Ponto de vista de Anne.
Capítulo 3
--Acordei meio desorientada no sofá de Ash, já era noite, a TV estava desligada e nem sinal da morena. Algumas horas antes não imaginava que meu dia fosse terminar assim, na casa dela, com o coração leve e um pouco mais encantada por essa mulher que me faz bem e me deixa desorientada na mesma proporção.Ashley aparecer no meu café aquele dia foi uma jogada de mestre do destino, ao criar coragem para ir até a fazenda onde minha irmã fazia o ensaio eu jamais imaginei que iria encontrar uma mulher tão interessante, acabei prestando mais atenção na figura exuberante que no ensaio propriamente, os movimentos o sorriso fácil. Acho que essa facilidade de envolver a todos que a cercam foi exatamente o que deixou Kelly irritada.
Mais tranquila agora, eu agradeço por Ash ter me trazido pra cá, nessas ocasiões acabo sofrendo calada pra não deixar meus avós mais magoados e tristes com a atitude principalmente da sua filha. Apesar de tanto tempo ter se passado e eu ter uma vida maravilhosa, é inevitável não sentir falta da cumplicidade que tínhamos minha irmã e eu, mas outra vez ela acabou mostrando que aquela menina doce e meiga já não existia e eu precisava seguir em frente, pois a gente não consegue tudo o que quer da vida e eu teria que aprender a respeitar as escolhas da minha família.
Na verdade essa família nunca foi perfeita, talvez sim aos olhos da comunidade. O advogado, Marcílio do Prado Couto, com carreira cada vez em maior ascensão num escritório especializado em acessória jurídica para políticos e Maria Alice, sua esposa perfeita e muito boa organizadora de recepções e eventos, quase nunca tinham tempo de participar da vida das filhas. Não tínhamos muito contato também como nossa família materna, pois minha mãe nunca quis a aproximação com a parte pobre da família. Na medida em que o meu pai crescia profissionalmente ela se distanciava um pouco mais de suas origens.
O contato com meus avós iniciou quando já estava com 13 anos, nessa época sempre encontrava um jeito de aproveitar os intervalos entre as aulas de inglês, natação e piano para dar uma escapadinha e visitar o café. Quem nos aproximou foi Júlia, filha de uma das atendentes do café, uma linda mulata que conheci aos 12 anos quando conseguiu uma bolsa na escola onde eu estudava. Nossa amizade foi quase instantânea, por compartilharmos os mesmos gostos, ideias e pensamentos. Júlia, ao contrário das outras garotas da nossa turma era uma menina muito inteligente, madura, além de ter um corpo escultural, uma mistura que atraiu a ira das menininhas fúteis e imaturas e a cobiça dos garotos, tanto da nossa classe quanto os mais velhos. Acabou sendo isolada por elas que tentavam humilhá-la pelo fato de ser negra e pobre e assediada por eles que queriam a proeza de pegar a gostosa da sexta série.
Logo nos primeiros dias do novo ano escolar percebi as dificuldades pelas quais a menina passaria naquela turma, o professor de geografia solicitou a divisão de duplas para um trabalho de pesquisa de campo que valeria metade da nota da unidade e percebi que ela não seria convidada para se juntar a nenhuma das meninas, como estava cansada das futilidades de sempre, me ofereci para formar dupla com ela que não ficou muito contente no momento, mas acabou aceitando para não contrariar o professor. Depois desse dia, nos tornamos muito próximas, tanto dentro como fora da escola, sentávamos ao lado uma da outra, fazíamos as atividades, trabalhos, passávamos os intervalos juntas e ainda dávamos um jeito de nos encontrar fora da escola quando eu conseguia escapar da vigilância da minha mãe. Percebi que Júlia não precisava de alguém que a defendesse, praticante de capoeira e com uma língua bem afiada, ela logo mostrou que não estava ali pra objeto sexual e nem saco de pancadas de ninguém, acabou conquistando minha admiração pelo seu caráter, determinação e força de vontade.
Jú ficava no café durante a tarde. Meus avós ajudavam com uniformes e livros e ainda disponibilizavam o computador para que ela realizasse os trabalhos, além de cuidar da garota, enquanto a funcionária estava na escola, então ela acabava sempre no escritório estudando ou realizando alguma atividade, acho que eles a tomaram como neta e ela se esforçava muito para retribuir esse cuidado, sendo um grande motivo de orgulho para eles.Júlia sempre me falava com muito orgulho de sua mãe Maria da Glória, que havia terminado o curso de Serviço Social e estava estudando para concurso público. As duas eram a única família uma da outra, desde que Maria se descobriu grávida aos dezesseis anos e foi expulsa de casa pelos pais, depois de se negar a abortar a criança. Seu namorado, que ela descobriu ser um homem casado que só queria "tirar a inocência" da linda negra de olhos jabuticaba, sumiu no mundo depois de insinuar que o filho não era dele. Falava também da sorte que sua mãe teve em encontrar pessoas boas, que a acolheram deram oportunidade de trabalho, ajudaram a conseguir um teto e incentivaram a estudar e se profissionalizar.
No dia em que descobri quem eram os benfeitores de Maria e Júlia, num almoço onde estávamos comemorando seus 14 anos, senti um misto de orgulho e tristeza, orgulho pelos meus avós serem seres humanos tão puros de coração e amorosos e tristeza em ver o quanto perdi tempo longe deles por culpa de meus pais. A essa altura meus pais sabiam de mim e Ju, não fazendo questão de mostrar total desgosto em relação a essa amizade imprópria para os meus padrões sociais. O único motivo pelo qual eles não transformaram a vida dela e consequente a minha num inferno era minha suposta dificuldade em matemática, que fazia com que me aproveitasse da inteligência da minha colega bolsista e gênio. Não gostava nada de ter que mentir para eles sobre o quanto estava feliz pela oportunidade de conviver com uma garota tão maravilhosa.
Aos 15 anos percebi que já não era mais amizade o que eu sentia pela Jú. Eu a queria apenas pra mim, sentia ciúmes dos garotos, podia perder horas do meu dia apenas olhando pra ela, admirando seu sorriso, escutando sua voz, seu abraço era o meu lugar preferido, fantasiava um mundo onde só existissem meus avós, Maria, Kelly e nós, onde eu teria coragem de pedi-la em namoro, casamento... Porém meu castelo de ilusões ruiu duas semanas antes do baile de encerramento das atividades anuais, quando vi Julia beijando Pedro, o filho do diretor, um garoto dois anos mais velho que a gente. Senti como se meu coração tivesse sido esmagado, se não bastasse isso, ouvi durante todo o tempo da aula sobre o beijo roubado que a deixou encantada e o convite para participar do nosso baile de despedida. Não consegui controlar minha decepção, por isso resolvi fugir dela durante o tempo que restava para as férias.
Decidi não ir ao baile. Enquanto minha turma se divertia na festa eu me embebedava com vinho que roubei da adega dos meus pais, como eles nunca estavam presentes, não faria diferença uma garrafa a menos. Tarde da noite, não resisti à vontade de ver Júlia e fui até o ginásio da escola. Logo que cheguei segui uma agitação perto do poliesportivo e descobri pelos bochichos da galera no entorno, que o encontro entre Pedro e Júlia era apenas uma armação, ele havia apostado com os amigos que iria conquistar a garota mais cobiçada da escola antes de terminar o Ensino Médio.
A raiva e o vinho me encheram de coragem pra invadir aquele espaço, quando lembrei o quanto ela tentou se proteger desse tipo de coisa e o único garoto em quem ela confiou montou uma armadilha tão sórdida, o que eu vi me deixou com um misto de dor e revolta, Pedro estava se aproveitando da minha amiga levemente embriagada. Fiquei tão cega que não raciocinei direito e acabei atingido o garoto com a garrafa que estava em minha mão. Ele foi parar no hospital bastante machucado, a polícia não foi chamada para conter a confusão pela influência de meu pai, mas eu não fui poupada de ficar retida na escola e ter que explicar o motivo da agressão.Apesar me meter nessa confusão, pra defender a menina que eu amava e protegê-la de ser exposta por um mauricinho sem limites, Júlia foi a primeira a me censurar, por gostar do garoto e por medo de perder sua bolsa. Inacreditável ela ainda se preocupar com Pedro depois do que ele tentou fazer contra ela.
Nessa noite perdi meu primeiro amor, Júlia nem sequer me deu oportunidade de conversar deu as costas e foi embora. Ao chegar em casa, meu pai furioso me deu a surra que jamais pensei tomar na minha vida, além de me expulsar de casa, apenas com a roupa do corpo. Por sorte eu estava com algum dinheiro no bolso e acabei indo para o único lugar que parecia seguro para mim. Meus avós, apesar de pessoas calmas, quando me viram ficaram tão furiosos, que chegaram a cogitar uma denúncia para acabar com a reputação dos "do Prado", mas a essa altura eu já sabia do que meu pai era capaz e tudo o que não queria era seu Augusto e dona Marcela sendo perseguidos pelos políticos da região, seria prejudicial para o café, já bastava terem me acolhido.
No dia seguinte fomos até a casa dos "do Prado" para buscar roupas e objetos pessoais que Marcílio liberou prontamente sob a ameaça de ter expostos para a imprensa os acontecimentos da noite anterior. Não me deixaram me despedir de Kelly. Desse dia em diante, passei a viver com meus avós e ajudá-los com o café. A essa altura Maria já havia passado num concurso em outra cidade e Júlia apressou sua mudança junto à mãe, nem sequer uma palavra de despedida, esperou que eu estivesse na escola para ir ao café se despedir dos meus avós.
Voltei das minhas recordações com a morena me observando da porta de entrada.
-- Acordada há muito tempo? Você tava em um sono tão tranquilo que imaginei te encontrar ainda dormindo quando voltasse - comentou colocando as sacolas na bancada.
--Pensando nas voltas que a vida dá.
-- Vai lá, toma um banho enquanto eu arrumo tudo aqui pra gente jantar.
Tomei um banho rápido e me juntei à morena que estava saindo do estúdio, também de banho tomado. Linda naquele pijama estampado com polaroides, as belas e longas pernas à mostra. Uma figura bem moleca, para qualquer outra pessoa talvez, pra mim totalmente sexy e encantadora como apenas ela consegue, sem nenhum esforço.A morena realmente estava disposta a me fazer sentir bem, pois lasanha acompanhada de um bom vinho é uma das minhas combinações favoritas.
Jantamos entre causos de nossa infância e adolescência, Ash me contou sobre sai mãe e avis, amigos, a cumplicidade com Hanna, a empresa e seu sonho de publicar um guia de viagens para mochileiros. Ashley sabia sobre a mim e Kelly, então contei a ela sobre minha expulsão de casa e o motivo, os anos de convivência com meus avós. Falei da minha família materna, a qual conheci apenas depois dos quinze anos de idade, das idas ao interior que eles proporcionaram para que eu aprendesse um conceito de família diferente do qual estava acostumada até então.
Durante os quatro meses de convivência, esse foi o primeiro momento que Ashley permitiu que conhecêssemos uma a outra de verdade. Ela me conquistou desde o primeiro olhar, saímos juntas muitas vezes, mas havia de sua parte um limite até onde eu deveria chegar. E ali enquanto ela gargalhava com uma das minhas traquinagens tardias no pé de acerola, eu decidi que não iria cultivar novamente uma paixão platônica por medo de perder uma amizade.
-- Você não tinha juízo, como foi dar pimenta vermelha ao garoto dizendo que era filhote de acerola?Pelo visto você foi uma peste! Não conheço teus avós, mas eles devem ser uns anjos, lidar com criança sapeca é difícil, adolescente então é quase impossível.
--Não conhece ainda, mas posso te apresentar se você quiser, como minha namorada. - seu sorriso cessou ao escutar o comentário.
-- Anne... Selei nossos lábios antes que continuasse, no inicio ela não correspondeu, mas depois deu espaço para que eu explorasse sua boca no melhor beijo que já provei, me sentia flutuando, até ser puxada de volta à realidade quando ela nos separou de repente e entrou no quarto batendo a porta.
Fim do capítulo
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Mille
Em: 08/01/2017
Ola autora tudo bem?
Gostei do capitulo e mesmo que a Anne tenha sido impulsiva a Ash vai entende e depois ela se acertam.
Bjus e até o próximo, um feliz ano novo e que 2017 seja repleto de alegria, saúde, paz e muito amor e inspirações.
Resposta do autor:
Olá Mille, vamos ver como Ash reage. Feliz 2017 pra vc tb, que vc seja muito feliz neste ano econsiga realizar todos seus projetos.
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