tv. Ela nunca deu entrevistas ou aceitou participar de programas. Ela manteve a homossexu*l*idade dela em segredo absoluto da imprensa. Poucas pessoas sabiam que ela da sua orientação sexu*l* e que ela era casada com a Camila. Ela tem traumas de perseguições e acredito que essa seja a razão da fuga: desaparecer, começar uma vida nova em um lugar que ninguém a conhecesse.
- Faz sentido. Elas se separaram por que a Camila virou âncora de um jornal?
- Ajudou, mas o conjunto da obra foi o que fez com que a separação chegasse. Laura trabalhava muito! Se acha que ela trabalha muito agora, você tinha que ver antes de Paris. Acho que esse foi o maior motivo mesmo. Foram inúmeras brigas pelo fato da Laura ser ambiciosa profissionalmente. Elas eram incompatíveis.
- Eu tentei pesquisar sobre ela e a Camila na internet e não achei nada. Por quê?
- Elas escolheram manter a vida privada longe da profissional. Entenda uma coisa: a Laura tem horror a vida exposta. A Camila deve pensar da mesma forma que ela já que até hoje não tem declaração da sua sexu*l*idade.
Fiquei observando o Sérgio e dei razão a ele. Laura têm marcas profundas e tudo fica cada dia mais claro. Abracei o Sérgio involuntariamente, precisava de um apoio para seguir em frente. Ele me abraçou de volta e ficou fazendo carinho em meus cabelos.
- Eu vim aqui para ver se a Laura está bem, mas já está tarde e o dia foi difícil para ela, é melhor deixá-la sozinha - ele levantou e eu segui com até a porta. - Avisa para a Laura que eu vou segurar as pontas na redação até que se recupere.
- Aviso sim. Obrigada por tentar esclarecer algumas coisas, pela sua opinião. Ajudou muito.
Nos despedimos e eu subi para o quarto. Entrei e a Laura fuma na varanda com o olhar longe. Decidi tomar um banho e me deitar. Quando já estava quase dormindo, senti meu amor me abraçando por trás. É um sinal de que ela está bem na medida do possível.
Fim do capítulo
That's all for today :).
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Bia08
Em: 28/07/2017
Que coisa . Camila com ciúmes da Laura, por ter parado a sua vida e ela não ,está na hora de dar a volta por cima e se mostrar o mulherão que é,ja que ela terá que encontrar com a Laura (olha eu me empolgando, hahaha) .
Por mais que a Camila tenha razão, não gostaria que ela surtasse perdendo o equilíbrio que sempre teve.
Bjs e adoro essa história
Resposta do autor:
Pois é, também não entendo esse ciúmes sendo que ela diz não gostar mais dela.
Encontro? Calma, deixa a Camila respirar haha.
Talvez seja o momento que ela está passando.
Beijos e obrigada :D.
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veruskasouza
Em: 27/07/2017
Não sou de comentar muito, mas o seu enredo merece. Existem diversos casos como esse no Brasil, eu tenho um amigo, cuja esposa fugiu para os E.U.A levando a sua unica filha. Até hoje ele só fala por telefone com a garota. Isso é muito sério, espero que o desfecho seja o legalmente previsto, justamente para não se incentivar essa prática cruel e desleal, embora presida somente ao contexto da ficção, muitas vezes o seu conteúdo pode ser influenciável. Enfim, acredito que o bom senso em não se incentivar tais atos descabidos seja a melhor escolha. Sinceramente, nada do que a personagem antagonica disser: medo, loucura momentanea, etc, justificaria tal ato e a ajuda do amigo dela, pasmem! Estou aqui abismada, pois o dito cujo deu razão a essa mimada esquisita. Se fosse um amigo verdadeiro como diz, jamais a deixaria entrar numa fria como essa. Uns dias na cadeia seria o mínimo para tal conduta. Espero realmente que a autora consiga fechar com chave de ouro essa trama.
Resposta do autor:
Eu compreendo tudo que você escreveu.
Entendo e concordo que o assunto é sério.
Meu foco é o amor entre a Camila e a Laura. Quando escrevi não queria discutir Direito. Se quisesse debater isso a Camila denunciaria, criei o "impedimento" justamente para não envolver a justiça. Como disse, o amor entre as protagonistas é o objetivo, os erros, o perdão. Errei em não pensar que isso pode influenciar. Não é o que eu quero, coloquei para maiores de 18 anos justamente para que apenas pessoas consideradas conscientes pelo Estado lerem. Enredo de separar filhas não é novo. Existe filme, novela e livro sobre isso.
Sobre o amigo, ele tem uma razão por trás, porém não justifica também. E neste capítulo ele deu a opinião sobre a Laura, não justificou a atitude. Contou sobre a vida dela.
Sinto muito pelo seu amigo, desejo que ele encontre a filha, que as coisas se resolvam logo.
Voltando para a história: a Laura não vai ser presa, nem o Sérgio.
Se você tem mais conselhos para dar, por favor, abra os meus olhos para que eu pare por aqui. Eu posso excluir numa boa. Não quero prejudicar (muito menos influenciar futuras atitudes) ninguém.
Obrigada.
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NovaAqui
Em: 27/07/2017
Camila com ciuminhos. Não seguiu a sua vida por que não quis. Sua sorte é que sua irmã vai ajudar você a acordar
Deixa a Laura conviver com as meninas. Ela tem seus direitos
Você, Camila está mordida de ciúmes. Está metendo os pés pelas mãos e vai acabar perdendo as duas filhas isso sim
Abraços fraternos procê
Resposta do autor:
Se rola ciúmes é porque ainda gosta... né?!
Talvez a Camila ainda esteja assimilando tudo. Ou pensou que as coisas aconteceriam de outra forma.
Abs!
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