Pentimentos por Cidajack
Capítulo 28 - Cap 26
VINTE E SEIS
disclaimer no capítulo UM
Meus olhos cansados procuram
Descanso no verde do mar
Como eu procurei em você
O descanso que a vida não dá
Seria talvez bem mais fácil
Deixar a corrente levar
Quem sabe no fundo eu quisesse
Que tu me viesses salvar
Teu zói é a flor da paisagem
Sereno fim da viagem
Teu zói é a cor da beleza
Sorriso da natureza
Depois lá no alto das nuvens
Você me ensinava a voar
Mais tarde no fundo da mata
Você me ensinava a beijar
Azul de prata, meu litoral
Dois brincos de pedra rara
Riacho de água clara
Roupa com cheiro de mala
Meus olhos cansados do mundo
Não se cansam de contemplar
Tua face, teu riso moreno
Teus olhos do verde do mar
Zoim assim são mais belos
Que renda branca, que renda branca, que renda branca na sala
Quem vê não enxerga a praia
Nois no lenços, nois no lençol , nois no lençol de cambraia
Meus olhos cansados de tudo
Não cansam de te procurar
Meus olhos procuram teus olhos
No espelho das águas do mar
Teus zoi no fim da vereda
Amor de papel de seda
Teus zoi que clareia o roçado
Reluz teu cordão colado
Supõe que eu estivesse morrendo
Mas não te quisesse alarmar
Pensei que você não soubesse
Que eu me queria matar
Meus olhos cansados de tudo
Não cansam de te procurar
Meus olhos procuram teus olhos
No espelho das águas do mar
Sentiu que ela a acariciava. Estavam dentro da cabana. Deitadas, a secretária com a cabeça aconchegada no braço esticado da líder, que estava colada as suas costas, segurando-a firmemente contra seu corpo, o queixo descansando sobre sua cabeça. Estava relaxada. Sentia-se bem, protegida. Completa. Saciada em um amor que a preencheu. Era tão real. A respiração da líder fazia um cabelo dourado movimentar-se, rebelde. O calor emanado pelo corpo dela....ela era quente....quente e queimava...marcava feito ferro em brasa; e, quanto mais marcada, mais Clara sentia-se segura, sentia-se fundindo à líder. Já não mais temia virar o corpo para tentar ver Régia e encontrar apenas o espaço vazio na cama.
- Desde quando você sabia? - a voz suave reverberou dentro do corpo da secretária.
- Há uns cinco dias já. No começo, estava confusa; depois, os chás, ainda que ingeridos, não me deixavam mais sonolenta e eu pude vê-la um dia. - acariciou o braço que a prendia firmemente, sentindo a marca de queimadura - Quando a vi, sentada ao lado da cama, cochilando, não acreditei. Como sempre escutava discussões em meu sono, achando ser sonho, nunca percebi que você sempre esteve por aqui. Mordi minha língua para saber se era real.
- Aposto que aqueles dois alcoviteiros aprontaram isso. Você ganhou o respeito deles. João foi muito duro comigo, teimando que eu deveria aparecer para você. Eu não quis. Após seu encontro com o fulano, na porteira, João ficou furioso comigo. Acredito que os dois, ele e Mirtês, armaram para nós.
- Seja o que for, quando a vi, temi afugentá-la se revelasse que sabia. Temi que você corresse de uma Clara que já não mais existe, perdendo essa Clara que não sabe mais viver sem você.
Deitadas, ali na cabana, Clara sentiu que por toda sua vida buscou por Régia. Sentia nitidamente que o calor do corpo dela era bem recebido pelo seu. A proteção daqueles braços era impenetrável. A calma daquele momento, que sucedera ao sex* redentor, beirava ao paraíso. O que, naquele momento era a realidade, foi nos últimos tempos um sonho que quase virara pesadelo.
Sentiu o beijo em seu ombro, a lágrima em sua pele, o toque delicado; virou para receber a boca.
Acho que ela não acreditava no que estava acontecendo. Sua boca estava semi-aberta e sua expressão deliciosamente surpresa conferia-lhe um ar de ingenuidade...não, talvez não essa a palavra...não sabia ao certo...mas com certeza estava encantada.
Aqueles lábios semi-abertos, os olhos azuis límpidos, desprovidos de desejo, de cobiça; acolhedores...em fração de segundos, ela iria perder aquela expressão e Clara ganharia uma lembrança preciosa. Não se conteve: já que tinha mandado tudo às favas, sem perda de tempo, puxou-a para um beijo que só queria se aproveitar do espaço que via entre seus lábios, acesso garantido à língua... à saliva...ao gosto daquela mulher que a deixava louca. Melhor enlouquecer com conhecimento de causa do que por abstração. E ela já havia enlouquecido.
Olhou os olhos azuis, que pensou ter perdido para sempre, e teve vontade de cantar. Cantou.
"Teu zói é a flor da paisagem
Sereno fim da viagem..."
Régia não conseguia conter as lágrimas
"...Teu zói é a cor da beleza
Sorriso da natureza..."
Mesmo sorrindo, as lágrimas vertiam.
"....Azul de prata, meu litoral
Dois brincos de pedra rara..."
Há muito deixara de perceber tamanha pureza em seus sentimentos. Sentia-se inocente.
"...Riacho de água clara
Roupa com cheiro de mala..."
Deixou que o beijo compusesse o resto da letra. Não acreditava que tinha em seus braços o que era sua mais ousada conquista. Ainda temia ser repudiada.
A fome de Clara era real; era o que provava que o momento se fazia de fato. Aquela mulher queria saciar não somente a fome de carne: queria a comunhão de alma.
Como ela era linda em seu gozo. E como estava sendo exigente. Para Régia tudo fora rápido, por isso não se julgava preparada, mesmo correspondendo.
- Você nunca acreditou na minha morte? Nem por um momento? - interrompeu as mãos que caminhavam por seu corpo, beijando as pontas dos dedos.
- Acreditei. Após a primeira estada aqui, voltei derrotada. Mas, Paz me enviou de volta. Ela me contou sobre a marca de Penumbra. Ela, confesso, não se fez convencida de sua morte. Por ela e Anna, eu quis voltar. E, por mim, me fiz isca, pois somente assim atrairia você fora da toca. - disse, beijando vorazmente os lábios que ainda compunham a expressão estupefata.
Clara não queria falar, queria provas mais concretas de que tinha Régia para ela. Estava nua sobre o corpo semi-nu. Sem camisa, com a calça semi-aberta, a figura sensual sobre a cama chamava a secretária. Régia era assim: sem esforço, com o que fosse sobre o corpo, deixava Clara enlouquecida. Agora que decidira abolir seus freios, queria deixar a loucura virar luxúria.
As mãos massageavam os seios. O olhar dela era divertido: algo entre a vontade de se entregar e a vontade de ver onde o desejo da secretária a levaria. Poderia ser que estivesse perdendo o momento, mas concentrava-se em ver os olhos verdes olhando-a com gula, enquanto sugava os seios avidamente. Era o que Régia queria: existir para satisfazer a secretária. Ainda não sabia como lidar com as exigências que estavam por vir. Temia decepcioná-la.
Clara passou os dedos delicadamente sobre cada marca, cada cicatriz antiga. Régia viu certa tristeza quando os dedos percorreram sua face e delinearam as novas marcas.
- Você quase morreu mesmo, meu amor?
"Meu amor"...o final da frase fez a líder prender a respiração. Ficou olhando contemplativamente os olhos verdes que a inspecionavam. Os dedos desciam....percorriam o abdômen....encaminhavam-se para os pelos negros à mostra no vão da calça....Régia segurou as mãos da secretária, beijando as palmas.
- Fui atacada por 4 homens. Estava embriagada, por isso, por poucos centímetros teria minha cabeça partida como um melão. A lâmina teve tempo de lamber meu rosto, cravando no ombro. Lutei com eles, a cabana incendiou pela cachaça e a querosene. Foi quando o João apareceu e me ajudou, pois na hora de sair da cabana, parte dela me acertou. Eu já tinha dado fim nos sujeitos, mas acabei inconsciente pelo sangramento e pelo golpe na cabeça. O bosta do pai da Becky estava olhando. Dos caras, foi o único que sobrou, porque não lutou. Um dos caras queimou-se todo. Daí arrancamos a cabeça dele e as mãos. O outro nos forneceu a prova do crime. E, o pai da Becky, o testemunho final.
- Quer dizer que ele sempre soube que você estava viva? - espantou-se Clara, que se aquietara apoiando o queixo sobre o abdômen da líder para ouvir a história.
- Como bom oportunista, quando me viu abatida pelos destroços da cabana, imaginou se fazer passar pelo responsável por minha morte - sentiu a secretária se arrepiar - João chegou quando o desinfeliz estava prestes a fazer meu escalpo. Uma vez pego, fizemos ele levar a prova do crime e dizer que viu tudo.
- Pressumo que a prova foi ...o que o desgraçado jogou aos meus pés...e que me causou pesadelos terríveis. - Clara se arrepiou.
- Pois é. Nada disso era para ter ocorrido. Não contávamos com sua reação. Fiquei mal por alguns dias. Tive concussão; minha vista ficou turva e, por isso, não podia aparecer. Escondi-me em uma caverna aqui por perto, pois o desgraçado ainda não estava convencido. Para mim, seria perfeito o desaparecimento, pois eu ia sumir mesmo; mas, antes, queria desbaratar o tráfico de animais e trabalho escravo que ocorre nessa fazenda vizinha. Tendo você como dona dessas terras aqui, eu não a queria entre duas situações complicadas: invasões e tráfico. - ergueu o queixo da secretária suavemente - Você apareceu aqui, desnorteada, cheia de sede de se vingar...por mim....- tinham lágrimas nos olhos - ....prestando homenagens. Fiquei tão preocupada, pensando mil formas de devolve-la para longe, antes que algo de ruim acontecesse.
- Escondi tão bem meus sentimentos que fiz você não acreditar no meu amor?
- Escondeu sim. Porém, nunca, jamais, em situação alguma eu tiraria sua razão. Não valho a pena mesmo. Não sou seu mundo, não...
- Não, Régia, não começa. Não quero reconhecimento, mas quero apenas saber que você não acredita mais nisso. Saiba que tudo que fiz, a dor que senti, o desespero; tudo isso me uniu mais a você do que jamais pensei. Se você não voltasse, eu seguiria sendo sua, buscando saber de você, através da Anna, do João, da Paz. Minha vida seria recolher memórias suas, mesmo nunca participando delas.
Régia ficou olhando. Vendo as lágrimas.
- Vejo nos seus olhos que você me quer. Por que não toma o que é seu?
- Clara, ainda temo...temo vê-la se afastar...correr de mim....me repudiar...
- Não tema.
- É tão novo. Irreal.
- Se você não me quiser, e sei que não é o caso, eu vou embora. Mas, somente se você disser.
A mão prendeu-a pela nuca, puxando com fúria. A outra em suas costas, o movimento do corpo; Régia, agora, estava por cima, o corpo todo encaixado na secretária, enquanto as bocas se devoravam. Conforme se esfregava, Régia se livrava do resto de roupa. Segurou a secretária com os braços abertos, como se fosse crucifica-la.
- Eu quero você. Sempre quis. Sonhei....desde a primeira noite...desde o beijo com gosto de cachaça, até o beijo com gosto de leite....todo meu paladar se perdeu após prova-la. - tomava a boca novamente, sorvendo - A embriaguez ...queria que o álcool tirasse seu gosto de mim...- descia a boca pelo pescoço, numa lambida molhada - Ah, Clara, nem de longe seu gosto imaginário é tão maravilhoso.
A líder mordia as axilas, para em seguida, sugar forte o ombro, pescoço. Ondulava o quadril, esfregando sua carne na pele da coxa da secretária, que a ergueu levemente, permitindo o contato mais intenso. Sentia, e delirava, com a umidade em sua pele. Clara resolveu que esse seria o momento da líder. E foi algo só dela. Era prensada contra a cama precária. Temia que ruísse, tamanho o descontrole da líder esfregando-se, sugando os seios. Clara segurava-se a ela, mas nem precisava.
- Clara...você não calcula ....eu desisti....- a palavras saiam desconexas - ....estava presa.....me liberte...
Clara só podia se agarrar a ela, beijando o rosto, a marca; entregando a boca. Mas, Régia estava longe. Os olhos azuis olhavam Clara, mas a atravessavam. Ali, deitada, Clara via acima de si uma mulher forte, equilibrando sua vida sobre seu clit*ris e dele apenas querendo o contato com a coxa macia. Clara sentia-se excitada, molhada, vendo o corpo arfante, a pélvis em movimentos cada vez mais acelerado. A cada movimento, Régia se lançava para trás, anunciando o orgasmo: um, dois, três, quatro espasmos. Arqueou o corpo todo sobre a secretária, a cavalgada estava chegando ao fim, anunciado pelo gemido profundo, contido, abafado nos cabelos loiros, quando o corpo deixou-se desabar. Clara era felicidade pura, sabendo que sobre ela estava seu amor. Arfante, soltando sons que forneciam a trilha sonora para o prazer exaurido. A cada sobressalto, a líder se esfregava mais, como querendo tirar o último espasmo que parecia não querer sair. Clara, segurando a bunda firme, ajudava nos últimos movimentos, intensificando o contato já fraco. Queria ajudar seu amor a esgotar aquela última onda.
- Desculpe-me...- a voz estava meio rouca, num murmúrio - ...me perdi em mim...
- Amo você! - Clara afagava o cabelo negro, sussurrando palavras delicadas, deixando Régia ter certeza de que a teria da forma que quisesse.
Mudando de posição, foi sua vez de abrir os braços da líder, como se a fosse crucificar. Os cabelos negros se espalharam no travesseiro, a pele morena, os olhos azuis brilhantes na excitação e hesitação do momento. Clara seguiu pelo peito largo, onde os montes em forma de gotas eram enfeitados por bicos eretos....
- Nossa!!!
- O quê?
- Como você é linda, Régia!!!!!!!!!!
A líder agradeceu estar ruborizada pelo esforço recém empreendido.
- Meu corpo é cheio de marcas...não tem nada de lind...
- Você é minha. Eu digo que é linda. - era incrível como as lágrimas surgiam - Você está tão magra, amor. Pensar que quase a perdi.
- Você também está abatida. Loucura fazer o que fez. Imagina se a perco, sabendo que a enganava?
- SSchh...esquecer. Vamos esquecer. Estamos aqui. Você é minha, é linda e eu digo que quero cada milímetro de pele. Quero, eu, deixar minhas marcas em seu corpo, para tirar as que fiz na alma.
Clara estava com gana em provar o gosto do gozo de Régia. Estava montada sobre o abdômen dela, se esfregando devagar, olhos nos olhos, as mãos descendo pelos contornos para encherem-se com os seios. A líder olhava a tudo, com a respiração contida. A secretária, saciando seus desejos, beliscava os mamilos deixando-os rijos, rindo como se tivesse descoberto os sinais do prazer pela primeira vez. Passava o polegar devagar, alternando com leves pinceladas da língua úmida. Ouvia o gemido e sorria satisfeita. Mantinham o contato visual. Clara deslizou sua vulva até próximo ao monte de Régia, intensificando o movimento do quadril. Ainda segurava os braços da líder abertos, ficando totalmente sobre ela. Em um movimento rápido, forçou a abertura da perna da líder, com as suas, para melhor se encaixar. Rumou, com sua língua, para o único lugar que gostaria de estar naquele momento. Lambeu toda a barriga. Percebeu que o corpo sob o seu enrijeceu-se, tenso. Régia, num gesto súbito, puxou Clara para seu rosto e, antes que pudesse entender, a secretária encontrou-se posicionando sua vulva a centímetros da boca da líder. Olhando fixamente para os olhos verdes, Régia perdeu-os de vista, quando sua língua encontrou o meio molhado, quente, escorregadio; o cheiro da vagin* impregnando seus sentidos, juntamente com o som proveniente do corpo magro, mas ainda musculoso, torneado. Clara era linda e ficava mais bela demonstrando sua forma de fazer amor. Era fácil se perder naquele corpo, Régia sempre soube disso quando na pedra da cachoeira, nesta mesma mísera cama, nos poucos momentos de prazer solitário. Por um momento, interrompeu o movimento da língua e olhou o sex* dela.
- Não pare! - mesmo não sendo essa a sua intenção, Clara estava entregue, pois tudo era prazer.
A língua achou novos caminhos. O corpo se lançou em nova viagem.
***
***
Após a noite de amor intensa pelo ritual que passaram, Luciana decidiu que era a hora de morarem juntas. Já passavam a maior parte do tempo na mansão após a chegada dos familiares da loirinha.
Os dias que se seguiram foram envoltos em uma atmosfera nova. A médica sabia da forte união entre elas, mas não a sentia tão intensamente como após a comunhão do sangue.
Deram-se provas de total entrega, confiança, amor; principalmente, confiança.
Pensando em seu passado, a médica tinha mais do que nunca a certeza de que queria Becky longe dele. Talvez, não todo ele. Sabia que precisava se libertar dessa culpa para com a perda do filho. Diante da constatação do amor e confiança entre elas, não era tão teimosa em não deixar a jovem ajuda-la. Em seu íntimo, Luciana sabia que já deixara escoar muito dessa culpa, mesmo sentindo outra que era admitir que perderia tudo novamente para encontrar e ter Rebecca.
Precisava saciar, de alguma forma, a curiosidade que a jovem, aparentemente, estava controlando.
Entretanto, ao pensar em amor....bem, amor nunca fora seu forte. Por outra, nunca fora um elemento forte perpetuado em sua vida. O sentia da mesma forma que perdia, trocava ou barganhava. Rebecca não deveria saber sobre essa prática monstruosa e desumana que a médica sempre cultivara com certo orgulho.
Era certo que a intimidação dela sobre Rebecca era ainda forte. Cautelosa, a jovem evitava discussões que inflamassem o voluntarismo e prepotência da médica. Ela, Luciana, tivera provas suficientes e desagradáveis com o incidente da fazenda e a história do pai, de que mantinha certo freio sobre a jovem, levando-a a ocultar coisas.
Poderia culpar Rebecca por teme-la, sabendo do que era capaz quando acuada ou feita de ignorante ao enfrentar situações adversas?
Rebecca conhecia o temperamento dela muitíssimo bem. Era uma diplomata de primeira. Tinha habilidade para conduzir as situações. De certa forma, havia a manipulação consentida, mas somente se deixando manipular é que Luciana admitia poder ser conduzida em uma relação entre pessoas tão díspares na valorização dos sentimentos, principalmente o amor, como elas eram.
Na manhã seguinte à cena que protagonizaram dentro das paredes do quarto compartilhado, Luciana olhou-se ao espelho e viu a marca em seu seio; antes, observou o corpo de Becky e pode ver os perspontos feitos pelas lancetas. Nunca, nem mesmo se tivessem trocado alianças, pensaria em simbologia melhor para representar a união de ambas. Adorou a idéia de pertencer. Tudo sempre lhe pertenceu, mas ela nunca julgou-se capaz de pertencer a alguém. O mais perto teria sido seu filho. Questão de sangue? Talvez.
Esperaria Clara voltar. Precisava tomar certas decisões e queria saber se a secretária seria capaz de prosseguir com o planejamento feito para a fazenda.
Pediria Becky em casamento. Não queria pensar em acordar sem ela.
****
****
O cheiro de comida a despertou. Assustada, ainda que faminta, Clara buscou imediatamente por Régia. Temia ter sonhado e agora ver-se diante da Mirtês, que trouxera sua janta.
A cabana estava vazia. No canto, viu a tina com a água do banho. No fogão, as panelas soltavam vapores, coreografando o odor delicioso.
Levantou-se em um salto e saiu correndo, chamando por Régia.
- Hey..calma..calma! O que foi?
Ao sentir o calor do abraço, relaxou, acolhida em seu refúgio de paz e segurança.
- Temi estar sonhando. O cenário me deu a sensação de dejavu. - disse, abraçando fortemente a líder.
Passado o susto, Clara percebeu que Régia estava nua.
- Sempre acabo vendo você nua. - disse, rindo.
- Nunca me preocupei com roupa. - disse, retribuindo o riso - muito menos agora.
- Antes, era um martírio vê-la sem roupa...- as mãos da secretária acariciavam a bunda com deleite - mas, agora, é assim que quero.
Régia foi empurrada de volta à cabana, sendo devorada por uma mulher insaciável. Lançada na cama, Clara novamente tentava se alojar entre as pernas da líder.
- Clara, preparei o banho para nós. Também estou com fome. Você não?
- Você é todo o alimento que preciso...- a secretária estava frustrada em seu desejo.
- É romântico, mas não prático. Quero ter forças para o que imagino fazer com você. - Régia disse, arqueando as sobrancelhas maliciosamente.
Relutantemente, Clara deixou-se levar para a tina, onde banharam-se.
- Clara, o que vamos fazer com a pista de pouso. O infeliz que despachamos não era o principal mandante dos crimes que ocorrem aqui.
- Eu tenho uma idéia. Agora com você aqui, penso que será fácil de executar.
- Tenho certas informações sobre um carregamento que vai ser despachado dentro de dois dias. Será que a sua idéia se assemelha a minha?
- Vamos discutir isso depois.
Régia deixou seus dedos brincarem dentro de Clara, acomodando a secretária em seu peito, enquanto a penetrava e brincava com seu clit. A língua bailava dentro do ouvido. Régia parecia tocar um violoncelo, da forma como dedilhava pelo corpo. Sugou o ombro, passeando com o sabonete pelas costas, esfregando levemente para em seguida derramar a água, que escorria pela espinha, até entrar nas fendas, seguidas de perto pelos dedos hábeis. Clara fechou os olhos e se entregou. Sentiu o corpo convulsionando. O espaço limitado não permitia que se esticasse, mas ela tentava retesar o corpo, buscando retardar o gozo. Por sua vez, Régia esfregava rapidamente o clit duro, enquanto os dedos da outra mão invadiam a vagin*, brincando com as paredes internas, provocando o clit por dentro. Desta vez, Clara debateu-se na água, escorregando, quase afundando em gozo. A líder a abraçou, como sua única certeza de salvação.
- Régia, você vai me matar...
- Antes, vou alimenta-la. - disse, beijando os cabelos molhados.
***
***
- Elas si acertaram, João?
- Pelo baruio que iscutei quandu deixei a comida, achu que sim.
- Louvada seja a virgi!! Essas duas precisava di paz.
- É, Mirtês, achu que fizemo o qui era certu.
- Mais, aquelas duas quase que se matam sem saber.
- Elas precisa acaba logo com o fogo e cuida das coisas aqui. Tem muito que faze ainda. A morte do desinfeliz num era tudo.
- Deixa elas, a Régia sabi o que faiz.
- Ispero. A dotôra quê sabe da Clara. Despistei, mas ce sabe como aquela é. Amanhã vou lá na cabana, mor de falar com as muié lá.
- Deixa as duas, homi! Mais um dia num vai mata ninguém.
O caboclo coçou a cabeça, contrariado.
***
***
- Quero vortá pra fazenda.
- Mas, mãe, ainda não sabemos se é seguro. Clara não nos tem mantidas informadas.
- Fia, sei que você num gosta de ficar aqui. E comecei a entende pruquê.
- Aconteceu algo? Quer que eu fale com alguém aqui? Só não deixe Luck saber, pois ela pode ser muito dura com as pessoas.
- Ce mesma fala sobre cumo eles óia pra gente. Lilly também tá sentindo um peixe fora d´água aqui. E, por mais que a casa seja grandi, nóis tiramo a paz sua com a dotôra. Cês tem suas maneira de faze as coisas das suas intimidadi. Mesmo sem quere, a genti acaba ....bem.....cê sabi...
Ambas ficaram vermelhas. Becky sabia que a mãe tinha certa razão. Ela não gostava de ficar lá, pois perdiam mesmo a privacidade. Embora pequeno, no apartamento elas conseguiam viver mais abertamente. Mesmo Luciana, com sua mania de nudez, ficava mais a vontade no apartamento. Na mansão, por causa de Rebecca, ela não exibia seus dotes físicos da forma desdenhosa de sempre.
- Aqui é grandi, é bunito, mais num é nossa casa. Num é nosso lugar. E tem aquele bendito quarto que ce reclama tanto. Juro que num bisbilhotei, mas vi a dotôra vagando de madrugada e indo pra lá. Imaginei que ce num ficou muito feliz; e, no dia seguinte, cês ficam meio emburradas.
Rebecca espantava-se com a perspicácia da mãe.
- O.K. Vou falar com a Luck. De repente, vocês podem ficar naquele flat onde permaneceram quando nos reencontramos.
- A Lilly quer espera a Clara, pois disse que ela prometeu deixa-la bonita como ocê. Mais, por minha vontadi, eu vorto pra fazenda. Tou preocupada com o dismiolado do seu pai, que sumiu também.
Ainda tinha isso: Andras sumira.
- Vou falar com o João. Ver como estão as coisas por lá. Estou achando que temos muitas novidades, mas ninguém quer abrir o bico.
***
***
Três dias atrás, antes de entrar nesta cabana, no meio do nada, através de uma ligação de celular a qual tive a maior dificuldade para completar, disse para uma pessoa que estava terminando a relação, apenas para poder consumar uma traição que vinha se configurando há semanas. Não sei qual a pretensão de ato tão hipócrita: ser a mulher perfeitamente correta que sempre fui? Não permitir que me atirem pedras, porque cinco minutos antes de devorar a mulher que me consome, eu tive a decência de terminar com a outra, para quem eu era um futuro planejado?
Não quero pensar. Juro que nunca mais sairia desta cabana tosca, se assim Régia me pedisse. Se ela somente prometesse alimentar-me com seu gosto, cheiro, essência; e, mesmo sem todo este banquete sensual, libidinoso, ela apenas me dissesse para ficar, não hesitaria.
Marcella ainda não terminou. Nem sei se ela entendeu. A ligação estava ruim. Eu aqui nesta fazenda, ela lá em algum país da América Latina; não sei se entendeu que eu a deixava. Eu entendi, para meu próprio bem, que fiz minha parte.
A cabana está rescindindo a sex*. Exceto a comida deixada na porta, ninguém nos procurou. Mais espantosa ainda é a minha calma. Dra.Luciana não me amedronta mais. De certa forma, sei que ela sabe que cumpri meu papel com dedicação e presteza; mas, se me chamar agora, não sairei correndo. Ela também sabe que nossa relação mudou. Como tudo em minha vida.
É lógico que penso nisso agora, depois de ter me exaurido em intermináveis orgasmos. Penso nisso, depois de ter a mulher que amo repousando em meus braços, em completa exaustão atendendo minhas exigências.
O corpo dela é cheio de marcas, cicatrizes antigas. Por mais que eu diga de sua beleza física e de caráter, é visível o quanto ela ainda sente vergonha de mim. Ainda se esconde. Não se entrega a mim. Não me permite te-la de corpo inteiro. Percebo que é algo difícil para ela, pois Régia nunca fugiu de nada. Pelo menos, até me conhecer, ao que parece.
Penso que não consigo ser convincente quando digo que não temo mais por seu passado. Nem eu sei se realmente tenho essa capacidade. Talvez entenda melhor agora, porém não sei se aceito impassível."
- Régia, meu amor, não sei o que acontece, mas percebo que você tem evitado que eu a toque intimamente, distraindo minha sede por você com meus próprios orgasmos. - pausa.
Silêncio.
- O que acontece? Sou eu? Meus toques não agradam você? Juro que não quero forçá-la a dizer, mas tenho que ser honesta que isto me aflige muito.
- Vou ter que me acostumar a essa enxurrada de perguntas, muié da cidade. - tentou esboçar um sorriso - Não estou preparada para essa entrega. - disse, sem olhar em meus olhos.
- Não tem certeza se é para mim que quer se entregar? - sabia que não poderia ser isso.
- Claro que não. Eu já sou sua.
Num gesto de impaciência, Clara arrancou a pouca coberta de sobre ela.
- O que há de errado, meu amor? Por que não posso toca-la, beijar e sorver seu gozo? Você não deixa. Fica me distraindo.
- Eu não quero frustra-la. - disse seriamente.
- Mas frustra em muito. Não quero apenas receber de você. Quero dar a você o mesmo prazer que recebo. Estou louca para prova-la aqui. - ao tentar aproximar a mão da vulva, instintivamente, a líder a segurou.
Em um estalo repentino, Clara antecipou o motivo, ainda que receosa pela confirmação. Caso estivesse certa, mais do que nunca, a secretária tinha que saber usar todo seu poder de argumentação e sua sensibilidade.
- Régia...amor...é algo físico? Algo que pode causar dor? Meu prazer em você pode causar-lhe dor?
Clara estava começando a se cansar de tantas lágrimas. Queria saber quando poderiam se entenderem, sem que as lágrimas interferissem. Essas que vertiam dos magníficos olhos azuis não eram de felicidade; eram tristes, penetrantes como lâminas na tênue pele do amor recém-restaurado.
Com muita delicadeza, Clara acolheu Régia em seus braços. Afagou os cabelos.
- Precisamos aparar essa franja. Ou mudar o corte. - gracejou, sem vontade.
Régia esforçou-se para sorrir.
- Quando voltarmos para São Paulo, a levarei para minha casa. Embora, agora acho que terei que vende-la. Precisaremos de uma casa maior para adequá-la a An...
- Eu estou definitivamente em sua vida, Clara?
- Não está: você é a minha vida. E vou viver você o quanto puder.
- Com todas as coisas que carrego: passado, filha, inseguranças, marginalidade...
- Tudo. Tudo. Se, por algum motivo, eu derrapar em meu propósito, basta que eu me lembre da dor que senti ao pensar que a havia perdido. Nosso amor me reconduzirá ao caminho que quero trilhar sempre ao seu lado.
Régia deitou-se na cama. Fechando os olhos, foi abrindo lentamente as pernas.
- Não precisa faz...
- Clara, se não agora, não sei quando.
Ela manteve os olhos fechados para permitir-me expressar o que senti sem ter que me preocupar em machuca-la.
A cicatriz que vi no centro de sua vulva levou-me às lágrimas. Sei que fiz cara de piedade. Envergonho-me de, momentaneamente, sentir náusea. E também temer, novamente, por toda a violência que a cercava.
Meu amor é uma sobrevivente e a história dessa sobrevivência causara tantas memórias em sua mente, quanto em sua carne. Também quero minhas memórias da carne, mas não sei se tenho estrutura para ter lembranças de um passado tão violento. Sim, apesar de tudo, Régia jamais apagará completamente os registros dessa violência.
Mas eu não podia manter essas expressões. Esses pensamentos. Acabara de fazer a jura incondicional de meu amor. E, agarrando-me ao que disse, deixei que essa incondicionalidade me colocasse na trilha novamente.
Delicadamente, toquei a marca em forma de semi-círculo, feita por ferro em brasa, em ambos os lábios. Uma delas era feia demais. Procurei recompor-me da melhor maneira que pude.
- Quem fez isso? Por quê? - minha voz denunciava minha estupefação.
- João fez isso. - ela disse sem qualquer emoção na voz.
- O QUÊ?!!? - o ânimo de Clara alterara-se subitamente - Como ele pôde? Como você deixou? Como confia..
- Calma. Ele foi obrigado e eu agradeço que tenha sido ele. Se fosse um dos outros, provavelmente estaria mutilada de forma muito mais violenta e definitiva. Na verdade, estaria morta.
- Outros? Obrigado? Régia..eu...
- Fomos emboscados. O chefão desconfiava da minha ligação com João e o fez me marcar. Ele obedeceu, mas conseguiu forjar a tortura, uma vez que eu fingi desmaiar e desmaiada eu não servia mais para o espetáculo. A ordem seguinte foi para que todos se divertissem com a mulher metida a homem. Entre tantas coisas ruins desse dia, o bom foi que concretizei minha vingança...- fez uma pausa e sorriu amargamente - ...e concebi Anna.
A cabeça de Clara estava um redemoinho. Sabia vagamente desse ocorrido, pois fora a saída de cena da Penumbra, que a Paz comentara. Mas, detalhes como esses... Estava horrorizada, mas não podia demonstrar. Canalizar esse horror em raiva por João ajudava a disfarçar. Não sabia como seria olhar para o caboclo de agora em diante. Demorara tanto para respeitá-lo e acreditar na lealdade. Agora, o que via no corpo de sua amada, levava-a a querer matar o homem.
- Não julgue João severamente. Ele me salvou na hora e também depois. Eu fiz tudo que tive que fazer, causei toda a destruição e chacina que pude; mas, ao terminar, eu era um amontoado de ossos deslocados, ferimentos, cortes, hematomas. Uma mulher sem nada, ninguém, dilacerada em corpo e alma. Quando passou o momento de fúria, caí em choque, era praticamente uma morta-viva. Ele cuidou de mim e nunca se perdoou pelo que me fez. Jurou-me lealdade em busca de perdão. Mesmo que eu insista em dizer que não o culpo ou tenho mágoa, ele não aceita. - falava tudo isso com os olhos fechados - Perdoe-o por mim. Pelo nosso amor.
Clara segurou o rosto de Régia.
- Abra os olhos, amor.
Os azuis revelaram-se por sob as pálpebras. Brilhantes, suplicantes, buscando apenas compreensão. Clara não pode se conter e chorou muito. O corpo convulsionado pela força do pranto. Jamais encontrara um ser humano tão forte e frágil ao mesmo tempo. Luciana tinha essa dualidade, mas não como Régia. Não com essa carga tão pesadamente imposta pelo destino.
Clara envergonhava-se de ter julgado tanto aquela pessoa. De não tentar entende-la quando pode, antes de causar mais dores e mágoas naquela alma já tão atormentada.
- Perdão, Régia. Perdão.
- Não peça...- a líder estava perdida diante da reação da secretária.
- Prometo, com todas as minhas forças, jamais deixar algo causar-lhe dor ou sofrimento. Não vou deixar. Perdão por minha idiotice. Meus preconceitos...Perdão por não dar-lhe o tempo necessário para você...
- Já não demonstrei que não lhe guardo rancores? Você é tudo que quero. Não cabe entre nós perdão. - agora era a vez de Clara ser abraçada e confortada.
Por algum tempo, a secretária permaneceu ainda soluçando. Régia tentava limpar as lágrimas com beijos delicados.
- Vou fazer um chá para nós.
Enquanto a água fervia, a líder pegou uma toalha e limpou o rosto de Clara, como uma mãe que limpa a filhinha resfriada.
- Vamos beber esse chazinho e depois vamos dormir. Temos coisas pela frente.
- Você sente dor? Quero dizer, sexualmente, dói? Prazer sei que você tem, mas dói?
- Não. Não dói. Como disse, João forjou bem o que fez, ele queimou mais a carne externa, não atingindo o clit*ris ou a entrada da vagin*. - ficou em silêncio - O cheiro de carne queimada satisfez o chefão diante do meu desmaio. - levantou abruptamente e colocou mais chá na caneca.
Clara bebeu o chá, tentando amenizar a náusea que sentiu.
Quando Régia voltou para cama, Clara evidenciou o desejo de toca-la.
- Depois do que aconteceu, nunca mais deixei que me tocassem. Se não consegui encarar estranhas, como posso olhar para você, a quem amo e quero dar tudo que me resta de bom?
- Eu quero você por inteiro. Não são suas marcas, internas ou externas, que vão me impedir. Como disse, você é minha e eu a acho linda!!!
As bocas se encontraram. Clara sabia que tinha que distrair muito Régia para relaxa-la, pois o corpo estava tenso ante ao momento que iriam passar. A secretária também estava ciente que qualquer hesitação sua, agora, arruinaria permanentemente a oportunidade de resgate da estima da sua amada. Estava em seu poder devolver a plenitude sexual de sua amante.
***
***
- Becky, quando a Clara volta? - Marcella estava nervosa.
- Luck disse que até o fim desta semana. Até já tem tarefas para ela. Ontem, falei com aquele João e o achei estranho.
- Devemos temer?
- Não. Penso que algo está acontecendo e que eles estão juntos em algum plano maluco. Clara está me saindo melhor do que a encomenda. Incrível.
- Não sei. Recebi uma ligação estranha dela, mas não entendi nada. Muito chiado. Entendi algo como "terminado" ou "terminando".
- Até onde sei, depois do incidente na porteira e da pneumonia, ela está ficando na cabana e lá é difícil pegar algum celular ou rádio. João mencionou que o que ela foi fazer lá estava terminando. Pode ser isso, Marcella.
- De qualquer maneira, estou apreensiva. Está difícil me concentrar nas obrigações e Luciana me encheu de coisas.
Estavam mantendo essa conversa em uma reunião do comitê gestor. Becky pode perceber que Marcella estava realmente abatida. Mal acabara de retornar do Chile e já estava escalada para outra viagem, por conta do livro que ela e Luciana estavam finalizando.
A médica também iria se ausentar. Quando Becky contou que Ruth sinalizara que queria voltar para a fazenda, Luciana não quis, pois esperava que Clara voltasse e relatasse como estavam as coisas por lá. Nesse período, combinaram que Becky levaria a família para o haras, com a desculpa de conhecerem a Argo.
Desde a história da pneumonia, Luciana dissera à Rebecca que pressentia algo estranho. Sentiu Clara mais calma na última ligação, bem como também sentiu uma mulher mais segura. E, claro, mesmo não dando o braço a torcer, a médica sabia que perdera sua mais leal pessoa em quem depositava confiança.
Becky olhou para Marcella. Qualquer que fosse a resolução de Clara, com certeza a diretora não cabia mais em sua vida. No fundo, ambas sabiam o que aquele "terminado" queria dizer.
***
****
Novamente acordou sobressaltada: estava sozinha na cama.
Entretanto, já não mais temia tê-la perdido. De certo, estava no famoso riacho. Nos últimos dias, como se a Natureza quisesse contribuir, havia chovido, obrigando-as a ficarem na cabana. Obrigação muito bem cumprida; a secretária esboçou um riso malicioso e satisfeito, ao lembrar de tudo que ocorrera no período de confinamento forçado.
Apesar da cama ser pequena, elas conseguiam se encaixar ali. Entretanto, Clara sentia falta de espaço para poder ter Régia da forma que quisesse. Agora que finalmente todas as barreiras haviam caído, ela queria ter a líder em sua própria cama, na casa que até o momento não conseguira chamar de lar.
Ficou deitada, sentindo o cheiro do sex* de Régia em suas mãos. Sorriu. Abraçou o travesseiro para ter mais daquele odor que entrava em seus poros, impregnando sua alma.
Colocou os dedos na boca. Estava feliz consigo mesma. Régia era sua plenamente. Ainda, naquela noite, ficara um bom tempo observando o rosto dela enquanto dormia. Esboçava um leve sorriso. Linda. E sua.
Clara reteria eternamente na lembrança o momento em que a tensão na expressão de Régia dissipou-se, dando lugar ao semblante de prazer.
Desde o momento que delicadamente, mas com extrema luxúria, abriu as pernas dela e acariciou, com posse, os pelos negros e já úmidos, soube que a tinha impressa em sua carne. O resto foi magistral: friccionou a vulva, sem abrir os lábios, deixando a líder ofegante; Clara sabia que Régia sentia muito prazer assim, quer por costume ou por reação física. O tempo todo, acompanhou as expressões no belo rosto, fazendo questão que a líder observasse seus movimentos, impedindo que fechasse os olhos.
Desceu os dedos e percorreu a pele marcada, repuxada pela cicatriz; isto fez a líder retrair-se; seus olhos fixaram em outro ponto, que não os olhos de Clara.
- Olhe para mim, amor. - demandou firmemente, mas com delicadeza - De agora em diante, será sempre assim entre nós. Nunca estarei em você para vaidades; estarei para saciar nosso desejo; o meu desejo por você.
Vorazmente, desceu por entre as pernas, mantendo o contato visual com os olhos azuis que já denotavam a ansiedade pelo que estava por vir.
Por sua vez, Clara não queria que fosse rápido. Temia que o simples toque de sua língua colocasse Régia na descendente do orgasmo. Engraçado que em momento algum, achou que pudesse falhar e frustrar a ambas. E isto deu a ela segurança.
Beijou e mordiscou toda a parte interna da coxa, virilha; sugou os lábios, sentindo as nervuras da cicatriz; paradoxalmente, isto a excitou. Não queria fechar os olhos, pois temia que a líder a interpretasse mal; estava com as pernas dela apoiadas em seus ombros. Inalava o odor do sex*, sentia fluir a umidade; queria provar.
- Sabe que estou louca para prova-la.
Régia apenas gem*u algo, em concordância, olhando com certo encantamento o que a secretária fazia com ela.
Clara parou, abrindo sem pudor algum a vulva a sua frente. Olhava os azuis quase que suplicantes; deixou sua língua fazer-se visível, úmida e voraz; olhando Régia, realizou o encontro entre as carnes, quase similares, de sua língua e o clit de sua amante. Ambas estremeceram e só puderam sentir o tremor, pois simultaneamente os olhos fecharam-se, no ritual de redenção. Ambas gem*ram. Como se tivessem combinado, estancaram o momento: Clara querendo reter o gosto provado; Régia querendo reter o contato sentido.
A líder fez o primeiro movimento, indicando o que queria; Clara, que não era conduzida, mas nem sabia mais se conduzia, deixou-se levar e sua língua bailou sobre o clit, desceu e entrou na vagin* que vertia tudo o que ela precisava. Era delicioso. Entrava e saía, deixando-se escorregar na viscosidade, para reaplica-la no clit, sugando-o todinho para fora, livrando-o de qualquer resquício de timidez. Sinceramente, temia devorar o pedaço de carne, literalmente. A vontade que sentia multiplicava o sabor, entorpecia. E o ruído produzido por Régia incentivava, encorajava a secretária.
Dava atenção a todo o espaço e qualquer milímetro de pele que encontrava, lambuzando com sua saliva e o gozo da líder, mas retornava ao viciante ponto teso, proeminente e já rubro pela sucção. Deixou os dedos brincarem sobre ele, olhando para os olhos azuis desfocados, mas não mais por vergonha. Régia estava entregue. Clara prendeu levemente o clit entre seus dedos e deixou a língua brincar com a pontinha brilhante. Sentiu a mão de Régia em sua nuca. Baixou a cabeça e cobriu a vulva com a boca inteira, movimentando freneticamente a língua. Sentiu os músculos de Régia vibrarem, anunciando o orgasmo: primeiro o abdômen retraído, depois as coxas e então descobriu algo: o gosto dela, próximo ao orgasmo, mudando...pouco mais ácido, mas também doce...isto a fez beber com volúpia. Quando sentiu a força de Régia trazendo sua cabeça mais para dentro das pernas abertas, soube que toda a deferência que a líder ainda poderia ter cedeu espaço para a mau educação do gozo; o egoísmo que sinalizava a entrega sem pudores ou medos. Diante disso, Clara também esqueceu qualquer preparo que pensara para o momento.
"O momento!" deitada na cabana, agarrada ao travesseiro, Clara ria sozinha pensando no que foi segurar Régia em seus braços após ela liberar seu gozo, exigir mais e, exaurida, pedir que a secretária parasse, se ainda quisesse ter mulher para o resto da vida. A secretária ria, pois quase fora separada à força do delicioso clit*ris de sua amada. E, depois de tantas conquistas, ainda foi agraciada com um orgasmo espetacular, fornecido pelos dedos longos e hábeis da líder. Na trégua do desejo, riram e dormiram. Régia, como Clara sempre imaginara, não desmereceu nenhum momento de fantasia que tivera; ao contrário, era milhões de vezes melhor.
O ruído do seu estômago a tirou de suas lembranças.
Podia sentir o cheiro do café. Olhou para o fogão e viu as coisas sobre ele, mantidas aquecidas pelo calor da lenha. Sobre a mesa, pão caseiro, bolo, frutas e coisas para o desjejum.
Levantou-se da cama, ainda enrolada no lençol, comeu uma fruta e tomou um copo de suco. Depois, vestiu uma camiseta e um short, pois não tinha a desenvoltura de Régia para ficar andando nua. Até porque, apesar de tantos dias sem serem incomodadas, era certo que João estava atocaiando, aguardando o momento para aparecer.
O caminho para o riacho era quase que obrigatório ser seguido. Somente quem conhecesse e tivesse outros interesses, faria alguma trilha alternativa.
Ficou decepcionada por não ver a líder no local. "Onde terá se metido?"
A água estava limpa, apesar da chuva. Tirou a roupa e entrou no riacho. A queda d´água estava forte.
Pôde perceber o quanto estava dolorida pelos exercícios executados na cama compacta. Aliás, não só a cama, mas aquela tina de banho também. Tudo era racionalmente desconfortável, mas na hora que tinha Régia em seus braços e se entregava a ela, tudo era perfeito. Sob a água, percebeu que estava sorrindo. "Estou feito uma adolescente que descobre o amor!!" pensou, mantendo o sorriso.
Posicionada diretamente sob a cachoeira, Clara não ouvia nada a não ser a água retumbando em sua cabeça.
- Espero que esse sorriso seja por mim! - a voz sensual sussurrou no ouvido úmido.
Clara virou-se e foi recebida por um sorriso iluminado. Beijaram-se com a saudade de minutos, mas a necessidade de anos.
- Pensava que desde ontem eu estou sorrindo feito uma adolescente. - deixou a cabeça repousar no ombro, tomando cuidado com a ferida recém-fechada.
- Hoje de manhã você estava com ele. Confesso que tenho me pego com o mesmo sorriso tatuado no rosto. Ontem foi incrível. Você é incrível! Como posso merecer tanto! Obrigada! - as mãos desciam pelas costas, repousando no quadril da secretária e um terno beijo na testa destoou do clima sensual que se instaurava.
- Essa é a nossa cachoeira, então? - a secretária mudou de assunto, encabulada com tamanha demonstração de gratidão.
- Nossa?!?! - a líder ficou curiosa.
- Daniel me contou sobre certas coisas que presenciou através de um binóculo, cujo inocente intuito era "observar passarinhos". - riu maliciosamente.
- Ele pensa que eu não sei? Meninos deixam muitos rastros, se você me entende. - Régia disse, pontuando a frase com beijos afetuosos.
- Ele disse que você chorava. - retribuía os beijos - E quando entendi porque, vim até aqui e me deitei naquela pedra e amei você, da forma solitária que fazia em minha banheira.
- Acredita em mim se eu disser que as vezes sentia como se você estivesse comigo?
- Acredito, pois sentia o mesmo e, ao ouvir Daniel, foi como obter a confirmação. - as mãos rumavam para dentro da água, entre seus corpos.
- Venha.
Mergulharam. Clara, eximia nadadora, emergiu em poucos segundos ao lado da pedra, subindo nela. Estava um sol gostoso que acariciava a pele em contraste ao frescor da água. Rapidamente, Régia também emergiu. Deitada, Clara teve a visão mais impressionante que poderia ter: Régia, nua, em pé a sua frente, sacudindo a água dos cabelos, emoldurada pelo céu tão azul e o Sol tão quente, mas que pareciam nada diante do olhar límpido e ardente.
Ficou apenas observando os movimentos. A maneira felina como ela se esticava ao Sol, oferecendo todo seu corpo para que ele o lambesse. De olhos fechados, ela inclinou a cabeça em direção ao céu, ficando alguns minutos saboreando a brisa e o calor ao mesmo tempo.
Quando olhou para Clara, deixou a secretária zonza pelo brilho dos olhos. Por sua vez, Régia devorou o corpo bem esculpido, de penugens douradas resplandencentes ao sol, Clara quase sentiu dor física pelo desejo e calor do olhar. De forma quase reverente, a líder ajoelhou ao seu lado, pousando a mão quente sobre o abdômen rijo.
- Você é linda!!!!
- Essa fala é minha. - riram.
Clara sabia que não precisava falar, mas também não conseguia ficar muda diante do que via, diante da sensação de zilhões de borboletas revoando em seu estômago.
- Régia você me faz ser repetitiva; empobrece meu vocabulário, pois nada que eu diga vai poder traduzir o real significado do que estou sentido.
- Sorte minha ser de poucas palavras, porque estaria na mesma situação que você.
A superfície da pedra era lisa, polida pelo contato constante com a água. Deitaram lado a lado, de frente uma para a outra. Em um escorregar de mão, deixou-se alojar entre as pernas da secretária, que cedeu espaço para que a líder alcançasse plenamente a vagin*. Por sua vez, Régia também recebeu a mão da secretária. Olhos nos olhos, iniciaram o rito hipnótico de se tocarem memetizando uma a outra. Cederam a vontade de olhar ao desejo de tocarem suas línguas e o beijo também era ritmado pelos toques. Régia prendia Clara firmemente, deixando seu braço amparar a cabeça dourada; por sua vez, Clara buscava suster o corpo para poder mover o braço e continuar o delicioso vai e vem dentro da líder. Não sabia o que era mais excitante: ter Régia ou estar fazendo amor tendo a Natureza como testemunha; exposta, assim, à brisa, ao sol, às águas. Era o ambiente que sentia em Régia.
Amaram-se em contemplação. Régia sentia seu orgasmo chegando, mas sabia que Clara ainda não estava pronta. Aprendera seus sinais sem muito esforço, tamanha sua necessidade de ser dela. Reteve seu prazer, desviando seu pensamento para o cantar dos pássaros e só retornou dele quando Clara deixando sua boca, colocou o rosto em seus cabelos e murmurou juras de amor, entremeadas de palavras sensuais. Então, Régia deixou-se levar pelo rítmo de Clara, entregando-se mais uma vez e, dali em diante, quantas mais fossem necessárias. Um belo grito de amor ecoou pela Natureza, obtendo retorno dos pássaros em seus trinados alegres e extasiados.
***
***
The gods may throw a dice
Their minds as cold as ice
And someone way down here
Loses someone dear
The winner takes it all
The loser has to fall
It's simple and it's plain
Why should I complain.
(The Winner Takes It All - Abba)
- Tá sem sono, fia?
Luciana fora interceptada por Ruth no amplo corredor. Era tarde, mas não tão tarde; ainda demoraria para amanhecer. Becky estava adormecida, ultimamente desistira de impedir que Luck vagasse pela casa. Usar de sex* para tanto, tornaria por demais banal o amor que compartilhavam.
Talvez pelo fato de estar se encaminhando para o quarto do filho, ao ouvir a jovem senhora chamá-la de "filha", o que soou tão carinhoso, de repente a fez sentir forte a necessidade de entender o que era ser mãe. Pensou nas tantas vezes que chamou seu filho e a alegria que sentia quando ele respondia; assim como pensou que todas as vezes foram nada perto das muitas que o chamou e soube nunca mais obter respostas. Sem falar no encanto e desarme ao ouvir a pequena criatura chamando-a de mãe.
De todas as pessoas em sua vida, Ruth com certeza era a mais indicada para entendê-la. Além da sabedoria já demonstrada, havia a experiência. No seu interior, não bastasse essas evidencias pontuais, Luciana simplesmente sentia-se segura com ela.
- É um estado natural, Ruth. Já nem mais penso que perdi o sono, apenas penso que durmo o suficiente. - tentou desdenhar a gravidade dos transtornos de sua alma.
- Sei que a casa é sua, mas vamu beber um chá na cozinha?
- Minha casa, qualquer que seja ela, será sempre sua também. Mas, aceito se você fizer "aquele" seu café.
- Vamu prá cozinha!
Luciana percebeu que a jovem senhora se desenrolava bem em sua cozinha. Becky dissera que ela e D. Maria Luíza viviam muito juntas. A médica não se admirou com isso, pois em uma casa tão suntuosa como aquela, uma pessoa como a mãe de sua noiva se sentiria muitíssimo mais à vontade no reino da cozinheira.
- Você se entendeu bem com a Maria Luíza. Ela morre de ciúmes dessa cozinha dela! - Luciana sorriu, abrindo a geladeira, para pegar água.
- É, eu sei. Num quero ficá bisbilhotando e nem mi intrumetendo, mas ela é uma cozinheira de mão cheia e tá me ensinando muita coisa. Inclusivi coisas que ocê gosta e coisa que minha minina aprendeu a gostá aqui. Ela é uma muié muito sábia.
- Sim, ela é. Leal como poucas. - a médica concordou, bebendo mais um copo de água gelada.
- Eu sô grata pruque percebo que a D. Maria Luiza gosta da minha minina e num fica julgando ela, como aqueles pais da Dra. Marcela. - disse, esboçando tristeza, enquanto servia o café fumegante para a médica.
- Os pais de Marcella são vendidos. Não posso nada contra eles, a não ser comprá-los. E, nem isso preciso fazer, pois a filha é uma profissional competentíssima, meu braço direito e eu a remunero muitíssimo bem. - os olhos azuis estavam glaciais, denotando todo o desprezo que a médica sentia por eles, enquanto bebia o café, saboreando o liquído quente e escuro. - Delícia, Ruth!!! - sorriu de prazer.
Luciana prestou muita atenção ao fato de Ruth se magoar por sua filha, a forma como mexeu com ela. Entendia essa defesa pelos filhos. Nunca pode proteger o seu. Ficou olhando fixamente para os olhos verdes que não se desviaram. De certa forma, elas estavam completando a conexão.
- Achu que café num faiz nada bem prá o sono perdido. - Ruth tentou mudar o clima.
- Não seria o café que me faria deixar de recuperá-lo.
Ficaram em silêncio.
- Pruquê cê num vorta pra cama; ainda farta muito pro amanhecer. Minha fia deve tá sentindo sua farta. - disse, sabendo o quanto Becky detestava essas noites da doutora.
- Ela já se acostumou. - a médica denotou certo pesar.
- Issu é bom ou ruim?
- Ruth, Becky não gosta que eu perambule pela casa; mas, apesar de se oferecer a mim de todas as formas, para me cansar....- percebeu a senhora corar - ...bem, você é adulta e sabe o que fazemos ....
- ...ela é minha fia....sabe como as mães são...
- ..não, não sei...nunca saberei....- a médica levantou-se bruscamente, abrindo a porta da geladeira, como disfarce.
Ruth viu nos olhos da voluntariosa mulher a raiva tão mencionada, mas nunca vista. Pensou rapidamente no que havia dito. Sabia do quarto do filho e lembrou que Becky mencionara sobre a inconformidade da médica em perdê-lo. Juntou o quebra- cabeças.
- O que aconteceu com seu fio? - perguntou, sem hesitar.
- Morreu.Você já sabe!- a resposta brusca, ainda encarando o interior da geladeira.
Ruth levantou e, com um gesto que para muitos seria uma extrema ousadia, pegou a médica pelo braço e a sentou na cadeira, com certa impaciência.
- Essi morreu que ocê usou, num vai mi deixá sastisfeita, não, dotora. Essi morreu gelado não é o que tá no seu coração. - disse, cutucando o peito da médica.
Luciana se sentiu desafiada: qualquer contato físico sem seu consentimento, era para ela uma invasão. Olhou com ódio para a jovem senhora; mas, ao mesmo tempo, essa ousadia das mulheres Staionoff a deixava desarmada. Aqueles olhos verdes tão acolhedores, quentes, denotando compreensão; a compreensão que Becky se esforçava por ter, mas não alcançava por não ter a experiência.
- Essi seus zóios lindos estão cheios de maus sentimentos, estão cheio de confusão. Seu fio num pode sê a carsa disso tudo. Eu perdi uns antes de poder ter as mininas. Cê pode achar que num conta, pruque nasceram morto; mas conta. Achei que o primeiro ia sê pior; mas o segundo foi triste também....dois mininos - riu de forma resignada - Tudo que Andras quiria: os machinhos que me cobrou a vida toda. Por conta dissu, virei a imprestávi; nem fio macho eu consegui.- olhou para as mãos.
- Você teve outras chances. - a médica falou secamente.
- É....tive. Rebecca...Lillian.....- a jovem senhora tinha os olhos lacrimosos -... nunca esqueci dos meus mininos.
- Nem eu do meu. - a médica começava dar sinais de estar mais amansada.
- Mas ocê se revorta com a perda. Num si conformô. - percebeu a umidade nos magníficos olhos azuis - Cê disse que Rebecca a salvou. Mas, salvo di que, si ocê ainda se turmenta?
Estava cansada de fugir ao que sentia. Estava exausta por lidar todas as noites com aquela criatura peçonhenta que rondava sua cabeça e a fazia se sentir miserável, incompleta, impotente, perdedora. Havia essa Luciana cheia de acusações que cobrava lealdade. Cobrava que ela tivesse, no mínimo, a culpa por admitir que Becky valeria passar por tudo novamente. Essa figura espectral puxava a médica para uma viagem muito espinhosa. A lucidez que teimava em manter alimentava essa quase esquizofrenia.
Olhou demoradamente para a mãe da mulher que amava, sabendo que tudo o que queria era se abrir com ela.
- Becky me devolveu a coragem para entrar naquele quarto novamente. - pegou mais café.
- Ce tá dizendo que num entrava lá antes?
- Ruth, eu saí daqui há quase oito anos atrás para uma viagem de férias, no auge de uma vida feliz: profissional reconhecida, o marido ideal, o filho perfeito. - sorriu amargamente - Saí daqui vitoriosa; voltei um trapo. Meu marido morto, meu filho morto e eu morta-viva, após um mês de completa ausência desse mundo, para o qual retornei sem nada. Apenas uma enorme quantia de dinheiro e bens. Desde então, havia me fechado; vesti uma couraça intransponível. Nunca mais entrei naquele quarto; nunca mais me permiti falar sequer o nome dele; o riso de crianças passou a me irritar. - olhou diretamente nos olhos verdes atentos - Sabe o que é isso para uma pediatra? Não poder pensar no bem-estar de crianças? Eu destesto a vida que a mais miserável criança de rua tem e meu filho, um bem-nascido menino, nunca poderá experimentar. Pior: eu, uma famosa médica que se fez reconhecida salvando bebês, não fui capaz de salvar o meu. Minha carreira perdeu o sentido. - olhava fixamente para a xícara vazia.
- Por isso ocê quiria largar tudo, antes de conhecê minha fia?
- É. Meus negócios já não me ofereciam desafios e distração; envolvimentos com homens ou mulheres não me diziam nada, além de algum exercício sexual; vida doméstica não existia; morrer seria uma solução bem-vinda mas pouco manipulável, desde que eu, sinceramente, apesar de ter pensado várias vezes, nunca tive coragem de dar cabo de mim mesma. Sabe, Ruth, eu não tinha nada; mesmo após todos os anos decorridos, eu era vazia. Ou, por outra, cheia de desprezo, indiferença. O esquecimento saudável eu nunca tive ou quis ter; apenas apagar essa fase da minha vida pareceu o lógico a fazer. Você entende a palavra camuflar?
- É uma palavra feia...só intendo isso. - disse, com certa ingenuidade.
Luciana só pôde sorrir. Que adorável mulher tinha diante de si. Sim, era uma palavra feia para falar. E para viver sob ela.
- Ruth, eu criei disfarces para mim. Pior: pintei máscaras mais assustadoras do que as já conhecidas. Sem Thomas, eu só poderia ser respeitada se fosse pior do que ele e, nisto, fui uma aprendiz dedicada. Além do sobrenome, meu marido me deu o gosto por estar no comando. Todos sempre viram em mim uma exploradora; uma golpista. Não estavam totalmente errados; mas ao final, eu considerava Thomas além do que eu mesma imaginava.
A médica tinha verdadeira gratidão pelo marido; embora, soubesse que Becky não aprovava o que ele despertara em sua esposa. O brilho no olhar de Luciana era genuíno.
- Eu achu qui também fiz ....camuflá....dispois dos mininos e das mininas, mi escondi atrás de sê esposa e mãe. Também nunca deixei me olharem com dó. Num quiria vê a muierada me oiando torto. Andras me humiava o suficiente. - percebeu os olhos de Luciana fixos nela - Cê amava seu marido?
- Eu abri mão de muita coisa para chegar em Thomas e ele valeu o esforço; mas ele nunca foi algo que nasceu de um sentimento puro; ele era parte de um acordo. A idéia de termos filho foi uma urgência contratual, um ponto passado no papel e que eu nunca poderia violar se quisesse sair do acordo com algum ganho.
- Acordo? Contratuar? Ganho? Cês num casaram?
- Ruth, eu casei de todas as formas possíveis, por inúmeras imposições: religião, negócios, família, bens e partilhas. Thomas era um homem muito rico e que soube enriquecer cada vez mais, porém era sem um familiar vivo. Sem herdeiros. Ele tinha sessenta anos quando nos casamos; eu, vinte e seis. Para ele, filho era o que de mais urgente premia em nossa união. Eu era a escolhida para ser a mãe dos filhos dele, por tudo que eu agregava de valioso aos seus olhos: beleza, inteligência, arrogância, autoritarismo,frieza, desprezo.
Ruth ficou imaginando como Rebecca lidava com essa mulher, com tantas características contraditórias e diferentes de sua filha que é sempre dócio; sem qualquer palavra de rancor ou brutalidade. Thomas era um homem tirano e fez de Luciana sua herdeira em tudo. Mas, até que ponto creditar tudo ao médico? Como sua filha encontrou as brechas? Será que Becky não estaria caminhando para uma dramática decepção?
- Apesar da urgência, por problemas físicos de Thomas, esperamos ainda quase três anos para termos nosso filho. - Luciana continuou, após o silêncio de Ruth - Contratualmente, eram previstos dois filhos em quatro anos. Antes de ter os filhos, eu nem deveria pensar em deixá-lo. Após os filhos, cada ano de casamento valeria uma indenização acordada entre nós.
- Vixi! Qui mistura danada. Fica inté difici enxergá amor. - Ruth sacudiu a cabeça.
- Ruth, amor nunca mais existiu para mim a partir do momento que me casei.
- Cê quiria fio ou era só essa coisa contratuar? - Ruth tentava não demonstrar o pesar que as palavras da médica causavam, sem falar em sua preocupação com Becky.
- Eu queria carreira, posição e dinheiro; ter o filho, naquele momento, estava alterando os rumos da minha vida. Mesmo Thomas teve seus planos atrapalhados, pois naquele momento estávamos prestes a partir para uma estadia no exterior, para um treinamento sobre cirurgias realizadas em fetos, para que eu coordenasse a área a ser implantada em nosso hospital.
- Vixi, cê faz isso?
Luciana sentiu, após muitos anos, verdadeiro orgulho profissional em ver a reverência no rosto castigado.
- Sim. Sou cirurgiã pediatra, especialista em cirurgias fetais. Mas, enfim, naquele momento da minha vida eu queria ser rica, reconhecida e poderosa; maternidade me era insignificante: até pulga é mãe.
- Credo, qui coisa feia di si pensá. - a jovem senhora se benzeu
- De qualquer modo, com o atraso no planejamento, eu pude desfrutar do que era ser esposa do Prof. Dr. Thomas. Ainda que fosse a aura dele a me fortalecer.
- Cê diz que só era respeitada por carsa dele? Iguar a Becky cum ocê?
- Rebecca usou de amor para conquistar respeito. Eu, após engolir muita coisa na vida, não tinha necessidade de ser amável, e não via nada na minha frente além de superioridade.
- É, mais ela acha que ainda é respeitada pelo medo que o povo tem do cê.
Luciana ficou pensativa, mas não fez comentário, apenas continuou.
- Durante a gestação coisas muito conturbadas aconteceram e tive a ameaça de aborto: foi quando tudo mudou! A ameaça da perda me fez desenvolver um apego, uma posse irracional sobre minha criação. Com o nascimento...- os olhos brilharam - ...Ruth, agora nem preciso dizer, pois você me entende.
- Podi crê!
Luciana iluminou o rosto.
- Nós não desgrudávamos dele. Thomas o exibia como a um troféu; eu o protegia, esquecendo de tudo. Continuava a ser a mulher voluntariosa, mas agora eu tinha para quem olhar com amor verdadeiro; mesmo que no segundo seguinte, meu olhar fosse glacial e aniquilasse quem atrapalhasse meu momento junto dele.
- Do jeito que ocê faiz com minha fia. - a jovem senhora ponderou, pensativa.
Luciana não retrucou: era verdade!
- Então, devido a uma situação estressante aqui no Brasil, resolvemos viajar. Somente nós três e a babá, que só não dispensei, pois queríamos ter um pouco de vida noturna e ela era de nossa inteira confiança. Ruth, eu fazia questão de realizar todas as tarefas que um filho demanda, redobrando meus cuidados de mãe e pediatra. - pegou bule, que estava vazio.
- Quê mais?
- Sim. Se você quer me ouvir, será uma longa noite.
Ruth se movimentou novamente e, desta vez, surgiu com um bolo que ela fizera para o café da manhã, junto com D. Maria Luíza. Era o preferido da doutora.
Enquanto observava o movimento, a médica deixava seu pensamento se organizar para o que ia narrar. Era difícil, mas sentia que aquele era o momento. Ruth era a escolhida.
- Ruth, eu dirigia a van; derrapamos, quando fui jogada fora da estrada, escorregadia pela neve, por outro veículo. A primeira colisão foi forte na lateral da van o que fez o carro rodopiar e ficar no sentido contrário, então o caminhão nos pegou do meio para a frente da van, fazendo capotar.
Ruth estava paralisada, segurando firmemente o prato com o pedaço de bolo, a meio caminho de oferecer para Luciana.
- Thomas foi decapitado; a barra da muleta que ele usava atravessou meu corpo, cruzando transversalmente pelo útero, causando um estrago em meus órgãos reprodutores; fiquei em coma por quase um mês; quando restabeleci a consciência, restavam-me as cinzas. Eu estava com uma perna quebrada e o ombro deslocado também. - o bolo no prato era esmigalhado com o garfo.
As lágrimas rolavam no rosto castigado, embora de forma discreta e silenciosa.
- Nosso filho saiu com vida do acidente, mas não resistiu. Dizem que fizeram tudo, mas eu li o prontuário e sei que poderiam ter feito mais. Éramos ricos, reconhecidos, mas na hora da emergência, fora de nossos domínios, tivemos que nos submetermos ao precário serviço de saúde norte-americano. E eu, devido ao coma, fui trazida de volta ao Brasil. Marcella, Arthur e Victor providenciaram tudo.
- A babá..- foi a única coisa que veio a mente de Ruth.
- Sobreviveu também. - a médica falou com certa exasperação.
Socou a xícara na mesa, quebrando a delicada peça.
- Ruth, eu poderia ter feito algo; eu sou médica, muitíssimo bem preparada; devolvi a vida a muitas crianças; fiz cirurgias em órgãos menores que azeitonas; dediquei horas e consumi horas em salas de cirurgia; para no fim, não ser capaz nem de reter a única vida que foi realmente dada por mim! - agora ela tremia.
Luciana, de repente, ponderou que se pensasse friamente, preservara tudo o que esquematizara para conseguir, sem ter que ficar atada ao professor pelo resto da vida. O filho não era para ser um problema, apenas a parte dela no acordo. O que dera tão errado? Como deixou a emoção se sobrepor ao seu racional?
- Ruth, nada me foi tirado das coisas materiais que almejei. Se fosse só Thomas....bem, ele era um negócio. Sem ele, os negócios seriam meus. Eu não deveria nunca ter imaginado que poderia ser mãe; deveria ter me contentado em ser apenas uma reprodutora. Não precisava de amor de filho, de marido, de qualquer um; pior: não precisava amar ninguém! Estava convicta e vivendo bem com isso.
A jovem senhora, mesmo não querendo, enxergava o monstro que guardava o coração da mulher a sua frente. Essa mulher quase sentia orgulho em não demonstrar qualquer nobreza de sentimento. Porém, o monstro não parecia tão faminto mais. Talvez essa saciedade o tenha deixado menos alerta. Será que Becky entrara durante um cochilo desse monstro de barriga cheia?
- O que cê falô é cruer. - disse, beliscando o bolo com o garfo.
A médica novamente a ignorou, pois estava disposta a falar, sem se interromper, com medo de se fechar novamente.
- Por que fui achar que poderia ser bem recebida nos braços do amor, depois de ter fechado a porta na cara dele deliberadamente? Porque não poderia admitir que algo me desse as costas, tão acostumada a chutar a todos e a tudo e tê-los novamente rastejando para mim. Caí numa armadilha. Qualquer que seja o meu credor, pinçou e confiscou o que de mais precioso eu consegui fazer e mais: a minha única tentativa de me reconectar com o amor.
- Tirou a única coisa que era sua realmente. O resto, ocê tomo de arguém. Ele num nasceu do seu amor no seu casamento; ele nasceu da compaixão de ocê cum ocê. Primeiro foi sua mesquinhez e orgulho falando arto e fazendo ocê num querer perder; o gostinho de poder dar a vida mexeu antes com a muié qui gosta de poder. Essa criança veio prá aliviá sua carga de sentimentos ruins que ia destruí ocê.
- Ruth, ninguém dirá que sou uma perdedora, pois preservei o meu exterior, minha tão acalentada posição social. Mas, eu sou um nada!!!Não confio em ninguém. Escolho as pessoas após ler uma ficha de antecedentes; exijo que sejam as melhores; enfim, tudo é comprado, é forçado, é forjado em um calor das várias batalhas que internamente eu perdi. Externamente , tenho que ganhar como compensação, porque eu me derrotei. Fui soberana me concedendo a criação de alguém para me amar. Ironicamente, mais uma vez, eu o tirei de mim. Eu provoquei a morte do meu filho!!!!! Eu me impus uma derrota contra a qual não tive revanche. É isso que apaguei da minha vida, junto com qualquer possibilidade de me enganar de novo.
- Minha fia tá nisso como?
Ruth se espantou com o brilho instantâneo nos olhos azuis tão intensos. Era como se um véu fosse tirado. A médica suavizou totalmente a expressão. A voz modulou-se
- A lanterna dos afogados.
- Quê?
- O farol que ilumina o caminho de um barco sem rumo.
A frase foi precisa. Da mesma precisão de tudo que foi narrado, com a mesma convicção, porém com sentimentos opostos.
- Ruth, eu posso proteger sua filha de todos, mas temo não poder proteger de mim. Eu quero me agarrar a ela, mas sei que ao invés dela me resgatar dessas águas, eu posso trazê-la para baixo comigo, apagando o brilho magnífico.
- Confesso pro cê qui também tou ficando preocupada.
Luciana estava trêmula, as lágrimas escorrendo, o olhar era desafiador ainda; entretanto, suas palavras era de quem estava se rendendo.
- Minha fia num é seu fio. E num é ocê que se agarra nela. Ela quis ocê. Ela sabe quem ocê é. Num sei como, pruquê, mais suas camuflagi num enganam ela. Mais ela num vai tirá issu do cê, si ocê num deixá. Si ocê num fizer as pazes com seu amor por ocê mesma. Cê disse que num lamentava mais. O qui aturmenta tanto ocê?
- Becky me fez lamentar meu filho novamente, porque ela me fez recuperar um amor que eu achei possível acreditar. Em vista disso, não lamento a perda de meu filho. Não lamentar me dá outra culpa: eu o trocaria por Becky. Se tudo ocorresse de novo, só para eu chegar a ela, não hesitaria em passar novamente. Culpa, lamentos e amor não são sentimentos para mim. Não sei lidar com eles, tenho medo, não tenho controle. - começou a alterar a voz. - Tenho ódio em pensar na possibilidade de perder novamente. Eu quero com todas as forças acreditar que não vou causar dor ou sofrimento a Becky. Mas não posso arriscar, porque não domo essa sina que me acompanha! - deu um murro na mesa, assustando Ruth - Eu sei que ela não é meu filho, e isto me atormenta ainda mais, pois ela tem liberdade para escolher. Ela pode me deixar a qualquer hora. Por isso não quero ela perto das coisas do meu passado! Esse que deixou você arrepiada. Ela é inocente. E eu tenho víboras guardando meu ser. Coisas que envenenam. Se alimentam da bondade, sugam, tiram a doçura. Enquanto era apenas eu, esses fantasmas não me causavam mal. Agora, não suportaria ver Becky ser corrompida por mim, por meus erros. Não suportaria vê-la saindo da minha vida decepcionada, magoada, ferida. - estava perdendo as forças - Mas, sou muito egoísta para abri mão dela. - disse, num fio de voz, estrangulada pelas lágrimas.
D. Ruth se sentiu sem ação ao ver a mulher fechar os olhos e baixar a cabeça na mesa, o corpo sacudido pelo pranto. Orou silenciosamente pela salvação daquela alma conturbada. Ergueu os olhos e soube quem seria esse anjo redentor. Levantou-se da mesa.
As mãos que afagaram Luciana estavam trêmulas também, mas eram quentes e suaves. Reconfortantes.
- O egoísmo é seu doutora, mas a escolha é minha.
Assustou-se com a voz suave, erguendo a cabeça e vendo por entre as lágrimas que turvavam seus olhos, os olhos verdes dela. Sentiu o calor invadir-lhe o corpo, aquecendo sua alma. Não via a compreensão, pela experiência de vida, contidos nos olhos de Ruth. Via a sua lanterna, o seu farol que se deslocava pelo oceano para guiá-la pelas mãos no mar bravio e na noite escura.
- Eu te amo! - a médica leu os lábios que a beijaram com ternura.
Agarrou-se a ela como jamais se agarrara a algo, deixando o impacto do calor derreter a geleira em seu coração, transbordando o corpo, numa enxurrada poderosa. Estava segura naqueles braços, naquele momento. Chorou sem se importar.
- Schh....Schh....Vem amor, vamos dormir.
Ruth viu o casal sair de mãos dadas. Ali, diante de seus olhos, sua menina fez a passagem para a mulher. Becky era forte. E Luciana a amava verdadeiramente. As duas se pertenciam. A menina enternecia a mulher; a mulher protegia a protetora.
- Vixi! Tou ficando véia mesmo! - tratou de arrumar a cozinha, ainda com as lágrimas escorrendo.
***
***
Parecia cena de filme de espionagem: Régia com o pé apoiado na cadeira e um mapa da fazenda aberto sobre a mesa; João apoiado no cabo do facão, olhando com atenção para a líder; Mirtês, com o bule de café, enchia as canecas de todos, menos a de Clara que tomava chá, atenta ao que ocorria.
- Mirtês, é certeza que a carga foi adiada?
- É sim. Tiveram dificurdade com uma das encomendas e tiveram que mudar tudo pra manhã.
- Ótimo. Ganhamos tempo. Se fosse hoje, teríamos que improvisar ainda mais. - Régia disse, sorvendo o café com muito gosto.
Durante a tarde, Clara ficara sabendo que Régia infiltrara mulheres na fazenda vizinha. Mirtês escolhera algumas caboclas mais velhas e de confiança.
Também ficou sabendo que Andras estava atuando de agente duplo: conquistara algum prestígio ao alardear que presenciara a morte de Régia para o inimigo e também por derramar dinheiro em jogo; por outro lado, ele atuava obrigado e vigiado por João.
Clara questionara a lealdade dele, mas Régia dizia que era um mal necessário e que sabia com quem lidava.
- João, o porqueira do Andras conseguiu o que pedimos?
- Consiguiu, mas achou mió comprá as armas do que surrupiá, pois a contagem é rigorosa.
- Mas, está tudo guardado lá na caverna, então?
O caboclo confirmou, bebendo o café.
- Mirtês e Clara, amanhã vocês irão até a cidade. - rapidamente, escreveu algumas linhas em um pedaço de papel e entregou a Clara - Vou precisar dessas coisas, do jeito que está escrito; para cada uma, dei duas opções.
A secretária estranhou, ameaçou fazer perguntas, mas calou-se ante a expressão de Régia. Apenas acenou com a cabeça, recebendo um afetuoso beijo na testa.
- Amanhã, todas as coisas devem estar na caverna o mais cedo possível. Quero falar com Andras, João.
- Trago ele aqui.
- Então, até amanhã!
Os caboclos saíram.
Régia e Clara sentaram-se no degrau do rústico alpendre, abraçadas.
- Você sabe que, apesar de parecer divertido, será arriscado o que iremos fazer, certo?
Clara apenas suspirou, sentindo o cheiro delicioso da líder.
- Não vou expor você ao desnecessário. Temos mais duas pessoas de confiança e não há necessidade da sua presença....
- Régia, eu quero estar lá. Eu vou estar lá. Se é perigoso para mim, é para você e, sendo assim, não faremos. - beijou o biquinho que a líder fazia - Ou faremos juntas, ou nada feito.
Olharam-se.
- Eu quero ir para casa. Quero ter você longe dessa fazenda que nada tem a ver comigo. ...- olhou ao redor..- este ínfimo pedaço dela vai ficar para sempre na minha memória, mas a fazenda....não tem lugar nela para mim. - a secretária confessou.
- Entendo. Mas, você sabe que aqui eu poderei ser mais útil; na cidade eu não tenho o que fazer. Não vou ficar vivendo às suas custa e nem de favor à Luciana. Aqui, com todos os seus planos, posso me infiltrar e ficar acobertada por um tempo, prestando assistência ao povo e aos técnicos que virão.
- Amor, sei que você diz não ser interessante, mas não seria melhor se entregar à polícia federal? Eu falo com a Sandra, arrumo bons advogados...
- Clara, com a PF eu estou até bem: eu acabei com o cara e ainda deixei um dossiê com algumas informações. Eu temo é ser colocada novamente na mira da máfia. Aliás, não temo por mim, mas pelas pessoas que agora me cercam. Não suportaria saber que você, Anna, Luciana , Becky ou Paz sofreram qualquer dano por minha causa.
- Mas...não tem aqueles programas de proteção às testemunhas?
- Amor, nem sei se me encaixo nele, pois eu posso ser considerada co-autora em alguns crimes; mas, mesmo que me encaixasse, esse programa é frágil demais. Eu mesma liquidei algumas dessas pessoas protegidas. Quando a máfia quer, ela faz. Existem muitos federais agentes duplos, como eu fui. No meu caso, eu seria uma depoente especial pois meu âmbito é federal. E provavelmente, viveria em regime de cárcere.
- Então, você terá que se acostumar a viver comigo dentro das minhas posses. Para que as coisas que quero com a fazenda dêem certo, eu vou repassá-la ao governo e não pretendo, mesmo que permaneça dona, viver aqui.
- Eu pensava que poderia contar com a ajuda de uma pessoa influente, mas nunca mais ouvi falar dela. Enquanto eu estiver incógnita, posso me sentir um pouco menos apreensiva. Vamos esperar um pouco. Aproveitar essa brecha que estamos vivendo. Sei que terei que fazer algo, só preciso saber o quê.
- E se sairmos do Brasil?
- Pode ser...mas, vamos nos concentrar nessa nossa missão de amanhã. - a morena tentou mudar de assunto.
Clara estava preocupada. Ambas estavam. A situação de Régia era delicada demais. Era difícil para a secretária ter que escondê-la o tempo todo; e era difícil para a líder viver sem poder garantir seu sustento e manter certa dignidade.
Sentando no colo da líder, Clara fitou demoradamente os olhos azuis. Recebeu total atenção e mesmerizou Régia com seus verdes intensos. Com a mais genuína vontade e pureza, Clara beijou Régia. Não foi um beijo para ser sensual, mas para ser afetuoso, amistoso, carinhoso. Depois, encostando a cabeça no ombro dela, apenas quis o abraço.
- Não sei dizer o quanto a amo. O significado da palavra não faz jus ao que sinto. É maior do que eu! - deu uma risadinha - Eu estou feliz demais! Nunca temi a felicidade, mas acho que é porque nunca a tive de fato. Agora, entendo e me assusto.
- Eu sempre assusto você. - Régia fez chacota, tentando amenizar a seriedade do momento.
- Estou assustada com a força desse nosso amor; as revoluções que ele causa e vai causar em mim. E mais assustada com o fato de que não me importo mais com coisa alguma, além de nós duas. Nada me impedirá de ter você. Nada!
Régia levantou-se com Clara em seu colo. Entraram na tosca cabana com os lábios em intenso trabalho de descobertas.
***
***
A caminhonete chegou até a cabana. Dali, a carga que carregava foi dividida em cavalos e cada cavaleiro seguiu por trilhas diferentes; mas, ao final, todos se encontraram na caverna.
- Algum sinal de sermos seguidos? Conseguiram tudo? - Régia perguntou, usando um avental, óculos de proteção e luvas.
- Fica sussegada, que ninguém seguiu nóis. Fizemos um zigue-zague por aí. - Mirtês tranqüilizou.
- Acho que provocamos mais curiosidade na cidade, devido ao que compramos. Todos queriam saber se vamos iniciar alguma plantação. - Clara disse, após esboçar espanto pela indumentária de Régia, antes de dar-lhe um afetuoso beijo. - O que vamos fazer?
- Vamos descarregar tudo primeiro. - a líder respondeu, mal disfarçando um sorriso zombeteiro.
Era interessante ver o amontoado de coisas, por suas disparidades: caixas de papelão vazias, frascos de éter, galão de diesel, embalagens de óleo lubrificante, sacas de fertilizantes, saco de açúcar, fermento, coloral, velas compridas, canetas esferográficas, produto de jardinagem, fitas adesivas, algodão, tubos de PVC, café, água, panelas, colher de pau.
- Já sei: vamos fazer um bolo tão ruim, que vamos detonar o inimigo!!!! - Clara lançou a piadinha.
- Amor, vamos detonar o inimigo, mas não será pelo estômago. - a líder a enlaçou pela cintura, dando-lhe um beijo ardente.
- Se não fosse meu ciúmes, deixaria você beijar todos assim. Isto é realmente incendiário! - a secretária respondeu, pronta para outro, mas interrompidas pelo ataque de pigarros das pessoas presentes.
Régia ergueu a sobrancelha, olhou para todos com o mais intimidante dos olhares. Cada um arrumou uma coisa para organizar.
- OK. Vamos organizar dois grupos: Clara, Mirtês e Daniel separem esses ingredientes; João e Venceslau vêm comigo, ficamos com o resto das coisas.
No decorrer da tarde, Clara aprendeu como fazer misturas químicas. Régia acompanhou tudo de perto, fazendo algumas demonstrações que deixaram a secretária boquiaberta com as coisas que sua companheira sabia.
- Nossa, cada vez mais me surpreendo com a coisas que você faz, amor!
- Tenho muitas habilidades.
- Como tem!! E como tem!!!
Ao anoitecer, seis pacotes de tamanho médio repousavam na parte de trás da caminhonete e os cavalos estavam carregados com sacolas recheadas de tubos.
- Só não entendi para que o café, se não utilizamos! - Clara observou.
- Vamos utilizar agora: Mirtês, pode fazer um bule para nós? Assim repassamos os pontos do plano.
- Qual é o plano? - Clara sorriu, mostrando as familiares ruguinhas no nariz.
Por volta da 1 h da manhã, a pista estava precariamente iluminada, com lamparinas improvisadas.
Na beirada dela, três caminhões carregados com animais, peles e armas aguardavam a chegada do pequeno avião. Além dos dois integrantes de cada veículo, um outro jipe vinha logo atrás. Todos fortemente armados.
Tudo aconteceu muito rápido, como era o planejado.
Tão logo o avião pousou e seus dois tripulantes chegaram perto do chefe da quadrilha, que estava ao lado do pai de Rebecca, a ação começou.
Junto aos caminhões estouraram as bombas de fumaça, lançadas por Mirtes, Clara e Daniel. Os homens ficaram assustados, achando que fossem os federais. Devido à fumaça, não atiraram com medo de se acertarem uns aos outros. Os ocupantes dos caminhões desceram correndo, atordoados pelo barulho e fumaça.
- Que diacho é isso!!! Não é ataque com arma de fogo, voltem para os caminh...- o líder parou, quando viu os caminhões indo embora.
Clara e os outros dois tomaram as cargas e levaram para longe da pista, ainda lançando as bombas de fumaça conforme passavam pela pista.
Se tudo transcorresse exatamente como planejado, ninguém sairia ferido.Talvez um pouco intoxicado. A idéia, após a retirada dos caminhões, aproveitando a fumaça deixada, era a colocação das seis caixas ao longo da pista, na linha de pouso do avião. Régia e os outros dois fariam isso, e depois, de um lugar seguro, com os fuzis com mira comprados por Andras, atirariam nas caixas, que continham o explosivo.
- Isso num é coisa dos federais. Eles num iam brincá assim.
- Num é mesmu. É coisa daquela muié machu indiabrada. - Andras falou.
- Que ce tá falando, homi. Ela num morreu? Cê disse que viu? Desembucha! - o líder da gangue dizia, entre uma tossida e outra.
- Oia, eu fui obrigadu...mas cê pode pegá uma delas.
Eram seis caixas e três atiradores: duas bateria de três tiros, em caixas cruzadas, com intervalos contados de 60 segundos. O estrago previsto por Régia compreenderia seis grandes rombos ao longo da pista de cerca de 600 m por 30 m, com pouco fogo para não provocar a explosão do avião o que poderia causar um incêndio na vegetação, embora a pista ficasse no descampado. A última explosão abriria o rombo próximo ao local onde estava o bando reunido, impossibilitando a fuga e os colocando nas mãos dos federais.
Eles estavam sem comunicação e o único sinal seria o primeiro tiro a ser dado por Régia. Depois contar até 60 e atirar. O último tiro seria o de João, dando tempo de Régia coletar todos, inclusive Andras, para irem embora.
Os caminhões não deveriam ser levados para muito longe, pois os federais deveriam ser alertados pela explosão e fazer a chegada a tempo de pegar a mercadoria e os contrabandistas. Clara avisara Sandra e pedira a intervenção dela.
A conversa que Régia tivera com Andras era apenas para que ele se afastasse do bando na hora das explosões e viesse para um corredor paralelo à pista, do lado esquerdo, mais ao centro, onde o recolheriam. Agora, diante das explosões das bombas de fumaça, o caboclo pensou que aquilo eram "as explosões" e ficou imaginando como aquilo poderia causar mal. Resolveu apostar suas fichas mais uma vez.
- Elas tão mi esperando nu lado esquerdo da pista.
O chefe da gangue não pensou duas vezes em sua reação: colocando uma arma na cabeça do caboclo, o empurrou para dentro do jipe, indo para o centro da pista, com a fumaça já se dissipando.
- Qui cê..tá..faz...fazendo? Eu tou do seu lado!!!! - Andras gaguejava, tendo a arma apontada para si.
- Ela num sabi. Se ela ia vir te ajudá, então cê tem argum valor, seu bosta. Dispois, cê tava nessa cum elas. Se ficar vivo, deixo cê ir, mas si morrê, num faiz farta!
- Eu...eu....elas...ela...num me deixa morrê. - dizia, trêmulo.
Régia fez o primeiro disparo e a explosão foi seca, provocando grande abalo. O segundo disparo veio precisamente 60 segundo depois.
Sem saber o que acontecia, o chefe e o pai de Rebecca, ficaram no meio do fogo cruzado. Os outros homens trataram de correr, ao sentirem a terra tremer.
Pela mira da arma, Régia viu tudo: o farol do jipe a alertou e ela viu Andras, arrastado pelo homem com a arma, no pescoço, descer dele. Não tinha tempo de suspender tudo. Mesmo se parasse os tiros, o calor que começava a emanar causaria a explosão das outras caixas. Mirou os outros dois colegas e atirou, não os acertando, mas chamando a atenção. Dessa forma, neutralizou as detonações. Esperando que ao menos João tivesse a presença de espírito de ver pela mira, Régia fez um sinal. Após o intervalo combinado, não houve disparos, o que significava que haviam entendido.
A terceira explosão foi ouvida. Ou seja, tinha ganho algum tempo a mais, mas as explosões não parariam. Possivelmente mais uns 4 minutos total até a última explosão. Era tempo suficiente.
Régia tinha o homem na mira e pensava em mandar pastar, quando seu pior pesadelo aconteceu: Clara correndo em direção aos dois.
- NÃO AMOR!!!! - a líder se desesperou.
Andras ganhou vida nova.
- Oia, num disse. Si ocê pegá ela, tudo pára.
- Deixa ele ir. - Clara disse, sem entender a armadilha.
- Então, troca de lugar.
- Não vai adiantar....as explosões não podem ser paradas. Estamos no meio delas. Temos que sair daq...- a quarta explosão.
No impulso de se proteger, Clara perdeu o foco da situação e foi facilmente presa pelo chefe. Andras caiu e aparentemente desmaiou.
- Eu quero minha carga devolvida. Vou levá ocê cum...- não teve tempo de completar o que dizia, pois ao virar para correr, deu de encontro com o punho cerrado de Régia. Atordoado com o impacto, ele recuou um tanto, largou Clara, mas caiu perto de Andras, que estava reanimando.
A situação acabou no seguinte cenário: Régia apontando a arma para o chefe, que por sua vez apontava a arma na cabeça de Andras novamente.
Com a arma, o chefe empurrou Andras para ficar em pé.
Eram iluminados pelo farol do jipe e os lampejos das labaredas atrás deles, numa mistura de fumaça, sombras e reflexos.
Régia contava mentalmente. A qualquer momento, a quinta explosão ocorreria.
- Quero ir embora com minha carga, agora!! Ou mato essa porqueira de traidor.
- Quem disse que ele vale tanto. Vamos Clara, vamos embora. - Régia disse.
- Cês num pode fazê isso. Num pode...- mais uma vez, Andras se borrava.
- Posso e vou fazer. - disse, recuando com Clara logo atrás - E, você, vai ficar sem carga e, se num correr, vai ficar sem alguns pedaços do corpo.
- Eu já disse que mato ele. Ele disse que ocês num permitiriam. Que assim eu ia fazê ocê saí da toca... - o homem estava histérico.
- Amigo, isto vai virar um inferno em mais 2 minutos. Quem tem recadinhos para o diabo é ele aí, não eu. Inté.
- Dona Clara..cê num pode deixá ela...
A quinta explosão ocorreu. O homem perdeu o equilíbrio, tempo suficiente para Régia meter uma bala na mão que segurava a arma e agarrar Andras pelos cabelos.
- Corre, seu bosta, corre e não pára. - gritou, chutando a bunda dele.
Em seguida, saiu correndo com Clara a sua frente. Nessa altura, João de Deus passou recolhendo todos pelo caminho. Régia empurrou Clara para a caçamba da caminhonete e pulou na seqüência, mirando o último disparo, sem se importar com o homem na pista ou com Andras.
- Adeus, otários!!!! - gritou, juntamente com os outros ocupantes da caminhonete.
Parando em um local seguro, puderam observar a chegada da polícia. Então, foi só festejos, enquanto sumiam pela mata, a cavalo.
Naquela noite, cheias de adrenalina, fizeram amor com muita energia. Clara mal acreditava na aventura toda. Sentia-se viva!
- Será que o Andras se safou? - Clara perguntou.
- Quem é Andras? - foi a resposta de uma líder sonolenta e muito saciada.
****
****
- Luck, Clara chegou. Está convidando a gente para jantar na casa dela. Inclusive a Dra. Paz.
- Humm...lá vem mais encrenca. Essa Clara!!! Com a morte da Régia, virou um demônio.
- E também heroína, segundo Daniel contou para Lilly. O lance da explosão da pista virou lenda até na cidade.
- E aquela história do surgimento da cabeça do mandante da morte de Régia na porteira? Aquilo foi muito além do que imaginei Clara pudesse fazer.
- Tem gente jurando que Régia incorporou em Clara!
- Pode ser mesmo...
- Amor, vou entrar em uma reunião agora. Posso confirmar nossa presença?
- Claro. Estou curiosa com tudo isso.
- Você fala com a Dra. Paz, então. Beijos!!! Amo você, doutora!!!
Luciana tinha consciência do sorriso em seu rosto, ao ouvir a última frase de Becky.
Retornando seu pensamento à Clara, começou a rir sobre a crendice popular em torno dela, mas era o que parecia mesmo. Desde que soubera da morte da líder, a secretária parecia ter-lhe assumido a personalidade.
Ainda rindo, pediu para sua secretária localizar a médica chilena.
***
***
- Voltou??? Quando?!
Rebecca percebeu o fora que deu diante da expressão de Marcella. O que Clara estava aprontando?
- Não sei Marcella. Ela ligou hoje e disse que estava em casa.
A loirinha percebeu que a diretora não tinha sido convidada para o jantar e sentiu-se aliviada por não ter dado com a língua nos dentes nesse aspecto também.
Imediatamente, Marcella sacou o celular.
- Quando iria me dizer que voltou? - foi a última coisa que Becky ouviu, ao dar privacidade para a diretora.
- Marcella?!?! ...
- Não lembra mais de mim, Clara? Vinte dias foram suficientes para me esquecer?
- Nós nos falamos pelo celular...Você não lembra?
- Amor, mal entendi a primeira frase.....só entendi que algo tinha....- Marcella morreu na palavra, que caiu como um raio em sua cabeça - ...terminado. Você terminou comigo, é isso?
- Sim, Marcella. Aquela ligação foi para isso. - Clara sentia seu rosto arder pela vergonha, pelo desconforto de saber que não dera chance à diretora de discutir o rompimento.
- Com toda aquela estacionária, você achou que eu tinha escutado, entendido e, pior ainda, aceitado o rompimento?
- Bem...eu...eu...
- Clara, isso foi grotesco!!!! - Marcella ficou em silêncio
- Marcella....vamos conversar pessoalmente. Eu ...
- Clara, qual a sua urgência em terminar tudo assim, no meio da selva? Poderia ter esperado para conversarmos civilizadamente. Bem que falaram que a troglodita incorporou em você!
Clara sentiu um arrepio ao ouvir novamente a diretora se referir à líder.
.
- Você pode almoçar comigo?
- Vou a sua casa. Estou próxi....
- NÃO! Não. Vamos almoçar amanhã.
- Por que não hoje?
- Estou enrolada com alguns compromissos...
- DESMARQUE!!! Mereço alguma consideração, não acha? No restaurante de sempre.
Em 1 h estarei lá. - a diretora desligou, sem tempo de réplica.
No outro extremo da ligação, Clara olhava o telefone sabendo que teria que enfrentar a diretora. Régia a olhava, apenas limitando-se a abraçá-la.
Por sua vez, Rebecca, que tinha permanecido ao longe, mas de olho em Marcella, percebeu o semblante tenso da diretora, após a ligação.
- Algum problema, Marcella?
- Você sabia Rebecca?
- Sobre o quê?
- Deixa prá lá. Preciso sair agora. Você continua com elas de onde paramos?
- Sem problemas.
"Clara, Clara, o que você está aprontando?" cada vez mais a jovem ficava curiosa.
***
***
- Mãe, Clara está aprontando alguma. Ela não avisou Marcella que voltou.
- Vixi! Qui cê acha qui pode sê, minha fia?
- O que é, já podemos deduzir que seja o rompimento delas; mas, o porquê...Mãe, precisa ver como a Marcella saiu às pressas da reunião. Posso jurar que ela se exaltou com a Clara. E teve aquela ligação maluca que a Marcella comentou.
- Qui ligação?
- Ah, bem, a Marcella no Chile recebeu uma ligação da Clara, da fazenda, e num entendeu nada pelo chiado, mas entendeu que algo tinha terminado. Bem, acredito que dê para juntar as coisas. Mas, aí fica mais intrigante entender porque ela fez isso por telefone, numa ligação difícil;e não pessoalmente, como seria da característica dela?
- Fia, desde que Régia morreu, Clara num tem mais ninhuma característica.
- Falou tudo, mãe!
- Mistérios, mistérios. Mais do que nunca, quero ir jantá na casa dela. Lilly tá toda assanhada.
- Mãe, passamos aí por volta das 19:30. Não atrasa, pois Luck detesta atraso.
- Fia, eu já to pronta!!!
- Mãe, são 17:30 ainda!!!!
***
***
Paz recebeu o convite com um enorme sorriso. Aliás, quando sozinha, gargalhou de felicidade.
- Entonces, ella logrou su intento!
Ainda que com pesar, a médica admitiu para si que Clara era a mulher para Régia.
Por um momento, permitiu-se ser mesquinha e invejar Clara; para, logo na sequencia, admitir que sempre quis ver a felicidade de Régia. Se a secretária era o instrumento para isso, estava satisfeita por ter manipulado esse instrumento, dando-lhe a direção a tomar.
Pensava nessas coisas, olhando para Anna. Desde que soube que a menina era filha da líder, resignou-se em saber que sua maior participação na vida dela seria devolver-lhe sua filha.
- Annita, me ayudan a no decepcionar a su madre!
***
***
Clara avistou Marcella esperando no hall.
- Não reservou mesa? - a secretária disse, após um cumprimento formal.
- Você acha um restaurante adequado para nossa conversa? - Marcella questionou, aparentemente calma.
- Podemos ir ao flat....
- A família da Becky está lá. - replicou a diretora - Vamos àquele motel de sempre.
Clara aquiesceu. Seria melhor um lugar mais privativo, julgando pelo costumeiro temperamento da diretora.
Era estranho estar em um lugar onde fizeram amor algumas vezes. Marcella, sem cerimônia, tirou o casaco e a blusa.
- Não agüentava mais essa roupa!
Olharam-se.
- A conveniência de achar que eu entendi e aceitei pacificamente que terminamos atendeu a qual propósito seu?
Antes que a secretária pudesse formular a resposta, a diretora fez um gesto para que permanecesse calada.
- Sei que você nunca me amou. Sei que era conveniente para nós. Apesar de pretender, sempre soube que não era a mulher da sua vida. Portanto, que você queira terminar não me espanta. Confesso que até tentaria lutar por você. Mas, contra um defunto eu não sei o que fazer. E isto me deixa puta!!!!
- Ela está viva.
Todo e qualquer argumento que a diretora estava pensando para a conversa, morreu ao som dessas três palavras.
- Todo esse tempo, você esteve com ela?
- Desde que fiz aquela ligação.
Marcella pegou uma bebida no frigobar. Clara ajeitou-se na poltrona, ainda que desconfortável com a situação, uma vez que a diretora começou a andar de um lado para o outro da ampla suíte.
- Não, Clara, você esteve com ela desde o dia que colocou os pés naquela maldita fazenda: você esteve com ela estando com o meu corpo; esteve com ela em pensamento; em negativas que viravam afirmativas para a comodidade da nossa relação. - encheu o copo novamente.
- Marcella, eu tentei.
- Sim, você tentou. Mais por você do que por nós, mas tentou.
- Ok. Fui egoísta...
- Não! Você, como sempre, foi perfeita enquanto racional. Apenas o amor não é racional. O que dizer sobre traições quando são feitas por amor?
- Eu não tr...
- Clara, não começa com essa auto-enganação novamente. O que você faz com seu corpo não me afetaria. O que ia dentro do seu sentir é que era a maior flechada no meu orgulho. O fato de achar que terminou comigo antes de se entregar a ela não desqualifica a traição que se configurava desde o dia que se conheceram.
- Eu tinha que terminar. Não poderia ter Régia...
- Clara, desde que você conheceu a troglodita, eu sou traída. Afeta-me mais que ela possua seus verdadeiros sentimentos do que seu corpo.
- Mas, você também sabia que nossa relação não tinha futuro.
- Não jogue em mim qualquer parcela de culpa pelo nosso rompimento. Eu apostava em nós, pois apostava em sua racionalidade. E aceitaria viver assim.
- Você nem ousava nos assumir.
Marcella ficou séria. Depois começou a rir.
- Será que o fato d´eu ter contado para meus pais, demonstra o quanto apostava em nós?
- Quando fez isso?
- Importa saber? Provavelmente deve ter sido no mesmo dia que você sentia-se livre para foder com sua troglodita.
Clara sentiu vontade de se esconder.
Marcella começou a se vestir.
- Tenho uma reunião e um vôo pela frente.
A secretária não sabia o que dizer.
- Marcella, me perdoa!
- Clara, se eu não fosse a parte afetada, estaria admirando a forma como você foi tirar a troglodita do reino dos mortos; estaria agradecida por você me "tirar do armário" para meus pai; estaria usando o exemplo demonstrado por você para acreditar na possibilidade do amor quebrando barreiras. Mas, eu fui alvo. Feita de palhaça. - olhou demoradamente para os olhos que sempre admirou - Você foi uma filha de uma puta que eu jamais imaginei que pudesse ser.
Tomou o último gole da bebida e saiu, deixando Clara sem saber o que sentir. Mas, estava feito.
***
***
Foram no espaçoso 4WD de Luciana. Às 20:30 h, pontualmente, adentravam o condomínio.
- Vixi, cês sabem morar bem mesmo!!! - Lilly comentou, ao passar pelas alamedas.
- Clara tem bom gosto. - Luciana comentou, para espanto de todas.
Clara as esperavam à porta, conduzindo-as para a ampla sala, impecavelmente arrumada.
- Bela casa, Clara!
- Obrigada, doutora. Como está uma bela noite, vamos servir próximo à piscina. Comida japonesa, espero que gostem!
- Minha fia, aqueles peixe cru?!
- Sim. Lembrei que você tinha apreciado. E sei que a Dra. Luciana e Becky adoram.
- Tem aquele pastelzinho? Guizo...
- Guiosa. Tem sim, Lilly.
- Delícia!!!
- Becky, em termos de apetite, sua irmã não nega o parentesco. - Luck comentou, fazendo todas rirem.
Após o momento de descontração, ficaram em silêncio. Todas queriam ir logo ao assunto e encher a secretária de perguntas, mas a etiqueta social pedia um pouco mais de espera. Entre tantas coisas, apesar de tudo, elas não eram tão íntimas assim: Paz mal falava com Clara antes de tudo; Luciana era, para todos os efeitos, a patroa da secretária; Becky poderia ser considerada a pessoa de maior intimidade e, também a que mais conhecia a casa.
A secretária as conduziu até o jardim. Como não poderia deixar de ser, tudo estava impecavelmente disposto.
- Delícia de jardim, Clara! Lindas as suas plantas! - Becky exclamou.
- Algumas mudas eu trouxe da fazenda, quando estive lá pela primeira vez.. Com sua licença, vou buscar algo lá dentro e já volto. As bebidas serão servidas ao gosto de vocês. Fiquem à vontade para pedir o que quiserem.
- Definitivamente, ela está estranha!!!! - Becky comentou.
- Definitivamente, eu estou me sentindo estranha: de minha secretária, ela virou minha anfitriã!!!
- Acostume-se, doutora! - Becky riu, beijando o delicioso biquinho que a médica fazia.
- Num sei, não, minhas fias; mas acho que ela tá cum jeito de quem casou. - Ruth comentou.
- Onde está a Marcella?
- Deve estar a caminho da Austrália essa hora. - Luciana respondeu, consultando o relógio - O que você acha, Paz?
- A mi parece que Clara está plena de amor. - a médica chilena disse, sorrindo ainda mais misteriosamente que a dona da casa.
- Bem, eu vou querer sakê! - a doutora acenou para o garçom. - Você dirige na volta, amor!!!
O garçom se aproximou.
- Eu quero sakê, também!!! - Lilly se animou.
- A senhorita tem idade para beber?
Todos olharam para o garçom.
Clara entrou nesse momento e colocou-se ao lado dele. Sabia que as reações seriam diversas.
- Valha-me, Deus!!! - Ruth exclamou, fazendo o sinal da cruz.
- Nem bebi e estou vendo coisas!!! - Luciana deu um salto da cadeira.
- Literalmente, quem é vivo sempre aparece!!!! - Becky disse, sem conseguir conter o riso.
Lilly, de um salto, jogou-se nos braços do garçom; aliás, Régia.
- D. Régia, cê vortô prá nóis!!!! - Ruth abriu os braços para receber a líder, que não se fez de rogada e se deixou envolver pelos braços afetuosos.
- Clara, você foi buscar ela dos mortos!!!! Não acredito que até isso você faz! - Becky não sabia a quem abraçava, decidindo-se por Régia, que ficou entre elas.
- Régia, seja bem-vinda! Nunca acreditei em sua morte, mas sempre lamentaria sua perda. - Luciana trouxe a líder em um abraço - Clara, de todas as coisas que você fez até hoje, essa não posso deixar de elogiar. Bom trabalho!
Clara ficou vermelha com tamanho reconhecimento; mas, logo se refez, pois ainda sentada, estava a Dra. Paz. Segurando a mão de Régia, Clara foi até ela.
- Dra. Luciana, a verdadeira responsável por isso é essa mulher aqui. - disse, tocando no ombro da médica - Dra. Paz, meus sinceros agradecimentos por ter chutado minha bunda. Ela está aqui. Conforme o prometido.
- Régia yo só me quedaria diante de tu cuerpo morto; Clara, yo sabia que tu lograria su intento. És una mujer soberba!
Diante de olhares surpresos, a Dra. Paz beijou a boca de ambas, como registro de sua aceitação e resignação ao amor demonstrado por Clara e Régia.
Para surpresa ainda maior, Clara não sentiu ciúmes.
- Dra. Paz, muitíssimo obrigada!!! - a secretária disse.
Régia não sabia o que dizer. Estava entre duas mulheres que ofereceram-lhe o amor da forma mais pura, com provas de total desprendimento. Entretanto, somente para uma delas seu coração pertencia de forma irrestrita. Lamentava não amar Paz, mas não lamentaria jamais ser eternamente grata a ela por sempre acreditar no instinto de sobrevivência que até mesmo ela, Régia, achava ter perdido.
- Paz você me devolveu a vida. Canalizou seu amor através de Clara. Deu a nós a energia que estava se esgotando em nosso querer. Nos fez acreditar novamente em nós.
- "Clara foi a extensão do meu corpo buscando por você. Apenas isso. Ela é a mulher que você ama. Nós amamos você, mas somente ela tem você. Resta-me ser feliz por saber que estás viva. E amada como sempre mereceu."
O clima que se estabeleceu foi de confraternização e boas vindas. Todas estavam felizes. Régia percebeu que cativara todas aquelas pessoas. Não acreditava que fosse possível; mas, ao pensar bem em quem eram "aquelas pessoas", não poderia esperar menos delas.
- Amor, mas uma coisa eu nunca fiquei sabendo: o que aconteceu com o desenfeliz após a tentativa de me estuprar? - Clara quis saber.
Espanto geral. D. Ruth quase cuspiu a bebida.
- O QUÊ?!?!!!! Ocê quase foi estrupada? D. Clara, que ..
- Clara que horror!!! - Becky segurou firme o braço da doutora, olhando espantada para ela, que também tinha espanto no olhar.
- Aquele história da pneumonia....
- Realmente eu tive problemas pulmonares, doutora, por conta de ter sido cercada e encurralada durante uma tempestade. Por muito pouco, apesar de me debater, o homem que Régia desfigurou e humilhou teria me matado após barbarizar meu corpo. No momento crucial, levei uma pancada na cabeça; quando acordei, após alguns dias de febre, soube que a cabeça do cara estava fincada na porteira, como eu queria. João me garantiu, eu não vi. Confesso que nesse momento caí em mim e percebi o quanto estava vazia, mesmo tendo a minha vingança realizada. Iria voltar para cá com a sensação de derrota do mesmo jeito, pois voltaria sem Régia. Entendi que toda a minha ira e vingança não teriam servido para trazê-la de volta.
Régia baixou a cabeça; ficaram em silêncio, até que Lilly refez o clima.
- Daniel disse que a cabeça estava na porteira. E que o corpo foi encontrado estraçalhado preso ao cavalo.
- Vixi, D. Régia, quem fez isso?
- João foi despistado de sua missão de proteger Clara, que em nada facilitava para ele. - disse, lançando um olhar acusatório para a secretária que a beijou como desculpa. - Quando percebeu, voltou o mais rápido que pode, usando a caminhonete. Foi me avisar na cabana e nos dividimos. Então começou a chover torrencialmente. Eu não estava em minha melhor forma, após a emboscada na cabana. Mas, quando os avistei...bem...tudo ficou vermelho...ele estava ...- ficou meio sem jeito pela presença de Lilly - ...ele estava por trás de Clara, pronto a barbarizá-la. Como não queria que ela soubesse que estava viva, acertei-a na nuca enquanto chutava o imbecil. Em segundos ele estava sob meu domínio.
- Vixi. Num quero nem pensar!!!
- D. Ruth, você que viu nosso primeiro confronto teria achado que eu fui delicada com ele da primeira vez, diante do que eu o estava transformando.
- Minha nossa!
Ninguém respirava. Todas estavam tensas.
- Assim que João chegou, refizemos a anatomia do fulano de forma que, se sobrevivesse, nunca mais pensaria em tocar em alguém. - Régia engoliu o peixe cru que comia.
Ao ouvir isso, Becky largou o sashimi no prato. Clara bebeu rapidamente o sakê. Paz esboçava um sorriso de encanto. Luciana também sorria.
- Depois João pegou o cavalo do desinfeliz e saiu a pleno galope pelo caminho acidentado do atalho que sempre fazíamos a cavalo. E o resto a Lilly já disse.
- E o causo da pista, D. Régia?
A noite seguiu com a narrativa de todas as aventuras que o casal se envolvera.
Em determinado momento, Becky sutilmente chamou Clara em um canto.
- E Marcella, Clara, como fica?
- Conversamos hoje. Não foi a coisa mais digna que fiz, mas chegamos a um término.
- Tem certeza?
- Espero.
Becky abraçou Clara demoradamente.
- Devo muito a você, por isso quero que seja muito feliz com Régia.
- Becky, de agora em diante, eu e ela teremos muitas coisas ainda para resolver, mas nunca mais questionarei nosso amor. Se tiver que fugir, sair do país, o que for, farei.
- A situação dela é grave, Luck já me disse.
- Ela tem dívidas com a lei e com os fora da lei. Ela é uma sem lei. E eu serei por ela.
- Entendo. Pode sempre contar comigo e com meus familiares.
Olharam para Régia se divertindo, rodeada pelas pessoas que sempre torceram por ela.
***
***
Clara estava diante de uma mulher que ela desconhecia. Ou melhor, conhecia , mas estava começando a ter que desconstruir para poder entender novamente.
Era uma especialista em Dra. Luciana, mas de repente, desconhecia a mulher que Rebecca carinhosamente chamava de Luck.
Apesar de estarem no espartano escritório de Luciana, no hospital, onde sempre ordens severas e inequívocas foram proferidas pela doutora, o assunto era leve, quase um sonho que a belíssima mulher a sua frente deixava escapar, por entre suas "ordens".
A doutora estava com um excelente humor. Depois dos últimos acontecimentos, deixara de ser seca com Clara, mas ainda não era um poço de simpatia. A secretária pensava que a doutora tinha apenas encontrado mais uma utilização para seu senso prático e profissional. Suas últimas intervenções nas questões que envolveram Rebecca não deixavam margens para dúvidas quanto ao grau de confiança que Luciana alçara Clara. Porém, ambas mantinham as mesmas veladas posturas e papéis dentro daquela relação, ao menos nas dependências do hospital, pois ainda era um relacionamento de patrão e empregada. Como amizade, Clara ainda não se considerava tão íntima, sabendo que era mais próxima de Rebecca.
Mas, ali estavam. Luciana estava em reunião com Clara sobre a situação da fazenda, que agora estava definitivamente preparada para o início do projeto.
- A pista de pouso nova fica pronta quando?
- Até o final do mês, doutora.
- Vocês são loucas. Régia está corrompendo você. - pela primeira vez, Clara viu um sorriso genuíno em Luciana direcionado a ela.
- A dra. adoraria ter visto.
- Com certeza. Nada como uma boa dose de adrenalina. - sacudiu a cabeça, ainda sorrindo - Ruth decidiu que vai morar lá. E Lillian também. Por isso, quero condições aceitáveis para que Rebecca visite seus parentes.
- Estamos com uma série de mudanças por lá. D. Ruth investiu na reforma da casa principal. Também entrou como participante do banco que criamos para fornecer recursos às outras famílias.
- Fizemos um excelente projeto: Sandra conseguiu que o governo ficasse com a fazenda; eu comprei de você os títulos...
-...agora eu financio às famílias, com juros baixos, os recursos para construção de moradias e utensílios gerais. Régia está organizando a cooperativa, de acordo com as orientações dos consultores que contratamos. Dessa vez, a coisa deslanchou.
- E eu arrendo a fazenda para as duas indústrias que se interessaram. Belíssimo planejamento, Clara. - fitou demoradamente a mulher a sua frente - E você, vai continuar como minha secretária? - havia um que de expectativa na pergunta.
- A doutora sabe que não.
Foi nítido o desapontamento no rosto da médica, que rapidamente se recompôs.
- Vou ficar um tempo, enquanto encontro alguém e treino para me substituir. Não sei o que Régia quer, mas com certeza ficaremos em São Paulo, por conta da Anninha. Entretanto, por enquanto, devido à situação dela, Régia é mais útil na fazenda.
- Clara, se eu pudesse, ajudaria Régia. Podemos falar com os nossos advogados. Um serviço de proteção ..sei lá..de repente, ela pode testemunhar sobre algo...
- Ela não quer. Diz que não tem nada que os federais queiram, mas se aparecer, poderá chamar a atenção da máfia e esses serviços de proteção são uma piada, segundo ela. Sinceramente, preferia que ela se entregasse, mas não quero perde-la. Os planos ficam assim por enquanto.
Diante dessa revelação dos planos da secretária, a médica também contou que decidira e queria propor a Rebecca que viesse morar com ela. Morar mesmo. O tal casamento que o tio havia cobrado. Porém estava preocupada com a forma como a loirinha receberia tal convite, após aquela primeira tentativa de convivência, desastrosamente rompida pela própria doutora, logo no começo da relação. Ainda que fosse algo bem no início do que se tornara um próspero relacionamento, Luciana receava que tal convite parecesse uma forma de tolher a jovem, que agora ganhara mais segurança e independência.
- Estamos pensando em criar alguma empresa em sociedade. - Clara comentou.
Luciana queria ouvir conselhos de Clara de como preparar algo apropriado para pedir Rebecca em casamento, mas não sabia como iniciar esse novo relacionamento entre elas. Assim, embora não perguntasse diretamente, lançava suas dúvidas e aguardava uma palavra de Clara. Sabedora de quais eram as regras do jogo, a secretária dava respostas aparentemente lógicas, mas cheias de sútis indicações sentimentais nas entrelinhas.
- Para marcar o momento, a dra gostaria de um jantar? Rebecca ama coisas exóticas e surpresas.
- Então reserva aquele restaurante ...
- ...um lugar público e concorrido, as reservas podem demorar...
- Rebecca não gostaria de receber tal decisão em público. Eu não aguentaria esperar.
- Mas, a dra sabe o quanto tem prestígio....
- Não. Quero algo reservado mesmo.
- Posso contratar um Buffet como naquela festa do aniversário dela.
Luciana queria comprar uma jóia para Rebecca, sem se importar com o valor. Clara a convenceu a comprar algo simbólico para ambas, pois para Rebeca o valor realmente não importava. Luciana não queria que Rebecca pensasse que fosse uma imposição e temia exagerar nos preparativos. Clara, aos poucos, transformou tudo em um momento simples, romântico e sem muita ostentação, uma vez que era a imponência que assustava Rebecca.
- Combinei de almoçar com ela hoje. Ela comentou alguma coisa?
- Antes de sair, eu a vi e ela confirmou que estaria aqui.
Ambas olharam para o relógio. Rebecca era pontualíssima e Clara pode ver a expressão e o sorriso no rosto de Luciana, ao ver que faltavam apenas dez minutos para a hora marcada.
Neste exato momento, um burburinho começou a tomar forma e , logo vozes alteradas fizeram-se mais claras, até que a porta da sala da doutora foi aberta com um estrondo.
A figura que apareceu era estranha para Clara, mas pela expressão no rosto da doutora, não o era para ela. Aliás, toda a fisionomia de Luciana transformou-se. Muitas emoções com certeza passaram por ali, mas a ira foi a que ficou.
Larissa, a secretária da doutora, veio logo atrás da bela mulher, se desculpando. Clara notou que ela esfregava o braço, como tentando aliviar alguma dor.
- Dra., ela disse que não precisava ser anunciada...tentamos, mas ela...
- Chega!
O berro da belíssima loira, de olhos castanhos, corpo esguio e um olhar totalmente debochado; nem ao menos fizera Luciana piscar. Ela estava séria, com o olhar fixo e gélido na mulher.
- Não preciso ser anunciada no hospital do meu pai. Ainda mais que só vim dar um "olá" para uma antiga amiga. Se você não fosse tão idiota, poderia ter ficado sem o empurrão.
Rapidamente, Luciana olhou para o relógio. Clara se adiantou. Sabia o que fazer. Rebecca certamente não deveria presenciar aquele encontro. Não com aquela fúria nos olhos da doutora.
- Vamos, Larissa. Tenho que dar um telefonema urgentíssimo.
- Tudo bem Dra.Luciana?- Larissa hesitou.
- Podem ir. - foi a resposta ríspida.
- Vão, bando de micos amestrados. - a estranha debochou, empurrando Clara e Larissa para fora da sala, batendo a porta.
Clara correu para o telefone e começou a fazer suas ligações.
- Só caixa postal. Ela deve estar fora da área...
- Você fala da Rebecca? O carro dela deu entrada na garagem, é por iss...
Antes que pudesse terminar, Clara estava correndo para o elevador.
- Larissa, veja na recepção principal se ela já passou por lá e chama o Prof. Arthur...
- ...por que o Prof...
- ....o Prof. Victor não tem filhas.
- Ah!!!! Onde você vai?
- Interceptar a Becky. Só um dos elevadores vem direto prá cá.
***
***
Embora pudesse sentir as batidas do coração em suas têmporas, Luciana mantinha a frieza.
Seus pensamentos corriam acelerados. Pensava em Rebecca chegando, pensava em como matar o Prof. Arthur , pensava em como demitir Larissa. Sobretudo, pensava em como o seu passado ressurgira a sua frente repentinamente.
- Sentiu a minha falta, colega?
Silêncio mortal.
- Não vai falar? Tudo bem. Tem sido assim nos últimos anos: só eu falo, só eu sinto, só eu lamento. A colega fica com tudo e faz pose. Fingi-se de morta enquanto eu brinco com os fantasmas de sempre.
"Paula. Por que você tinha que ressurgir agora?" Saindo de sua imobilidade, Luciana deu a volta pela mesa e sentou-se em sua cadeira. Paula estava rodopiando pelo escritório.
- Bonito aqui. Meio vazio e básico, mas bonito. Se importa se eu ocupar a sala ao lado quando vier trabalhar aqui?
Apesar do controle, Luciana sentiu as últimas palavras. A sala ao lado era a que seu marido ocupava. Ninguém jamais entrara nela novamente desde a sua morte.
Paula, trabalhando no hospital. Seria sua verdadeira intenção? Se fosse, já estava fadada ao fracasso.
- Lembra dos nossos planos? Nossa clínica?
Encerrando a meia volta que dera, Paula encarou Luciana. Seu olhar já não expressava o deboche. Por um momento, parecia vazio. Logo, foi preenchido de uma serenidade e paixão, tão bem conhecidos. Sua voz era quente.
- Ei, Luciana! Pare de fingir soberania. Ainda posso ver que estou em você. É um passado difícil de apagar.
Paula veio se aproximando. Primeiro, sentou-se à beira da mesa. Depois, esticou os braços e acariciou o rosto de Luciana. Para surpresa de ambas, a doutora não recuou e nem se afastou. Apenas permaneceu olhando para a mulher vinda de um lugar de onde nunca deveria ter saído.
Luciana estava perturbada. Sabia que Paula não era mais nada em sua vida. A odiava pelos transtornos e tentativas de vinganças. Mas, não era isso que ela via naqueles olhos ali na sua frente. A mulher falava de um passado bom e seu olhar era o mesmo que tornava as lembranças de ambas tão boas. De quando queriam ser apenas médicas e parceiras. Faziam planos de partilharem tudo juntas. Se amavam muito.
- Ah, colega! Seus olhos estão se suavizando. Adoro ver-me refletida neles. Lembra-me como era estar dentro de você...era tão bom...éramos perfeitas...somos perfeitas...
A voz de Paula era suave, muito parecida com a própria voz de Luciana. Enquanto falava, se aproximava mais. Segurando ambos os braços da cadeira, prendera a doutora no círculo formado por seu corpo. Olhos nos olhos. As mãos de Luciana prendendo firmemente os punhos da loira, procurando deter seus avanços.
- Você ainda lembra, não é? Ainda mexo com seu desejo, colega. Embora você tenha colocado uma enorme camada de gelo sobre nós, os sentimentos estão queimando e derretendo tudo...
Luciana não pensava em falar. Na verdade, não pensava! Ou melhor, tinha que pensar. Em Rebecca.
Paula sussurrara as palavras no ouvido de Luciana e, enquanto deslizava os lábios para os lábios da doutora, estava montando sobre seu colo.
- Luck, cadê todo mundo da recep....
Três pares de olhos se cruzaram. Azuis aflitos e culposos. Marrons espantados e debochados. Verdes cheios de questionamentos.
Luciana, num salto, derrubou Paula no chão e veio para o meio da sala.
Saídas não se sabe de onde, vieram Marcella e Clara, com o Prof. Arthur entrando logo na seqüência.
Paula ria histericamente, ainda sentada no chão. Ignorando a mão estendida do pai, ela foi engatinhando para o meio da sala e, num único movimento, como um felino, pôs-se em pé. Quando ela avançou na direção de Rebecca, tanto Luciana quanto Clara formaram uma barreira, com a doutora na frente e a secretária atrás.
- Uh! Vejo que a loirinha aí é preciosa.
Num movimento mais brusco, Paula fingiu avançar contra Rebecca.
Luciana armou a guarda.
Paula soltou uma gargalhada.
Percebendo ser o alvo, Rebecca tentou desviar o foco da tensão, uma vez que era impossível quebrá-la.
- Calma, Luck. O que está havendo? Por que ela estava no seu colo? Quem é...- Rebecca segurou os braços da doutora, sentindo o leve tremor.
Novamente, Paula começou a rir. Apontava para Luciana e Rebecca e ria alto, pondo a mão sobre a barriga.
- Luciana sua cara está hilária. Vai dizer que você está com medo dessa fedelha? Quem é você, florzinha delicada?
- Vamos embora filha...- foi a dica de Arthur para Rebecca.
- ...ei, só fiz uma pergunta! Pode responder ou só fala com autorização da sua dona aí, benzinho?
Empurrando Luciana, Rebecca deu um passo à frente e encarou Paula.
- Eu sou Rebecca.
- E....- Paula fez um gesto impaciente, indicando que isto era pouco.
Desta vez, a tensão era bem visível entre as loiras.
Saindo completamente da inércia na qual tinha se colocado, Luciana resolveu dar um chega em tudo.
- Muito bem. Arthur tira esta desmiolada daqui e depois volte, precisamos conversar. - dizendo isto, praticamente arrastou Rebecca pelo braço, uma vez que a loirinha estava fincada no lugar, com um ar desafiador, encarando os olhos marrons debochados.
Sem criar caso, mas evitando o contato com o pai, Paula aceitou se retirar.
- Você é o novo brinquedinho dela, então? Tenho pena de você, fedelha!! Aproveite enquanto pode.
Os olhos de Rebecca cruzaram-se com os pálidos azuis do professor. Pôde sentir o velado pedido de desculpas.
- Vamos, Becky. Temos reservas nos esperando.
- Tem certeza que quer ir ainda?
Sem responder, Luciana indicou a porta para Rebecca.
Antes de sair, marcou uma reunião com Clara e Marcella, que se entreolharam denotando saberem o que as aguardava.
***
***
A bateria do celular acabara e Rebecca estava sem o carregador. Chegou à garagem e ficou alguns minutos no carro, procurando suas credenciais para entrar no hospital. No andar de Luciana, somente com um cartão magnético era permitido o acesso aos corredores da diretoria. Na verdade, seu cartão era o da própria doutora. Olhou o nome e a foto. Sentiu uma enorme saudade e agradeceu a sorte de ter encontrado a morena enigmática.
Quando chegou ao andar, notou a falta da secretária. Passou o cartão, parou no banheiro no corredor, pois estava com cólica e se sentia indisposta, mas não queria preocupar Luciana, que se mortificava quando a via mal. Olhou no espelho e constatou que sua aparência não era das piores, considerando-se as olheiras disfarçadas pela maquiagem.
Ao passar pela sala de Marcella, notou a porta aberta e não a viu. Era estranho, mas nada tão anormal. Parecia que o andar estava vazio.
Quando abriu a porta do escritório de Luciana, presenciou a cena mais surpreendente que jamais pensara presenciar: uma loira sensual, em uma saia de couro mínima, a meio caminho de montar no colo da doutora. Sua doutora. Pior: Luciana parecia hipnotizada pela força que se abatia sobre ela. Rebecca pode ver o incomodo, mas não sabia se era pelo fato da morena não estar conseguindo se manter indiferente ou pelo fato de estar sendo encurralada.
O susto que Luciana levou com a entrada da loirinha na sala foi revelador de alguma culpa.
Para Rebecca fora fácil deduzir quem era a mulher. Com uma rapidez além da sua capacidade, ela soube que não deveria dar sinais de ciúme ou incompreensão, coisas que poderiam piorar a situação tensa. Num átimo de tempo, soube que isto era algo do passado da doutora e ela, Rebecca, não pertencia a ele. Não fora ainda oficialmente convidada pela doutora a fazer parte dele.
O almoço estava sendo um desastre. O silêncio reinante evidenciava que ambas estavam perdidas em pensamentos. Uma tentava entender por que seu passado vinha atormentá-la. A outra, tentava entender por que um passado era tão atormentador.
Rebecca brincava com a comida. Fazia montinhos espalhados pelo prato e depois os desfazia, remontando-os em outra ordem.
A comida no prato de Luciana estava intocada. Ambas não conseguiam comer.
Tentaram uma conversa amena, mas nada estava funcionando.
- Você sabe quem é ela, não sabe, Becky? Como soube? Quem contou?
Luciana estava ansiosa, agitada. Os olhos azuis prendiam os olhos verdes de uma forma fria. Desta vez, Rebecca sentia-se como uma estranha de fato.
- O que você disse, Luck?
- Seu comportamento deixou claro que você sabia quem aquela mulher é. Quero saber como você sabe. Simples e direto.
Os olhos verdes tentaram se mostrar surpresos.
- Você se manteve calma, passiva. Normalmente, seu ciúme falaria mais alto. Além do mais, percebi sua troca de olhar com o Arthur.
- Quero ir embora.
Resolveram ir para o apartamento de Rebecca. Era mais próximo.
A conversa era difícil, mas inevitável.
Rebecca devia algumas explicações para Luciana e não sabia se podia achar que, por sua vez, a doutora também tinha muito o que esclarecer.
- Você está escondendo algo de mim, Becky?
- Não estaria se você não escondesse tudo de mim.
Sinceramente, o que Luciana menos queria, naquele momento, era entrar em um conflito com Rebecca, mas ouvi-la dizendo tal barbaridade foi demais.
Rebecca sabia que tinha mexido num vespeiro. Arrependeu-se tão logo pronunciou as palavras, mas já era tarde. Sentia-se transpassada pela fúria irradiada dos olhos azuis, até então pacíficos, apesar de agitados.
- Não querer falar de coisas minhas, de uma vida que não lhe diz respeito, pois enterrada, não é esconder coisas de você. Por outro lado, bisbilhotar sobre a minha vida e não me contar posso considerar "esconder coisas".
O apartamento pequeno tornou-se ainda menor. Rebecca queria poder se esconder em algum lugar. Queria poder deixar de olhar para a expressão do rosto de Luciana. Era uma expressão de raiva misturada com pesar, com desapontamento. Era como se os azuis intensos e brilhantes, por lágrimas contidas, presenciassem a perda de algo valioso: sua confiança em alguém.
Ou o medo que se estabeleceu em Rebecca a fazia interpretar aquele olhar desta forma.
O pesar transformou-se, então, em tristeza e, de repente, lágrimas escorriam pelo rosto anguloso.
Rebecca não sabia o que fazer.
- Que você tenha curiosidade sobre mim, eu aceito. Mas, gostaria que você deixasse que eu mesma, no meu tempo, ao meu modo, ou da maneira como vinhamos conduzindo as coisas, fosse trazendo à tona os fantasmas do meu passado.
Antes que pudesse falar algo, a jovem loira foi cortada.
- Não sou ingênua e sabia que sua curiosidade não teria freio, mas confiava que viesse a mim, mesmo depois de ter escutado outras pessoas. A forma como fizemos com o quarto.
- Luck, o que aconteceu....a forma como descobri sobre Paula...foi antes....
- Então, realmente você esconde algo de mim?
Becky desviou o olhar, como querendo dar tempo para Luciana se recompor.
A médica tremia. Ela tentava se conter e sua expressão denotava desconforto. Dirigiu-se ao banheiro e Rebecca ouviu-a vomitando. Aproximou-se e ao colocar a mão no ombro de sua companheira, sentiu a rejeição pela primeira vez. Jamais um afeto seu fora recusado. Sem qualquer palavra, com sua habitual altivez, a doutora afastou Rebecca do caminho e entrou na cozinha.
Com um turbilhão de pensamentos, enquanto ouvia o copo enchendo, Rebecca apenas constatou que ainda tinha chance para falar, uma vez que a doutora não saíra do apartamento.
Ao sair da cozinha, Luciana encaminhava-se para a porta da rua, decidida a deixar o apartamento. Ele avivava ainda mais suas recordações.
Percebendo que seu tempo se esgotava, Rebecca correu para a porta e se colocou no caminho, jogando todo o peso do corpo contra a madeira, provocando um estrondo. Foi como se o barulho da porta tirasse a doutora de um transe.
Seus olhos se encontraram e desta vez não haviam as nuvens formadas pela desconfiança. Havia ainda a chama do amor que existia entre elas, embora resistisse a raiva em tons azulados e a culpa em tons esverdeados.
A diferença de altura tornava a situação ainda mais incômoda para Rebecca, que agora sentia as dores da cólica de forma insuportável. Luciana a olhava com superioridade, de cima para baixo.
- Você não está bem. - disse rispidamente - Cólica de novo? Clara mandou fazer os seus remédios?
O habitual tom autoritário, a constante super-proteção para com ela, Rebecca, que não pensava em responder a estas perguntas, mas aproveitou o fato de Luciana a estar carregando para a cama, para rapidamente buscar as palavras corretas que resgatariam sua amada. Era difícil, sabia. Estava ficando desesperada, pois tudo o que o destino podia fazer para dar-lhe tempo, estava sendo feito. Parecia que tão logo Luciana retornasse da cozinha com a água e o remédio, seu tempo se esgotaria. A doutora sairia do apartamento e ... não sabia. Não sabia mensurar a gravidade da situação.
- Não quero o remédio agora. Você sabe que ele me dá sono.
- Você está péssima. Dormir seria ótimo.
- Se eu tivesse a certeza de que ao acordar, você estaria aqui.
- Não quero ficar. Tenho muitos motivos....
- .... foi tão grave o que fiz? Você já se deu conta de que estou sendo acuada? Que estou me sentindo miserável? Estou cobrando de mim as razões que me levaram a não ....Céus, você sabe o que é ver a decepção nos olhos de quem amamos?
- Não deve doer mais do que sentí-la.
- E por que ela tem que ser só sua?
De novo, o rumo da conversa não era o que deveria ser. Luciana largou o remédio sobre o criado-mudo, demonstrando sua exasperação, mesmo sem falar.
- Você se abre quando quer, Luck. Conta fragmentos de sua vida que parecem ilógicos.
- Desde quando uma vida tem que ser lógica, Becky? A sua é?
- Mas faz sentido e reflete fielmente sobre o que sou. Você tem camadas e camadas de ressentimentos, culpas, ódios que se refletem sobre suas atitudes que só se aplacam no que diz respeito a mim.
- É o bastante, Becky. É o quanto estou preparada para manejar. Por que você quer mais?
- Porque eu não quero ser uma ilha cercada por seus fantasmas. Não quero que você se aporte em mim e continue deixando-se ser corroída por tão maus sentimentos.
- E se eu quiser que seja assim? Posso garantir que tirá-los, os fantasmas, de onde eles estão seguramente trancados, não ajudará em nada a mudar o que sou.
- Quem disse que fantasmas permanecem trancados, meu amor? Diz se não se sentiu melhor ao falar sobre seu filho, sobre o acidente, sobre o seu marido? Eu me senti. Por nós.
Então, depois de tantos disparos, Rebecca acertou o alvo. Luciana deixou-se cair pesadamente sobre a cama, o rosto entre as mãos.
- Acredito que os fantasmas são tão culpados pelo que você é quanto você é culpada pela existência deles. Da mesma forma que nós estamos aqui, agora, nos confrontando buscando esclarecer quem decepcionou e quem foi decepcionado; penso que você tem que fazer a mesma coisa com suas dores: reconhecer quem fez o que e por quê.
Luciana permanecia imóvel. O rosto ainda escondido entre as mãos.
- Sei que é doloroso. É irônico que alguém tão altivo, orgulhoso e que tenha se tornado arrogante para suportar tais dores, tenha que se desfazer de todas as defesas estrategicamente construídas para ser humilde e ter coragem e força para encarar seu lado negro.
- Não quero!
O descontrole de Luciana assustou Rebecca, mas não a intimidou.
- Rebecca, duvidei que você me aceitasse como sou, por isso jurei que a partir de você, com você e por você eu tentaria suavizar algumas coisas na minha maneira de ser. Não podia perdê-la. Eu a amo demais. Nem mesmo meu orgulho me faria negar tal sentimento. Mas, vejo que seu amor não é tão incondicional como eu havia imaginado.
- Não diga isso, Luck. Não ouse...
- Ousar? Quem é você para falar em ousadia se até agora foi a rainha dela? A forma como entrou em minha vida, a forma como atravessa minhas trevas, a forma como tenta transformar minhas dores, como tenta transformar o que sou. Duvidar do seu amor incondicional não é ousadia. É fato, depois de tantas tentativas de mudança que você ousa sobre mim.
Luciana estava agitada agora. Andava de um lado para o outro. Parecia não falar com Rebecca, mas consigo mesma.
- Não me interessa ser boa ou má. Não é porque a amo que de repente vou me transformar em uma santa. Não são as pessoas que cruzam o meu caminho neste momento que me atormentam. São as que já passaram por ele. São as pegadas que foram deixadas e sinalizam todos os erros, perdas, dúvidas, decepções. Tudo deixou de ser importante. Mas, ficar parada não resolvia. Ocupar-me era esconder-me. E, mesmo isso, eu fazia de má vontade.
Começou a rir um riso amargo.
- Este ser que você ama passava horas da noite no necrotério do hospital, admirando a sorte daqueles cadáveres. Como eu queria estar no lugar de um deles. Mas, era covarde para dar cabo de mim mesma.
Estava agora parada, olhando pela janela. A rua sempre movimentada, apinhada de estudantes.
Rebecca, com certa esperança, calou-se e deixou Luciana falar. Algo naquele discurso poderia conduzir a doutora para o caminho que as palavras dela, Rebecca, não estavam conseguindo.
- A ironia maior, na verdade, é que eu estava feliz por você estar me fazendo trilhar alguns caminhos escuros, confiante na luz que emanava de suas atitudes. Mas, eu temia que a minha escuridão fosse mais forte que a sua luz e não queria extinguir o seu brilho. Desta vez, eu queria ter a minha própria luz para iluminar o meu e o seu caminho. Paradoxalmente, a energia da minha luz viria da sua. Achar que você estaria ao meu lado, sob qualquer circunstância, era esta energia.
Agora ela olhava fixamente para Rebecca.
- Não pense que fujo das minhas dores. Tento enfrentá-las e elas são muito mais fortes do que quero admitir. Elas me fazem querer odiar, querer rejeitar afetos, querer desprezar o que sou. Decidi que para estar com você, tenho que escondê-las o melhor que posso, uma vez que não posso fugir delas. Não as quero perto do amor que você me dá.
- Só consegui dá-lo, porque você se permitiu uma trégua. Mas, quando você se fecha, parece que todo o meu amor perde o significado.
- Vejo que estou certa ao achar que a minha escuridão apagaria a sua luz.
Era incrível como Luciana dava voltas e passava ao largo da sua real necessidade. Quando parecia estar admitindo sua necessidade de coragem e ajuda para desafiar antigos medos, desviava-se e jogava sobre seus ombros novas culpas e medos.
- Luck, eu errei ao deixar margens para você não acreditar em meu amor, enquanto incondicional. Mas, você ouviu tudo o que acabou de dizer, pois não foi para mim que estas palavras foram ditas. É clara a sua necessidade de enfrentar seus fantasmas e é evidente o seu medo de fazê-lo sozinha. Você me colocou neste impasse: esperar por você e deixar cada vez mais nosso relacionamento à sombra, até que de repente ele se apague; ou, buscar por minha conta as informações que preciso para ajudá-la, para ajudar-nos a manter a luz que precisamos e que não vem só de mim. Acredito nos seus medos e no maior de todos: o medo de perder. Aliás, medo que acabou se tornando meu também.
O olhar dela foi de incompreensão ao que eu disse.
- Meu maior medo é perdê-la para sua escuridão. Vê-la se esquivando das pessoas, tratando todos com desprezo, demonstrando tamanha impaciência com os menos favorecidos, canalizando o que você julga ser sentimentos nobres só para mim; não me agrada. De certa forma, faz de mim uma aventureira aos olhos de muitos, por acharem que aturo você e suas alterações de comportamento apenas por interesse; já que não conseguem vê-la como eu a vejo. Isto me faz mal.
A expressão dela foi de desdém.
- Tem razão. Tal fato incomoda, mas não é relevante. A verdade é que tenho medo de perdê-la. Esteja certa que se você se retirar da minha vida, minha luz realmente se apagará. Eu quero trilhar toda a sua escuridão, quero me assustar com todas os seus possíveis horrores, quero entender e ajudar a mulher que amo quando ela se tranca em cômodos perdidos, pela casa ou em suas recordações, e parece se deixar flagelar pelas lembranças. Pensando bem, você tem razão: meu amor não suporta vê-la sofrer quando ele está disposto a ajudá-la e isto realmente é uma condicional.
Tomei o remédio, pois eram muitas dores me torturando naquele momento. Dormir, quem sabe, seria o melhor mesmo. Tomei logo duas cápsulas. Percebi certa preocupação nos olhos da doutora, agora sob o papel profissional, mas ela não fez recomendações.
- Não sei me explicar, não me faço entender. De boas intenções o inferno está cheio. Errei e digo que foi simplesmente uma sucessão de equívocos. Nossas viagens, a questão com meus pais, fazenda, Régia, festas, descobertas, carreira; enfim, a verdade é que não sei muito sobre Paula e ia perguntar prá você, mas não tive tempo. Se você vai acreditar ou não...cansei de enfrentá-la. Só sei que não vou mais suportar vê-la sofrendo e me sentir impotente para ajudá-la.
Sentia minhas pálpebras pesando. Não sei o que tinha na fórmula que Luck fizera, mas sempre o remédio me nocauteava. Desta vez, com mais rapidez. Antes de adormecer, ainda ouvi Luck dizer algo:
- O meu inferno está vazio de boas intenções. Ninguém nunca tentou me ajudar. Nem eu mesma.
Eu tinha que deixar o apartamento. Vivera ali com Paula. Quando coloquei Rebecca nele, estava certa de haver enterrado definitivamente essa parte da minha vida.
Aproveitei que Becky adormecera e saí. O remédio era uma fórmula de base homeopática. Era eficiente contra as cólicas menstruais e por estar acrescido com uma substancia calmante, ele relaxava e dava sono. O fato de Becky ter tomado dois, apenas dera uma potencializada no calmante, sem outros efeitos colaterais. De certa forma, era bom que ela dormisse um pouco. Não estávamos conseguindo nos entendermos, embora caminhássemos muito próximas.
Normalmente irritante, o trânsito da cidade estava colocando mais lenha na caldeira que era a cabeça da doutora.
"O que era mais grave nisto tudo? O que, de fato, me atormentava?" Sentia-me exagerada.
Paula.
Com certeza, saber que chegara a rever a mulher amada nos olhos castanhos estava me tirando a calma. Saber que se não fosse pela entrada inesperada de Becky, provavelmente deixaria Paula beijar-me.
Por que, se não mais a amava? Quando e onde esquecera o ódio pelas coisas que ela me causara?
Como se buscando algum sentimento concreto, fechei os olhos e senti. Senti que não amava Paula. Senti o medo ao lembrar dos olhos de Becky nos vendo e imaginar tê-la feito pensar que a traía. Senti que amava a menina loira, de olhos verdes luminosos, que era a minha mulher, minha nova vida, minha esperança.
As buzinas tiraram-me do meu interior. Minha atenção obrigatoriamente desviada para o trânsito.
A discussão com Becky tinha sido um bode expiatório para a frustração que tomava conta de mim.
No fundo, não perdera a confiança em Becky. Nem a culpava por suas "explorações". Sabia que eu a direcionava para suas buscas com minhas atitudes. Mas, não podia negar a decepção. Não esperava que ela escondesse algo de mim e isto me magoou. Falar que não tivera tempo não convencia.
Ela afirmava que eu tinha que enfrentar meus medos, meus fantasmas. Paula era mais do que um fantasma, mais do que um medo. Era a minha cria. Era a vingança encarnada sob forma de amor, obsessão e desespero. Eu era a sua doença e sua cura. Ela era a vergonha que sempre me acompanharia. Vergonha que eu queria desesperadamente esconder de Becky. Era um fantasma que se materializara.
Meu filho e marido estavam mortos. Paula não.
Como uma pessoa que crê no amor de outra reagiria se soubesse do que seu ser amado é capaz de fazer com o amor a ele devotado? Como essa pessoa poderia amar e acreditar em alguém tão manipulador dos sentimentos? Tão cruel e leviano?
Paula era o anti-espelho de Becky. Ela não poderia mirar-se na obcecada médica e ver-se refletida naquele amor insano e cruel, perpetrado por minha ambição.
O quanto Becky sabia sobre Paula? Deveria contar tudo? Como ela reagiria?
***
***
Clara, Marcella, Larissa e Dr. Arthur aguardavam por Luciana.
Nenhum deles ousava encará-la. Sabiam o que os aguardavam.
- Todos vocês escutem bem: eu não quero aquela desmiolada rondando minha sala. A sua sala, Arthur, é o máximo de domínio que ela terá aqui. Isto em sua consideração, caso contrário, poria os seguranças atrás dela para expulsá-la, caso insistisse em aparecer aqui.
- Luciana, você não pode....
- Não posso o que, Arthur? Só porque ela é sua filha? Nós sabemos que posso e, por tudo que sou, eu vou usar e abusar dos meus direitos, começando pelo de acionista, que sabemos é o menos válido neste nosso caso.
Marcella estava inconfortável com a presença de Clara. Larissa tentava ser discreta, mantendo os olhos fixos nas mãos. Clara olhava para a doutora. Mesmo sabendo que ela poderia achar que fosse um desafio, ela arriscava-se apenas para ver quão bem e à vontade a mulher se sentia quando humilhava alguém. E quão igualmente linda ficava quando deixava transparecer seu autoritarismo.
Clara via os pálidos olhos azuis do professor sendo cada vez mais desbotados, como se os intensos azuis da doutora estivesse absorvendo toda a sua cor. Não sabia o que ocorria, mas a filha do professor era declaradamente a inimiga daquela mulher. Mas, mesmo assim, havia um atenuante e não era só o fato dela ser filha do acabrunhado médico.
Eles falavam sobre coisas passadas e bem amargas, pela expressão no rosto do médico.
- Novamente: não quero ver, ouvir, pressentir a presença da Dra. Paula neste andar. Fui clara?
- Como meu nome.
Toda ousadia tem seu preço, Clara descobriu.
- O que leva você a crer que estou aceitando suas brincadeiras, Clara? Onde você estava que não evitou que Becky encontrasse aquela mulher? Você falhou feio comigo.
- Ela deve ter parado pelo caminho...
- Você sabe o que eu penso sobre explicações demasiadas, portanto cala a boca. Agora, Prof., saia e espere. Quero falar com as três, mas ainda tenho algo a dizer-lhe.
O discurso fora breve. As ordens foram reforçadas e ficou expressamente proibida a entrada e ocupação da sala do Prof. Thomas pelo furacão loiro, agora conhecido por Dra. Paula.
- Marcella, mais uma vez a entrada nesse hospital parece mais fácil do que lona de circo! Quero que você avaliei todo o tipo de segurança e formalidades na recepção. Quero saber como as pessoas entram e saem tão facilmente. Chega de incompetência.
Marcella nem se deu ao trabalho de retrucar. Sabia que não era da sua competência tal coisa, mas em horas assim, Luciana não se importava com isso.
- Agora saiam. Larissa, faça o Arthur entrar.
Sabendo que excedera seus limites, Clara voltou ao perfil profissional.
- Se a doutora não precisa de mim, vou levar o carro para Rebecca.
- Vejo que recuperou um mínimo de competência.
Foi o comentário sarcástico, quase inevitável e já esperado por Clara, que mesmo assim, corou.
- Ela está no apartamento. Está dormindo. Tomou duas cápsulas daquele remédio para cólica. Falando nisto, mande fazer mais, pois acabou. - e, com um aceno de mão, dispensou Clara.
***
***
Sentada na beirada da mesa, Luciana olhava para Arthur e pensava em como abordá-lo. Como demonstraria sua irritação sem parecer ridícula e possessiva. "Dane-se. Ele sabe como eu sou".
- Não quero sua filha perto de Becky, fui bem clara?
- Não posso controlá-la, Luciana.
- Problema seu. Não quero saber como ela apareceu. Não vou cobrar nosso contrato, nem vou me prender a ódios passados; mas, quero-a longe de Rebecca. Se eu souber que ela cogitou em abordá-la, eu vou fazer valer todas as providências legais aos quais tenho direito.
O homem que Rebecca achava ser o mais alto do mundo, sentia-se como um anão ante o gigantismo do poderio de Luciana. Não era só o poder material, mas o poder de vitíma, mesmo sendo ela a vilã de toda aquela história sórdida.
- Não sei o que me leva a ser tão tolerante a ponto de deixá-la permanecer no Brasil, contrariando nosso acordo.
- Poderia ser remorso, Luciana.
- Não me desafie, Arthur. Não abuse da consideração que tenho por você.
- Tem mesmo?
- Eu o considero um amigo, apesar de tudo que nos envolveu. Não falo só profissionalmente, mas pessoalmente.
- Devo me sentir lisonjeado, então.
Num gesto desdenhoso, Luciana abriu os braços.
- Sinta-se como quiser, mas deixe aquela louca fora da minha vida com Becky. Pode ir.
Vagarosamente, Arthur levantou-se. Subitamente, pareceu que desmaiaria. Luciana agilmente o amparou. Ele estava com as mãos úmidas e frias. Luciana abaixou a cabeça dele, colocando-a entre os joelhos.
- Pressione para erguê-la, Arthur. Você sabe como fazer.
Em seguida, deitou-o no sofá, com os pés um pouco mais acima que a cabeça.
- Melhor? Quer um médico?
- Você é médica.
Ambos riram.
- Estou bem. Tudo o que ocorreu hoje foi demais para mim. Se Paula a surpreendeu, comigo não foi diferente. Mas, você tem a minha palavra de que ela não importunará Rebecca.
***
***
22:22...Os números do relógio, em cinza azulado, eram engraçados. "Quatro patinhos na lagoa".
22:23...Definitivamente, dormira demais. Um minuto perdido olhando para a seqüência engraçada apresentada pelo relógio não alteraria em nada as horas perdidas em um sono sem sonhos.
Não tinha sono, mas o edredon estava tão quentinho e aconchegante. Calor e amor. Cobertas e braços. Algodão e pele. Simples trocas de calor. Afetos complexos.
Começava a pensar em substituir o calor dos afetos humanos com o calor e abraços de roupas e cobertas. Como era a letra da música "...Deus dá o frio conforme o cobertor..."; quanto conformismo, quanta morte...quanta falta de amor. Mas, há outra que diz "o calor das cobertas não me aquece direito...não consigo dormir sem seus braços...meu corpo está acostumado" . Luciana, complexa troca de calor e afetos. Pura energia, paixão, ardor. Meu corpo estava mais do que acostumado.
Tinha que levantar. Minha boca estava horrível. Na cozinha, procurei algo para beber e lembrei-me que há muito tempo não bebia leite puro, gelado. Puro mesmo, como criança. Enquanto bebia, lia na embalagem "Leite processado pelo sistema UHT (Ultra High Temperature)". Eu era o leite, Luck o UHT. E assim ela mantinha as minhas qualidades essenciais. Quais? Carinhosa, companheira, alegre, aventureira, ardente, apaixonada e, até agora, sincera, fiel, confiável, paciente.
Não podia me queixar, levando-se em conta que eu alimentava a energia que nos elevava às altas temperaturas. O calor daquele corpo, a voracidade daquela língua, a avidez da boca insaciável, a exigência das mãos, o aconchego dos abraços; tudo oculto na magnitude e altivez de uma mulher poderosa, que se derretia no próprio fogo, revelado apenas para mim. Deveria ser realmente o bastante. O sistema Luciana UHT também mantinha uma qualidade essencial em mim, para nossa relação: a resistência. Resistia às bruscas quedas, abaixo de zero, após ter sido elevada a ambientes vulcânicos em nosso prazer.
Bebia o leite em goles ávidos. "Que loucura". Bebi mais um copo. Voltei para cama.
No travesseiro ao lado, um bilhete. A letra impaciente de Luciana. Era engraçado como ela não conseguia grafar as letras de forma igual. Um simples "p" em uma mesma frase era grafado de formas totalmente distintas. A grafia começava legível, mas a partir de algumas palavras, a impaciência tornava a letra quase uma criptografia. No geral, era uma letra bonita.
"Não me puxe além do que permito. Sei o quanto posso aguentar."
- É , doutora, vamos nós para as baixas temperaturas de novo!
"Um banho era uma boa. Aliás, uma urgência. Vamos checar as ligações."
Do banheiro, ouvia os recados na secretária.
11:03 - Telemarketing A.
11:45 - Rebecca, é Cecília, precisamos conversar. Paula voltou e não sei o que fará. Ligue-me assim que possível. "Tarde demais. Já vi que Paula vai dar dor de cabeça."
12:43 - Júlia, sou eu, a NIca, me liga assim que chegar. "Nica vai ficar esperando, coitada!"
15:33 - Becky, deixei o carro na garagem. A doutora mandou que eu fizesse mais do seu remédio. Ligo depois para saber quanto devo mandar fazer. Precisando, liga. Tchaú. "Ih! Tinha esquecido do carro. Valeu, Clara."
16:10 - Telemarketing B, C... "Até que este foi legal"... 19:25 - F.
A água quente estava uma delícia. Era calor que eu precisava. Não necessariamente este, mas estava servindo.
20:35 - Rebecca, querida, é o Arthur, não se preocupe, Paula não a importunará. Dei minha palavra para Luciana. Quando possível, ligue para meu celular. Não sei como me desculpar...Enfim...liga, por favor. "Ai, meu Deus, Luck deve ter comido o fígado do coitado. Não quero estar na sua pele, professor.
21:00 - Becky...bem, só prá saber se está melhor...depois eu ligo.
21:30 - Becky...nunca mais tome duas dessas porcarias! Droga!
22:05 - Estamos preocupadas. Liga logo que acordar. "Por que elas têm que achar que eu estava necessariamente dormindo?"
22:19 - Talvez nem esteja aí. Seu celular também não atende. Vamos jantar amanhã. "Por que jantar e somente amanhã, doutora? E, perguntou se eu quero assim?"
Breve silêncio.
E lógico que, quando estamos no banho, o inevitável acontece: o telefone toca. Luciana nunca aceitaria o meu silêncio como tentou transparecer.
- Rebecca.
- Becky é só para Luciana ou uma velha amiga da família pode chamá-la assim também?
Rebecca gelou. Não era o fato de estar nua no quarto gelado. A voz parecia com a de Luciana, mas era muito irônica, debochada; ainda que um sussurro, algo quase libidinoso.
- O gato comeu sua língua, Becky?
A frase fora dita bem articuladamente. Rebecca não sabia o que dizer.
- Pelo silêncio, percebo que você já sabe quem fala.
- Dra. Paula, devo pressumir.
- Uau! Que voz, garota. E quanta formalidade. Só Paula. Afinal, somos íntimas de certa forma, não é?
- Como?
- Garotinha, nós temos uma amiga em comum. E de uma forma bem íntima. Então, deixemos de formalidade.
Apesar de começar a ficar irritada, Rebecca não queria fazer o jogo de Paula.
- Se você que falar com Luck...Luciana, ela não está...
- Sei onde ela está. É com você mesma que quero falar.
- O que poderíamos ter para falar?
- Poderíamos discutir a performance de Luciana na cama,por exemplo. Ela é muiiiito quente, não?
"Vou me controlar".
- Não sei o que ela viu em você, mas confio no aval dela para crer que você consegue dar conta daquele dínamo. Pelo que sei, estão juntas há bastante tempo, dentro da cronologia da minha cara colega, é claro.
"Não perca o controle. Mantenha a calma".
- Olha, detesto monólogos. Espero que pessoalmente você seja mais eloqüente, pois quero vê-la amanhã. Pode ser? Esta resposta é monossilábica. Acho que você consegue responder.
Rebecca sabia que não teria escolhas. Um "não" nunca seria aceito. Serviria para torná-la um alvo. O "sim" seria desagradável, mas inevitável, até pela sua própria curiosidade.
- Sim. Está bem. Almoço, às 12:30 h. Escolha o lugar.
Enquanto Paula falava, Rebecca pensava se deveria ou não contar para Luciana.
- Espero por você. Dê um beijo em Luck e lembre que aquela língua já percorreu em mim.
Rebecca queria matar a figura. Pensou em contar para Luciana, o que poderia estar prejudicando o Prof. Arthur, que se comprometera a controlar Paula e já falhara miseravelmente. Por outro lado, estava já no meio de um desentendimento por omitir coisas da doutora. Se contasse, era certo que perderia uma grande chance de saber o que esperar da sua recém-descoberta oponente, pois a doutora não permitiria. Por outro lado, Luciana não poderia proibí-la. Não era assim que as coisas funcionariam entre elas.
Ligaria primeiro para Luck e depois para o professor. Poderiam fazer uma teleconferência. O três discutiriam a questão.
Na mansão ninguém atendia. Ligou na casa de Clara.
- Clara, Luck está em casa? O celular não atende.
- Ela está no quarto. Pediu para não ser incomodada e, desta vez, a ordem inclui você, Rebecca.
A segunda rejeição em um único dia. Certo. Ela queria ficar só.
- Está bem. Era tudo o que eu precisava saber.
Temperaturas glaciais para mim. Sem trocadilhos, mais molhada do que eu já estava, no meio daquela chuva, não poderia ficar
Assim seja. Vamos saber o que a desmiolada quer de mim.
***
***
Almoçar não era uma das coisas mais rotineiras na minha vida. Somente em ocasiões e com pessoas especiais.
Desta vez, era uma necessidade. Muita coisa estava em jogo com a volta daquela desmiolada. Sentia-se, agora, pouco à vontade para chamá-la assim, mas alcunhas acabam pegando.
Só queria saber porque um lugar tão longe e um horário tão cedo. Não entendia porque tanto apuro com a comida, se com certeza mal tocaríamos nos pratos.
A repentina aparição de Paula deixara muita gente em estado de alerta.
O relógio acusava um ligeiro atraso quando, quase simultaneamente à minha mudança de expressão, a figura esguia apareceu.
- Desculpe-me o atraso, Luciana. Como vai?
- Cecília.
Paula era muito parecida com a mãe. Tinham o mesmo tipo físico. Cecília, ainda que um pouco exagerada em sua forma de se vestir, mantinha uma certa sensualidade e graça. Refinamento retirado de livros e livros de etiquetas sociais. Geralmente muito alegre, estava séria e contida. Luciana sabia o quanto a intimidava; intimidação que agora parecia redobrada, pelo motivo principal deste insólito encontro.
Detiveram-se por alguns minutos no cardápio. Escolheram as entradas, pratos principais, bebidas. Finalmente, encararam-se. Luciana a olhava com firmeza e o silêncio deixava claro que não suavizaria suas maneiras e muito menos iniciaria aquela conversa.
- Nós não sabemos como aconteceu.
- É um péssimo começo de conversa.
A mulher parecia presa em seu próprio corpo.
- Incomoda se eu fumar?
Com o olhar, a doutora indicou o símbolo de "não fumantes". Nervosamente, o cigarro fora largado na bolsa.
- Arthur disse que você o ameaçou. Ele está preocupado. Não temos como detê-la. Não podemos vigiá-la o tempo todo.
- Tranque-a em algum lugar. Vinha funcionando bem até agora.
Para Cecília, o sarcasmo de Luciana não era justo. Sua filha não merecia ser tratada assim.
- Nós não sabemos onde ela está. - a voz fora morrendo até se tornar quase inaudível.
A ira presente no azul que mirava a mulher era palpável. Nem mesmo a proximidade do garçom evitou o tom elevado da voz.
- Vocês estão brincando com fogo. Sabem do que sou capaz. Quero uma explicação para o que acontece. JÁ!
O murro dado na mesa, deslocou o copo e fez o garçom transbordar a bebida sobre Luciana. Cecília sentiu um frio percorrer a espinha quando a doutora levantou-se, transformando o pobre rapaz em uma figura liliputiana ante a extensão total de sua altura. Empurrou-o como quem se livra de uma mosca em seu braço, como se ele não existisse e foi a sorte dele a atenção dela estar direcionada para a mulher a sua frente.
- Assim que eu limpar o que este imbecil fez, eu quero uma boa explicação. Não para atenuar minhas resoluções. Apenas para eu saber quem mais eu devo eliminar nessa sua família de patetas.
Os poucos minutos que Luciana gastou no toalete, serviram para que todos os garçons livres arrumassem novamente a mesa, enquanto Cecília remoía a perda da sua dignidade diante da tirania e injustiça dos atos da doutora.
Quando ela se tornara tão covarde? Por que deveria de sê-lo? Alguém tinha que fazer Luciana enxergar a sua parcela de culpa naquilo tudo. Paula agia por amor. Reclamava um amor que fora dela e de repente se transformara.
Cecília nunca quis admitir o tipo de relacionamento. Ainda não admitia, mas se isto fosse um atenuante para aquela situação, usaria. Certamente, sua filha tinha sido ingênua e envolvera-se com a mente brilhante e ambiciosa da linda morena de olhos azuis. Ela mesma, quando olhara para Luciana, não pode deixar de se render aos encantos da adolescente alegre, inteligente, espirituosa, dinâmica. Lógico, qualidades perfeitas para ela, Cecília, se tivessem se mantidos longe de sua filha. Entretanto, a jovem Paula tomou-se de amores e fixou Luciana como sua melhor amiga. Decretou que seriam inseparáveis. Já seria exagerado o bastante, mas ainda inventaram de serem amantes. Tantos rapazes, para ambas, jovens tão belas. Eram realmente belas. Arthur fora culpado. Percebera antes e acobertara tamanha insensatez. Ele jurava que Luciana amava Paula com a mesma intensidade. Lastimável engano.
Luciana retornara. Outro garçom veio atender a mesa, onde toda a energia concentrava-se no lado ocupado pela bela mulher, cujos olhos de um azul escuro pareciam sugar as energias da senhora que evitava encará-la.
- A mancha da blusa sai. - foi o comentário patético.
- Ver que você entende de lavanderia me deixa feliz, por saber que terá uma profissão. Só não dará para manter seu padrão de vida.
Chega. Era demais.
- Estou feliz que minha filha tenha voltado, Luciana. Você fica aí, cheia de arrogância, só porque tem poder e dinheiro. Mas, na verdade, está se borrando de medo do que ela possa fazer com a sua preciosa boneca predileta. Que diferença faz que seja minha filha e não você que a arruine?
Os olhos castanhos, até então sem vida, estavam intensos e desafiadores. Luciana fora pega de surpresa. Estava sem palavras. O rato sabia rugir.
- Cedo ou tarde você vai estraçalhar aquela pobre moça com essas suas garras e dentes afiados pela sua incapacidade de amar. Quem sabe, Paula não esteja fazendo um bem para você assumindo a culpa pela extinção do brilho daquela criaturinha delicada. Na verdade, ela é um alerta para a boa moça que, se tiver alguma esperteza, perceberá a armadilha que a prende em gaiola de ouro. Ou, então, quem sabe Paula até pode mudar o jogo e tirar da loirinha o amor da bela doutora? Ou você está convicta de que não sente mais nada pela minha filha?
Inutilmente, os pratos foram dispostos.
- O que eu disse para Arthur não se altera em uma vírgula. Estando com vocês ou não, se ela chegar perto de mim ou Becky, farei valer tudo o que tenho direito.
- Ela é o que é por sua culpa. Isto não serve para você tentar ajudá-la, nem que seja dando-lhe uma chance de provar que pode ter mudado?
- Cecília, ela esteve em meu escritório. Não vi nada que avalize uma mudança. Para o bem de todos, meta aquela desmiolada em um avião e devolva-a para o lugar de onde veio.
- Poderia ser o seu coração, se você tivesse um.
Bruscamente, sem qualquer chance para uma reação, Luciana foi atingida pelo líquido que servia de bebida para Cecília. Quando abriu os olhos, viu a mulher saindo do restaurante.
Era um caminho curto entre o estacionamento e o restaurante. Mas, atravessá-lo molhada era desagradável.
Uma breve parada no toalete resolveria parcialmente o desconforto da situação.
Bem que Clara avisava para ter sempre um guarda-chuva no carro. O tempo de Sampa realmente era instável.
Para uma desmiolada, Paula era pontual.
Luciana tinha sido sua primeira, única e fulminante paixão; assim, Rebecca nunca reparou em outra mulher, mas Paula certamente chamaria sua atenção. O jeito de caminhar lembrava um felino. Seus gestos eram lânguidos, até mesmo preguiçosos. Não tinham a majestade e precisão de Luciana, mas não eram menos magnéticos.
O olhar era extremamente debochado e penetrante. Os olhos marrons pareciam avaliar cada centímetro do objeto mirado. A curvatura dos lábios pareciam sempre esboçar um sorriso sarcástico. Rebecca sentia-se nua diante de Paula. Com certeza, aquele olhar media e comparava seus corpos e, sem qualquer vaidade, a loira de olhos verdes percebeu que fora invejavelmente aprovada pelos ávidos olhos marrons.
- Luciana sempre foi reconhecida pelo bom gosto em suas conquistas. Você é um brinquedinho apetitoso, garotinha.
- Dra. Paula, vamos ser diretas e assim acabaremos logo com esta situação.
- É claro que tivemos bons momentos juntas. Não tenho motivos para me queixar das nossas horas de prazer e diversão...
- Dra. Paula, poderia ser mais objetiva...
- Mais objetiva...bem, eu sempre gostei de sentir a boca de Luciana em torno dos meus seios, bem como sua língua quente e molhada confortavelment...
- Dra., você sabe que não me referia a esse tipo de objetividade...
- Ela já deixou você penetrá-la totalmente? Você já colocou sua mão e sentiu a umidade e calor que vive dentro daquele iceberg?
Rebecca sabia que não havia diálogo. Sentia-se uma idiota por aceitar aquele encontro. Paula era totalmente sem limites e tinha uma única obsessão: Luciana.
De certa forma, isto colocava Rebecca em perigo. Naquele momento, ela era a opositora, a adversária. Nem tanto por estar com Luciana, mas por ter preenchido uma aparente eterna solidão que rondava a doutora de olhos azuís. Solidão que dava a Paula esperanças que poderiam ir desde ter sua amada de volta até ter sua vingança realizada, o que consistia em ver Luciana amargando a mesma falta de amor que era evidente na criatura à sua frente.
Com certeza, dali ela não obteria nada, além da certeza de que seja lá o que tenha ocorrido entre elas, nenhuma delas tinha saído impune. Se ela, Rebecca, queria saber algo mais sobre o que ocorrera entre as duas médicas, teria que perguntar à Luciana. Mesmo porque, tudo o que fosse dito pela médica de olhos castanhos, reverteria no mesmo processo, pois não teria crédito até ser confirmado por sua parceira.
Era vergonhoso, entretanto, que ela estivesse ali, passando pelo constrangimento de ouvir alguém estranho falar coisas tão íntimas de sua amante, dar detalhes tão reveladores que nem mesmo ela sabia; quando poderia simplesmente ter se dirigido à Luciana e questionado tudo. Esta sempre seria a mais sábia decisão. A que demonstraria sua confiança, paciência e respeito para com os limites e medos da mulher que amava.
Estava zangada pela forma como Luciana a rejeitara nas últimas poucas horas, mas estava ficando cada vez mais com medo da reação que ela teria quando soubesse deste encontro. Agira como criança ao cometer o erro, deveria agir como mulher para tentar revertê-lo.
- Já percebi que não chegaremos a lugar algum. A doutora quer falar de coisas que são irrelevantes para o meu relacionamento com Luciana.
- Sexo nunca foi irrelevante para ela.
- Não falo dela, mas de mim. Se você já se deu por satisfeita, ou não, em lembrar prazeres antigos e sem futuro; tenho que deixá-la, pois tenho mais o que fazer com o meu presente.
Por um momento reinou o silêncio. Em seguida, Paula segurou firmemente o pulso de Rebecca, que sentiu certa dor, mas não demonstrou. Na outra mão, a médica segurava a faca que tinha sido trazida com o pedido feito. De uma forma um tanto mecânica, fazia o objeto deslizar habilmente entre seus dedos. Rebecca percebia os movimentos da faca com a visão periférica, pois seus olhos estavam diretamente atados aos da médica.
Aos poucos, os músculos tensos foram relaxando e Paula sorriu seu famoso sorriso sarcástico.
- Sei tudo sobre você, loirinha. Sei da sua vida de mendigações, sei quão relês você é. A parasita que finge orgulho. Luciana se deixou seduzir por você, por esses olhos verdes tão bondosos e esse corpinho gostosinho. O que você é não importa para ela. Importa menos que você saiba quem ela é. Tudo o que ela sabe é sobre poder e domínio. Tudo está abaixo dela. Você é verme, é lixo, é descartável. Um banhinho de loja, um pouco de bons modos e alguma dose de cultura só para não ofender a vaidade dela perante os outros. Você serve, por enquanto. Na sua situação, não é nenhum sacrifício ceder aos caprichos dela e gem*r, se contorcer sob um corpo magnífico daquele. Você não precisa fingir, precisa?
O aperto no punho de Rebecca era cada vez mais forte. A faca continuava seu malabarismo nas mãos hábeis. De repente, a jovem sentiu medo. Emudeceu. A raiva crescia, mas a prudência estava prevalecendo.
- Ela sempre tem o que quer e paga alto. Aproveite e faça seu pé-de-meia, garotinha. Como a sua, existem muitas bucetinhas gostosas por aí, prontas para se abrirem sem muitos esforços psicológicos. Quando a doutora quer, ela não liga para o quanto vale. Como todo luxo, você parece bem carinha...mas tão complicadinha. Limite-se a usar sua boca para coisas mais simples...ao invés de ficar bisbilhotando a vida dela, que também é a minha. Dúvido que ela não se importe, mas eu certamente me importo com intromissões.
Rebecca fez um esforço para se livrar do aperto em seu pulso. Paula parecia não se incomodar com os esforços da loirinha.
- Eu e Luciana fomos excelentes alunas e nossa técnica em fazer incisões é lendária pela precisão e pouca perda de sangue....sua pele é tão tenra, tão suave...o que o dinheiro não faz, não? - começou a deslizar a lâmina pelo braço de Rebecca.
Abruptamente, Rebecca levantou-se. Num gesto ousado, mas com periculosidade calculada pela quantidade de pessoas presentes, sussurrou no ouvido da sua recém-adquirida inimiga.
- Quando Luciana goz*r comigo, hoje à noite, agradecerei você pela dica, doutora.
***
***
O clima no hospital estava um inferno. Quando Luciana chegou, havia um monte de repórteres.
- O que acontece, Marcella?
- A imprensa sabe sobre Anna de uma forma deturpada. Estão achando que usamos uma criança indigente como cobaia para testes de medicamentos.
Luciana olhou para a diretora como se chifres tivessem nascido na cabeça da mulher.
- Como isso aconteceu? Quem poderia...Bem, as revistas especializadas estiveram aqui.
Pela primeira vez, Marcella sentiu Luciana abatida. As aspirinas em suas mãos denotavam a dor de cabeça.
De repente, ela deu um murro na mesa.
- Chama a Paz. Você vai reunir esses cretinos; e eu e ela daremos uma coletiva. Anna é sim uma indigente, mas alguém que está sob minha proteção. Chame os advogados e mostre aqueles papéis falso de adoção em último caso. Não deixe Clara saber. Se for preciso fotografar a menina e ela estiver por aqui, afaste-a.
Nem bem Marcella saíra, o Dr. Victor se fez anunciar.
- Isto está virando um circo, Luciana?
- Somente assim para o palhaço do seu filho trabalhar aqui.
A dor de cabeça só fazia aumentar. Aquele imbecil não sabia com quem estava falando.
- Ontem a Paula, hoje essa imprensa por conta daquele capricho da sua noiva.
- Não foi capricho da Rebecca. Está mais que esclarecido que atendeu aos meus propósitos. Será que posso desconfiar de você metido nessa história, Victor? Depois de tantas que já aprontou, não seria uma injustiça minha achar que anda tramando às escondidas.
- Não escondo que não gosto da situação, mas sou zeloso por meu patrimônio. Se alguém esconde algo de você, deve ser sua noivinha. Soube que Paula deixou vocês abaladas. Rebecca não deveria ter ficado surpresa, já que sabia dela.
Luciana não queria entrar no jogo de Victor e ficou calada, fingindo que o ignorava; mas, ele a atiçava.
- Não sei se a Rebecca falou que dei a ela um cartão da Raphaela? - o médico, uma raposa, sabia que Luciana fora pega de surpresa.
- Falou sim, claro!! - a médica tentou mostrar desinteresse.
- Você reage assim?
- Se eu fizer o que quero, nem Pitanguy dará jeito na sua cara. Agora, suma daqui. Tenho que dar função nesse circo de pulgas.
***
***
Durante a tarde, Becky viu Luciana na t.v.: simplesmente deslumbrante! As câmeras se rendiam a ela. Com todo charme e demonstrando domínio de sua área, juntamente com Paz, transformaram o que poderia ser uma dor de cabeça para o hospital, em um verdadeiro ato de compaixão e altruísmo. Habilmente, a médica conduziu o rumo do assunto, focando na raridade da doença, nos estudos feitos fora do Brasil, na importância do projeto e, principalmente, no resguardo a privacidade da criança em questão, uma menina descoberta na fazenda dos pais de sua noiva (aqui, quase que o foco vira outro) e salva da morte, destino que outras menos favorecidas tiveram. Desse ponto em diante, o hospital e Luciana viraram a última palavra em caridade, haja vista os custos do projeto. E, desse ponto em diante, Luciana se retirou, deixando Paz e Marcella com o resto dos jornalistas.
Becky tentou alcançar Luciana o dia todo pelos telefones, mas não teve sucesso.
Falou com Clara.
- Como sempre, ela foi brilhante!! Becky, ela reverteu o quadro. Nunca a vi tão simpática e cordial. Encantou aos jornalistas. Ela transformou em uma conferência, com direito a comes e bebes. Marcella estava estressada com tanta coisa que a doutora a fez fazer em tão pouco tempo. Os jornalistas a amaram. Acredita que até campanhas de donativos queriam fazer para Anna? Os telefones do hospital não pararam ainda.
- É, mas em compensação comigo ela num está tão amável.
- Bem, após a entrevista, não tivemos mais notícias dela. O pouco que soube, ela estava comendo aspirina como farofa. Marcella não fala muito comigo, mas pediu que eu ficasse ausente enquanto fotografavam a Anna; comentou que era para não criar caso, pois Luciana estava comendo o fígado de todos e desconfiando de todos também.
- Bem. Em 1 h estarei indo jantar com ela. Deseje-me sorte!!!
- Toda do mundo. Mas, você é a única esperança. Se não for você, temo por nós!
Às 21 h, em ponto, Rebecca entrou no restaurante. Decidira que iria ter uma conversa séria com Luciana a respeito de Paula. A mulher estava mentalmente perturbada e tal estado não se alcança de graça. Por mais asquerosa e perversa que a médica fosse, não tinha se tornado assim sozinha.
- Oi. Faz tempo que você chegou?
- Uns cinco minutos.
A doutora não se levantou para recebê-la, obrigando Rebecca a abaixar-se para beijá-la. O beijo fora aceito, mas não correspondido.
Ela parecia cansada. Ainda que discretas, estava com olheiras.
Clara havia dito que a doutora não dormira. Vagara novamente pela casa, trancando-se, por fim, no quarto de costume. Durante o dia, saíra para o almoço muito cedo e voltara tarde, com o pior humor que a secretária tinha visto nos últimos tempos, desde a chegada de Rebecca. No decorrer do dia, o que parecia não poder piorar, provou-se contrário com a tal conferência.
Agora, ali à sua frente , os olhos azuis estavam límpidos e inescrutáveis.
- Vi você na t.v. Como foi o seu dia, Luck?
- Normal, dentro da normalidade dos últimos dias. - resposta seca - E o seu?
- A menstruação se foi, a cólica também. De resto, sem novidade.
- Nada aconteceu?
- Nada de inesperado, por certo. O que você está bebendo? - pegou o copo da médica, para bebericar.
Sem uma palavra, Luciana levantou-se. Jogou algumas notas na mesa e saiu do restaurante. Atônita, Becky mal teve tempo de entender o que acontecia. O mais rápido que pode, evitando o mâitre que preocupadamente veio em sua direção, alcançou a porta, mas Luciana não estava mais. Pela rapidez, não pegara o carro, mas também não a viu na rua.
- A mulher alta, morena...
- Ela pegou um táxi. Que faço com o carro...- o valet não teve tempo de completar a frase, pois Rebecca também embarcara num táxi.
Alegando que estava com algumas coisas da mulher que pegara o táxi da frente, conseguiu descobrir que Luciana fora para o hospital.
Não gostava de ir para o hospital de táxi, pois tinha que atravessar todo saguão até o elevador e as recepcionistas ficavam cochichando quando ela passava. Era evidente que comentavam seu relacionamento com a "insuportável e autoritária mulher", como a médica era conhecida. A própria Luciana contara para ela sobre tais adjetivos. Porém, se ela soubesse o que Rebecca sentia, todo o staff seria trocado em um piscar de olhos.
Subiu sozinha no elevador. Pelo horário, estava tudo calmo no hospital. Exceto, talvez, um certo escritório no último andar. Durante o trajeto, Rebecca procurava motivos para a reação da doutora. Tinha, sim, a consciência pesada pelo almoço com Paula, mas Luciana não sabia.
Surpreendentemente, Luciana estava com as luzes acessas e olhava pela janela, que refletia sua imagem e, agora, a de Rebecca.
- As companhias de táxis deveriam ser discretas sobre o destino de seus passageiros.
- Um pouco de charme alcança algumas concessões.
Rebecca tentou ser engraçada, mas percebeu que falhara redondamente. Percebeu isto na frieza e falta de expressão no rosto da mulher quando, virando-se, Luciana a encarou.
- Esta parece ser a sua principal arma.
Era difícil saber o que se passava ali, naqueles olhos. Definitivamente, se a doutora quisesse, ninguém ultrapassaria suas fronteiras.
Sentou-se em sua cadeira e ficou em silêncio. A luz que incindia sobre seus olhos os deixavam claros, totalmente transparentes, com apenas um halo escuro contornando a íris. Era um olhar de águia, de predador; olhar de quem está pronto para atacar, sem defesa para sua presa.
Nunca a presenciara assim, mas sabia que a fera sempre se enternecia em seus braços e deixava-se domar por seus carinhos. Quando as palavras não podiam atingi-la, Rebecca sabia como alcançá-la.
Lembrou-se da cena que presenciara no dia anterior, quando surpreendeu Paula montando sobre a doutora. Sem hesitação, foi na direção dos olhos que a olhavam fixamente, prendendo-os. Como Paula, colocou uma mão de cada lado dos braços da cadeira, prendendo Luciana. Sentiu o leve enrijecimento dos músculos, mas a mulher permanecia com a mesma expressão. Sedutoramente, passou a ponta da língua pelos lábios da estátua de mármore e sentiu que a capturara.
- Você sabe que não, doutora.
O beijo, ainda que lascivo, foi diferente. Era como se a doutora estivesse ali, mas não fosse a mesma. Neste momento, Rebecca lembrou do que Paula havia dito sobre sua função na vida daquela mulher. Mas, os lábios eram os de Luciana e as mãos que agora a seguravam firmemente também. O toque quente, preciso, seguro. Percebeu que tinha sido presa na própria armadilha.
Afastando as pernas, a loira alojou as coxas da doutora entre as suas. Com o movimento, a saia subiu, dando maior mobilidade e abertura para Luciana.
- Era somente isto que eu queria que você conhecesse de mim.......paixão...ternura...devoção...
Luciana começou a falar enquanto suas mãos deslizavam pela lateral do corpo de Rebecca, com toques calmos, subindo ainda mais o vestido, deixando-o na altura da barriga desejada.
- ...você teve de mim o que nem mesmo eu sabia ainda ser capaz...
As mãos prenderam firmemente as nádegas da loira e a puxaram para frente, encaixando o máximo possível suas púbis.
- ....eu fiquei vulnerável para você....
As palavras só eram interrompidas quando a língua bailava, úmida e quente, na orelha e nuca de Rebecca, deslizando para os seios que eram sugados por sobre o tecido da lingerie.
- ...entreguei o que pude...nunca fui tão sincera....dei a você meu sangue...
De repente, inserindo os dedos sob as laterais da calcinha de Rebecca, Luciana arrebentou as tiras, ao mesmo tempo que levantou da cadeira e virou a loira sobre a mesa, com o rosto sobre a madeira fria.
- ....mas você quer ver o que eu fui...quer saber o que eu fiz...
A força de Luciana era desconhecida para Rebecca. Jamais, sem prévia concordância ou aviso, ela fora violenta. Neste momento, as mãos da jovem estavam firmemente grudadas na superfície da mesa, presas na mão poderosa.
-... já deve saber o que eu faço com pessoas como você...
Apesar do esforço, a respiração da doutora mantinha-se ritmada. Por sua vez, Rebecca estava sentido-se sufocada. Desta forma, concentrava seus esforços em suporta o peso sobre ela. Luciana era muito forte.
Pensou em se debater, mas alguma coisa a fazia confiar na médica, mesmo ciente da fúria que crescia agora, a ponto de ter seu vestido rasgado e toda a parte de traz de seu corpo exposta.
- ...pessoas como você são servidas como aperitivos para mim...
Tirando o cinto que usava, a doutora atou as mãos de Rebecca, prendendo-a na armação de ferro da mesa. Com as pernas, pressionava o corpo da jovem contra a mesa.
- ...quando Paula falou do meu prazer em machucá-la...foi só sentimental.... ou físico?
Por um breve tempo, Rebecca não sentiu o corpo de Luciana. Então, bruscamente, suas pernas foram separadas.
- ...ela falou que eu uso pessoas inocentes enquanto me dão prazer...
Neste momento, nem se quisesse, a jovem poderia falar. Todo o corpo de Luciana estava sobre ela, sentia os seios em suas costas, dedos penetrando seu ânus e os pelos da doutora sobre a pele de sua bunda.
- ...enquanto me interessam, eu as uso, capturo sua inocência....
Os toques não eram delicados. O que começara excitante, estava se tornando desagradável. Luciana puxava o cabelo da jovem. Rebecca pode perceber quando a doutora abriu seus lábios para fazer seu clit*ris manter contato com a pele que era dolorosamente friccionada pela médica.
Ela não estava sendo amada, mas violentada. O que mais a assustava era que, pela umidade sentida, Luciana estava realmente excitada com a situação.
- ....e, depois, as jogo fora, sem remorso...ignorando o amor.....
Os movimentos eram agora mais acelerados. A respiração ofegante.
- ...elas me amam, eu as faço acreditar que as amo, mas eu as firo...
O desconforto inibia a lubrificação de Rebecca e estava ficando terrivelmente doloroso receber os movimentos dos dedos da doutora.
- ...eu transformo jovens crédulas como você em víboras perturbadas.
Rebecca não queria acreditar que Luciana seria capaz de machucá-la.
Luciana ameaçou inserir mais um dedo.
- ...você não está sentindo prazer....posso sentir como está seca....
A penetração continuava e, mesmo com certo receio, Rebecca permanecia sem se debater.
- .....mas você pode sentir o quanto estou excitada....
- Se...é assim que...você quer,....eu posso...aguentar.
Sem diminuir o ritmo das arremetidas, Luciana esfregava-se cada vez mais na pele lubrificada com sua própria excitação.
- ...você não tem medo que eu a machuque...
- ...confio em você. - a loira falou, quase sem voz, sufocada pelo peso sobre seus corpo
- ....mas eu sou cruel... ...você já deve saber...com tantos encontros.... Paula , Cecília, Arthur....Victor...
- Eu não sei de nada, além de confiar em você.
Instantaneamente, tudo parou. Por um tempo, a médica ficou sobre a jovem. Rebecca achou que o tremor no corpo dela fosse seu clímax. Então, sentiu as lágrimas sobre a pele exposta.
Luciana largou Rebecca. Desatou suas mãos. Recolhendo suas roupas, evitou olhar para os olhos verdes.
Antes que tivesse tempo de se mover, Rebecca sentiu quando o punho de Luciana passou à milímetros da sua cabeça e chocou-se fortemente contra a madeira da mesa, que cedeu.
- Por que insiste em ignorar meus pedidos?
Novamente, o soco raspou o outro lado.
- Poderia proibi-la, mas preferi pedir. Não adianta.
Rebecca sentia um ardor incomodo entre as pernas. Sentia dores no pulso. E sentia muita, mas muita raiva de si mesma.
- Como você soube? Mandou me seguir?
- Nunca achei que precisava disto. - Luciana cuspiu as palavras. - Paula ligou. Disse que tinha deixado você bem informada sobre mim e o quanto você fora arrogante e confiante em seu poder de sedução dentro da nossa relação.
Rebecca empalideceu. Quanta ingenuidade. A médica de olhos castanhos distorcera tudo o que ela dissera. Luciana deve ter se sentido humilhada e traída.
- Então, por estes caprichos do destino, você entra aqui e me insulta, achando que oferecendo seu corpo para mim iria me domar.
Rebecca sentia-se mal. O pescoço doía pelo esforço em sustentar as mãos de Luciana. Estava com dor de cabeça também. Ainda sentia os efeitos do seu período menstrual.
- Ela é perigosa. Eu e ela somos o reverso da mesma moeda. Eu a magoei e feri muito, mas ela me ama de uma forma obcecada. Ela vai ferir você. Física e psicologicamente, de uma forma ou de outra. E vai ser minha culpa. - havia desespero na voz da médica.
Rebecca lembrou da faca e do comentário sobre a incisão.
- Não...ela não seria capaz..
Repentinamente, mas com suavidade, Luciana passou a dedo de Rebecca sobre sua coxa esquerda.
- Ela me ama, mas isto não evitou esta cicatriz que você tanto fantasia ser um ato de heroísmo.
- Foi ela? Como..
Evitando o assunto, Luciana começou a ajeitar sua roupa.
O vestido de Rebecca estava destruído. Ao olhá-lo, a raiva de Luciana explodiu em lágrimas de impotência, de vergonha. Ela arrancou o vestido das mãos da jovem e o partiu em trapos.
- Agora mesmo, eu ia magoá-la...ferí-la. Eu tenho essa raiva dentro de mim, que você nunca viu e eu não queria que visse. Não gosto de ser uma marionete dentro das armações de meus inimigos. Você, ainda que inocentemente, me deu de bandeja para ela. Para Victor.
Rebecca até pensou em refutar a acusação, mas preferiu ir para o banheiro, para se recompor.
- Por que não me contou, Rebecca. Eu dei a você a chance. - Luciana estendeu um de seus jalecos para a jovem. - Mesmo que eu já soubesse, confiava em você para que se abrisse comigo. Era o que eu precisava.
A jovem percebera que Luciana não estava convencida da confiança a pouco declarada. Servira para o momento; para tocar algum ponto dentro da mulher e aplacar a fúria que a possuía, mas não estava sendo o suficiente para fazê-la entender que ainda precisavam trilhar a descida dentro do inferno da médica.
- Não quero falar agora. Não estou bem. Clara já deve ter deixado nossos carros na garagem. Vou para o apartamento.
Ignorando a fala da jovem, Luciana continuou com seus pensamentos.
- Admito que não seria o bastante para me fazer esquecer o escárnio, o deboche e, acima de tudo, a sensação de traição que tomou conta de mim. Mas, serviria para enfraquecer o ardil de Paula. De Victor. Você deu a eles o que usar para me provocar. Ela me conhece bem.
- Essa a maior vantagem dela sobre mim, doutora.
Não houve comentários. Rebecca saiu, batendo furiosamente a porta.
Pedaço de Mim
(Chico Buarque)
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
Fim do capítulo
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