Quando ainda acreditávamos na desconstrução: uma história contra a monogamia, a posse e o amor romântico por izagama
Capítulo 3
Mariana,
Hoje mesmo estive me lembrando do quanto gostávamos de nos drogar, aos finais de semana. Você, em especial, adorava umas loucuras meio diferentes. Vez ou outra, você aparecia em casa empunhando uns saquinhos de maconha e alguns outros de cocaína, das mais pesadas. Você, porém, gostava mais de LSD porque pensava que ela lhe permitia ter experiências muito mais potentes por longo tempo, então poderia prolongar suas loucuras.
Nunca te contei, mas confesso que comecei a cheirar por sua causa. Não tinha disposição para mobilizar forças e passar horas do meu dia tomando aqueles tragos muitas das vezes tão inúteis e decadentes. Acho que eu era muito careta para isso. Estou me recordando deste episódio porque este tópico, o das drogas, era um importante traço da sua personalidade. Eu era uma garotinha tão inexperiente e iludida que, quando te conheci, pensava que você era uma pessoa sensível e imaculada a tal ponto, que foi um choque tremendo quando descobri que você matava suas horas vagas mandando ver e se empanturrando de whiskey e cocaína. Tudo bem, éramos jovens de vinte e poucos anos e isso era algo bem comum entre o nosso meio universitário. Mesmo assim, foi terrível adentrar os seus segredos e mais chocante ainda, por conta de outras coisas que contarei depois.
Estarei eu sendo conservadora agora, depois de também ter caído nas graças das substancias ilícitas por umas boas décadas? Não sei, a verdade é que o tempo deixa-nos bastante cansados de algumas besteiras. E não falo isso porque se trata de drogas – não estamos tratando de uma questão moral. É que agora estou velha e não há mais tanta coisa pela qual esperar daqui para frente. Parece que não há mais novidades possíveis, como naquela época, as drogas em si, já não eram. É triste quando nos damos conta de que não há novidades.
De toda forma, contar-lhe-ei um caso em especial com mais detalhes. Trata-se de algo que me intrigou naquela época em que eu começava a lhe descobrir. Foi uma das primeiras imagens que fui construindo sobre você.
Era sábado à tarde e não me lembro mais ao certo porque haviam me convidado para ir até sua casa. Ainda não nos conhecíamos muito bem, e tínhamos certas noções viciadas de ambas as partes. Seria inadequado se eu confessasse que dei pulos saltitantes quando pensei em te ver depois de tanto tempo?
Pois fui lá querendo te enfrentar, de alguma forma. Você me inspirava a testar todos os limites. Eu amava isso que você fazia. Era algo tão seu, só seu. Fico embasbacada ao remoer cá comigo as pontinhas que conhecia então da sua personalidade, ou dos seus personagens. Não gostaria de entrar nisso – é como se eu estivesse tirando algo de mim mesma e que era daquele tempo– mas vamos lá.
Demorou um tempo até que eu compreendesse que você tinha mais personagens na manga do que o Gabriel García Marquez, de Cem anos de solidão. Notei isso, bem como que você não tinha muito domínio sobre seus sentimentos. Você apenas estava nos momentos, nos espaços. E uma vez lá, você se entregava de corpo e alma, totalmente. Era por isso que tinha tanta presença. A sua postura beirava a altivez debochada, e logo calculei que você devia ser uma anarquista e essa coisa toda: defensora do amor-livre e da liberdade individual, sem deixar de se preocupar com questões sociais. A sua presença era incômoda porque, aos meus olhos, parecia que você não tinha controle sobre si. E eu odiava essa meia-entrega aos outros, ao passo que, quando descobri que você não ligava muito para as pessoas ao seu redor, ou para os sentimentos delas, fiquei bastante intrigada. Isso porque aquele quadro beatífico que eu tinha de você, cuja pintura representava alguém firme, de caráter irreprochável e humanista, despencou dos meus pensamentos dias após passarmos mais tempo juntas.
Havia outro detalhe pelo qual eu ficava embasbacada: você possuía uma força sexual tão selvagem que ela parecia ser a parte mais natural que você tinha, e era ao mesmo tempo um detalhe muito particular da sua vida. Porque ela tinha um gosto de liberdade que parecia bem consolidada na superfície, mas que era ignóbil e desinteressada para com seus objetos de prazer, mais ao fundo. Era impressionante sua desenvoltura. Sua presença era ultrajante. Primeiramente porque parecia até que existia só para você. Só depois é que vim a perceber que este era apenas um dos seus personagens.
À medida que fui me aproximando da sua intimidade, fiquei surpresa ao saber que você era de uma sensibilidade violenta, que machucava quem se aproximasse, mesmo não querendo. Acho que você fazia um grande sacrifício para ficar viva. Você não gostava de sofrer, ao passo que eu nunca pude terminar qualquer diálogo entre nós sem dimensionar em zoom os meus sofrimentos.
Não sei se a esta altura da vida possamos continuar mantendo modelos explicativos maniqueístas para dar cabo dos relacionamentos humanos. A bem da verdade, acho que as coisas são mais complicadas que isso. No entanto, remoendo com gosto de fel na boca nosso passado, arrisco-me a pensar que há graus diferentes de responsabilidade que as pessoas assumem. E no que diz respeito a nós, penso que, por vezes, você se mostrava uma criança enfezada que se cansava fácil e já não queria mais perder tempo.
Quando coloquei meus olhos em você, dançando despudorada naquela noite, me convidei a fazer todo o possível dali em diante para integrar-me à sua vida. Aos poucos fui percebendo que você tinha muitos medos, e o principal deles era não poder interpretar mais nenhum personagem interessante. Se tirássemos esses amontoados bem-feitos de sex*, bebidas, teatro e poder, poderia sobrar o quê, me diga? Acho que você tinha um medo lancinante de ter de se agüentar sozinha. Dentro de você, você estava sozinha, tão sozinha, e não havia nenhum adereço para adornar e construir traços marcantes. Era por isso que você precisava tanto dos outros.
Compreendia que eu não possuía proteções contra você. Estando consciente disso, acho que pude tentar entender verdadeiramente, quase sem escolha, o porquê você dizia não conseguir amar. Você sabe que guardo um deslumbramento em relação às pessoas que me inspiram empatia. Tenho verdadeira vontade de decifrar tudo o que elas trazem em si. Minha psicanalista costumava dizer que eu era fascinada pelas pessoas. Hoje acho que era muito tola por querer compreender. Ao passo que em se tratando de você, me sentia obrigada a conhecer e a explicar todas as partes da sua vida em troca de alguns abraços de cumplicidade. Queria fazer isso em segredo – tanto é que só agora lhe faço essas revelações – mesmo podendo cair nas armadilhas de invadir a paz alheia e compor análises positivistas e frias que transformam as pessoas em patologias medonhas.
Hoje sei que, você estava certa, eu não podia compreender as pessoas porque não tinha experimentado ainda o tanto de coisas que elas já tinham virado especialistas. Eu era muito nova, meu bem. Desculpe-me. De modo que assumi a distância entre nós e me resignei com o fato de ter de engolir minhas análises. Por fim, aceitei que você tinha muitos pontos de vantagem em relação a mim, e que era impossível competir. Essas coisas precisam de tempo. O que me atraiu foram apenas aquelas personagens extravagantes, mesmo. Foi neles que me concentrei, sabendo que eram apenas uma parte da realidade. Daí pude perceber que você tinha que escravizar as pessoas, e se elas não correspondessem às suas expectativas, logo você abandonava-as como se faz com um brinquedo chato. Você precisava de cada olhar delas para ficar bem; esta necessidade beirava o vampirismo tacanho, como pude notar mais tarde. Você queria submetê-las até que o seu direito sobre elas, arrasasse-as ao limiar da liberdade que vinha delas próprias, minando-a de dentro para fora. A ponto de não sobrar mais nada. Era quase um crime, isso que você fazia. Demorou para que eu entendesse que a sua principal inspiração era o sadismo dos tempos da Revolução Francesa.
Eva
Fim do capítulo
Uso de drogas ilícitas e lícitas;
Cenas de sexo
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