Vick

Eu estava sentada na areia olhando o mar. Admirando aquele pôr do sol fantástico que deixava o horizonte todo amarelo avermelhado...um verdadeiro espetáculo!!! Como que hipnotizada pela beleza das ondas do mar e do sol que já escondia seus últimos raios levantei-me e mergulhei no mar. Mergulhei como uma criança que via pela primeira vez o mar...pulava...nadava...e via ao longe na margem algumas pessoas, que na verdade não sabia se estavam ali vivendo a mesma situação que eu ou se eram todos eles espíritos iluminados, alguns me observavam, outros apenas olhavam para o céu ou contemplavam o horizonte como que refletindo, orando ou agradecendo por algo. Decidi então, sair do mar e interagir com aquelas pessoas que ali estavam a me observar...engraçado...não sentia frio e nem calor... olhei para meu corpo, passei as mãos em minhas tatuagens coloridas, se destacando por sobre a pele tão alva...que agora por algum motivo parecia ainda mais clara.

A voz de Davi, meu orientador espiritual me tirou dos meus pensamentos. A gente se comunicava como que "mentalmente", não havia falas, ou idiomas.

- O que você fez em sua vida? O que pode me mostrar Vitória?

 E então, começaram a aparecer várias cenas de minha vida, eram imagens muito nítidas, coloridas e todas elas em movimento. Toda a minha vida passou por mim...minha infância, depois os acontecimentos da minha casa... escola...morte de minha mãe...minha vida na favela...meu envolvimento com o tráfico...o reformatório... Tudo seguia na minha frente com mínimos detalhes. Eu revivia esses acontecimentos e cheguei a senti vergonha de mim mesma e desejava que a maioria daquelas coisas nunca tivessem acontecido. Mas, era impossível mudar o passado...vejo então uma cena, do primeiro dia que vi Camila, ela me insultando com palavras, me esnobando...e de repente, vejo a cena da agressão que sofri, levo a mão automaticamente ao abdômen onde começo a sentir fortes dores...àquela sensação de pontadas violentas penetrando e queimando  minha pele era sufocante, comecei a ficar sem ar. O sangue saía agora em grande quantidade, caí  curvada na areia com aquela dor tomando conta de todo meu corpo e ao mesmo tempo uma sensação de inconsciência invadindo minha alma.  Com o máximo de esforço tento abrir os olhos, mas uma luz muito branca ofuscava meus olhos.  Davi já não estava mais ao meu lado. Aos poucos a dor foi diminuindo e meus olhos foi se adaptando àquela luz ofuscante, estava agora em um local  que parecia um túnel com as paredes iluminadas, bem no fim dele alguém me acenava como se estivesse a me chamar. Levantei a cabeça devagar e olhei ao meu redor, já não estava mais naquela praia paradisíaca onde as águas e o inesquecível pôr do sol faziam com que eu esquecesse dos problemas e até mesmo do mundo real. A imagem da pessoa me chamando prendia minha atenção, tratava-se de uma mulher, cabelos muitos longos e negros, pele muito branca, agora já sem nenhuma dor caminho em direção da luz, curiosa em descobrir o que aquela linda mulher de aparência um tanto conhecida, mas que no momento não lembrava de onde a conhecia, queria  me mostrar. Helena!!!! Sim... Mais uma vez minha mãe estava ali...junto comigo. Caminhei agora mais rápido e ansiosa depois que reconheci aquela mulher que transmitia proteção e carinho em seu lindo olhar...um olhar tão doce e de um azul cobalto...  diferente de todos os outros "azuis" que eu já tinha visto em toda a minha vida. Ela pegou em minha mão...dessa vez senti seu toque...seu cheiro de mãe que jamais sairia da minha mente,  o sorriso doce...porém, sem nenhuma palavra, mas o olhar dela me dizia tudo, olhou para o fim do túnel onde a luz era ainda mais brilhante como se dissesse: "Vá filha...você ainda não cumpriu sua missão" - eu entendi perfeitamente o que ela me dizia somente com aquele olhar que eu jamais esqueceria... Foi então, que ao olhar para o fim do túnel comecei a me deslocar com uma incrível velocidade, apesar de não sentir  o vento, eu sentia que estava voando!!!  Apesar de não entender o porquê e para onde eu estava indo, sentia que no final do meu vôo algo muito importante me esperava e eu queria chegar ao meu destino o mais rápido possível. Aquele passeio incrível foi de repente parando aos poucos, diminuindo a velocidade, foi então que me vi em uma sala...de hospital???!!! Sim, era uma sala de hospital, eu ainda flutuava, ao olhar para baixo vejo o corpo inerte,  deitado abaixo de mim, e os médicos e as enfermeiras tentando revive-lo. Era o meu próprio corpo, aquela imagem inesperada provocou-me uma espécie de "surpresa", choque não, apenas surpresa. Instintivamente tentei me comunicar, dizer algo ou tocar alguém. Mas, para meu horror, percebi que eu estava isolada dos outros, em outro mundo, ninguém me ouvia, nem sentia o meu toque. Olhei para uma janela de vidro e vi Camila desesperada chorando ao lado de sua mãe, fui em direção da janela tentando tocar o vidro mas minhas mãos atravessaram para o outro lado aonde estava Camila, tentei toca-la mas minhas mãos atravessaram mais uma vez o "vazio", tentei chama-la mas ela não reagiu, foi então que o pânico começou a tomar conta de mim, nesse momento senti um aperto no peito e o local onde eu havia sido esfaqueada voltou a doer com força total, senti então a presença de Davi ao meu lado. Olhei para ele desesperada e disse:

-  Preciso voltar, mas não sei como...

- Vamos lhe ajudar...mantenha a calma...

Ele me dirigiu de volta a sala onde estava meu corpo praticamente sem vida com os médicos em semicírculo tentando me reanimar. Vi surgir algumas luzes acima do meu corpo inerte na cama, eram outros espíritos que vieram se unir e orar para que meu retorno ao mundo real ocorresse de forma mais tranquila e sem nenhum medo.

- Ao voltar ao seu corpo físico, o contato com o outro mundo será interrompido, talvez você não lembre de tudo que aconteceu enquanto estava vivendo essa experiência de "quase morte"...você também não irá mais me vê, porém, estarei sempre ao teu lado...te protegendo sempre. Você sempre irá sentir a minha presença. - após dizer isso  Davi pediu que eu me deitasse na cama devagar e com os olhos fechados.

Passei então a ouvir a voz daquele ser iluminado, o meu "anjo protetor". Eu não o via mais, porém a luz ainda estava ali presente, eu sentia:

- Você está pronta para voltar Vitória?

Ao responder o "sim" mentalmente, senti um forte choque sobre meu peito, que parecia vir em ondas por todo meu corpo. Ouvi o barulho dos aparelhos, algo me sufocando e a voz de alguém que dizia "ela voltou".

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Camila

 Já não cabia mas tanta angustia ao saber que Vick não tinha previsão de acordar, o que a mantinha viva eram os aparelhos, mas eu sempre tive esperanças de que ela iria acordar. É doloroso entrar todos os dias naquele quarto e olhar o corpo da mulher que eu amo ali deitado e inerte, é péssimo tocar na sua pele e não ter nenhum tipo de reação da parte dela,  olhar em seu lindo rosto e não receber aquele olhar que tanto me desafia e que me deixa  de pernas trêmulas e completamente hipnotizada. Não consigo sair um minuto sequer do seu lado, saber de todo sofrimento que havia passado quando ainda era adolescente, me faz sentir ainda mais culpada pelas minhas atitudes. - Distraída nos meus pensamentos, sou despertada..

- Você gosta muito dessa moça filha?

- Sim mãe, gosto muito dela...apesar de sempre estarmos brigando.

- Camila será que podemos conversar a respeito dessa moça?

- Sim mãe...o que quer saber?

- Primeiramente, eu gostaria de saber o que você foi fazer no bairro dessa moça?

- Tinha algumas dúvidas, então...fui lá fazer algumas perguntas a ela...

-Que tipo de perguntas filha?

- A por favor mamãe... você sabe muito bem que eu não consigo ficar calada diante do que aconteceu no restaurante, resolvi esclarecer algumas coisas.

-Precisava ir até lá?

- Sim, precisava... pois não iria conseguir esperar até o outro dia para falar o que estava engasgado.

- O motorista me contou sobre sua atitude quando você viu essa moça sendo agredida, porque se arriscou tanto filha?

Após um longo suspiro, Camila pergunta:

- Você realmente quer saber de toda a verdade mamãe?

- Sim...claro meu anjo.

- Você irá me reprimir?

- Vamos Camila não enrola.

- Ok... tudo começou alguns meses atrás quando nos esbarramos em uma festa, no começo foi uma mistura de ódio à primeira vista, mas com o passar do tempo comecei sentir algo diferente, não sei definir...

- Admiração, atração, paixão que logo quando estamos perto da pessoa a qual amamos a vontade que temos é de abraçar beijar, roubar seu coração todo para nós...

- Como você sabe de tudo isso mãe?

- Tudo isso que você está passando, já passei também com seu pai, tem um pouco de semelhança nossas histórias...enfim...o que você tá sentido Camila é amor, essa moça te encantou muito, eu sabia que você estava diferente, suas birras, sua arrogância estava fora do normal, você já estava se apaixonando por ela. Teu orgulho, teu medo de sofrer preconceitos, te impediram de se entregar a ela, e agora vendo ela nesse estado você não consegue mas disfarçar...- "Fiquei surpresa com a declaração de minha mãe, como ela me conhece tão bem!!!"

- Desde quando você percebeu?

- Desde o momento que Victoria foi trabalhar na nossa casa, suas implicâncias, sua forma de chamar a atenção dela, chamaram as minhas também, apesar de eu não estar muito presente em casa... eu já sabia que você gostava dessa moça, só estava esperando você mesma se revelar.

- O que você irá fazer?

- Quando eu disse para você que eu e seu pai passamos por situação semelhante, não menti. Quando conheci seu pai ele era empregado da minha família,  era o Jardineiro,  eu estava fazendo faculdade, eu   também era assim como você arrogante, mimada e egoísta, mas seu pai era um doce de pessoa, era bastante calmo, paciente e não suportava qualquer tipo de maus-tratos, quando nos encontrávamos eu procurava sempre de alguma forma o agredir, as brigas eram mais da minha parte, eu falava e falava e ele nem ligava, fingia que nem era com ele, o que me fazia ficar mas revoltada; mas teve um certo dia que ele não aguentou mais as minhas provocações e me deu um beijo que eu jamais esqueci, desde então passamos a nos relacionar, tudo às escondidas, passado algum tempo resolvemos nos assumir para meus pais, eu estava  certa que eles iriam aceitar sem problemas, mas foi aí que tive uma grande surpresa... meu pai não gostou nada da idéia, demitiu e expulsou seu pai como se ele fosse um rato de rua, desistimos? Não, continuamos a se encontrar. Cada encontro era uma nova descoberta, mas em uma tarde meu pai desconfiado me seguiu e acabou descobrindo tudo, para nos afastar de uma vez ele me mandou para o exterior e quanto ao seu pai ele fez de tudo para ele não conseguir nenhum emprego nem sequer de faxineiro, seu pai teve que ir embora da cidade para poder ficar longe dos olhares de meu Pai, nesse  tempo ficamos 5 anos sem nos ver, quando eu voltei para o Brasil eu já tinha meu diploma de médica e seu pai já havia se  formado em Direito e já atuava na área de advocacia e aos poucos foi crescendo tomando seu espaço se tornando o melhor dentre os colegas, não demorou muito e  já tinha seu próprio escritório, no mesmo ano ele pegou um caso complicado de uma empresa  muito conhecida  cujo o sócio tinha deixado a empresa falida por roubar há anos  e ainda queria tomar todas as ações da mesma pra vender. Seu pai tinha um desafio, que era provar que o sócio havia superfaturado as despesas das construções, roubado mas do que devia, e mostrar que o mesmo não era apto para atuar na profissão de arquiteto, depois de muito esforço, ele conseguiu provar, muito mais que ele havia pensando, além do sócio ter roubado e não ter diploma, seu pai ainda descobriu que ele não passava de um golpista. Você sabe quem era o outro sócio que estava sendo enganado?

- Não faço a mínima ideia...quem foi?

-  Teu avô! Por anos ele vinha sendo enganado e não sabia, aí quando a empresa estava a beira da falência ele contratou um advogado para desmascarar o golpista, mas acontece que seu avô não tinha muito dinheiro disponível para pagar os honorários de um bom advogado, porém seu pai não se importou e pegou a causa, defendeu os bens da minha família com unhas e dentes, logo após ter ganhado a causa ele se revelou a seu avô e no mesmo momento meu pai se arrependeu e lhe pediu perdão...

- E como aconteceu reencontro de entre você e o Papai?

- Nada amigável, nos desentendemos, pois, o flagrei aos beijos com a secretaria de seu avô, nesses 5 anos ele havia se tornado um Dom Ruan conquistador, a fama era conhecida na cidade inteira, só o que havia mudado nele foi esse lado galinha, mas isso não foi empecilho pra gente se acertar, logo noivamos, não demoramos muito e acabamos casando, e até hoje estamos firmes e fortes..

- Nossa mãe quanta coisa vocês passaram!!! Sua história daria um belo livro.

- Que nada, enfim...o que eu quero te dizer é que se você gosta dessa moça, lute, vá em frente, não ligue para o que os outros irão dizer, o que importa é o que vocês sentem uma pela outra, se for amor de verdade, esses obstáculos não lhe impedirão de ser feliz, eu vou estar com vocês, te apoiarei...- No meio da conversa os aparelhos começam a Apitar, anunciando algo anormal, mais uma parada cardíaca, mais sofrimento meus olhos já não suportavam tantas lágrimas, abracei minha mãe, a equipe de médicos entraram no quarto pegando logo  o desfibrilador, e mais uma sessão de ressuscitação começa, minha mãe tenta me tirar do quarto numa tentativa quase inútil, ela me leva para fora com a ajuda de um  dos enfermeiros e eu me ponho a olhar e chorar desolada através do vidro que me separa do quarto onde se encontra Vick. Inicia-se o primeiro choque e nada dos aparelhos anunciar volta a vida, segunda vez e nada de sinais e o desespero já me aprisiona. Com uma corrida contra o tempo, uma sequência de massagens, choques e medicamentos para fazer o coração voltar a bater e a realizar sua função: bombear sangue e oxigênio pelo organismo, olhei pra minha mãe e ela entendendo respondeu:

- Se a vítima for socorrida no primeiro minuto após a parada, ela tem 90% de chances de sobreviver. E não se preocupe, dentro deste quarto tem os melhores médicos do país.

Meu choro já não era mais silencioso, as faces dos médicos eram de derrota, uns olhavam pro outro e balançavam a cabeça em negativa, e então foi feita uma última tentativa de ressuscitação.  Vick não respondia a estas tentativas, mais 5 minutos e nada aconteceu, foi então que corri para a porta invadindo o quarto no mesmo momento que um dos médicos olha pro relógio e diz:

- Hora da morte: Às 14 horas 34 minutos e 33 segundos, paciente Victoria Fernandez encontra- se em óbito, causas das morte parada....- Nesse momento a ficha caiu e então reagi.

- Cale a boca, você não sabe de nada, saia da minha frente- Caminhei em frente a cama aonde estava o corpo inerte da Victoria e olhei para ela e passei a desabafar chorando.

- Eu sei que você está me escutando, preste bem atenção... lembra da vez que nos esbarramos na festa, quando nos olhamos tão intensamente...eu sei que foi amor à primeira vista, desde então eu passei a fazer inferno com você para não admitir nem para ti e muito menos para mim mesma que eu estava loucamente apaixonada, mas você sabia que eu estava te amando, e mesmo assim sempre foi paciente, aturando meus ataques histéricos, minhas cenas de imaturidade, hoje eu vejo que não vou suportar viver sem você, me diz Vick com quem eu vou implicar, de quem eu vou ter ciúmes, quem vai me fazer faltar  o ar com cada beijo? eu estou  aqui agora do teu lado te pedindo, aliás pedindo não, estou "mandando" você abrir esse olhos e me olhar, eu quero me perder nesse olhar que eu tanto me deixa enfeitiçada. - passei a bater no peito dela chorando, gritando, e como por um milagre ela passou a tossir forte, puxando o ar.- não aguentando tanta felicidade eu grito:

- "Ela voltou"

   Nesse momento todos nos olharam surpresos, não imaginavam ver esta cena, eu em imediato lhe abraço e começo a chorar de alegria, Vick so faz me olhar, nenhuma palavra, eu me aproximo do seu ouvido.

- Eu te amo, eu sabia que você iria voltar pra mim, eu te disse que estaria aqui pra você. Agora descansa que vou cuidar de você meu amor. - Entendendo minhas palavras, ela pisca aqueles olhos lindos para mim, nesse momento os médicos  nos afasta, minha mãe logo em seguida me abraça emocionada, e chora junto comigo por um milagre jamais presenciado por ninguém naquele quarto, todos os olhares pra mim eram de surpresa por minha atitudes, e então uma série de exames se iniciam e então minha mãe sugere eu vá para casa, tomar um banho, comer alguma coisa, descansar, acato suas sugestões, mas o descanso eu rejeito, pois o que eu mais queria naquele momento era está ao lado da minha Vick, principalmente no momento que aqueles lindos olhos se abrissem novamente cheios de brilho só para mim...

Fim do capítulo