Capítulo 6
"Distraio as noites pra não ver
Meus sonhos no chão
A lua em mim... na escuridão
Me acendo em você...preso a você...
por mim"
(Milton Guedes)
Os dias se passaram mais cinzas que o normal e durante aquele ano, enquanto mantinha uma relação constante com a Denise , achei que seria melhor começar a entender o que acontecia comigo, de fato. A internet estava começando a ficar mais popular e meu irmão comprou nosso primeiro computador. A internet era discada e não dava pra usar por muito tempo porque era caro e a conexão caía o tempo todo. Então, nos finais de semana, quando todos iam dormir, ligava o computador e procurava respostas para minhas dúvidas. Queria saber se era normal ou se era uma doença, se tinha mais gente no mundo assim, quais eram os sintomas ou se ainda tinha chance de tudo não passar de uma fase (uma longa fase). O que descobri acabou com as minhas expectativas. Não era uma doença, o que de certa forma me trouxe alívio, mas também não era muito bem aceito entre as pessoas. É lógico que eu sabia que existiam outras pessoas assim, mas eu só sabia das mais "estranhas", aquelas que todos apontavam na rua. Pesquisei, estudei, questionei e o que eu descobri foi o seguinte: Além de não ser uma doença, não era causado pela influência de "más" companhias. Li o artigo de uma psicóloga que dizia que esse negócio de influência não existia. O que existe é uma vontade que a gente deixa escondida lá no fundo e quando você encontra alguém que tem a coragem que você não tem, a gente aproveita para externar essa vontade. E isso vale pra qualquer coisa. Ou seja, quando fui "iniciada" pela Bia foi assustador, mas foi assustador, principalmente, por me mostrar aquilo que eu vinha ignorando durante minha vida.
Comecei a lembrar de como tinha sido minhas experiências durante a infância, dos meus sentimentos confusos por determinadas garotas da escola, dos meus escritos nos diários sobre a "sensação de já conhecer fulana de outra vida" e de uma "vontade irresistível de ficar por perto". De frequentar as aulas da academia do parque "porque a professora tinha um sorriso que me fazia bem". Foram várias as situações em que mulheres eram extremamente importantes no meu dia a dia. Hoje, e naquele momento em que repensava meus desejos, sei que o que sentia era um certo tipo de paixão, uma conexão imediata com o desconhecido. Eu não tinha mais que 10 anos quando passei por situações semelhantes. Não era sexual, não era um desejo carnal, eram paixões ingênuas. Lembro da Michelle quando tinha 10 anos. Estava na quarta série e ela já estava na sexta. Eu não pensava nem em beijá-la, mas tenho certeza que corava toda vez que me cumprimentava e sentia sua pele no meu rosto. Então, escrevi no meu diário: "A única explicação é que seja uma lembrança de outra vida."
Ao 15 anos, percebi que esse sentimento significava algo mais. As pesquisas diziam que a homossexualidade tinha saído da lista doenças e comprovada como variante da sexualidade humana, existindo desde que o mundo é mundo. Descobri também que entre os animais era super normal e que, então, era natural, minha condição vinha da natureza.
Precisei começar a juntar coragem para contar para os meus pais. Já estava há 6 meses com a Denise, meu namoro com o Bê já não fazia sentido e eu me sentia cada vez mais sufocada.
Primeiro, precisava terminar com o Bê. Já estávamos no final de agosto quando ele chegou em casa e, ao invés de chamá-lo pra entrar, sentei com ele na mureta em frente a casa. Precisava de privacidade. Não foi fácil dizer a ele que não sentia o mesmo que ele sentia por mim, ou melhor, o que uma menina deveria sentir por um menino.
- Você é uma das pessoas mais importantes na minha vida hoje, mas não como namorado. Eu me apaixonei por outra pessoa e não é certo continuar me enganando nem enganando você. - ele me olhava sem entender e eu continuei - Não estou terminando para ficar com outra pessoa. Por quem me apaixonei, sei que é platônico, nunca terei nenhuma chance, mas essa paixão significa muito mais - eu ainda sentia esse amor não correspondido pela Bruna - significa que eu gosto... - minha garganta estava seca - na verdade... eu gosto de mulher.
Ele ficou em silêncio por um bom tempo. Percebi que mordia o maxilar e apertava uma mão contra a outra. Com o coração apertado, queria abraçá-lo e dizer que era tudo mentira, que queria ficar com ele pra sempre, só pra não vê-lo sofrer, mas ao mesmo tempo sentia que tirava um peso enorme das minhas costas.
- Tudo bem - ele disse ainda olhando para o chão - Fico feliz que você esteja sendo sincera comigo, mas quem é essa pessoa pra quem eu te perdi? - ele levantou os olhos cheios de lágrima.
- Não fale assim, Bê! Você não me perdeu pra ninguém. Não deu certo com a gente e eu não estou indo para os braços de ninguém. E não acho necessário você saber quem é.
- Então eu conheço? - agora os olhos dele estavam assustados.
Tentei despistá-lo, mas vi que seria inútil.
- Conhece! Você quer saber quem é? - hesite - É a Bruna, amiga da Bia.
Ele voltou a ficar em silêncio por alguns minutos. De repente, ergueu os olhos com um sorriso triste e disse:
- Pelo menos ela é bonita!
Nós rimos e meus olhos se encheram de lágrima. Ele me abraçou forte e ficamos ali por alguns instantes, nos despedindo. Depois me disse que precisaria de um tempo para digerir, mas logo estaria de volta se eu ainda quisesse um amigo. "É claro que eu queria um amigo", pensei. Abracei-o de novo.
- Não imagino o que esteja passando - ele disse antes de ir embora.
Fiquei olhando-o ir embora em sua bicicleta verde. Voltei para casa e não comentei nada com meus pais. Não queria que eles me fizessem muitas perguntas, mas sabia que logo iriam notar a falta dele em casa.
Fim do capítulo
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