CAPÍTULO 2
Uma hora havia se passado desde que o trem partira de Saint–Dié des Vosges; cidade na qual Jeanne tinha sido nascida e criada. E tirando as pequenas viagens pela região de Lorena, ela nunca tinha realmente saído de sua cidade natal. Muito menos sozinha. Era de se esperar que estivesse incrivelmente animada com a viagem e por isso ainda não tinha pegado no sono, mesmo com o balançar aconchegante do trem.
Infelizmente, a expectativa não poderia estar mais longe da realidade. Jeanne estava acordada sim, mas não era por animação. Sua cabeça azul simplesmente não conseguia parar de revirar mágoas antigas em relação à sua mãe.
Ela já tinha tentado de tudo para se distrair: tentou dormir, ouviu música, tirou fotos da paisagem com o celular, deu uma pequena volta pelos vagões, até palavra cruzada ela jogou. Mas nada parecia ajudar a tirar sua atenção da caixinha que pesava em seu bolso.
Sem mais paciência, ela bufou, deitando–se na cadeira, e deixou seu corpo escorregar por ela. Cansada de tanto procrastinar, ela percebeu que só poderia sossegar quando tirasse a caixinha de seu bolso.
Abriu a mesinha para refeições, se preparando psicologicamente para ver o "presente". Ela optou por contar até três consigo mesma em voz baixa para, então, pegar a pequena caixa e coloca–la sob a mesa à sua frente. Feito isso, a garota ficou encarando–a por alguns minutos e, talvez Jeanne estivesse ficando louca na adrenalina que passava por seu corpo naquele momento, mas ela tinha certeza de que a caixinha estava encarando–a de volta.
Havia algo naquele presente que lhe passava uma sensação esquisita.
Após a troca de olhares com a caixinha, Jeanne resolveu que era hora de ver o que realmente importava: o rosário. Evitou ler o escrito dentro da tampa e pegou o rosário azul em mãos. A sensação estranha só pareceu aumentar; agora, que o rosário tocava sua pele, Jeanne podia atestar que ele emanava uma sensação quase física.
Ela contou as bolinhas esperando que houvesse algum detalhe, algum segredo escondido, mas eram somente as mesmas 59 bolinhas de todo terço. A única diferença visível era a pedra que ocupava o lugar da figura de Jesus Cristo. Porém, ela não sabia dizer que pedra era aquela ou que significado ela tinha.
Passou o indicador sobre ela e única coisa que pôde constatar foi que a energia que o rosário emanava parecia ser mais forte naquele ponto especifico. Mas honestamente, ela já não estava mais confiando nas suas percepções.
– Essa merd* deve estar amaldiçoada. – Resmungou consigo mesma, achando muito engraçadinha a provocação à mãe. Imaginava que se Olive ouvisse, ele ia rir.
Mas em seguida espantou esse pensamento de sua mente. A regra era: lidar com só uma relação familiar problemática por vez. Voltou sua atenção ao rosário novamente.
Ela era muito parcial quando se tratava de sua mãe. Então, talvez, saber que o presente era dela já fosse o suficiente para que ela sentisse toda essa estranheza. Ou talvez, coisas relacionadas à sua mãe simplesmente emanassem aquela energia. Jeanne tinha o pressentimento de que se ela tentasse puxar memórias de infância do fundo da sua mente, ela encontraria uma sensação parecida. Só que ela não queria isso. Resgatar memórias era o oposto de uma solução para tudo aquilo.
– Por que você é assim? – Ela perguntou diretamente para o rosário como se ele pudesse respondê–la. Segurando a ponta do fio, deixou que a cruz despencasse de sua mão, observando o rosário estendido, girar de leve. – E por que azul? – Resmungou, passando a mão nos próprios cabelos: – Parece que eu vou ter que mudar de cor.
Jeanne devolveu o rosário a sua caixa e, sentindo–se mais relaxada, decidiu que era contato o suficiente com ele por aquele dia. Largou a caixinha sobre a mesa, ao lado da sua bolsa, e se recostou na poltrona. Agora ela sentia que poderia finamente pegar no sono. Fechou a cortina na janela e, então, seus olhos... Dez minutos depois, Jeanne estava no mundo dos sonhos.
Uma parada brusca do trem jogou o corpo de Jeanne contra a mesa.
– Porr*! – Ela exclamou de forma reativa devido ao impacto.
A garota acordou com seu estomago atingindo a borda da mesa e sua cabeça batendo contra a janela. Definitivamente, não o jeito mais agradável de se acordar.
– O que foi isso...? – Sentou–se de volta na cadeira, passando a mão pelo galo que estava se formando na sua cabeça, e olhou ao seu redor procurando alguma explicação para a brusca freada. Algum funcionário do trem devia estar indo de vagão em vagão para explicar a situação, não?
Aparentemente, não. Foi o que Jeanne constatou assim que se acalmou o suficiente para notar a ausência de sons e pessoas no vagão. Não havia nenhuma explicação pelos autofalantes, nem funcionários passando para dar avisos... Na verdade, nem sequer haviam reclamações e comoção por parte dos passageiros.
Jeanne se ajoelhou no seu assento e olhou ao seu redor, deparando–se com todas as cadeiras vazias. Ela era a única pessoa no vagão. Ela e apenas ela.
Seria possível que ela tivesse dormido tão profundamente ao ponto de perder o ponto de descer do trem? Ele teria ido para a casa de máquinas e por isso a freada tão brusca? Teria acontecido algum acidente, do qual ela perdeu todos os avisos por estar no milésimo sono? E se não fosse nenhuma dessas opções...
Que explicação teria para tudo isso?
Com todas essas perguntas e muitas outras rodando por sua cabeça, Jeanne lentamente se esgueirou para fora de seu assento. Olhou para a saída do vagão atrás de si, mas o outro lado da porta parecia tão vazio quanto o seu. A saída à sua frente também não parecia muito promissora, mas para algum lugar ela tinha que ir; afinal, se ela não tinha como pedir informações para ninguém, se todo mundo parecia ter desaparecido, ela não tinha outra opção senão investigar por aí sozinha.
A garota tirou o guarda–chuva de sua bolsa, segurando–o com força em uma de suas mãos. Na outra mão, ela fez questão de pegar a chave de casa do bolso do casaco e colocá–la entre seus dedos, fechando sua mão em um punho. Ela não sabia bem o que esperar da sua volta pelo trem vazio, mas definitivamente ela não ia de mãos abanando. Tinha algo no ar que lhe dava um mau pressentimento; a parte da óbvia situação bizarra.
– Meu Senhor, Todo–Poderoso, protegei–me. – Murmurou, fazendo o sinal da cruz rapidamente.
Em passos firmes, Jeanne andou rapidamente até o vagão da frente, prestando atenção em qualquer mínimo som que ecoasse no ambiente. Abriu a porta cuidadosamente, na esperança de encontrar alguma coisa... Nem que fosse um cadáver.
Aceitava qualquer coisa que servisse de dica para que ela desvendasse o que raios estava acontecendo ali. Para sua tristeza, o vagão se encontrava tão vazio quanto o anterior. Porém, ela pôde reparar em um estranho detalhe: todas as cortinas estavam fechadas.
Correu até a janela mais próxima e tentou abri–la, mas era como se algo estivesse a travando. Jeanne optou por dar de ombros e acreditar que era só uma cortina emperrada; a próxima com certeza abriria fácil. E então, ela foi até a janela da frente, empurrou a cortina para cima e... Nada. A cortina não se moveu. Ela tentou novamente, botando mais força dessa vez, porém o resultado foi o mesmo.
Jeanne franziu o cenho, irritada. Ela era forte o suficiente para abrir uma cortina. Na verdade, ela diria até que era mais forte do que o normal; dotada de uma força quase "sobre–humana", como diriam seus irmãos, a garota tomou como uma ofensa que ela não conseguia fazer aquela cortina sequer se mover. Se tornara uma questão de honra abrir as malditas cortinas.
Em meio a negação e determinação, ela foi até a próxima janela. E a próxima. E a próxima. E a próxima. Até que ela já tinha verificado todas as janelas do vagão e não tinha conseguido abrir uma só cortina. Parou por um momento, ofegante de tanto fazer força, enquanto encarava incrédula todas aquelas cortinas fechadas.
– Mas que merd* ta acontecendo?! – Ela gritou, com todas as suas forças, descontando sua frustração. – Que tipo de bruxaria é essa?!
Jeanne correu até a próxima porta, dessa vez sem nem se preocupar em fazer barulho, e a abriu rapidamente. O vagão era exatamente igual ao que ela tinha acabado de sair. Vazio e com as cortinas fechadas.
Novamente ela tentou abrir a cortina, afinal, a esperança era a última a morrer. Mas, ao não conseguir abrir a décima cortina, Jeanne chegou a conclusão de que estava apenas se enganando. E que talvez alguém a estivesse enganando também.
– Isso aqui é alguma brincadeira de mau gosto?! É alguma pegadinha ridícula? – Ela começou a gritar para o teto, para as paredes, para qualquer lugar.
Mas não houve nenhuma resposta. Ao invés disso, houve um barulho.
Um barulho que Jeanne não conseguia distinguir muito bem, mas parecia um chiado. Como uma televisão fora do ar.
Infelizmente, foi rápido demais para que ela pudesse perceber sua origem. Um estranho calafrio percorreu por seu corpo e ela prendeu sua respiração, imediatamente, se colocando em posição de alerta caso o barulho ecoasse novamente. Voltou a agir cuidadosamente, dando passos lentos e silenciosos em direção a porta no final do vagão.
E então, uma voz surgiu. Uma voz que, infelizmente, ela conhecia bem demais.
"Jeanne... Jeanne... Não vá...", a voz sussurrou. Dentro da cabeça azul de Jeanne.
Jeanne tinha 13 anos a primeira vez em que esteve em um consultório de psiquiatria. A primeira e principal suspeita era de esquizofrenia. Ela tinha os sintomas, tinha o histórico familiar, tinha uma voz incessante em sua cabeça. Porém, a doença foi logo colocada de lado, uma vez que não costumava se manifestar em crianças.
Cogitou–se, então, que ela teria Transtorno de Identidade Dissociativa; o famoso caso do "Transtorno de Múltiplas Personalidades". E parecia um diagnóstico muito propício para a pobre jovem que carregava vozes em sua cabeça. A origem da doença era proveniente de um trauma de infância e, isso, Jeanne também tinha. Porém, após estudos mais aprofundados, esse transtorno acabou também sendo descartado.
Algumas pessoas, normalmente professores, insistiam que ela tinha apenas uma imaginação muito fértil e que a suposta 'voz', não passava de um amigo imaginário que ela havia criado para reprimir a falta de sua mãe. Jeanne nunca gostou dessa teoria.
A crença que corria entre parte de sua família, no entanto, era de que Jeanne tinha a capacidade de ouvir os anjos falarem e se comunicar com Deus. "Abençoada" era como a chamavam por conta disso. E essa sugestão lhe agradava um pouco mais.
Porém, ela mesma nunca definira exatamente o que ocorria em sua cabeça; embora tivesse medo de se descobrir esquizofrênica, ela decidiu apenas aceitar que, de vez em quando, uma voz ecoava na superfície da sua mente.
A primeira vez em que a voz fez contato, ela não seria capaz de se lembrar. Era nova demais. E por tanto tempo ouviu que não passava da sua imaginação, que ela realmente não conseguiria distinguir quais partes eram reais e quais foram criadas na sua mente infantil. Sua única certeza, que havia adquirido ao longo de sua vida, era de que aquela voz era real.
Uma voz feminina e adulta que eventualmente lhe sussurrava coisas. Na maioria das vezes, ela surgia pouco antes que Jeanne pegasse no sono, mas de vez em quando a voz aparecia em momentos aleatórios do dia. Às vezes, era completamente incompreensível o que ela falava e não passavam de sussurros sem sentido algum, como uma estação de rádio mal conectada. Outras vezes, as frases soavam com mais clareza, embora sempre viesse em partes. Jeanne não se lembrava de uma única vez que a voz tivesse dito algo de forma clara e completa.
Então, tudo que ela tinha eram pedaços de mensagens, palavras aleatórias, que ela tentava encaixar em um estranho quebra–cabeça.
As mensagens eram sempre direcionadas a ela; quase sempre ela começava chamando pelo nome da garota. Se Jeanne fosse resumir as coisas que ouvia, diria que a voz estava empenhada em fazer com que ela fosse para Paris. E que completasse uma suposta missão. Também havia muito Deus envolvido.
'Jeanne, a missão... Não esqueça...', 'Jeanne... Paris é o lugar...', 'Jeanne... Te escolheu...', "Jeanne... A Santa...'.
A voz era um detalhe de sua vida, como outro qualquer, com o qual ela tinha aprendido a conviver. Após diversas consultas com diferentes psiquiatras, tinha se cansado de buscar uma explicação ou tratamento para algo que, na maioria das vezes, não fazia diferença no seu dia–a–dia. E Jeanne decidiu apenas aceitá–la como parte de si.
Ela gostaria de dizer que era apenas muito boa em ignora–la, mas seria uma enorme mentira negar a influência da voz em sua decisão de se mudar para Paris. E agora que ela realmente estava indo para Paris, ela esperava que a voz mudasse de mensagens, oferecesse alguma orientação nova, ou apenas... Desaparecesse.
Alguma mudança tinha que ter.
"Jeanne... Perigo...", sussurrou e Jeanne deu um tapa em sua própria cabeça.
– Não é hora para essa palhaçada. – Ela brigou consigo mesma. – Cala a boca.
A garota cogitou que talvez fosse prudente ouvir a voz quando a única palavra que ela conseguia distinguir era "Perigo". Porém, dar ouvidos à voz misteriosa em sua cabeça também não era exatamente uma boa ideia.
Com hesitação, continuou andando vagarosamente até a porta. A voz continuou a sussurrar mensagens incompreensíveis e, no meio do caminho, o chiado que vinha do outro vagão ecoou mais uma vez, misturando–se com o barulho mental.
– Para um trem vazio, está a maior barulheira aqui. Caralh*, viu. – Jeanne resmungou; e em seguida o chiado parou de novo. A voz por sua vez parecia falar em um tom mais alto e mais claro conforme ela se aproximava da porta. Ainda assim, as frases vinham entrecortadas e sem sentido.
Ela finalmente chegou até a porta e parou diante dela. Segurou com mais força o guarda–chuva em sua mão, como se ele fosse escapar a qualquer movimento brusco, e o colocou sobre seu ombro, preparada para empunhá–lo como uma espada. Respirou fundo, contando mentalmente até três, enquanto levava sua mão até a maçaneta. Ao chegar no número três, ela virou a maçaneta e empurrou a porta para frente, abrindo–a.
Do outro lado da porta, Jeanne pôde ver apenas metade do vagão. Até o meio dele, estava como todos os anteriores: vazio, de cortinas fechadas. Porém, a outra metade do vagão estava em plena escuridão. Uma escuridão tão densa que ela não conseguia enxergar direito as cadeiras e as janelas; uma escuridão muito maior do que seria capaz obter somente com as luzes apagadas.
Outro arrepio percorreu a corpo de Jeanne.
Era algo tenebroso. Só não mais tenebroso do que o acontecimento seguinte.
Vinda do lado obscuro do vagão, uma sombra começou a rastejar em sua direção. Constituída da espessa escuridão adiante, a sombra parecia ter um formato humanoide; com longos braços que utilizava para se arrastar pelo chão. O chiado preencheu o vagão conforme aquela bizarra criatura se deslocava, acompanhado de um som agonizante; como se algum ser estivesse sendo torturado.
Os olhos de Jeanne se arregalaram diante daquela visão. De repente, o guarda–chuva não lhe parecia útil; até porque sentia seu corpo paralisado diante daquela aberração rastejante. Ela só conseguiu tomar uma atitude, quando a voz em sua cabeça gritou em alto e bom tom:
"Jeanne, corra! Volte para o seu vagão! Volte já!"
E Jeanne obedeceu.
Fechou a porta atrás de si e correu o mais rápido que suas curtas pernas lhe permitiam. Correu sabendo que sua vida provavelmente dependia disso.
Ela voltou por todos os vagões, sem nem parar para fechar as portas. O silêncio havia retornado, tanto pela parte da voz quanto pela criatura que ela tinha encontrado; o único som que ela podia ouvir agora era o da sua própria respiração ofegante e seus passos desesperados. Mas ela não tinha certeza se isso era algo bom; honestamente ela preferia quando tinha uma noção da distância que a sombra estava dela.
Quando finalmente chegou ao vagão do qual ela tinha saído, pôde ver que ele continuava o mesmo desde que ela tinha acordado. Exceto por um detalhe. Uma fraca luz branca se destacava em um dos assentos. Jeanne decidiu ir até a luz; afinal, se ela estava fugindo de sombras, parecia o lugar mais lógico a se seguir.
Correu até o assento e, então... Percebeu que era o seu próprio assento que estava emitindo a luminescência. Todos os seus pertences ainda estavam jogados e espalhados pelo chão, incluindo a fonte de luz.
Debaixo da cadeira, lançado por culpa da brusca freada do trem, estava a pequena caixa do rosário entreaberta. A garota se ajoelhou no chão, pegando o rosário, e pôde comprovar que era ele mesmo a fonte de luz. Mais especificamente, a pedra incrustada nele é que estava brilhando.
"Jeanne, essa é a sua proteção. Utilize–a com sabedoria.", a voz voltou, clara como nunca antes. Infelizmente, a dica não podia ser considerada "clara". O que ela tinha para fazer com aquele rosário? Como aquilo podia ser qualquer tipo de proteção?
– Me dá uma explicação! – Ela berrou, sem saber exatamente com quem estava falando; se era com a voz, ou o rosário, ou Deus. Qualquer resposta seria bem–vinda naquele momento de desespero.
Ela segurou o rosário com as duas mãos e, sem saber o que deveria fazer, arriscou o óbvio. Era um rosário. Ele já tinha uma função estabelecida.
Jeanne fechou seus olhos com força e começou a rezar, fervorosamente.
Em meio a oração, ainda com seus olhos fechados, uma visão se formou por trás de suas pálpebras. Ela poderia dizer que era uma mulher, mas essa simples descrição não parecia captar a verdadeira essência daquele ser. Era uma forma feminina, que emanava luminosidade própria em meio a plena escuridão. Não era possível ver seu rosto ou detalhes físicos; até mesmo porque aquela visão desapareceu dentro de alguns segundos.
Ela durou apenas segundos o suficiente para que a figura pudesse lhe dizer:
"Jeanne, está tudo bem. Você chegou ao seu destino."
Jeanne abriu os olhos em um susto, quando sentiu uma mão segurar seu ombro. Diante dela estava um jovem, vestindo um uniforme com o logo da companhia de trens, que lhe encarava com certa preocupação. E ao mesmo tempo que Jeanne estava agradecendo aos Céus por não ser uma criatura maligna, ela estava mais uma vez completamente perdida e sem noção de nada.
Sem entender o que acontecia, ela passou algum tempo apenas encarando o moço, boquiaberta. Então, com súbita urgência, se levantou da cadeira para olhar ao seu redor.
O vagão não estava vazio dessa vez. Haviam passageiros e funcionários e conversas ecoando por todo o trem; as pessoas agora estavam de pé se movimentando pelo vagão. Uma grande comoção para o local que antes estava abandonado.
E aquilo parecia totalmente inacreditável.
Ela se sentou novamente, sentindo seu coração bater disparado e a sua respiração ainda ofegante. Encarou a caixinha sobre a mesa; ela estava do jeito que ela tinha deixado antes de dormir. Ela não conseguia processar tudo que estava acontecendo, mas soava absurdo que tudo não tivesse passado de um sonho louco e intensamente real.
Esfregou o rosto e seus olhos, antes de voltar a sua atenção ao moço parado ao lado de seu assento.
– Eu posso ajudar em alguma coisa? – Ela perguntou, tentando fingir que não estava completamente desnorteada e assustada. Sua atuação foi convincente o suficiente, pois o moço riu em seguida.
– Eu é que te pergunto isso. – Ele respondeu, com um sorriso amigável. – Você está bem? Precisa de alguma coisa? Uma senhora da outra fileira disse que você parecia estar passando mal.
– Ah... Foi só um pesadelo. – Jeanne murmurou, contra sua vontade. Parecia tão errado dizer essas palavras. Era diminuir aquela experiência de quase morte que ela tinha tido, mas não havia nada mais que ela pudesse dizer sem parecer louca. – Eu to bem, sim. Não se preocupa, moço, obrigada. – Respondeu, tentando fazer com que ele fosse embora. Porém, ele continuou parado lhe encarando. – Mais alguma coisa?
– Nós já chegamos em Paris. – Disse, apontando para uma das janelas que estava aberta; Jeanne podia ver a plataforma e as pessoas desembarcando. Mas o que mais chamou sua atenção foi a janela aberta. Um alívio tomou conta dela. – Não precisa se apressar, estou só te avisando caso você não tenha visto, – Ele explicou, parecendo um tanto amedrontado, e Jeanne se perguntou se ela estava com uma cara tão ruim assim para intimidar o pobre garoto. Sentindo–se mais leve, Jeanne decidiu corrigir sua atitude; abriu um sorriso e respondeu:
– Muito obrigada, viu? Eu nem tinha reparado, sou meio desligada. – Enquanto falava, pegou a caixinha e enfiou em sua bolsa, verificando se tinha juntado todas as suas coisas. – Acho melhor eu ir logo mesmo, que ainda tenho muitas malas para pegar. Obrigada... – Ela se levantou e aproveitou para olhar o nome dele no crachá. – Louis!
– De nada. – Louis respondeu com um sorriso, parecendo mais calmo, e deu espaço para que Jeanne passasse. – Boa viagem. – Acenou para ela e ela retribuiu enquanto ia em direção a saída do trem, passando por todos aqueles vagões novamente.
Ao chegar no último vagão, Jeanne olhou para trás, esperando algum tipo de sinal divino. Porém, nada aconteceu e só lhe restou sair porta afora.
Quando pisou para fora do trem, um pensamento totalmente diferente tomou conta de sua cabeça: ela estava em Paris. Finalmente, havia chegado na cidade em que sempre sonhou morar.
Depois de muito trabalho para juntar dinheiro, depois de ter conseguido ser aprovada na faculdade que queria, depois de enfrentar a dificuldade que era se separar de sua família, ela finalmente estava em Paris. Um sorriso enorme se abriu no rosto da garota enquanto exclamava, em pura animação:
– Olá, Paris!
Pegou o celular de sua bolsa e fez questão de tirar uma foto amadora do trem; a câmera do celular não era muito boa, nem o momento com tanta gente passando ali na frente, mas honestamente ela só queria ter aquela memória concretizada.
Jeanne amava fotografia e, mais ainda, fotografar. Na verdade, ser fotógrafa era o grande sonho final; moda era só um caminho, uma área que ela gostava e poderia se especializar. Mas fotografia era o que fazia o coração de Jeanne pular de alegria. Não importava se era de paisagem, de pessoas, de objetos; fotografia era sempre uma arte que ela apreciava com grande amor.
Ela já tinha feito até alguns cursos e tinha mania de brincar de fotógrafa com a câmera de ser irmão Marc por aí. Infelizmente, ela não tinha sua própria e, como não pôde roubar permanentemente a câmera do irmão, teria que se contentar com a má qualidade de seu celular.
Passada a animação inicial, a garota guardou o celular na bolsa com carinho e seguiu seu caminho, em busca de suas malas. Até que os acontecimentos do trem cruzaram por sua cabeça mais uma vez... Jeanne não sabia o que fazer a respeito, ou sequer sabia se tinha algo para ser feito.
Ainda teria que pensar muito naquilo tudo até chegar a qualquer conclusão, a não ser que a voz resolvesse dar as caras novamente com mais dicas; seria a primeira vez que a ela apreciaria aquele eco na sua cabeça. Enquanto nada disso acontecia, a única certeza que ela tinha era de que não tinha sido um sonho.
Ou melhor, até poderia ter sido um sonho, mas definitivamente não era um sonho normal. Ela não aceitava que fosse um mero sonho. Confiava demais na sua intuição que agora estava gritando que tinha algo muito estranho ali. E ela estava determinada a descobrir o que era.
Fim do capítulo
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