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Capítulo 26 - Cap 25.2

VINTE E CINCO

PARTE UM

 

 

disclaimer no capítulo UM

 

 

A líder passara a manhã inteira no hospital. Almoçara lá, com Ruth. Becky chegou, mas teve que ir com a médica para uma reunião com o pessoal de marketing.

 

- Tou tão orgulhosa da minha minina! Ce viu como ela tá toda grãfina? E fazendo trabaio importante? Está uma muié!! É, Régia, quando ocê piscar esses belos zóios azuis, a Anna tá muié feita.

- Não vou ver isso, Ruth. Talvez você veja. Acho que ela a terá como uma tia ou avó, por ser mãe da Becky.

- Que besteira é essa, minina? Que doideira cê tá maquinando aí? - a mãe de Rebecca ficou intrigada.

- Tão logo acerte algumas coisas na fazenda com o João, sumo no mundo. Vou deixar todos livres de mim.

 

Ruth ficou calada. A comida tão saborosa ficou amarga, como a mulher a sua frente.

 

- Ce feiz arguma besteira naquela cozinha, Régia?

 

Régia não tirava os olhos da comida, sem coragem de encarar a jovem senhora.

 

Sem se importar com as pessoas olhando, a líder começou a arrancar o gesso com a faca e o garfo; ato que assustou a jovem senhora.

 

- Ce tá paixonada pela D.Clara, né?

- Não. - Régia estava quase sangrando o braço, mas o gesso já estava saindo. - Não estou apaixonada: estou para perder o juízo. Mas, vou recobrar. Ah, vou!!! - com raiva, arrancou o artefato do braço, fazendo uma sujeira de pó branco na camiseta preta.

- Fugindo? - Ruth encarou os olhos azuis que estavam gélidos.

- Encerrando essa farsa de ser o que não sou. De fingir que posso transitar por entre essas pessoas. Eu sou uma mulher marcada pela violência, pela maldade, pelo gosto de sangue. Sou escória, paria. - havia desprezo na forma como a líder pronunciara as últimas palavras.

- Não fale assim, Régia. - Ruth segurou o braço com pó de gesso, que foi retirado bruscamente.

- Falar?!? Falar....Sabe, Ruth, nunca fui de falar e agora tenho dado satisfações demais sobre minha vida e meus atos. Muita gente nova, gente estranha. Muitos favores. Estou minando minhas forças, por tanta gratidão. - reuniu todo o gesso espalhado, amassando o material.

- Você está reunindo condições por sua fia. É diferente, Régia. E a D.Clara...bem, ce sabia onde ia amarrar o seu burro.

- Ruth, se alguém foi enganada nessa confusão, fui eu!!! Ela não jogou limpo. Ela fantasiou algo comigo e me fez embarcar. E eu, que não aprendo nada com minhas burrices, estava caindo novamente.

- E Anna?

- É por ela que vou sumir. Já decidi. Lastimo não poder conhecer você melhor, Ruth. Sei que poderia ser uma amiga e conselheira. - e levantou buscando o lixo, onde depositou bruscamente os restos do gesso.

 

Ruth sentiu o peito apertado. Uma lágrima rolou. "Eu que lastimo o que você está abandonando", a jovem senhora pensou, enxugando o rosto.

 

 

Mais tarde, ainda no hospital, Régia foi posta em uma sala com alguns profissionais de diversas áreas. Eles queriam saber o comportamento da Anna, para tecerem um quadro psicológico, psicomotor e outras avaliações.

 

- Caso ela acorde, queremos comparar todas as reações dela, de agora em diante, com as suas habituais atitudes antes do coma. Isto, no caso de seqüelas não aparentes. - Luciana, mais uma vez, explicava.

 

- Doutora, posso responder por escrito? Tem essas perguntas em arquivo de texto?

 

Todos os médicos se entreolharam.

 

- Doutores, ouviram a mulher: vocês têm tudo em formato de documento de texto?

 

Poucos não tinham.

 

- OK. Marcella, coordene para que Régia receba esses questionários e também arrume um espaço para ela utilizar um computador.  Dentro de uma hora quero tudo nas mãos dela. Régia, você tem até amanhã para me entregar tudo. A doutora responsável pela equipe quer avaliar, antes de começar a medicação.

 

- Pode deixar, doutora. - tanto a líder quanto a diretora responderam.

 

Diante da dispensa geral, apenas Luciana e Régia ficaram na sala de reunião.

 

- Luciana, eu quero ir para a fazenda o quanto antes for possível providenciar meu transporte. Preciso conversar com você seriamente. Você tem uma hora para mim?

 

Embora atarefada, a médica concedeu um tempo para a líder que, muito objetiva, o fez ser o mínimo necessário.

 

- Você está sabendo da recepção de hoje, não? - a médica indagou.

- Sim.

- Gostaria que você comparecesse.

- Preciso mesmo? - a líder não estava com a menor disposição.

- Por Ruth, ela está insegura, você a ouviu dizer hoje de manhã. Sei que vocês se dão bem. Eu e Rebecca provavelmente estaremos ocupadas com os convidados, na torre de Babel que vai ser. E os pais da Marcella são homofóbicos, irão aporrinhar a idéia da Ruth.

- Por que os convida, então?

- Porque sei que irão por curiosidade; e quero devolver o que fizeram com Becky no teatro. Sei que vocês acharam que eu não percebi. Quero que eles nos engulam.  E eles, como todo o resto a minha volta, engoliram só para me agradar.

- Você gosta disso, não?

- Gosto. Cheguei até aqui para isto. Quero cada verme rastejando aos meus pés, temerosos que a qualquer momento eu os elimine.

- Nunca tive poder de manipular. Só poder de pegar tudo com minhas próprias mãos, sem pedir permissão.

- Se pensarmos, você suja suas mãos de forma mais honesta do que eu sujo as minhas.

 

As duas mulheres ficaram se olhando, introjetando as palavras.

 

- Você já matou alguém, Luciana?

- Faz diferença a forma como tiramos a vida das pessoas, ou o que conta é tirar-lhes a vida?

 

A líder a olhou interrogativamente.

 

- Régia, meu império é construído sobre a necessidade de preservação do corpo para que a vida flua. É lindo dito desta forma; porém, existe custo para que isto aconteça de forma satisfatória e, infelizmente para o país, mas felizmente para empresários como eu, a população não tem recursos público decente. Eu vendo de acordo com o que esses necessitados podem pagar. E tiro quando não são mais lucrativos para mim. Quem é esperto, recorre por seus direitos; quem não é....

- Quem pode mais, chora menos!

- Exato. Sem nenhum envolvimento emocional. Apenas negócios. - disse com naturalidade - Acho que com você também era assim, estou certa?

- Correta. - a líder disse, como quem falasse de uma vida profissional - O que REbecca acha disso? Agora que se envolveu por aqui, ela sabe como funciona?

- Ela sabe, não concorda, não aceita. Mas, parece ter estabelecido alguma forma de separar a empresária da mulher que ela ama. Parece-me que ela pensa que quanto mais a mulher que ela ama for plenamente amada; mais a empresária se sentira compelida a ser menos implacável. Mas é uma selva e eu luto como posso. Se não atirar para matar, pelo menos tenho que aleijar. Você me entende?

- Literalmente, pode apostar.

 

Ambas riram.

 

***

***

 

- Perdónenme si no estoy hablando portugués. Voy a tratar de entender y así no ser una presencia molesta. (Perdoe-me se não falo português. Vou tentar entender para não ser uma presença chata.)- a médica estava meio sem jeito.

- No se preocupe. Estoy aquí para ayudar cuando sea necesario. Y la Señorita Marcella también, cuando estás en el hospital.(Não se preocupe, estou aquí para ajudar no que for necessário. E a Srta. Marcella também, quando estiver no hospital). - Clara disse polidamente.

- Bueno, entonces, muchas gracías! (Bom, então, muito obrigada!)- a médica disse, cordialmente.

- Los otros son invitados a empezar a llegar en torno a las 21:30 h. Trate de relajarse un poco. (Os outros convidados vão começar a chegar por volta das 21:30 h. Tente descansar um pouco.)- a secretária informou.

- Si. Gracias una vez mas. (Sim. Obrigada mais uma vez).

 

 

Luciana tinha ido ao aeroporto, recepcionar a médica, o que deixou Rebecca fula da vida. Houve um atraso com as malas e as duas retornaram para a mansão quase na hora dos convidados começarem a chegar. Luciana subiu as escadas de 3 em 3 degraus, entrando apressadíssima no quarto, onde Rebecca estava quase pronta para descer.

 

- Becky,  Clara estava na mansão, dando os últimos retoques nos preparativos. Teria sido muito para ela ainda ter que ir buscar nossa hóspede no aeroporto e ainda se preparar para a recepção. - a médica se desculpou, antes mesmo da loirinha começar.

- Desde quando você se preocupa em sobrecarregar a Clara? E...nossa, não: sua hóspede!

 

Estavam se preparando para a festa. Luciana estava sem sutiã e usando uma calcinha box branca, que realçava o "v" de sua anatomia indiscutivelmente feminina. Becky, mesmo irritada, não conseguiu deixar de notar o quão tentadora estava a médica naquele momento. Aproximou-se e tocou entre as pernas dela. Luciana não se mexeu, apenas gem*u. A jovem fazia movimentos circulares por sobre o tecido da calcinha, como uma criança que testa um brinquedo novo. Encostou o rosto no biquinho do seio, já rígido.  Logo sentindo a umidade em seus dedos.

 

- Ainda bem que estou indo tomar banho...- a médica sussurrou ao ouvido da jovem.

- Sim...vai tomar banho doutora, pois não estou certa se quero brincar com você.

 

Dizendo isto, lavou as mãos e saiu do banheiro. Luciana sabia que estavam atrasadas, por isso aceitou. Mas, a frustração ficou boiando na superfície em ebulição.

 

 

 

 

Lá pelas 21:30 h, os convidados começaram a chegar. O que seria uma pequena reunião, acabou contando com a presença de umas 50 pessoas. Todos os envolvidos no projeto, das duas equipes, e acompanhantes.

 

- Dra. Paz ha llegado? (Dra. Paz já chegou?) - um dos médicos quis saber.

- Si. Ella es descansar un poco. (Sim. Ela está descansando um pouco)- Luciana respondeu, enquanto circulava entre os convidados, junto com Rebecca

- Que es esta niña muy hermosa, Dra. Luciana? (Quem é essa menina muito linda, Dra. Luciana?)

- Esta es mi novia, Rebecca, Dr. Gutierrez. (Esta é minha noiva, Rebecca, Dr. Gutierrez.)

- Su novia?!? Encantado! (Noiva?!? Encantado!) - o homem pareceu desapontado.

 

Luciana escolhera uma calça de sarja preta, botas de canos longos e salto médio, camisa preta de mangas longas, com botões abertos até onde o decoro permitia (e Rebecca também). Os cabelos soltos. Uma leve maquiagem, o rímel realçando os olhos azuis. Totalmente de tirar o fôlego.

 

Por sua vez, Rebecca usava jeans marrom, blusa verde de gola rolê, botas de salto altíssimo. Também realçara os verdes dos olhos com a maquiagem. Os homens desavisados estavam empolgados com a loirinha, para variar, uma vez que Luciana tinha fama de inatingível.

 

Ao contrário do que ocorrera na festa na Austrália, Luciana não se mostrava hostil com os rapazes por eles estarem atrás da loirinha. Muito menos estava controlando Becky, a deixando livre. Vez ou outra, elas se encontravam, trocavam carícias que, aos poucos, foram sendo notadas, sinalizando que as duas estavam juntas.

 

Nas pick-up´s, Marcella comandava a música. Clara tinha pedido a ela para ser a dj, uma vez que o hobby da diretora era colecionar músicas.  O som que tocava era uma mescla de anos 80 e 90, infalível para animar qualquer ambiente.

 

Poucas mesas foram colocadas no jardim, pois o tempo não ajudava. Soprava uma brisa fria. As portas estavam abertas, de qualquer maneira. Fora contratado um buffet de crepes; tudo montado na hora. Clara escolhera pessoalmente os vinhos que circulavam. Também as cervejas e outras bebidas. O whisky também.

 

- Não sabia que o Prof. tocava clarinete? - Rebecca conversava com o Prof. Arthur, que compareceu sozinho, pois Cecília tivera enxaqueca.

- É um dos meus instrumentos favoritos. Amo jazz. Eu e a Marcella, quando em viagem, trocamos muita figurinha sobre música.

- Nunca soube disso. Ela nunca comentou, Prof.! - Clara comentou, com uma expressão indecifrável - Só sei que ela adora música.

- Mas, Rebecca, onde está sua encantadora mãe? - o homem tentava localizar a jovem senhora de olhos verdes.

- Está ali do lado do rapaz do buffet, tentando aprender a fazer crepes. - todos deram risada, ao ver a senhora pincelando o disco com a massa, tentando fazer um crepe.

- Vocês vão me dar licença, mas vou buscar nossa hóspede.

- É bom mesmo, antes que a Luck invente de ir. Do jeito que está cheia de atenção para essa chilena.

- Colombiana, Becky. Ela está no Chile, mas é colombiana. - o professor corrigiu e a loirinha deu de ombros, pouco se importando em acertar.

 

Os pais de Marcella estavam em um canto, conversando com o Prof. Victor e Eleni.

 

- Só viemos pelo que representa para nossa filha. Sinto-me mal por estar nesse antro.

- Minha senhora, desculpo-me pelas atitudes de minha sócia. Infelizmente, para preservar a imagem, temos que aturar suas excentricidades. - Prof. Victor assumia seu mais ensaiado ar de consternação.

- Victor, deixa de ser hipócrita. Luciana é uma mulher verdadeira. Vive como quer viver. Ela sabe que somos seus bajuladores e que não perderíamos a mordomia que ela sempre nos proporcionou. Sócio ou empregados, a manda-chuva é ela. E, verdade seja dita: Luciana nunca confundiu o profissional com o pessoal. Se os senhores não quisessem vir, não representaria nada para a carreira da Marcella. Venha, Victor, vamos degustar um delicioso vinho. - Eleni, como sempre, colocou fim ao falatório que iria se iniciar.

- Fico com dó. A outra moça, tão jovem e se envolvendo assim. Todos os dias, desde que soubemos, pedimos para nossa filha não se deixar levar por esse péssimo exemplo. - a mãe de Marcella comentou com a senhora que se aproximava.

- Quem é tão jovem? - Ruth quis saber.

- Quem é a senhora?

- Uma caipira que num sabe o que tá fazendo aqui! - disse, sacudindo a cabeça - Meu nome é Ruth.

- Para falar a verdade, também estamos perdidos aqui. Nossa filha tá ali. Ela é diretora da empresa. Mas, a gente não gosta de estar aqui.

 

Inocentemente, Ruth perguntou o porquê e ouviu tudo que quis e o que não quis sobre a relação de sua filha com a doutora.

 

Nesse exato momento, Marcella percebeu Ruth entre seus pais. Pior: viu Luciana e Becky  indo na direção deles.

 

- Tudo bem aí, mãe? - Rebecca perguntou, pois percebeu que o assunto morrera bruscamente com a aproximação delas.

- Mãe?!?! - a mãe da diretora empalideceu.

- Sim. A jovem qui cês falavam, é minha minina. 

- Pressumo que sejam os pais da Marcella, correto? - a médica falou, abraçando Rebecca, que encostou a cabeça no ombro dela.

- Si..sim...so...somos, Dra. Luciana. - o homem parecia muito embaraçado.

- Espero que estejam apreciando a festinha. Sobre o que falavam de mim? - Becky perguntou de propósito.

- Coisa de mãe para mãe. - Ruth apressou-se em dizer - A gente percebeu que num entendi os fios direito, mas quer a felicidade deles. Da forma como for. A sua veio em um lindo embruio de presente. Pode não ser o embruio que imaginei; mas é o que de melhor Deus reservou para você.

- Agradeço pela parte que me toca, Ruth. Rebecca herdou sua generosidade e compreensão sobre o outro. - ao dizer isto, a médica deu um beijo na testa da sogra e um selinho em Becky. - Ah! Nossa hóspede chegou. Vamos amor. Com licença.

 

Os pais ficaram em silêncio.

 

- Não vou pedir desculpas. - a mulher teimou.

- Dona, quem tem teto de vidro, num deveria atirá pedra no teiado dos outros. L‘cença.

 

Nesta altura da festa, alguns casais estavam dançando. Eleni, sempre muito alegre, puxara o Prof.Arthur para dançar a música dos anos 80. Os dois puxaram Ruth para a roda.

 

Após as apresentações, Rebecca e a hóspede trocaram algumas palavras. A jovem loira, para espanto de Luciana, não deixou transparecer nem uma ponta de ciúmes.

 

- Luciana habla bien de tu y su hospitalidad. Espero que podamos devolver en la misma medida. (Luciana falou bem de você e sua hospitalidade. Espero que possamos retribuir na mesma medida.) - a jovem deu seu mais encantador sorriso.

- Luciana es una mujer fantástica. Y no podía haber encontrado mejor persona que va a ser su alma gem*la.( Luciana é uma mulher fantástica. E não poderia ter encontrada melhor pessoa para ser sua alma gem*a.) - a hóspede não deixou por menos a mesura.

 

 

Marcella estava entretida com suas músicas. Estava dançando e não viu sua mãe aproximando-se.

 

- Por que não me disse que a mãe da pervetidazinha estaria aqui?

- O que vocês fizeram?

- Pensei que fosse uma mulher decente e tentei abrir os olhos dela para a relação impura daquelas pervertidas.

 

A diretora quase cuspiu todo o vinho sobre os cd´s. Não acreditava. Como fora imbecil achando que sua mãe refrearia a língua estando na casa da doutora.

 

- Ah, mãe! Que droga. Você está na casa dela. Poderia ter dado um tempo. Como a mãe dela reagiu?

- Apesar de capiau, é muito elegante. Só disse algo de "telhado de vidro".

 

Clara se aproximou nesta hora, mas não pode participar da conversa, pois a mãe da diretora apontava em outra direção.

 

- Chegou mais uma. Aquela lá tem cara de machona.

 

Seguindo o olhar, ambas viram Régia chegando. Estava com os cabelos molhados, penteados para trás; calça de couro e camisa jeans, por sobre a camiseta preta; suas botas eram as de sempre, com salto médio. Simples. Estonteante.

 

Ela entrou e se dirigiu para onde estava Ruth.

 

- Aquela mulher não tem mesmo decência. A filha até entendo, embora não aprove. Mas essa uma aí, que horror! Essa é a tal troglodita que você sempre fala, Marcella? A sem terra brutamontes?

- Mãe!!

 

Clara fulminou Marcella com o olhar.

 

- Ela é a capataz da minha fazenda, senhora. Seu nome é Régia. Se quiser se referir a ela mais uma vez, a chame pelo nome, por favor!

- Você tem fazenda? - os olhos do pai da diretora se arregalaram.

 

Sem uma palavra, foi para o lado onde a líder se encontrava. Antes que chegasse, Luciana se aproximava também, com a médica para apresentar a Régia.

 

- Deseo presentar la madre del paciente. Régia, Dra. Paz Orfid.( Quero apresentar a mãe da paciente...)  - Luciana estava toda polida.

- ¿Usted? ¿Ella es la madre del paciente?( Você? Ela é a mãe da paciente?) - a médica pareceu empalidecer.

- Sí, soy. ¿Por qué la pregunta? (Sim, sou. Por que a pergunta?) - Régia reagiu naturalmente ao espanto, servindo-se de um whisky.

- ¿Las dos se conocen ya?( As duas já se conhecem?) - Clara nem se deu conta que perguntou.

- No.(Não) - o semblante de Régia era o mais tranqüilo possível ao sorver a bebida, sem nem piscar.

- Por un momento, se parecía yo eso sí.( Por um momento, pareceu-me que sim. ) - a médica parecia que vira um fantasma - Pero, Dra. Luciana sabe ya, por lo tanto también yo lo confundió con esta persona.( Mas, Dra. Luciana já sabe, pois também a confundi com essa pessoa.) - desculpou-se, ante os olhares de Ruth e Clara.

- Debemos tener mismo una referencia genética común, Luciana.( Nós devemos ter uma referencia genética muito comum, Luciana.) - Régia falou calmamente, enquanto pegava outro whisky.

- Para depender de esos el fanfiction que el Becky lee, existe millones iguales a nosotros.( Se depender daquelas fanfiction que a Becky lê, existem milhões iguais a nós.) - Luciana brincou.

- ¿Cómo? No entendía la broma.( Como? Não compreendi a piada.) - a hóspede não tirava os olhos de sobre Régia, alheia e também perdida na brincadeira

- No importa. Placer en conocirla, doctor Paz. Muy agradecida para su ayuda con mi hija. Con la licencia? Luciana, todas las preguntas para el trabaho de él  ya contesté y envié para su e-mail. (Não importa. Prazer em conhecê-la, doutora Paz. Muito grata pela sua ajuda com minha filha. Luciana, todas as perguntas para o trabaho dela já respondi e enviei para seu e-mail. Com licença?) - a líder dirigiu-se para perto do palco, onde as atrações da noite já se preparavam.

 

Régia acenou para Becky, que se aproximava, ao mesmo tempo que Luciana levava a ainda etérea Dra. Paz para falar com os outros pares profissionais. A loirinha deu uma olhada bem firme para as médicas, detendo-se nos olhos da sua. Se fosse possível acontecer, pareceu que Luciana engolira em seco diante do olhar.

 

Clara e Ruth estavam de escanteio. Ruth que estava junto, não compreendia bem o idioma, mas a situação pareceu ser um tanto emocional para a hóspede. Mas, o que mais deixou a jovem senhora ligada, foi a súbita pergunta da secretária. E, por isso, ela prestava atenção na postura de Clara.

 

- O que houve aqui, Clara?

- Parece que a sua hóspede está esperando encontrar alguém alta, de olhos azuis e cabelos negros.

- Como assim?

- Ela quase desmaiou ao ser apresentada à Régia, pois disse que pensou que fosse outra pessoa. Mas, como Régia negou, ela se desculpou dizendo que fez o mesmo com a Dra. Luciana.

- Bem, ela que vá ciscar para cima da Régia, que está solteira e cheia de energia para gastar; e deixa a minha morena que eu cuido.

- Que ciúme é esse, minha fia? Ce acha que Luciana é muié de traições?

- Mãe, do meu relacionamento eu cuido, certo?

- Pode ficar tranqüila. Olhe: a sua hóspede não desgruda os olhos de Régia. - secretária observou.

- E que olhar apaixonada! Vixi. - Ruth enfatizou, sentindo Clara se retesar.

 

***

***

 

No palco improvisado, o piano no qual o Dr. Gutierrez se instalou;  além da bateria, guitarra, baixo, sax e um violão. Quando se falou em jam session, pensou-se apenas nos dois doutores; mas a médica quis deixar outros instrumentos, já que o intuito de uma jam é a improvisação, sem comprometimento com virtuosismos.

 

Régia, com seu inseparável copo de whisky, estava sentada no banquinho da bateria, brincando com as baquetas. Com extrema destreza. Por isso e, por aparentemente, ser a única mulher disponível, recebia muitos olhares dos homens solteiros ou desacompanhados. O próprio médico chileno que tocaria com o professor, parecia mesmerizado por ela.  

 

- Olha lá a troglodita! - a mãe de Marcella apontou, chamando atenção da Clara.

- Vou tirar ela de lá. Que coisa chata. Ela sabe que os professores irão tocar. - a secretária estava irritada com esse desvio em sua arrumação - Deve estar bêbada. É o quarto copo de whisky que bebeu já.

- Tá contando, D.Clara? - Ruth comentou com ar inocente.

- Fiquei sabendo dos porres que ela anda tomando. Bebida fácil, tenho que zelar pela festa. - a secretária se defendeu.

-  Ocê percebeu como a Régia rodopiou aqueles pauzinhos nos dedos? Olha lá...de novo... - as três observaram - Com essa agilidade, num acho que ela tá bebum. Dispois, esse visque grãfino nem deve fazer coscas comparado com as pingas que ela entorna.

- Não importa, ela não faz parte do cenár...

 

Clara não pode terminar. Luciana assumiu o microfone.

 

- Bem...os ponteiros informam que já passa da meia-noite...portanto, vamos a nossa jam session. Apresentamos ao piano o Prof. Doutor Alejandro Gutierrez.....- as palmas de praxe -...e com seu inseparável clarinete, Prof. Doutor Arthur Rangel....- mais palmas - ..eles interpretarão o standard do jazz  "Someone to Watch Over Me".

 

Marcella encarregou-se de minimizar a luz no ambiente. O melodioso som do piano iniciou-se, fluido, harmonioso, intrincado. Algumas pessoas presente com certeza desconheciam a música, mas era perfeitamente possível se encantar com a melodia. Os casais estavam abraçados. Os mais velhos, ao reconhecerem as notas, deixaram-se levar pela entrada suave do clarinete. Estavam precisos e entrosados os músicos. Arriscavam improvisos e, elegantemente, permitiam-se brilhar cada um ao seu tempo.

 

- Se tivermos mais algum músico presente, fiquem a vontade em nos acompanhar. - Prof. Arthur convidou.

 

Timidamente, um dos técnicos soltou-se da namorada e foi ao pequeno palco, assumir o sax. Cortesmente, o Prof. Gutierrez deu a deixa e o rapaz deixou o possante instrumento se intrometer, harmoniosamente, na melodia.

 

Ao mesmo tempo, alguns casais enlaçaram seus pares e foram dançar. Luciana e Rebecca perderam-se nos braços uma da outra. Até mesmo o Prof. Victor e Eleni estavam bailando.

 

Clara se aproximou de Marcella, mas não pode fazer nenhum tipo de gesto romântico, pois os pais da diretora estavam de olho nelas.

 

Ruth, não querendo deixar a secretária, chegou perto e comentou que apesar de não entender a música, estava achando lindamente tocada.

 

- Fala de alguém que deseja encontrar quem cuide dela. Já tem a pessoa em mente, mas ainda precisa encontrar. E, essa pessoa, quando for achada, terá a capacidade de guia-la em sua vida de ovelha desgarrada. - a secretária falava, mas parecia estar analisando cada palavra da música e, subitamente, fechou os olhos.

 

Neste exato momento, no timing correto da música, o som da bateria se fez presente. Os olhos verdes abriram-se buscando o músico que ocupava a bateria. Régia, de olhos fechados, acariciava o tambor com a vassourinha própria, completamente enlevada pela música. Clara lembrou da noite em que voltaram do show; lembrou o quanto quis ser amada por aquela mulher misteriosa, cheia de surpresas que oscilavam entre a mais selvagem fúria à mais branda expressão de emoções, sentimentos. Momentos como estes, faziam Régia fascinante aos olhos da secretária. "Não posso enganar-me novamente. Não posso viver a dúvida eterna de estar acordando ao lado de quem: da mulher gentil e sensível ou da brutalidade? Com qual facilidade ela transita entre seus extremos? Não posso amar cegamente, porque ainda enxergo o que não quero."

 

Ruth observava o olhar triste e, ao mesmo tempo, desejoso da mulher ao seu lado. Por isso notou quando eles mudaram de expressão. Um certo temor e ira misturados. Seguiu o olhar e viu a Dra. Paz aproximar-se da bateria. A expressão da médica era pura adoração.

 

O clima no ambiente parecia encantado. Mesmo os pais de Marcella relaxaram e algo inusitado aconteceu: a mãe da diretora tomou o microfone e cantou as partes finais da música, fechando lindamente a melodia.

 

- Marcella, como ela canta! - com esse comentário, a secretária encontrou como se desviar da líder.

- Mamãe é do coro da igreja e foi de quem herdei o gosto por músicas.

- Incrível!

- É, parece que é a noite da surpresa. Sua troglodita de estimação também surpreendeu: primeiro, ela fala perfeitamente o espanhol; e agora, a batera. A troglodita manda bem.

- Sabia que ela tocava piano, mas bateria...

- Sabia como? - a diretora perguntou, desconfiada.

 

Saídos do feitiço, os aplausos foram ensurdecedores, impedindo a secretária de se explicar. Os professores, galantemente, saudaram a mãe da diretora. As pessoas pediam mais uma. E, numa rápida combinação, outro clássico foi executado. Dessa feita, Tom Jobim.

 

Envolvidas em um canto, a Dra. Paz e Luciana comentavam a cena. Algumas vezes apontavam para Régia; e Becky, que não desgrudava os olhos de sua doutora, percebia que faziam alguns gestos negativos. A colombiana pegara na mão de Luciana.

 

- Eu não sei cantar e nem toco algum instrumento...- Rebecca começou ao microfone, recebendo a atenção de todos - ...mas lembrei-me de uma letra e gostaria de declamar.

 

Luciana estava distante dela uns 20 passos.

 

Num si isqueça que eu sou dona dos teus zóio

Faiz favo di num espiá pra mais ninguém

Esse azul, cor i promessa dus teus zóio,

Faiz quarqué cristã gostá de tu também

Qui nosso sinhô perdoe o meu ciúmi

Quando penso em cega os zóis teus

Pra qui eu, somente eu, seja a tua guia

Os zóios dos teus zói

A luz dos zóis teus.

 

A jovem loirinha olhava firme para a médica. Para ela, naquele momento, não importava o burburinho que se fez após a declamação. Nem mesmo o fato da Dra. Paz pedir para Luck traduzir o que foi dito, deixou Becky abalada. Ao contrário, a colombiana sorriu um meio sorriso de quem entendeu a mensagem.

 

- Nossa! Becky ficou louca. A doutora detesta esse tipo de exposição. - Eleni comentou.

- Minha fia num tem papas na língua. Num manda recado. - Ruth falou com um sorriso de orgulho. - E acho que a dotora gostou. Espia a cara dela.

 

Era verdade: ao contrário do que poderia parecer um aborrecimento para Luck, a expressão em seu rosto era de encantamento.

 

Sem se fazer de rogada, a sisuda Dra. Luciana, que ultimamente parecia estar renascendo, trocou de lugar com Rebecca no palco. Ao se cruzarem, trocaram olhares. Dentre os instrumentos, Luck escolheu o baixo.

 

Becky postou-se ao lado de Eleni e Ruth.

 

- Bem..já faz algum tempo que não canto. Mas, sinto-me compelida a torturar meus convidados, aproveitando esses excepcionais músicos. - e sorriu encantadoramente - E a razão pela qual quero cantar é que tenho uma pessoa especial e ela é simplesmente a melhor!

 

call you when I need you, my heart's on fire
You come to me, come to me wild and wired
Mmm, you come to me
Give me everything I need
Give me a lifetime of promises and a world of dreams
Speak a language of love like you know what it means
Mmm, it can't be wrong
Take my heart and make it strong, baby

You're simply the best, better than all the rest
Better than anyone, anyone I've ever met
I'm stuck on your heart, I hang on every word you say
Tear us apart no, no, baby, I would rather be dead

In your heart I see the star of every night and every day
In your eyes (green eyes)  I get lost, I get washed away
Just as long as I'm here in your arms
I could be in no better place

You're simply the best, better than all the rest
Better than anyone, anyone I've ever met
I'm stuck on your heart, I hang on every word you say
Tear us apart no, no, baby, I would rather be dead

Each time you leave me I start losing control
You're walking away with my heart and my soul
I can feel you even when I'm alone
Oh baby, don't let go

Ooh you're the best (woo)
Better than all the rest
Better than anyone, anyone I've ever met
Ooh, I'm stuck on your heart,
I hang on every word you say
Don't tear us apart no, no, no,
Baby, I would rather be dead
Oooh, you're the best!

 

 

Os olhos de Becky encheram-se de lágrimas.

 

- Wow!! BEcky, quem é aquela e onde você escondeu Luciana? - Eleni comentou jocosamente - Wow!!! A doutora está enfeitiçada!!!!

 

Após o clássico, alguém berrou rock´n´roll. Os professores entreolharam-se.

 

- Nós não sab...- antes que Arthur terminasse, Régia atacava furiosamente os tambores.

 

Para não ficar surda, a médica colombiana se afastou.

 

A líder tirara a camisa. Só de camiseta, deixava seus músculos à mostra, enquanto com gosto fazia um solo de bateria, iniciando o mais famoso dos clássicos do rock´n´roll feminino: Suzy Quatro em 48´Crash.

 

E, já que Calíope tomava conta da cena, os Orfeus apareceram: Luciana, sem pensar, com seu baixo, entrou na música ao melhor estilo "rock star": tocando e cantando. O ambiente explodiu.

 

Outro médico assumiu a guitarra e cuidou do solo. Para surpresa, professor Gutierrez improvisou um piano a la Jerry Lee Lewis.

 

- Exibida essa troglodita!! - Marcella vociferava. - Falei que tambor era com ela. Cuidado para não aparecerem os colegas dela. - disse, rindo da própria piada.

- É louca. Ruth, cadê o gesso dela? - Clara ignorou Marcella e questionava, sem tirar os olhos de sobre o espetáculo.

 

Prof. Arthur, que deixara o palco, estava ao lado de Ruth e Rebecca, acompanhadas de Marcella e Clara.

 

- Rebecca, você está revolucionando Luciana. Quanto anos que não vejo ela fazer algo assim!!!

- Eu?!? Estou tão surpresa quanto o professor. Mas, ela está um tesão. Nossa!!! Que é isso?!!

- Minina!!! - D. Ruth repreendeu, achando graça internamente.

 

As duas morenas estavam arrasando. Nos solos de bateria, Régia batia com tanta fúria que parecia furar os tambores. Estava suada agora. Seus braços brilhantes. A expressão extremamente impassível, como se os braços não fossem dela. Usara a pulseira para prender os cabelos, que secos, caiam-lhe sobre os olhos.

 

Dois pares de olhos estavam fixos na figura esguia: Clara e Paz.

 

Luciana, por sua vez, arregaçara a manga da camisa; as pernas levemente afastadas e flexionadas, permitindo que alcançasse o microfone. O baixo um tanto quanto massacrado pelo polegar, mas ela estava tocando as notas. E a voz: a mulher realmente entonava no bom e velho estilo rock´n´roll.

 

Todo mundo se portando como num show. As cervejas foram rapidamente solicitadas. O frio rapidamente foi esquecido.

 

Com uma rápida troca de músicos e cantores, houve um poupurri de clássicos, entre eles: Rock and Roll do Led Zeppelin e MIddle of the Road do Pretenders. Régia descarregou toda sua fúria e estresse nos tambores da bateria.

 

Ao término, pediram algumas músicas, mas Régia alegou que não agüentaria, pois tinha acabado de tirar o gesso. Saiu do palco muito suada apesar da temperatura fria, se enxugando na camisa. A camiseta grudara ao corpo, destacando os mamilos eretos. 

 

No caminho para onde estava Ruth, pegou uma cerveja e bebeu quase em um gole.

 

Todos a cumprimentavam ou faziam sinais de roqueiros. Duas moças a interpelaram e foram rapidamente despachadas, seguindo a líder com olhares de cobiça.

 

Ao passar por Clara, a secretária parecia querer seguir o cheiro do suor da líder, tal foi a maneira que virou o pescoço a seguindo até ela postar-se ao lado de Ruth, com um sorriso lindo e zombeteiro.

 

- Ce tá indiabrada hoji, muié!!! Que loucura! Suas mãos...- a jovem senhora tentava fingir que estava brava, mas ria ao mesmo tempo - ...D.Régia, D. Régia, quem é ocê?

 

Abraçou Ruth e pegou outra cerveja. A jovem senhora sentia a energia emanando do corpo suado. Era um potentado da natureza querendo arrebentar. Sabia que do outro lado do salão, olhos verdes devoravam aquele monumento ao seu lado.  A líder sorria apenas.

 

- D. Ruth, tenho que aproveitar minhas últimas mordomias. - e quando se preparava para entornar outra cerveja, viu o centro do palco ocupar-se.

 

Yo estaba bien por un tiempo,
Volviendo a sonreír.
Luego anoche te vi
Tu mano me tocó
Y el saludo de tu voz.
Y hablé muy bien de tu
Sin saber que he estado
Llorando por tu amor
Luego de tu adiós sentí todo mi dolor.
Sola y llorando,
Llorando .
No es fácil de entender
Que al verte otra vez
Yo seguiré llorando

 

A Dra. Paz cantava, a capela, o clássico de Roy Orbison. Não poderia ter sido um balde de água fria maior em todo o ambiente. A mulher cantava com a alma e todo o sofrimento que sentia, não se importando em se abrir publicamente.


Yo que pensé que te olvidé
Pero es verdad es la verdad
Que te quiero aún más,
Mucho más que ayer.
Dime tú qué puedo hacer
No me quieres ya
Y siempre estaré
Llorando por tu amor
 

 

Régia esquecera a cerveja. Seus olhos estavam fixos nos olhos da médica porque haviam se encontrado. Não restava dúvida de que a letra da música penetrara a fortaleza da líder. O sorriso morreu novamente.

 

Rompendo o campo magnético entre elas, trocou a cerveja por whisky e saiu para o jardim, ainda ouvindo as últimas palavras da letra.

 

Tu amor se llevó
Todo mi corazon
Y quedo llorando
Llorando
Por tu amor

 

Após o silêncio pesado, Marcella que fora rapidamente arrastada para as pick-ups por Clara, colocou uma música branda, não mudando bruscamente os ritmos, mas amainando o clima.

 

Ruth viu quando a Dra. Paz saiu pela mesma porta que Régia. Também viu Clara esgueirando-se na mesma direção. Entretanto distraíra-se, porque a nova música chamara a atenção de todos para o casal que dançava.

 

Rebecca estava com Eleni e os outros médicos. Luciana, do outro lado do salão, próxima ao "palco", conversava com o Prof. Arthur, que guardava seu clarinete; e com o médico chileno, que o acompanhara ao piano. Neste momento, irrompeu pelo salão uma música. Como por instinto, a médica buscou Rebecca e a viu dançando, na pista improvisada. Não estava sozinha, outros dançavam. Os gemidos da cantora enchiam o ar de sensualidade. Luciana sentiu desejo de ter a jovem em seus braços. Neste exato momento, Rebecca buscou por ela e seus olhos se encontraram.

 

Luciana, suada e com os cabelos revoltos, esticara o braço convidando Rebecca para dançar. Totalmente hipnotizada, a jovem loirinha obedeceu. Sensualíssima, a música emanava erotismo...LOVE TO LOVE YOU BABY.... e o casal não deixou por menos.

 

WHEN YOU´RE LAYING SO CLOSE TO ME.....Luciana deixava Rebecca envolve-la, posicionando-se com altivez, provocando a jovem a alcança-la. Por sua vez, Rebecca enlaçara o pescoço da médica e fazia questão de sentir o odor que emanava por entre seus seios, levemente expostos pelo decote. O salto que usava a deixara mais próxima da altura da médica, mas ainda assim era obrigada a erguer a cabeça para olhar os olhos azuis que estavam perdidos em admiração. Para a doutora, não havia pessoa mais linda, mais sua, mais desejada do que aquela em seus braços. O mesmo sentimento tomava conta dos olhos verdes. Elas nunca se cansariam de buscar o momento atemporal em que as cores de seus olhos se mesclariam em uma única paisagem desenhada em suas almas pelo amor que sentiam.

 

Ruth ficou encantada com o olhar de Luciana sobre sua filha. Era puramente devoção. Claro, havia desejo. Elas eram jovens, eram mulheres apaixonadas, com o fogo e ardor a flor da pele. Chegava a ser quase indecente o que elas faziam, mas o amor ali presente colocava rédeas curtas na obscenidade. Muito simples em seus modos, a mãe de Rebecca sentiu seu corpo reagir. Sabia que uma onda de excitação perspassara seu corpo. Estava viva. E bem viva.

 

Luciana beijou Rebecca com muita paixão, grudando seus corpos e a embalando com segurança no ritmo da música. Estimulados, outros casais começaram a dançar. E as duas deixaram de ser o centro das  atenções.

 

***

***

 

- ¿Regia: ahora es este su nombre? (Régia, agora é esse seu nome?)

 

A líder não queria mais mentir. Estava cansada. Ainda tinha receio que vultos do passado pudessem ressurgir, diante do fato de reatar ligações com a médica. Mas, Paz não merecia uma segunda decepção. Quem sabe, poderia reparar a primeira.

 

- Éste era siempre mi nombre. (Este sempre foi meu nome.) - a líder respondeu, buscando não evidenciar laços.

 

Sentiu a mulher se aproximar da cadeira, onde até então, permanecia de costas para ela; o leve toque da mão em seu ombro e todas as recordações voltando. Sentiu seus músculos retesarem-se.

 

A líder levantou-se, ficando de frente para bela mulher.

 

- Entonces tu consiguió? No puedo creer! (Então você conseguiu? Não posso acreditar!) - a Dra. Paz estava estupefata.

- Y tu también, Paz. Nunca podría imaginar que tu era el médico de mi hija! ( E você também, Paz. Jamais iria imaginar que você era a médica da minha filha!)- Régia falava o castelhano  como se fosse seu idioma natal.

- Su hija. El paciente es su hija! Como tu se convirtió en madre? (Sua filha. A paciente é sua filha! Como você se tornou mãe?)

- Paz, todo es una larga historia.( Paz, tudo é uma longa história.) - a líder olhou nos olhos claros a sua frente.

- Siempre lleno de misterios. Dime lo que pueden. Tengo 45 días para escuchar a tu. (Sempre cheia de mistérios. Conte-me o que puder. Tenho 45 dias para escutar você.) - era quase uma súplica.

- Me gustaría poder decirle, pero me temo que tendré ningún momento.( Gostaria de poder contar, mas receio que não terei tempo.) - a líder olhou para o copo de whisky em suas mãos.

- Huyendo de nuevo? (Fugindo novamente?) - a médica levantou suavemente o queixo da líder, a fazendo olha-la nos olhos.

 

Pela primeira vez, olhou para os olhos claros deixando-se revelar na pessoa que a médica conhecia. Bebendo em um gole o restante da bebida, pegou a médica pela cintura.

 

- Vamos para la casa de huéspedes. (Vamos para a casa de hóspedes.)

 

 

 

Após a cena da apresentação da líder à médica, Clara passara a observar a Dra. Paz Munhoz Orfid. Era uma mulher atraente:  tinha os cabelos de uma tonalidade cobre, encaracolados,  estatura que se igualava com a própria secretária;  seios um tanto fartos demais, nitidamente moldados por mãos de um excelente cirurgião plástico. Estava vestida com suéter e calça bem talhadas, numa combinação elegante de cinza e vermelho. Olhos verdes cinzentos.

 

No exato momento que avaliava a médica, esta levantou a mão e tocou carinhosamente o rosto da líder, que fechou os olhos, como que saboreando o toque. Clara sentiu um arrepio. E, quando as viu seguindo rumo à casa de hóspedes, indignou-se consigo mesma ao sentir raiva da intimidade que aquela estranha compartilhava com ...sua....estranha.

 

De longe, Clara observava a expressão corporal das duas mulheres, ao se afastarem. Pode perceber que Régia segurava a médica, pousando suas mão possessivamente em sua cintura. Não esquecia o olhar repleto de emoções que a estranha lançou sobre Régia.

 

Não havia dúvidas que entre elas uma estória havia transcorrido. Clara imaginava o quanto a médica sabia de Régia? Quanto conhecia da vida dela? Se saberia que acolhendo seu corpo estava uma assassina? Que ao deixar-se ser possuída, estaria nas mãos de uma selvagem? Que sua boca estaria beijando lábios pérfidos? Beijando lábios de outras....lábios que colaram nos seus.

 

- É D.Clara, parece que a gringa vai se dar bem com Régia!!! - a mãe de BEcky tirou a secretária de seus pensamentos torturantes. - Régia tá precisano de carinho.

- Preciso cuidar do bem-estar da hóspede. Régia pode estar sendo inconveniente, aproveitando-se da situação que a méd..

- D. Clara, a senhora tá tempo suficiente oiando tudo, mor de sabê que Régia num provocou nada. A gringa tá se entregando. Mió ce num si intromete. Tem outros assunto que mereci mais atenção. Já tá tardi e os convidados estão indo. Ce tem que fecha as portas.

 

Ao olhar para o relógio, a secretária constatou que a hora já era bem adiantada. Algumas pessoas serviriam-se do serviço de táxi que atendia a mansão e Clara era responsável pela organização do traslado dessas pessoas ao hotel. Os convidados mais ilustres seriam levados pelo motorista da doutora e pela própria secretária.

 

Puxando Marcella para um canto, Clara quis saber se elas poderiam ir se encontrar na casa dela, depois que encerrasse seus afazeres.

 

- Hoje não vai dar, pois vou levar meus pais e fica tarde para eu sair assim, depois.

- Assim como? Você é adulta. Tem que romper com essa coisa com seus pais. Você havia dito que faria. - a secretária estava nervosa e irritada.

- Calma. No tempo certo.

- Tempo certo? Tem que ter?

- Hey...hey...por que isto agora?

- Ah, Marcella....eu quero uma companhia, uma companheira. Quero poder beijar, dançar, me expressar como Luciana e Rebecca, por exemplo. Estamos juntas. Não quero esconder e passar a noite vendo todos os casais dançarem, suspirarem e se acolherem.

 

A diretora ficou quieta. Clara estava atipicamente estressada, ainda que controlada. A troglodita tinha algo a ver com isso.

 

- É essa trogl...

- Marcella, chega de colocar culpa na Régia. Se você acha que não consegue se abrir com seus pais, algo está errado com sua relação familiar e não com sua sexualidade. Se eles amam você, é questão encarar se sua luta vai ser maior ou menor.

- Você não tem que ficar aqui na mansão? Eu não vou voltar para cá e dormir com você sob o teto de Luciana e com a mãe da Rebecca aí.

- Quanto pudor de repente. Mas, eu não tinha que ficar.

- Melhor ficar. Eu realmente não posso ir para sua casa. Pela manhã, tenho um compromisso com mamãe.

 

Clara largou a diretora e foi resolver a chamada dos táxis.

 

- Clara, onde está a Dra. Paz? O Prof. Gutierrez quer se despedir. - Luciana quis saber.

- D. Ruth me disse que a viu indo para a casa de hóspedes. - Clara respondeu e seguiu andando apressadamente.

 

Luciana se desculpou com o médico, alegando o cansaço pela viagem como explicação para a saída súbita da médica.

 

- Algo estranho aconteceu, Becky. Que será?

- Mamãe me contou. Parece que a médica e Régia realmente engataram algo. E Clara ficou espionando.

- Está explicado o jeito que ela me respondeu. - a médica riu - Não sei porque ela ainda trabalha para mim?

- Venha doutora. A noite foi cheia de surpresas. Todos já foram. Podemos nos retirar.

 

 

Ao final, o Prof. Arthur, que viera sozinho, levou o médico que Clara estava encarregada de transportar. Ela acabou permanecendo na mansão.

 

Após checar se tudo estava certo, foi para seu quarto. Estava uma pilha de nervos. Irritada com Marcella, com Régia, com a médica. Demorou o mais que pode com suas rotinas noturnas.

 

Tomou umas pílulas para dormir. Detestava fazer isto, mas sabia que não dormiria sem elas. Estava muito elétrica. Seus pensamentos começavam a trair suas convicções. Percebia que algo estava errado; sabia onde estava o erro; mas, não tinha coragem de colocar o dedo e fazer sangrar.

 

Vencida pelo sono, não conseguiu saber se a líder retornara para o quarto.

 

***

***

 

(os próximos diálogos são em castelhano)

 

Ao entrarem na casa de hóspede, Régia foi direto ao bar e serviu-se de outra dose de whisky.

 

- Está bebendo demasiado, Jesse.

- Não me chame Jesse. Sou Régia.

- Perdão. Dificil crer que a reencontrei.

- As duas estamos em choque. De todas as pessoas, você era a última que queria encontrar agora.

- Fui tão ruim assim?

- Tu sabes a verdade melhor que eu.

- Engana-te. Depois de hoje, não sei verdade alguma.

 

Régia deixou-se desabar no sofá, fechando os olhos e sentindo o melodioso e dramático idioma. Tão próprio para tragédias. Farsas cotidianas. Desacertos amorosos.

 

- Há tanto que quero perguntar. Mas, também é certo que não quero escutar as mesmas coisas que não saberei entender. A mim me importa a ter encontrado. Deus sabe como senti...sinto sua falta Jes...Régia....não sei como te chamar, apenas sei que é você!

 

Sentiu a brisa causada pelo movimento e, em segundos, Paz estava sobre ela.

 

- Não. Não me obrigue a te magoar mais uma vez. - empurrou a mulher, quase jogado-a do sofá, tamanho o medo.

 

A médica insistiu, permanecendo por sobre a líder.

 

- Pode me recusar novamente, mas o beijo seu, aquele que não me destes, ainda o quero. Isto me assombra por anos.

 

Os lábios dela eram macios, o gosto do vinho misturado ao malte do whisky. Cheiro de mulher da cidade; pele macia. A língua bailando com a sua. Régia lembrava perfeitamente desse beijo. Seu corpo adormecido dessa paixão, reconhecia e acolhia com prazer o antigo refúgio.

 

Com delicadeza dessa vez, apesar da relutância de suas bocas, a líder afastou a mulher. Seu corpo parecia grudado ao dela por imã, pois levantou-se junto com ela, quando se separavam.

 

- Se ainda me restava alguma duvida, não resta mais. Jamais esqueci seus lábios. Jamais deixei de buscar-te em outras bocas.

 

Régia ficou calada, fitando a mulher a sua frente.

 

- Como tu conseguistes? Era certo que terias morrido. Todas as notícias e indícios...

- E teu pai? O que fizeram com ele?

- Está em coma. Uma cilada. Alguns tiros, um acidente de carro. Irônico que as balas nada fizeram, mas o acidente...- deu um sorriso forçado.

- Lamento. Um bom homem.

- Um assassino também.

- Um líder. Um pai dedicado. Você não pode se queixar.

- Não me queixo. Dediquei meus dias pesquisando para trazê-lo de volta. Por isso estou chefiando as pesquisas com sua filha -  começou a rir - Sua filha. Podias imaginar isso?

 

Paz pegou uma garrafa de vinho. Régia observava a mulher.

 

- Como você se livrou da perseguição? - Régia quis saber.

- Por uns 3 anos, ambos os lados me perseguiram. Mas, eu estava longe de todos os negócios: desde a minha educação fora da Colômbia, até meu retorno ao Chile. Com a invalidez de papai, tornei-me sem valor, por não ser alvo para chantagens de mais ninguém. E você: por onde andou? Pelo estrago encontrado, acharam que você foi alvo da Penumbra. Os corpos não foram bem identificados. Ambos os lados não tiveram interesse em averiguar, uma vez que o principal alvo estava morto, com um tiro que o atravessou do ânus até a cabeça, além dos genitais enfiados em sua boca. Meu pai disse que a morte dele foi mais do que satisfatória para aplacar a ira dos chefões pela besteiras que ele estava fazendo, atraindo os federais. Por sua vez,a polícia foi agraciada com uma lista de nomes, misteriosamente entregues a um dos federais infiltrados. Muita gente caiu, mas apenas pessoas sem importância no esquema dela.

 

Régia observou o gelo derretido assumindo as características do whisky, enfraquecendo-o.

 

- O quanto é seguro eu aparecer de novo? Para você, eu digo?

- Mesmo antes do atentado, papai já estava enfraquecido. Ela o manteve por algum tempo, mas não pode segurar para não levantar facções internas. O abandonou. Daí o ocorrido. Cada vez mais fui ficando longe e longe...recebi a palavra de honra dela que nada me aconteceria, desde que eu me mantivesse uma simples médica, sem maiores ambições. Agora, ela morreu. Penso que, nesta situação em que nos encontramos, temos toda a segurança. Não somos mais nada para eles. Não temos informações, laços, negócios, interesses. Acho que você deve agradecer Penum...

- Eu sou Penumbra, Paz.

 

Como é rápida a queda de uma taça. Ambas ficaram em silêncio, após o ecoar do cristal quebrando.

 

- Voc..Penumbra era o braço direito dela........ Jesse era uma das seguranças de papai...o ano que ficou comig...

 

A líder estava recolhendo os cacos, sem muito êxito.

 

- Paz....o massacre que encontraram foi obra da Penumbra, sim; mas não foi encomendado por ninguém. Foi pura vingança minha. Depois, voltei a ser Régia.

- E teve uma filha.

- E tive uma filha. E estou sem rumo novamente.

 

A líder abaixou a cabeça.

 

Paz estendeu a mão.

 

- Vem para cama comigo.

- Não posso, Paz. Não sou mais quem era...

- Deixa-me apenas acolhe-la em meus braços, enquanto você me conta o que aconteceu esses anos.

- Tem certeza?

- Como disse....não tenho mais certeza de nada.

 

Não se despiram. Deitaram na ampla cama, que Régia já conhecia, para deixar a conversa fluir. Paz acolhera a cabeça da líder em seu peito e fazia-lhe carícias. Sentia toda a energia que emanava da mulher; lembrava-se de como era a transformação dessa energia em suas tórridas horas de amor; sentia o desejo aflorando, a fisgada indiscreta e indisfarçável em seu clit*ris ao toque da respiração de seja lá quem for a mulher em seu colo. Sentiu a mão dela buscar a sua. Fechou os olhos ao sentir o beijo em sua palma.

 

O que sabia dela não eram coisas agradáveis, corretas; mas nunca se importara. Nascera e vivera em um lar onde tais coisas eram fatos: matar ou morrer; ter poder ou ser o subordinado; obedecer à hierarquia e servir a ela, matando ou morrendo; tecer redes de conspirações. Fugir o tempo todo de si mesmo ou de inimigos de causas desconhecidas.

 

Nunca reclamou que as mãos que a levavam ao delírio escondiam marcas de crimes. Nunca se importou que aquele corpo delicioso, macio, delgado, com músculos rijos sob a pele de cetim, servissem ao propósito de atos violentos. Nunca, em todos os minutos juntas, teve sequer um vislumbre dessa periculosidade. Em nenhum momento aquela a quem conhecera como Jesse, tivera um ato de violência ou indelicadeza. Sempre fora calma, praticante de sua ioga diária. Seus olhos sim, eram alertas, carregados de certa dureza, mas sabiam olhar com ternura. Azuis, intensos, cativantes, hipnotizantes. Nunca quis mais ninguém, depois dela. E, era isso que ressentiu ver empalidecido na mulher em seus braços. Essa que se chamava Régia era uma sombra diante de Jesse. E, em ambas, onde estava a temida fúria da Penumbra?

 

- Você quer saber quem sou?

- Agora isso não me importa. Nunca importou. - disse, levantando o rosto e fazendo os olhos azuis pousarem em sua face.

 

Beijou novamente a boca desejada.

 

- Preciso de você. - era quase uma súplica, o sussurro da médica ao ouvido de Régia.

- Sinto não poder dar o que precisa. Se insistir, vou embora.

- E do que está fugindo novamente? Ou de quem?

 

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(os diálogos com Paz serão em itálico e entre parênteses, pois estarão sendo falados em seu idioma natal)

 

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Imprevisível como sempre, o tempo em Sampa amanhecera com sol, ainda que com temperatura amena.

 

Por volta das nove horas da manhã, Ruth e D. Maria Luíza colocavam a mesa para o café na área próxima à piscina, por isso viu Régia, ainda com as roupas da noite anterior, vindo em direção à mansão.

 

No mesmo instante, Clara surgiu. A mãe de Rebecca poderia apostar que a secretária estava vigiando a chegada da líder.

 

Clara, ao passar por Régia, tirou os óculos fitando a líder diretamente nos olhos. De onde estava, Ruth só pode ver que ambas trocaram algumas palavras. A líder entrou na casa e, após um tempo, Clara também.

 

Por volta das dez horas, a casa começou a despertar. A Dra. Paz surgiu quase ao mesmo tempo que Luciana, que vinha acompanhada por Clara. Nem sinal de Rebecca.  Completando, Régia ressurgiu, usando regata, agasalho e tênis. Cabelos molhados, denotando o banho recém-tomado.

 

A disposição da mesa era Luciana, Clara, Régia, Paz e Ruth. O lugar de Becky vago ao lado da doutora, na mesa redonda. O buffet arranjado ao longo da mesa.

 

Enquanto se serviam, Régia e Paz trocaram algumas palavras. Ao sentarem-se, estavam sorrindo. Era inevitável não notar a intimidade entre elas. Em determinado momento, Régia deixou cair algumas migalhas de pão na camiseta e Paz limpou, colocando algumas casquinhas na boca. A troca de olhar foi terna entre elas.

 

- BEcky vai perdê o café. Essa minina num aprendi a acorda cedu mesmo!

- Depois a Maria Luíza arruma uma bandeja e eu levo para ela. - Luck respondeu - (Minha noiva é muito sonolenta. E está muito cansada. A noite foi intensa.) - disse para Paz, com um sorriso malicioso.

- (Se eu nao tivesse educação, teria feito o mesmo. Levantei-me para não perder o desjejum. Estou muito cansada.)

- (Não dormiu bem? Alguma coisa a incomodou na casa de hóspedes? ) - Clara quis saber, olhando da médica para a líder e vice-versa.

- (Apenas dormi pouco. Nada com a casa. Excelente cama! Não poderia ter dormido melhor.) - a médica comentou, olhando para a líder.

- Eu dormi muito bem. Adorei a festança. Tudo diferente. Quero tentar fazer aquela massinha. A Maria Luiza tem a receita. - Ruth se mostrou animada.

 

O desjejum seguiu com trocas de olhares entre Clara e Paz. Régia mal abria a boca. Porém, algumas vezes, trocou gentilezas com a médica colombiana. Era perceptível o incômodo da secretária.

 

- (Bem, tenho que ir prover uma jovem loirinha adormecida. Paz fique a vontade. O que precisar, pode pedir para os empregados diretamente.)

- (Clara não tira folga?) - a médica disse, lançando uma pequena farpa.

- (Paz, a Clara é minha secretária particular e amiga pessoal da Becky. Hoje ela está aqui como nossa convidada. Às vezes, preciso dar ordem para ela desligar a profissional. Os empregados da copa e cozinha estarão a sua disposição.)

 

Clara ficou boquiaberta com a defesa de Luciana. A médica colombiana se desculpou. A secretária disse que não havia o que se desculpar, mas que realmente estava indo para sua casa.

 

- (Paz, providenciei os convites do show que você pediu. Você sabe que é hoje, não?) - Luciana indagou.

- (É verdade. Havia esquecido.)

- Clara, você e Marcella irão conosco ao show. - Luciana enfatizou, sem margem para negativas.

- Nos encontramos no local. - a secretária informou.

 

A médica assentiu, levantando-se já com a bandeja de Becky, feita pela própria mãe.

 

- (Paz, se precisar, o motorista está a sua disposição também. Apenas não sei onde poderia ir.)

- (Vou deitar mais um pouco, mas quero ir ao hospital visitar minha paciente, Luciana. Régia poderia ir comigo?)

- (Claro. Eu ia fazer exatamente isso. Por volta das 14 h está bem para você?)

- (Perfeito. Até mais.) - a médica colombiana se retirou, após afagar os cabelos da líder.

 

***

***

 

Clara estava possessa consigo mesma. Racionalmente, dizia para si que nada tinha a ver com essa proximidade entre Régia e Paz. Culpava sua curiosidade à natureza humana e não ao fato de estar percebendo que uma mulher bem mais interessante que ela estava ocupando a vida da líder. Se não no presente, essa mulher tinha deixado marcas em um passado não tão distante.

 

A secretária dirigia quase no piloto automático, pois mal prestava atenção ao trajeto que fazia.

 

Quando Régia chegou, há dois dias atrás, estava visivelmente abatida. A secretária não gostara do que vira, mas julgava ser o inevitável para uma pessoa tão cheia de mistérios e violência.

 

Constantemente, lembrava da conversa com João de Deus. E, com a mesma constância, usando todos os possíveis atenuantes, isentava-se de qualquer culpa quanto ao estado miserável da mulher outrora altiva e soberba.

 

Depois do incidente na cozinha, contrariando seu mais honesto senso de racionalidade, a secretária percebeu que não foi indiferente ao ato. Admitiu para si mesma que seu corpo deu indícios de aceitação, levando Régia a querer consumar o que as atormentava. Fora um momento de sensações contraditórias: seu corpo urrava pelo contato com aquela mulher, ele sempre quis tudo que o imaginário vislumbrava na figura, chegando mesmo a desdenhar a possibilidade de uma Régia branda; mas o racional, esse dizia que a eficiente profissional Clara, eximia em lidar com situações de extrema pressão sem perder o controle, jamais poderia pensar em se entregar a um momento inconseqüente, mas de proporções eternas, nas mãos de uma estranha, intensa e violenta criatura. Não era mulher de receber ordens de sua vagin*.

 

O agravante era que além do desejo carnal, sentia forte ligação com a líder. Admirava o que ela era. Tivera a chance de sentir a delicadeza, a sensibilidade. Fora testemunha de momentos nos quais a mãe se desesperou pela filha. Envolveu-se com o drama daquela mulher que aparentava na pele a vida dura que teve. Essa rusticidade foi o que despertou seu interesse. E, por ele, deixou-se abrir para receber confissões. Porém, foi sincera ao dizer que nunca saberia qual seria sua reação ao saber do que ela foi capaz. Por isso mesmo, a franqueza do momento presenciado na fazenda, fugira a sua mais ferrenha vontade de não julgar os meios daquela mulher. Tudo o que queria nela era, paradoxalmente, tudo que a afastava dela.

 

Dizia indulgentemente para si mesma que o fato de ter prendido a líder a intoxicava. Era mesquinho. Vil. Egoísta. Uma injeção de ânimo em sua vaidade saber que mesmo repudiada, Régia voltava ao inevitável desejo de possuí-la. Esse jogo era uma pitada de ousada sordidez em sua tão enfadonha e correta vida.

 

De repente, ver aquela médica surgindo do nada e entrando profundamente na vida da líder, deixou Clara com uma incômoda sensação de derrota. Régia respondia bem a mulher. Passara a noite com ela na casa de hóspedes. Estava com um semblante mais aliviado. E Paz parecia feliz com o resgate de algo que era dela.

 

Clara socava-se mentalmente por ter interpelado Régia no jardim, questionando o incomodo que ela pudesse estar causando à hóspede da doutora Luciana.

 

- Está preocupada com o quê? Paz e eu tínhamos contas a acertar.

- Acertaram?

- Isso não é da sua conta. Apenas acredite: eu não incomodo Paz. Sob nenhum aspecto.

 

A mulher era linda, bem sucedida, tinha dinheiro e, ainda por cima, era a responsável por tentar a proeza de trazer Anna de volta de seu coma. Sem falar que, seja lá como elas se envolveram, a Dra. Paz era loucamente apaixonada por Régia, sentimento visível em seus olhos e declarado através da dramática música que cantou.

 

O celular tocou e tirou Clara de sua inconsciente lista de prós e contras entre ela e Paz.

 

- Oi amor, tudo bem?

- Marcella, espero que você esteja em casa. Quero você!

- Wow! Achei que receberia uma gelada. Pode deixar, estarei lá em 15 minutos.

- Considere todos seus compromissos cancelados até as 18 h. Nada de pai, mãe, cachorro, papagaio; nada, somente eu.

- Vai ser com hora marcada?

- Sim. Temos que nos prepararmos. Vamos ao espetáculo com as doutoras, lembra?

- Cacete.

- É isso que você quer? - a secretária falou sem sensualidade alguma.

- É o que eu vou dar a você. - não havia flerte na voz da diretora.

- Seus 15 minutos estão se esgotando. - Clara nunca fora tão autoritária.

- Estou no carro e a caminho. - Marcella estava disposta.

 

 

***

***

 

- (Li as suas respostas sobre Anna.) - Paz rompeu o silêncio.

 

Estavam na U.T.I., observando Anna em seu estado vegetativo. Tão logo chegou ao hospital, Dra. Paz assumiu toda sua postura profissional. Lera o prontuário, conversara com a enfermeira que acompanhava Anna exclusivamente, tomara nota e discutira algumas coisas com o seu auxiliar de pesquisa.

 

- (Você já recebeu!?!? Eu entreguei ontem, pouco antes da festa.)

- (Estava sobre a cama, quando voltei para o quarto, após o café. Luciana tem um excelente assessoramento.)

- (Clara é a mais eficiente e leal secretária que alguém poderia ter. Extremamente dedicada e competente.) - Régia falou, mal disfarçando seu encantamento.

 

Apesar de notar a adversária, Dra. Paz não deu vazão ao seu instinto feminino.

 

- (É uma linda menina, Jesse. Parabéns!)

- (Chame-me de Régia, Paz. Por favor, Ré-gi-a!. )

- (Régia, desculpe. Ela é linda. Parece com você. Na ficha dela diz que tem olhos azuis também. Farei o possível para que possamos revê-los.)

- (Você vai se apaixonar por ela.)                                 

- (Você sabe que, mesmo que a tragamos de volta do coma, ela poderá reter seqüelas, não?)

- (Essa menina é uma vencedora, Paz. Ela vai voltar forte. Vocês vão ver que tenho razão.)

- (Você fala como quem não estará aqui para ver. Então, é dela que você foge?)

- (Paz, por favor, não quero mais tentativas de me demover da idéia de deixar Anna e partir. Será o melhor para ela. Luciana e Rebecca assumirão a criação dela. Estamos acertadas já.)

- (Você acha justo deixa-la com Luciana? Sei de todas as suas atrocidades, mas parece-me muito frio de sua parte deixar sua filha com estranhos.)

- (Elas não são estranhas, são as únicas pessoas nas quais confio. São decentes e têm condições.)

- (Jesse, elas estão em quase lua-de-mel. Você acha justo colocar Anna entre elas?)

 

Por um momento, a líder pareceu que iria rebater, mas calou-se. A médica colombiana estava certa. Em sua cega tentativa de sumir, Régia nem pensara no fardo que descarregava sobre elas. Por outra, pode até ter pensado, mas inconscientemente só enxergou os recursos que a Dra. Luciana poderia dispor e o carinho que Becky não negaria à menina.

 

- (Posso deduzir por suas repostas, que essa menina nasceu sob condições adversas, derrubando todas as barreiras físicas e psíquicas que você construiu ao longo da gestação dessa criança.  - Paz prosseguiu - Você permitiu que ela nascesse, mesmo ciente de tudo. Se houve um momento em que você pode ser fria e impedir que essa criaturinha viesse ao mundo, essa oportunidade foi perdida. Abandona-la agora é muito cruel.)

 

Os olhos da líder estavam úmidos. Ela estava contendo um turbilhão de emoções. Apesar da aparente calma, existia uma caldeira prestes a explodir. Ela queria estar longe para poder deixar a explosão ocorrer sem ferir pessoas inocentes. Anna era inocente. Paz também.

 

- (Cada resposta que dei nesse questionário me fez repensar o mal que fiz deixando essa menina nascer.- Régia disse, num tom monocórdico - Se no devido momento, eu tivesse condições, teria feito o aborto. Conheço ervas abortivas. Mas, não pude. - nova pausa - Eu cortei o cordão umbilical.)

 

Paz ouvia, sentindo cada palavra dita por Régia como se fossem espinhos cravando-se em sua própria carne. Sentia todas as dores da mulher a sua frente. Percebia o desespero contido, sob a fina camada de dignidade que deveria ser preservada a todo custo, para não fazer aquele monumento ao orgulho desabar. Sabia que para ela estar se entregando assim, é porque realmente não vislumbrava sinais de vitória na luta para permanecer na vida de sua filha. A médica colombiana só queria entender quando foi que a líder deixou pesar sobre suas costas tais adversidades de sua vida.

 

- (E, ao cortar nosso laço de carne, senti forte o sangue que nos unia. -  a líder prosseguiu - O sangue em minhas mãos era diferente de todos os outros que pude sentir escorrendo nela. Não era um sangue totalmente puro, pois eu não tive nenhum prazer em concebe-la, além do fato de matar quem quer que fosse o pai dela. Entretanto, ao sentir o sangue do cordão umbilical e ver aquele minúsculo ser ainda sujo com minhas secreções; perceber o que havia criado; todo o ódio que sentia se esvaiu de mim. Como uma hemodiálise na qual troquei todos os outros sangues imundos em mim, pelo sangue puro daquela menininha. Foi o momento no qual me senti mais limpa. O momento que decidi procurar viver a vida simplesmente, apenas me levantando em defesa da minha cria.)

 

Olhou para as mãos protegidas pelas luvas. Paz colocou as suas entre elas. Encostando a cabeça da líder em seu ombro.

 

- (Não consegui parar a violência em mim. Nunca deixei que ela presenciasse, mas eu não fui capaz de seguir minha promessa. E, por isso, descuidei-me dela. Por outra, assumi condições de vida que serviam para mim, mas não para uma criança. Sempre temi pela segurança dela, já que poderia ser alvo nas mãos de quem quisesse me deter. E, acima de tudo, o que poderia fazer? Não sei qual a minha situação legal. Como poderia obter algo decente?) - sua postura defensiva demonstrava sua perda de controle.

- (Calma. Desculpe-me por julga-la. Sabendo o que sei sobre sua vida, sou a última pessoa que poderia fazer isso contigo.) - a médica preocupou-se em estar sobrecarregando uma já esgotada guerreira.

- (Paz, eu amo demais minha filha; por isso, tenho que ficar longe. Não estou bem. Não consigo enxergar em mim capacidade para criar uma criança, porque não consigo enxergar em mim segurança. Sou um nada, uma pessoa que somente sozinha poderá viver sem temer por quem ama. Somente deixando do amor, posso reparar alguns erros que já cometi. Perdi de forma violenta todas as pessoas que amei. Consola-me saber que não perco Anna, mas a liberto de forma branda, visando seu bem-estar.)

- (Branda, mas muito radical. - a médica não se conteve - Régia,sei que você nunca me amou, mas você não me perdeu. Se você me aceitar, podemos encarar juntas essa luta. Querendo ou não, eu já sou uma peça desse jogo. Ou o destino nos prega uma peça? )

- (Não tenho nada a oferecer-lhe. Honestamente, daria uma parte vital de mim para poder me entregar a você. Receber seu amor, afeto, proteção e ainda ter minha filha comigo. Não quero barganhar sua generosidade, embora saiba que Anna já está em suas mãos. Séria tão mais fácil...)

- (...poderia ser um recomeço. No Chile. Você, Anna e eu. Ouso dizer que plano de futuro melhor você não terá. E não sou generosa.)

- (Paz, não me tente a fazer isso com você. Não faça isso com você. Não tenho recompensas para oferecer. Sou um fardo pesado demais; instável, sem medidas. Estou morta sentimentalmente.)

- (Somos duas então. Mas, de ontem para hoje, encontrei motivo para viver. - fez uma pausa - Quem sabe, comigo, você consiga fugir da pessoa que te rejeita e atormenta, sem ter que abandonar Anna?).

- (Você não sabe o que fal...)

 

Com um gesto, colocando seu dedo nos lábios de Régia, Paz selou a tentativa de negar que a líder esboçava.

 

- (Antes de ser lésbica, sou mulher. Não substime os sentidos de uma mulher apaixonada. Minha oferta está na mesa junto com meu amor, orgulho e vaidade.)

 

Os olhos azuis que a miravam estavam cheios de vergonha, desculpas; quase encabulados. Ela era linda. Linda, carente, desamparada. E uma força da natureza.

 

- (Estou cansada de errar, Paz. Estou cansada de pensar que posso, que sou igual às outras pessoas que me cercam. Sem trocadilhos, eu quero paz.) - disse encostando a testa na testa da médica, deixando as lágrimas escorrerem.

- (Estou aqui.) - sem se importar em ser rejeitada, a médica beijou carinhosamente a boca perfeita da sua amada e ela se entregou.

 

 

***

***

 

Praticamente, não se falaram. Encontraram-se na porta da casa. Na sala, Marcella foi arrastada aos beijos para o quarto. Dentro de sua organização, a secretária achou rapidamente os acessórios. Com habilidade, ajudou a diretora a aparatar-se. Em pouco tempo, estava cavalgando sofregamente o dildo, entregando-se a uma quase masturbação; o corpo de Marcella mais parecia um porta-acessório, no qual a secretária acoplou o artefato e dele fez uso. Um corpo quente é mais estimulante que uma boneca inflável, com certeza.

 

De uma forma pouco característica, mas muito ao gosto da diretora, a secretária pediu formas de estímulos nunca antes experimentadas, ainda que desejada por sua parceira. Para Marcella cada pedido ousado de Clara, aumentava seu desejo e pressa em servir. Teve controle suficiente para saber que era Clara quem estava ali; tinha que exercer sua habilidade de domme, para não exceder em seu desejo de possuir violentamente o corpo alvo que se entregava. Algumas marcas foram inevitáveis.

 

Clara queria extravazar suas frustrações; entretanto, quanto mais exigia de Marcella, mais se sentia insatisfeita. Seu corpo às vezes a traía e negava-lhe o êxtase libertador. Ainda que rico em ousadias, o intercurso de ambas foi pobre em prazer. Ao menos para Clara.

 

Sentia o corpo dolorido quando entrou na banheira, deixando a diretora adormecida. Antes, olhando no espelho, viu marcas ao redor dos mamilos, ao longo de suas costas, no interior de suas coxas. Deixou-se escorregar para dentro do ambiente acolhedor da água quente; ao emergir, tocou no clit ainda sensível. Fechou os olhos. Régia surgiu da água, entre suas pernas, esgueirando-se pelo seu corpo, como uma serpente marinha. Sentiu a pressão das mãos fortes e cheias de veias sobre as suas, guiando seus dedos para dentro do seu corpo. Via o desejo azul. Sentia o roçar dos seios dela nos seus, ainda que fossem seus próprios dedos buscando reproduzir a sensação. E o calor da água foi substituído pelo calor do beijo ocorrido no frio piso da cozinha. Arrebatador lembrar da sensação da sucção da boca úmida em seus bicos rijos, a língua hábil. Aquela Régia entre suas pernas, sob a água, era toda a realidade que se permitia. Era uma pálida miragem em comparação à ardente realidade que foi sentir o corpo da líder pesando sobre o seu. Dessa mistura opaca de real e imaginário, tirou seu orgasmo agonizante. Na agonia sentiu o vazio, a falta da mulher que não estava entre suas pernas, e nem em sua vida. Clara sabia quão desonesta era com Marcella. E com Régia. Não tinha prazer com a diretora. Não tinha prazer com suas fantasias. Estava morta.

 

 

***

***

 

Após o fim de semana, a segunda-feira foi tomada de assuntos pendentes.

 

A secretária não pernoitara na mansão, já que estava com Marcella. Régia não tinha ido ao show junto com elas. Ficara junto com Ruth. E ambas resolveram ir ficar com Anna, que já retornara ao quarto. Após o show, Paz foi ao hospital e as trouxe de volta para casa. Até onde conseguiu apurar com as entrelinhas da mãe de Becky, a líder dormira novamente na casa com a médica. E, domingo bem cedo, saíram; só voltando no fim da tarde. Luck e Becky mal foram vistas, uma vez que o tempo estava fechado, ficaram apenas um tempo na piscina aquecida, mas sumiram em seus quarto, só saindo para acompanhar Ruth nas refeições.

 

No café da manhã, Clara foi informada por Becky que as coisas na fazenda não estavam muito bem. Um tanto envergonhada, a loirinha contou que seu pai andara fazendo conchavos com alguns invasores das terras vizinhas. Uma das coisas que ele apregoava é que logo os recursos fornecidos por Luck acabariam e todos iam voltar à miséria, já que a secretária não possuía dinheiro.

 

- Rebecca, com todo respeito, mas seu pai é louco! O que ele pretende com isso?

- Posso estar enganada, mas eu acho que além do dinheiro que agora ele tem, também quer reaver alguma parte das terras, através de acordo com os invasores. - a doutora Luciana ponderou.

- Preciso dar um jeito nisso. Quando sua mãe volta para lá? Régia já sabe da situação?

- Mamãe quer voltar o mais depressa possível, pois acha que consegue segurar papai. Régia, depois da chegada da Dra. Paz, não me parece que tenha pressa de voltar logo para lá.

- Mas, precisamos dela. Ela é a única que entende a linguagem daqueles bruta-montes. - a secretária falou um tanto rispidamente.

- Clara, Régia vai embora no mundo. Não tem mais interesse em se intrometer. Sabe que suas intromissões não foram bem vistas por você. - Luciana enfatizou o final da frase.

- Mas, agora é diferente.

- Clara, não podemos esperar mais nada da Régia. Ela não quer mais saber. O povo está assentado. Estão organizados, apenas esperando recursos e um planejamento. Deixa Régia seguir a vida dela. Aliás, preciso que nossos advogados nos ajudem com a adoção da Anna.

- Ela vai deixar a Anna conosco mesmo, Luck? - Becky se entusiasmou.

- Só faço por você. - a médica falou em um tom ríspido.

- Eu posso ficar com ela também. - a secretária cortou o diálogo.

 

Todas se entreolharam.

 

- Clara, você tem que resolver a fazenda.

- Resolvo as duas coisas. Tenho planos para a fazenda. Apenas estava esperando o momento certo para poder fazer os últimos acertos. Preciso ir à Brasília.

- Tome o tempo que achar necessário. Pode usar o jato da empresa. Temos que andar logo. Se o pai de Becky continuar assim, pode ocasionar problemas até maiores. Inclusive, colocar em risco a vida de seus familiares.

- Você acha, Luck? - a jovem loira mostrou-se receosa.

- Tudo é possível. E sem Régia.

- Tanta hora para ela deixar de ser o que é, vai escolher justo agora! - Clara se exasperou.

- Se existe uma coisa que Régia dificilmente teve, foram escolhas. - Luck pensou em voz alta.

- O quê, doutora? - a secretária fez-se de desentendida.

- Você ouviu, mas não vem ao caso. Execute seus planos logo. - foi uma ordem seca.

- Eu vou resolver a fazenda; depois, quero a adoção de Anna.

- Vemos o caso Anna depois. Quero saber de seus planos. Posso ajudar?

- Posso ouvir, Clara.

- De certos que vocês podem conhecer.

 

Após expor seus planos para Becky e Luciana, que concordou em ajudar no que fosse possível, em termos de influências; Clara viajou por dois dias.

 

Ambas conheciam uma senadora, de papel importante nas questões de reforma agrária, que tão logo recebeu a ligação de Clara, mesmo sem menção de Luciana, concordou em recebe-la imediatamente.

 

- Clara, você está mais linda e sexy do que nunca! - a senadora olhou para a secretária, devorando-a com os olhos.

 

Clara estava impecável em seu belo tailler, feito sob medida pelo mesmo alfaiate que servia a doutora. Desde que começou a trabalhar com ela, a secretária preferiu fazer suas roupas sociais com o excelente artesão. Escolhera tons cinzas, com blusa vinho. Os sapatos eram altos, em tons de vinho mais escuro. Prendera os cabelos. Colar e brincos de pérolas.

 

- Obrigada. Você também está muito bem. Seu casamento repercutiu na imprensa.

- Ao menos, serviu para afastar os boatos. Posso defender todas as causas, mas ainda não posso deixar minha sexualidade servir de armas nas mãos de meus adversários.

- Entendo.

- Você fica na cidade hoje? Marquei com você, mas estou sendo obrigada a adiar nossa conversa, pois o presidente nos convocou de última hora. - a mulher disse, se desculpando, com o palm top na mão como prova de sua inesperada mudança de agenda.

 

A senadora beirava seus 50 anos. Cabelos grisalhos, magra, alta, gestos seguros. Charmosa e ardilosa. Uma raposa. Era uma mulher de carreira política meteórica, passando por vários cargos de destaque. No momento, pleiteava o ministério da agricultura. Era quase certo que seria nomeada.

 

- Bem, agora ficarei. Preciso muito que você entenda e aprove o que pretendo fazer. Quero ter indicações sobre com quem falar e ter o aval de pessoas como você. - a secretária concordou.

- E a Dra. Luciana? Como está aquela insuportável, arrogante, desagradável e deliciosa mulher?

- Continua a Dra. Luciana. - Clara riu.

 

O celular tocou e a senadora se desculpou. O carro oficial a aguardava.

 

À noite, no hotel, em trajes mais informais, jantaram juntas. Clara estava com uma calça preta de corte reto, também feita sob medida. Uma blusa de seda cor de marfim e mocassim.

 

- Como vai a vida, Clara? Ainda aceita ordens da Luciana por paixão? - a mulher era direta em suas palavras.

- Você sabe que não é assim. - a secretária ficou meio chateada com a observação.

- Você gosta de mulheres poderosas. Gostaria de ter mantido nosso caso. - disse, encarando os olhos verdes, que sustentaram os azuis intensos.

- Não gosto de casos. Nem de segredinhos. - disse, saboreando o excelente e caro vinho.

- Gosta de mulheres poderosas.

- Gosto de segurança.

- Besteira. Ninguém pode garantir segurança o tempo todo. - a senadora afirmou.

- Muito menos você!

- Eu tenho uma carreira em um meio conservador. Sei que posso fazer muito por outras pessoas estando onde estou. Infelizmente, tenho minha cota de sacrifício.

- Casar com um homem, por exemplo.

- As pessoas ainda acham que um casamento é prova de heterossexualidade. Mas, você não aprova essa estratégia do casamento, não?

- Sandra, não estou aqui para questionar nossa finada relação ou suas estratégias.

- Magoei você. Eu sei. Mas, não tenho escolhas, além das já traçadas.

- Eu entendi tudo. Não sofri, pode ter certeza. Nem mesmo quando soube que Luciana também estivera entre suas conquistas.

- Juro que não quis magoá-la. Mas, não consegui resistir. Nos usamos; tínhamos nossos propósitos. De qualquer forma, ela não soube de você.

- E eu só soube porque fui encarregada de enviar flores a você, com um bilhete redigido por mim; já que ambas não se importavam com o que as envolvera. Foi até engraçado escrever as frases.

- E eu logo vi que tinha sido você. Luciana não sabe a declaração que você me fez. Ainda bem que  conheço os estilos de ambas; caso contrário, pagaria um King Kong com a doutora. - a mulher riu, limpando os lábios com o guardanapo, após o que, encarou Clara.

- Se eu disser que estimei você como a poucas mulheres, isto atenua minha falta?

- Por acreditar nisso, é que estou aqui. - Clara foi delicada, mas enviou seu recado que tudo terminara.

- Vamos ao assunto que a trouxe, então! - dizendo isso, a senadora deu total atenção à secretária.

 

Ao discorrer sobre os planos, Clara demonstrou muito entusiasmo. Coma a ajuda de Luciana, o projeto contava com alguns empresários interessados em participar. Isso animou a senadora que, muito astuta, começou a visualizar estratégias que a favoreceriam; criando alguns esboços na caderneta que sacara da bolsa.

 

Na mesma hora, começou a fazer algumas ligações. E, de repente, como achando que estivessem escutando, parou. Mas, continuou a anotar tudo, com uma letra praticamente ilegível.

 

- Droga. Ainda não me adaptei a ficar andando com meus brinquedinhos tecnológicos. Seria bom a gente colocar isso em documentos eletrônicos. Além da minha letra ser horrível, não sei quando poderemos nos ver novamente.- a senadora plaguejou.

- Se você achar que sua imagem não corre riscos, poderá subir em meu quarto para usarmos meus recursos.

- Só se correr riscos com você?

- Não. Sou uma mulher comprometida.

- Ah! Isso é uma novidade, Clara. Conheço a felizarda?

- Marcella Ribeiro, diretora superintendente dos hospitais de Luciana.

- Conheço bem Marcella.

- Vai dizer que ela tamb...

- Não!!! Não. - a senadora riu - Você está colocando muita fé no meu taco. Vamos subir, então. Poderemos conversar melhor no seu quarto.

 

Dizendo isso, a poderosa mulher instruiu seus seguranças sobre sua decisão de ficar.

 

Ao chegar no quarto, pediu champanhe. Acomodaram-se na mesa e passaram horas discutindo os planos para a fazenda.

 

Clara, eficiente como sempre, assessorava a senadora deixando a mulher encantada.

 

- Você não que vir trabalhar comigo, Clara?

- Não.

- Nunca largaria a Luciana.

- Tenho pensado em largar, sim.

- Tem planos com a Marcella. Por que ela?- a senadora disse, denotando certa desaprovação.

- Por que sinto que você não gosta dela?

- Bobagem. Talvez meu conservadorismo acabe falando mais forte mesmo.

- Que tem a ver ser conservadora e não gostar de Marcella?

- Quanto tempo estão juntas?

- Não chega a um ano.

- Você a conhece bem. Hábitos, gostos?

- Cr..creio..que sim - Clara percebeu que não sabia dizer ao certo - É uma excelente profissional, inteligente, bem informada, culta... - ela tentava elencar tudo que sabia, percebendo quão superficial eram seus conhecimentos.

- Desculpa a indiscrição, mas sexualmente, você a satisfaz?

 

A secretária sentiu seu rosto corar. No começo, elas eram apaixonadas; se entregaram de forma ardente, os orgasmos eram constantes. Comparadas com Luciana e BEcky, elas eram mornas. Clara não era muito afeita a malabarismos. Depois de um tempo, principalmente com o surgimento de Régia, as coisas ficaram por demais instáveis: ora faziam sex* com certa freqüência, ora nem se tocavam por muito tempo. Por vezes, Marcella deixou transparecer querer fazer alguns joguinhos, mas Clara declinava. Sabia, pela entrelinhas dos relatos do que foi a relação da diretora com a doutora, que Marcella gostava de criar cenas e coisas assim. Porém, desde que notara que a secretária declinava sempre, não insistia. Até por isso, ficou surpresa com os últimos dois dias juntas, quando Clara deixou que ela fizesse algumas coisas que, definitivamente, não empolgaram a secretária.

 

- Pergunta muito íntima, não senadora?

- Clara, conheço você sexualmente; conheço sua personalidade. - ficou calada por um momento.

- E...

- Conheci Marcella e suas preferências. Confesso que fiquei assustada.

 

Clara não queria passar atestado de ingenuidade, por isso refreou a vontade de perguntar, querer arrancar da senadora o que ela sabia sobre a diretora.

 

- Entendo. - mentiu para a mulher a sua frente, fingindo compreender sobre o que se tratava.

- Aquele clube era algo assustador. Tento não ser conservadora, mas nunca entendi se reunirem para sofrerem ou imputarem dor em outras. Aquelas mulheres se flagelavam. Era muito pesado ver. E, no entanto, com toda aquela violência, saiam dali como se tivessem ido a igreja se confessarem e lavar a alma. Não sei se você foi lá junto com ela, mas Marcella domina o cenário.

 

Clara estava muito surpresa, mas sustentou a conversa, dando evasivas. A senadora prosseguiu e contou coisas pesadas.

 

- Fico pensando que essas mulheres, podendo escolher, escolhem serem humilhadas, espancadas, marcadas. E, as outras, podendo escolher também, escolhem serem as carrascas naquelas masmorras aparatadas, cheia de aparelhos inventados por mentes que, ao meu ver, são até doentias. Mais engraçado: são mulheres e homens que circulam entre nós, sem ostentarem suas preferências. Até mesmo são pessoas cordatas e brandas.

- Sandra, aonde você quer chegar? - Clara tentou morrer a conversa, pois estava se sentindo mal com o que ouvira.

- Quero concluir que conhecendo seu jeito e o dela, diria que uma de vocês não está satisfeita nessa relação. Mas, se vocês acham que podem superar essa diferença. Se encontraram equilíbrio, as parabenizo.

- Obrigada pela preocupação. Eu e Marcella estamos bem. Sabemos de nossos limites e nos respeitamos. - "se estamos satisfeitas, é outro assunto" a secretária pensou. - Mas, já concluímos aqui?

 

Após mais uma hora trabalhando, a senadora foi embora, deixando um projeto totalmente planejado; e uma mulher cheia de duvidas sobre sua relação e seus princípios.

 

 

***

***

 

- (Luciana, sei que é demasiada intromissão, mas eu quero saber sobre a adoção da Anna por parte de vocês.) - a Dra. Paz não fez rodeios.

- (Dra. Paz, acredito que é um assunto a ser discutido na frente da Régia.) - Luciana não gostou muito da interpelação da colombiana.

- (Luciana, me entenda por favor: não quero me intrometer e nem bisbilhotar. Conversei com Jess...digo, Régia e sei o que ela pretende. Não concordo, por isso não quero ficar de braços cruzados.)

- (Doutora, tenho um acordo com ela e um compromisso com minha noiva. Por isso, só na presença de ambas, discuto o assunto. Se quiser, chamo Rebecca aqui. Você traz a Régia. Vamos chamar a Clara, pois ela também está reivindicando a menina.) - Luciana não continha sua impaciência.

- (Clara? A sua secretária? O que ela tem com Jesse para querer Anna?) - ainda que desconfiada, a médica colombiana tentava jogar verde.

- (Dra. Paz, Clara e Becky foram as pessoas que cuidaram de Anna na ausência da Régia. Ambas se apegaram. De resto, deixe que Jesse, que deve ser a Régia, resolva. Estamos acertadas com relação a uma reunião? Hoje no final da tarde, ambas estarão aqui, Clara e Rebecca. Se não me engano, Régia já está no hospital. Vamos nos reunir então. De resto, como a menina reagiu aos primeiros dias do coquetel?) - a doutora brasileira encerrou a conversa. 

 

Anna não esboçara nenhuma reação ainda, mas segundo Dra. Paz era cedo. A média era de 30 dias para algo acontecer. Iriam acompanhar e tomar notas de hora em hora. Fisicamente, a menina estava muito bem. A cirurgia em si fora um sucesso. A recuperação bem mais rápida. Os especialistas faziam testes neuro-motores, mas pouco se obtinha de resultado. De resto, Régia retomara os cuidados com a menina, sempre instruída pela enfermeira encarregada. Ruth também ajudava.

 

Estavam aguardando o retorno de Clara para voltarem à fazenda. Ruth ficara apreensiva com o fato de Lilly estar sozinha nas terras. Andras não era uma pessoa bem quista no local, por isso estar com a moça nada significava.

 

Régia definitivamente estava decidida a retornar, deixar João oficialmente no comando e ir embora.

 

- Você sabe para onde vai, D. Régia?

- Não. Não quero saber, assim não saberei voltar também. - disse, meio sarcasticamente.

- Si ocê temi vortar, é porque num tem certeza se quê ir.

 

A líder ficou ainda mais calada do que normalmente era.

 

- Régia, Becky disse que D. Clara ficô muito brava que ocê resorveu si aquieta justo agora.

- Clara que se dane. Quem ela pensa que é? Pensa que sou um soldadinho que ela aperta o botão e sai matando gente, depois ela desliga e guarda. Ela repudia o que diz ser "minha violência", então não vou mais ser violenta para propósitos de outros. - Régia estava bufando.

- Mas, o povo se sente seguro com ocê no comando.

- Vão aprender a se sentirem seguros sem mim no comando.

 

Ficaram calada, enquanto Régia pegava Anna no colo, para fazer a higiene da menina.

 

- Decidiu se vai deixa ela com minha fia ou com D. Clara? - Ruth perguntou, passando a esponja para a líder, que quase deixou cair.

- Clara? Que história é essa, agora? Desde quando eu disse que deixaria Anna com ela?

- Becky disse que ela tá querendo ficar com Anna, achei que ocê subesse.

 

Régia não disse nada. Continuou seu cuidado com o corpinho de sua filha. Estava tentando não se apegar, mas também achava que a menina ouvia as coisas e temia dizer que a estava abandonando.

 

- Parece bobagem, Ruth, mas não quero falar disso na frente dela.

- Tá certo, então.

 

***

***

 

- Fez boa viagem, amor?

- Marcella, quero conversar sério com você. Pode dormir em casa hoje?

- Não sei se...

- É sério. Se você quer continuar comigo, é bom ir!

- Clara...que houve...você está zangada comigo?

- Ainda não.

 

***

***

 

Por um bom par de horas Luciana, Becky e Clara ficaram reunidas discutindo os detalhes do projeto elaborado pela senadora. Clara permanecera mais um dia em Brasília, por conta de reuniões. Voltara com diretrizes bem traçadas. Agora, era a vez de Luciana entrar no circuito.

 

- Pode deixar, Clara, vou convocar dois empresários para um almoço. Você estará presente.

- Luck, pelo que estou entendendo, vai ser algo grandioso e muito moderno em termos de planejamento. Gostaria de me dedicar a esse projeto. Quero investir financeiramente também. Vou conversar com mamãe e Lillian.

- Rebecca, com perdão ao que vou dizer, seu pai eu quero fora disso. Se não fosse o apreço que tenho por você e Ruth, não o deixaria ficar na fazenda nem mais um dia.

- Clara, você não está indo longe dem....- a médica não gostara do tom da secretária para com Rebecca.

- Luck, Clara está certa. Eu a entendo. Meu pai extrapola tudo. Aquela encenação da Régia deveria ter servido para refreá-lo.

- Aí também não. Aquilo foi demasiado. Aquela mulher não entendeu o que se passava ali. - Clara falou, com nojo e repúdio.

- Acho que quem não entendeu foi você Clara. Você achou mesmo que Régia ia capar  papai? E que nós todas assistiríamos sem reagir? E, se você pensa assim, por que só hostiliza Régia, e não a gente também? Tem medo da Luck?

 

Rebecca foi direto na jugular. Por um momento, quase soou uma réplica ao que Clara dissera sobre seu pai.

 

Clara não teve tempo de responder, pois a secretária de Luciana no hospital anunciava a chegada da Régia e da Dra. Paz.

 

- Se não precisarem de mim, vou me retirar. - Clara ia saindo.

- Clara, você fica. Vamos abordar a adoção da Anna. - a médica demandou.

 

A porta abriu e Régia galantemente deixou a Dra. Paz entrar na frente. Estavam sorrindo. Trocaram cumprimentos e escolheram seus lugares.

 

- Régia, temos uma questão séria a ser resolvida. De certa forma, para você, parecerá um alívio ver o quanto sua filha é querida e disputada. - Luciana introduziu o assunto. - A adoção de Anna gerou algumas pretendentes novas, além de mim e Rebecca. Clara e Dra. Paz estão querendo a guarda da sua filha. - disse sem rodeios.

 

A líder olhou para Paz, que a olhava quase implorando. Clara não olhava para a líder. Estava olhando fixamente para Luciana.

 

- Andei conversando com a Dra. Paz sobre o assunto. Já o fato de Clara também estar reivindicando a posse de Anna me é totalmente desconhecido, por isso um tanto quanto estranho.

- Não deveria ser, Régia. Desde o começo que estou envolvida com o drama de sua filha. Cuidei dela, tenho carinho. E posso dar a ela o que for preciso.

 

Régia só fez um gesto sutil com a cabeça, sem comentários.

 

- Senhoras, conversei com a Dra. Paz e ela me fez perceber que estou sendo extremamente egoísta com vocês duas, Luciana e Rebecca, impondo a presença de uma criança especial no começo de seu relacionamento; momento no qual vocês ainda estão desenvolvendo sua convivência. - fez uma pausa, aguardando algum comentário, que não ocorreu - Sem perceber, apenas visualizei que Luciana tem recursos e Rebecca tem o amor que Anna necessitará, caso saia de seu estado atual.

 

Todas permaneciam em silêncio, esperando a sentença a ser proferida por Régia.

 

- Acredito que o mesmo se aplica à Clara uma vez que, sem hipocrisias, sei que Marcella me detesta e não quero minha filha como alvo de suas chacotas. Eu posso ser troglodita, Mowgli e o apelido que ela quiser me dar; mas minha menina não.

- Não coloque Marcella na questão. - Clara foi ríspida.

- Pensei que vocês fossem parceiras. - a líder alfinetou.

- Sim, mas...

- Então Clara, você me desculpe: tem minha gratidão, mas Anna não vai ficar com você.

 

A secretária ameaçou falar. Não encontrou palavras. Naquele momento, não sabia dizer nada sobre sua relação com a diretora. Sabia que Régia tinha razão.

 

- A Dra. Paz, por tudo que tivemos no passado; e pelo papel que hoje ela representa na recuperação da Anna, parece-me a pessoa mais indicada a ter sua guarda.

 

Reinou um silêncio no qual cada pessoa envolvida pensou sobre sua "derrota" na eleição da líder: Luciana sentiu-se aliviada; Rebecca queria muito a menina, embora não soubesse o quanto isso significaria em seu relacionamento; Clara ficou desapontada, até mesmo ressentida, porém diante de suas atitudes recentes, não tinha argumentos.

 

- Régia, você tem todo o direito e acredito ter feito a escolha mais acertada. - Luciana mais uma vez rompeu o silêncio. - De nossa parte, posso falar por Rebecca, tenha certeza que sua filha seria acolhida com carinho e todo suporte que necessitasse.

 - Faço minhas as palavras de Luck. Tenho enorme carinho por sua filha e tudo que mais quero é poder ver os olhinhos dela acesos para que possamos brincar juntas. Espero que isso, a Dra. Paz nos conceda. - a loirinha falou, um tanto emocionada.

- (Essa é a nossa luta, Srta. Rebecca: minha, sua, Dra. Luciana, Srta. Clara. Todas estamos envolvidas. Agradeço a confiança de Régia. Anna nunca deixará de ser sua filha. Sempre saberá quem é sua mãe. Quando você se sentir segura, poderá reivindica-la, sem medo de uma estranha.)

 

Clara se deu conta de que, sutilmente, todas esperavam sua parte na conversa de "derrotadas".

 

- Quer que chame os advogados, Dra. Luciana? - foi sua única intervenção.   

- Sim, Clara. Régia e Paz, vocês sabem que agora vem a parte mais difícil, não?

- (Decidimos que podemos transferir Anna para o Chile e lá faço a adoção.)

- E as leis?!? Meu hospital está envolvido! - Luciana quase pulou da cadeira. - Régia, Anna já está aqui simplesmente por meu aval. Nem documentação decente ela tem. Aquela sua declaração e nada dá na mesma.

- Dra., no momento certo, providencie a remoção de Anna para o hospital no Chile. Isto pode ser feito de forma menos alarmante e mais dentro "das leis". Lá fora, nos arrumamos. É o último pedido que faço. Prometo. - Régia disse.

- Régia, por incrível que pareça, você nunca me pediu nada. - a médica disse, surpreendendo a todas - Clara, mande os advogados me procurarem na primeira hora de amanhã. Quero os melhores em direitos civis e internacionais. Régia e Dra. Paz, estamos falando de algo muito delicado. Temos que estudar muito bem as coisas. Verei o que poderei fazer, sem por em risco meu nome e de meu hospital. Se for algo muito complicado e arriscado, voltamos ao plano inicial.

- Certo, Dra. Luciana. - a líder concordou imediatamente.

 

Ao saírem da sala, Clara e Régia trocaram olhares. Dra. Paz tinha um olhar de vitória sobre a secretária.

 

"Por tudo que tivemos no passado" - foi a única frase que ficou martelando na cabeça de Clara, ao vê-las saírem juntas da sala.

 

 

***

***

 

 

Nunca antes dirigir fora um ato de reflexões, como estava sendo ultimamente para Clara.

 

Saiu do hospital sem procurar Marcella.

 

Sentia-se cada vez mais distante de Régia; porém, nem um pouco mais próxima da diretora. Não sabia até que ponto os fatos se relacionavam; entretanto, já começava a se conformar em ficar sozinha novamente.

 

Antes de deixar o hospital, pedira desculpas à Becky, extensivas a sua família e Luciana,  sobre a cena feita na fazendo envolvendo Régia.

 

Estava mortalmente envergonhada com sua estupidez; por ter sido tão cega em busca de motivos para desqualificar a líder como possível amante, jogara a doutora e a família de Becky como co-autoras em uma brutal tortura, achando que todas deixariam o infeliz homem ser mutilado.

 

Ainda não estava convencida que Régia não faria realmente a brutalidade. Em suas expressões, estava nítido o prazer. Provavelmente, em outras ocasiões, fizera coisa piores. Mas, não era esse o caso.

 

Estava magoada com a líder pelo que ela fizera no haras, dormindo com a garota e depois ameaçando a diretora; mas, novamente, pensando friamente, o que ela fazia com Marcella era muito pior. Era certo que pretendia sustentar a relação com a diretora, mas não era nela que encontrava seu amor.

 

Becky dera-lhe uma descompostura. Disse que mesmo Clara não tendo visto o sinal dado por Régia, não deveria por um momento sequer imaginar que a cena chegaria ao seu clímax.

 

- Clara, meu pai mereceu. Ele estava se valendo da situação de ser imune por ser meu pai. Estava iniciando um ciclo de ressentimentos que, talvez, eu não poderia consertar com Luciana, caso ela revidasse. Você melhor do que eu sabe que ela não teme nada e nem ninguém; mas, por mim, estava engolindo aquela porcaria toda de papai. Régia nos protegeu; ela fez com ele o que todas queríamos fazer, mas canalizou  para ela o papel de vilã. Na cabeça dela, não seria nada demais acrescentar um blefe aos outros tantos momentos reais.

- Tenho dúvidas se ela não executaria seu pai, se pudesse.

- Eu não tenho: ela o executaria sim, mas sem torturas. Aliás, ela o salvou do João.

- Mas...

- Clara, deixa de ser tola. Você fica culpando só a Régia para arrumar desculpas para se afastar dela. Concordo que ela não é uma pessoa que ofereça um futuro. Mas, como minha mãe bem disse, alguém imaginaria que eu saí das ruas para os braços da Luciana, sendo ela quem é?

- Rebecca, não se exceda além do tópico da nossa conversa, por favor.

- Como queira. Mas, pára com essa besteira de hostilizar a Régia por causa daquela desagradável cena provocada por meu pai. Tenho que ir. Luck me espera. Você vai para a mansão?

 

Não ia para a mansão. Marcella confirmara que passaria a noite com ela. Estava voltando para casa.

 

Nos últimos dias, vira uma miríade de fatos passarem diante de seus sentidos.

 

A habitual lucidez (ou rigidez) presentes em sua vida pessoal estava embotada. De uma hora para outra, passou a se julgar juíza e júri; porém, fazia questão de ignorar que também bancava a carrasca. Nunca fora assim.

 

A Clara que Régia conheceu demonstrou compreensão e apoio. A mulher por quem a líder se deixou envolver, pareceu ser merecedora de confiança para algumas revelações. Sabia que tinha sido honesta ao dizer que não saberia suas reações; mas não foi honesta em dizer que essas reações seriam circunstanciais, conforme seu envolvimento; ou mesmo proporcionais ao egoísmo de uma mulher apaixonada, porém agarrada a uma vida sem sobressaltos, com necessidade de segurança, de planejamento. Régia era um salto, uma responsabilidade além dos desejos saciados. Teria um ombro forte onde colocar a cabeça, sentir o aconchego, segurança física; mas sempre assombrada pelo medo de perde-la pela necessidade de escondê-la. Ou pelo medo de se embrutecer, achando natural certas brutalidades do passado da misteriosa mulher.

 

Lembrava-se de como ficara empolgada em saber que ela tinha sido contrabandista. Visualizou uma mulher destemida, livre, traçando seu caminho. Isto somada a figura de líder do acampamento, com poder de comando; deixara o imaginário da secretária inflado por tanto furor e poder em um corpo lindo. Adorou a rusticidade dela em contraste com o mal-camuflado refinamento. No momento em que Régia contara algo sobre seu passado, o fato da palavra vingança ser carregada em tonalidades de vermelho, foi bloqueado como forma de aceitação desse passado. Eram os pais dela que foram massacrados, sim; mas, era uma moça, uma bióloga recém-formada, voltando para sua família, que tinha sido usurpada de sonhos e planos? Ou era uma pessoa justificando a necessidade de explodir sua violência com a vingança contra quem massacrou sua gente?

 

Não entendia o curto-circuito na personalidade de alguém, causado por um trauma de violência explícita. Os mecanismos de defesa e ataque que poderiam se revelar por isso.

 

Conheceu a Régia erudita, culta, refinada. Se encantou com isso. Mas, mesmo assim, não se sentiu segura o suficiente para se entregar. Súbito, percebeu a raiva que poderia ter suscitado na mulher que por tanto tempo se protegeu contra suas próprias fragilidades. Se fosse alvo da mesma fúria que determinou sua sede de vingança, poderia ter sofrido graves conseqüências. Por vezes, Régia deixou claro que se quisesse ter a secretária apenas fisicamente, nada a impediria. Em outras, deixou-se abater pela ira e demonstrou controle suficiente para não ferir Clara. No entanto, ao final de toda sua violência e poder para tal, a mulher se deixou abater, definhar e desmerecer sua alma de guerreira, que a fez sobreviver até o momento. Por sinal, uma das coisas mais lindas em sua personalidade.

 

 "Isto é comportamento de alguém viciado em dor e sofrimento de outros? Poderia essa mulher ser tão indomável? Será que gostaria de Régia sem essa sua alma enérgica, ardente?"

 

Era certo que todas as pessoas que a cercavam, exceção Marcella por motivos óbvios, estavam fazendo sua parte para ajudar a líder. Até mesmo Luciana a entendia e buscava ajudar. A mulher tinha uma aura que transmitia respeito, lealdade, segurança. Ao mesmo tempo, era visível a necessidade de amor que a líder tinha. E o quanto de suavidade existia nela.

 

Quando em repouso, era gentil ao ponto do cavalheirismo. Com isso, também encantava. Eram seus extremos recheados de mistérios entre eles. Desses mistérios, o surgimento do amor platônico do caboclo; o amor idolatria da Dra. Paz. O que ela teria feito para encanta-los assim? Pior que sabia a resposta, pois ela mesma estava ainda sob o encanto, embora resistindo agarrada a um fio de lucidez desacreditado.

 

 "Régia é quente; eu sou morna. Posso me queimar"

 

Desde o último farol até quase sua casa, o pára-choque do caminhão na frente ditava a sentença de Régia para Clara.

 

 

"Assim porque és morno, e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca. Apocalipse 3:15-16"

 

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"You know the day destroys the night
Night divides the day
Tried to run
Tried to hide
Break on through to the other side
Break on through to the other side
Break on through to the other side, yeah"

(The Doors)

 

 

 

- Clara, o quanto sua mente é aberta?

- Totalmente! Marcella, você sabe que ...

- Contraditório você afirmar isso, dentro dessa sua vida tão regrada e certa.

 

Ao encontrar Marcella, a secretária queria apenas entender a necessidade de infligir dor em uma relação. Queria saber se isso arrefecera com a relação das duas.

 

- Clara, eu ainda freqüento o clube. A senadora Sandra deve ter feito comentários a meu respeito. Sei que ela é conservadora, foi um erro leva-la lá, mas Luciana achou que era algo diferente e a senadora é um ser sexual. Um dos poucos enganos da doutora. - deu uma risada fraca.

- Eu quero entender, apenas isso. Temos uma vida sexual morna, eu sei disso. Nunca falamos a fundo, mas em suas entrelinhas, sei que Luciana foi quem mais correspondeu a você sexualmente; mas sem envolvimento ou carinho. Eu não quero você assim. Quero uma pessoa para dar carinho, atenção, amor. Se o sex* merecer um incremento, poderemos sempre conversar.

- Eu te satisfaço?

- Sim. Eu sei que não a satisfaço...

- Querida, não vamos chegar a lugar algum assim. A pergunta é: você quer ser minha submissa? Quer entender meus ritos, obedecer minhas vontades, fazer jogos comigo? Jogos nem sempre "assimilados" por falta de entendimento do que é uma cena?

 

Clara percebeu que não entendia nada do que a diretora falara. Se ao menos tivesse pesquisado antes, não ficaria com a cara de boba que estava.

 

- Sei que você não está entendendo. O que realmente quer saber é se preciso dessas práticas para ser feliz ao seu lado? Minha resposta é:  sim, pois é uma parte de mim que gosto de liberar. Um equilíbrio. Isto com certeza me deixa mais inteira para você.

 

Fazia sentido.

 

- Você gostaria de me bater? De amarrar?

 

Marcella, para desgosto da secretária, começou a rir.

 

- Tolinha. Essas coisas qualquer casal pratica. Posso dizer que tais "brincadeiras" não me estimulam. Eu sou o que chamam de domme. Sabe o que é isso?

- Posso entender que é quem domina.

- É muito mais do que isso: é controle, conhecimento, superioridade, foco e, acima de tudo, responsabilidade sobre o prazer psicológico, não apenas físico. Não é sex* por esporte; não é violência gratuita; não é um vale tudo. São ritos, liturgias, cenas, liberação de medos; demonstração de confiança.

 

Conforme a diretora falava, a secretária percebia o brilho nos olhos. Imaginava o aspecto psicológico envolvido. Pensava em Luciana, que nas empresas humilha Marcella ao extremo; e, provavelmente em seus jogos, era dominada.

 

- Quando você tinha Luciana sob seu ...domínio? Domínio que seja, isto era uma vingança?

- Não. Eu tenho admiração por ela. Quando ela se rendeu a mim, fizemos nosso acordo e selamos nossos limites; em nenhum momento, eu usei nossas cenas como forma de vingança. Até porque, com ela realmente era físico. Não é uma mulher de jogos psicológicos. Se fosse assim, ela dominaria sempre. Evitamos esse tipo de jogo, pois aí sim, poderíamos ter confundido as coisas.

- Complexo. - Clara teve que admitir.

 

Ficaram em silêncio algum tempo.

 

Marcella estava achando ótima a conversa. Pela primeira vez, sentiu em Clara a vontade de conhecer quem era a mulher que se deitava com ela; com quem fazia planos de futuro, de quem cobrava definições. Também sabia que provavelmente a estaria desagradando. Para Clara violência é violência, por mais que se prove que há consenso, segurança e confiança. Não a culpava, poucos eram capazes de entender. Assim como muitos pensavam saber o que era uma pratica sado-masoquista, associando exclusivamente a dor física ou a sex* com certo grau de domínio.

 

Por sua vez, Clara estava pasma consigo mesma; por não ter tido até então a curiosidade de conhecer a diretora. Ouvira várias vezes as insinuações sobre seu relacionamento com a doutora. Nas entrelinhas, pelos seus parcos conhecimentos, visualizava algum tipo de sex* com violência física e mesmo com certo ar de vingança. Ouvira falar de pessoas que por viverem o tempo todo no comando, gostavam de inverter tais posturas no sex*. Mas, ouvindo as últimas palavras da diretora, percebeu que julgava sem conhecer, por querer ser o mais discreta possível. Percebia que muitas coisas não questionava por não querer parecer ignorante; e muitas coisas aceitava, por dizer a si mesma que nada tinha a ver com a vida dos outros. Por isso, momentos como esse que tinha agora com Marcella eram perigosos. A partir do momento que tinha que desnudar um assunto, entende-lo e tirar alguma conclusão, Clara sabia que suas convicções e princípios arraigados mostravam a verdadeira face do preconceito puro. E isto a irritava, pois não se achava em condição de ter preconceitos, sendo ela mesma alvo dele também. E montava-se o ciclo vicioso no qual a secretária se prendia.

 

- Você quer ir ao clube comigo?

- Você ainda freqüenta!?!? - estava chocada.

- Não freqüento: sou sócia-proprietária. Antes de você, eu tinha escravas fixas. Uma delas, minha sócia. Passei ela para outra domme. Agora, apenas faço cenas como convidada, em ocasiões especiais.

 

Clara meio se deixou desabar no sofá.

 

- Não sei o que dizer. Não sei se peço desculpas por mim ignorância sobre você ou sobre o assunto. - olhou para a diretora - E também não sei se me agrada a idéia de saber que você tem que ter esse escape para ficar comigo.

 

- Mas, eu não sou um escape para você também, Clara?

 

A pergunta fez a secretária ficar rubra.

 

- Por que você acha isso?

- Clara, olha a sua volta? Que tipo de mulheres cercam você? Faça uma análise: Luciana é a personificação do autoritarismo e falta de altruísmo. Ela barganha com a vida das pessoas e sobre isso fez seu império. Atrocidade total, mas institucionalizada e com caráter até humanitário. Eu, que apesar de você não saber muito, intuía que gosto de subjulgar, sou ambiciosa e rezo na cartilha da doutora; e a troglodita que você finge não querer se envolver, mas é atraída para ela. O que tem em você que precisa de pessoas como nós, já que é tão certa e sem sobressaltos?

- Por isso você é meu escape?

- Clara, você quer tanto sair dessa sua inação, que precisa de mim para ter um foco que considera mais sólido, mais estável, melhor ancorado. Até sexualmente, você está mais exigente, querendo mais experiências. Isto é indicio de uma necessidade de escape. Você tem uma aparência que quer preservar e, para tanto, precisa de uma forma de extravasar sua inquietação. Não sei se está querendo vestir uma máscara, ou despir-se dela.

- Quando você realiza seus "ritos", você veste ou despe sua máscara?

- Eu vivo papéis, atendo cenários. São muitas máscaras a serem usadas. Com certeza, a minha máscara jamais cai.

- Comigo também é um papel?

- Com você é a minha experiência inovadora que estou vivendo. A máscara com seu nome é a mais difícil de usar. Envolve amor. Mas, alimenta medos. De certa forma, você me domina, porque estimula sentimentos mais agressivos, mas os deixam presos em uma coleira invisível. - ela começou a rir.

 

Clara não entendia, mas a diretora ria de uma forma meio insana.

 

- Est...tou...rindo - continuava...- Porque eu quebrei um rito sagrado para qualquer domme e nem percebi: entreguei a você a minha coleira sem saber se você queria. Não houve consenso...- ficou séria - E você aceitou. Sem perceber, você a estica e me sufoca.

- Wow...E estamos tendo essa conversa sóbrias.

-E, dessa maneira, creio que estamos podendo nos enxergar. Ainda não acho que você está se enxergando, mas ao menos, está aqui mais aberta do que nunca.

- E a violência? Como ela afeta você?

- Gratuitamente, sem qualquer tipo de consenso, sem a segurança e a confiança; não é justificável.

- E só por isso a sua violência é mais justificável que ...

- .. a da troglodita?

 

Clara gelou, porque era justamente o que pensava.

 

- Não necessariamente. - tentou dissimular.

- O que eu faço pode ser considerado uma orientação sexual, assim como um comportamento que posso ou não trazer para minhas relações. No cotidiano, assim como somos lésbicas e nem sempre assumimos pela incompreensão e preconceitos, também não mostro o que sou.  Certamente, matar uma pessoa com um tiro na cabeça não me dá prazer. Subjulgar essa pessoa diante de uma forma de dominação, pode mexer comigo. Eu sou uma mulher comum.

- E Régia, o que você pensa sobre ela?

- É minha rival. Pelo pouco que sei de Régia, ela também era uma mulher comum até que tiraram ou colocaram a máscara que vemos hoje. É mais poderosa do que eu: ela intimida, não se submete, e faz valer a lei do mais forte. Tem lá os demônios dela que, sejam quais forem, são muito bem controlados e só aparecem no momento certo. Talvez, nesse ponto, sejamos iguais. Apenas tenho certeza que quem ela subjulga, não quer ser subjulgado.

- Ou seja, você não é perigosa e ela é?

- Controle, Clara. Se perdermos o controle, ambas somos perigosas.

Já era muito tarde. A conversa com Marcella fora a mais aberta que tiveram em todo esse tempo juntas. Clara tinha que admitir que as revelações da diretora mexeram com sua cabeça. Principalmente os aspectos mais pontuais da conversa: o que a leva a ter atração por mulheres tão intimidantes? por que sua vida tão sem sobressaltos busca comportar a vida dessas mulheres?

 

Mas, o mais intrigante foi que, ao analisar mais profundamente, deu-se conta de que tem a essas mulheres em suas mãos, controlando-as de alguma forma: a vida de Luciana é toda organizada por ela, até mesmo a relação com Rebecca; Marcella admitiu o controle; e Régia está a ponto de perder o dela, por conta do que entregou-lhe. E todo esse tempo apenas usou a máscara da eficiente e discreta secretária.

 

- Não estou preparada para ir ao clube.

- Não estou preparada para deixá-lo. Ou deixa-la.

- Só preciso deixar de fingir que tenho a mente aberta. Ou saber fechar os olhos e sentir sem reservas.

- De olhos fechados, quem rege é seu imaginário. Ele você manipula. De olhos abertos, é o real que você não consegue dominar.

 

As palavras da diretora saiam de seus lábios de forma graciosa. E embalavam a secretária, que encostara a cabeça no ombro macio. Quanto mais ouvia a melodiosa voz, mais as palavras encontravam aderência em seus sentidos.

 

- Você tem que confiar apenas. Assim poderá fechar os olhos, sentir sem reservas e enxergar profundamente. A realidade impulsiona. O imaginário dá voltas sem saída.

- Marcella, eu confio em você. Quero um futuro juntas.

- Fico feliz. Mas sei que nunca estive presa no seu imaginário, a ponto de você não se abalar tanto ao me enxergar agora.

- Isto é bom ou ruim?

- É desmerecedor. Ainda somos mornas. Convenientemente mornas, agora que sabemos limites que não transporemos.

 

A diretora levantou-se, pegando as chaves do carro. Clara não seria hipócrita o suficiente para pedir a ela que ficasse. 

 

- Nos vemos amanhã. - a diretora apenas beijou superficialmente os lábios que balbuciaram alguma concordância.

 

 

 

***

***

 

Detestava despedidas. Elas haviam sumido de sua vida, por isso estranhava.

 

Como as coisas estavam meio inseguras na fazenda, Luciana aconselhada por Régia, ordenara que Lilly viesse para São Paulo, ao invés de Ruth retornar à fazenda. Andras, como persona non grata, não foi convidado. Porém, se quisesse vir, poderia pegar carona no jatinho que também seria o transporte de Régia.

 

Dessa forma a líder entendeu que deixaria em segurança as pessoas pelas quais aprendeu a zelar. O resto do povo, como disse antes, teria que aprender a seguir outro líder, de preferência, João de Deus.

 

A partir da fazenda, a líder tomaria seu rumo no mundo.

 

Não precisavam dela para a adoção da menina, pois conseguiram considera-la órfã e tudo tramitava sob esse ponto de vista, agora. Não opusera resistência: a doutora fez questão de frisar o quanto arriscava sua reputação, "maquiando" a situação de Anna.

 

Pouco menos de duas semanas se passara desde que deixara a fazenda. Tudo tivera uma reviravolta que nem mesmo ela, uma mulher acostumada a altos e baixos, poderia ignorar a importância.

 

Por todas essas reviravoltas, que se viu perdida em despedidas nada fáceis. Percebeu, de súbito, que tinha vínculos; alguns antigos, outros novos, mas todos fortes. De certa forma, isto aplacou em seu coração a dor que sentia ao deixar as mulheres que amava: Anna e, relutantemente, Clara.

 

Em efeito contrário, aumentava sua ira contra si mesma, contra o que era. Sentia uma crescente energia e uma vontade louca de solta-la. Não sabia o que iria fazer. Não estava ciente de sua força no momento. Não se julgava confiável para o convívio social.

 

- Dona Régia, tomi cuidado. Pense bem. Ande por esse mundão de Deus, mas saiba que tem um lugar reservado onde eu e minha famía tiver assentada. O que for faze, antes pensa na Anninha.

 

Ruth era uma excelente mulher, que se esquecera que era nova, bonita e viva. Uma especialista em natureza humana.  Sabia enxergar as pessoas. Sábia e sem julgamento. Uma mulher soberba. Por tudo isso, ganhara o apreço da líder. E aumentara a antipatia por Andras.

 

- D. Ruth, aproveite suas filhas e comece a viver. Como você disse, precisamos de amor. Eu não o mereço, mas você não pode ser esquecida injustamente por ele.

 

Becky falou algo sobre sempre ser grata a Régia pela vida de Luciana. E reforçou a oferta de acolhida a qualquer momento que a líder quisesse.

 

- Régia, Clara ama você. Apenas não tem coragem.

- Se ela precisa de coragem para me amar, então eu realmente tenho que me afastar.

 

Luciana surpreendeu, pois não foi seca como de costume. Mas, apenas abraçou a líder naquele tipo de abraço que só os fortes entendem num momento em que a derrota é eminente.

 

- Obrigada, doutora!

- Não considere isto uma derrota; mas um recuo estratégico. Somos vencedoras. Sempre!!!

 

A despedida com Paz fora antes, ainda no quarto onde acostumaram a dividir a cama fraternalmente.

 

- (Sabes que minha casa é sua. Sua filha é sua. Uma vida comum pode ser sua, mesmo se não me quiseres como quero a ti. Jamais deixarei que Anna esqueça de você.) - a médica estava embargada.

 

Régia sentiu novamente os lábios nos seus, úmidos pelas lágrimas. Aceitou o beijo, precisava deste calor. Não duvidava do amor de Paz; duvidava da resistência dele, a partir do momento que convivessem. Poderia treinar seus sentimentos para aceitar o que recebia dela. Seria viver em uma gaiola dourada, para quem sabe que no seu interior, não é isso que sente. Ou quer ser livre para sentir. E livre há muito que ela não era, mesmo sem estar presa a alguém.

 

- (Não deixe Anna saber o que fiz. Diga-lhe que morri. Tomara que uma de suas seqüelas seja ter esquecido de tudo até agora.) - parecia cruel, mas era o que a líder pensara no momento de mais oportuno para sua filha. - (Estimo demais você, Paz. Agradeço por te-la reencontrado. Desculpo-me por tudo em nosso passado. E por fugir novamente. Desculpa minha covardia. Estraguei minha imagem, não?) - tentou brincar.

- (É preciso muita coragem para fazer essa covardia. Isto não é covardia, é nobreza. Jesse, você é uma guerreira nobre. E é isso que me faz louca por ti.) - selaram mais um beijo.

 

Por último, não nessa ordem, a líder foi se despedir de Anna. Não foi fácil. Até porque, ao entrar no quarto, deparou-se com a menina nos braços de Clara.

 

- Chamei a enfermeira, ela se debateu um pouco. Onde está a Dra. Paz?

 

Régia processou tudo muito rapidamente: Clara com Anna nos braços foi a cena mais linda que já imaginara ver; ouvir que Anna dera sinais, abalou suas convicções de partida; e chamar a Dra. Paz ali, seria colocar o elemento destoante na cena, paradoxalmente.

 

- Ela está vindo. Antes de sairmos, disse que iria ver algo com a Luciana. Bipa a Luciana.

 

Régia tomou Anna dos braços de Clara e a recolocou na cama.

 

- Será que foi uma boa idéia eu a ter pego no colo? - Clara ficou preocupada.

 

Foram interrompidas pelo auxiliar de Paz, que examinando Anna, disse que era um indício, mas nada a se considerar. Explicou que algumas reações assim tinham sido detectadas. Continuariam com os horários estabelecidos para a medicação.

 

- Seu jato parte amanhã cedo. O motorista vai levá-la. Sabe qual será seu rumo a partir da fazenda?

- Clara, sei o que vai fazer pela fazenda. - a líder mudou de assunto - Será um belo projeto. Aquelas pessoas precisam dele.

- Não faço por aquelas pessoas, faço por você!

 

Tal afirmação pegou a líder totalmente de surpresa.

 

- Você não me deixou ficar com sua filha. Não tinha outra forma de recompensa-la, além de honrar sua palavra junto aquele povo.

- Recompensar-me de quê? Da minha estupidez?

- Não quero que você suma no mundo me considerando um mal em sua vida.

- Você não entende, ainda, não é mesmo?

 

Ela riu, acariciando o rostinho da menina, que novamente estava inerte.

 

- Clara, você é um mal necessário. O que sinto dentro de mim, essa inconformidade, é o que me impulsiona agora. Eu aprendi com você a reconhecer meu lugar, caso queira pensar em ter sossego. Ter paz. Meu lugar é na escuridão. Na penumbra. Nas tocaias.

- Não posso ser responsável por esse seu pensamento. Você está sendo cruel comigo, Régia. Se quer me punir, não poderia ter pensado em maneira pior do que essa.

 

A líder emudeceu. Não tinha a intenção de punir a secretária.

 

- Régia, por que você toma esse caminho. Não seria melhor tentar se acertar. Ter uma vida dentro da lei. Se é com a polícia, se entrega. Garanto os melhores advogados para ajudá-la. E, se for com a máfia ou seja lá o que, a polícia poderá te dar proteção.

 

Tinha pensado nisso várias vezes. Mas, não achava seguro. Sabia que a polícia não garantiria nada, caso a máfia a quisesse. E, pior, temia expor ao perigo as pessoas ao seu redor.

 

Pedira a ajuda à Bela Fatal e era a única com quem contava. E, dela, não ouvira mais nada. Enquanto não houvesse associação entre Penumbra, Jesse e Régia, ficar na sombra ainda era o melhor.

 

- Clara, não é simples. Agradeço sua preocupação.

 

A cama de Anna estava entre elas. Ambas fixaram o olhar na menina. Timidamente, os dedos da líder tentaram se aproximar da mão da secretária que acariciava a testa de Anna.

 

Ergueram a cabeça, ao perceberem os dedos entrelaçados. Seus olhos travaram uma guerra de sentimentos. Os verdes cinzentos foram ficando sem foco, embassados pela umidade. As lágrimas bailavam na superfície do olhar. Os azuis não estavam menos úmidos. Régia sentia a dor na tentativa de refrear a lágrima. Clara não conseguia deixar de olhar o rosto a sua frente. O saberia decor pelo resto da vida. Olhou-a com carinho, pois sabia que devia aquele olhar à líder, após olha-la com tanto repúdio. Voltou a olhar a mulher por quem se deixara envolver. A olhou como sempre soube ela merecia ser olhada. E, aos poucos, deixou que ela a olhasse. Deixou que aquele olhar intenso, azul, cristalino, a retesse em lembrança. Também deixou a mão acarinhar o contorno do rosto. E deixou-se usufruir do toque e calor.

 

- Então, não a verei mais. - seus dedos se acariciavam sobre a mãozinha de Anna.

- Sim: não nos veremos mais. - Régia mal conseguia dizer isto, sentindo o toque de Clara.

- Resta-me desejar-lhe boa sorte, Régia.  - a mão foi retirada e Clara se foi.

 

***

***

 

- Lilly, ainda estou preocupada com papai ter ficado lá. Apesar de tudo, temo por ele.

- Mana, o Daniel disse que João anda com papai pelos gargomilho e só engole pela Régia. Entretanto, ele tem zelado por papai, ainda que com vistas grossas. Mas, mana, eu quero ver tudo. Cadê a Clara?

- Está envolvida com o projeto da fazenda. Teve que ir à Brasília de novo. Volta amanhã.

- E D. Régia, você a viu? Se despediu? - D. Ruth quis saber.

- Sim. Ela apenas pegou o cavalo e foi embora para a cabana. Disse para o João ir procurar depois. Ganhei um beijo dela. Vixi. E o Daniel também. Ficou vermeio feito pimenta. Tonto.

- Como ela estava? - Becky perguntou.

- Caladona, como sempre. Muié linda! Lembra a sua médica, mana. Aliás, onde ela está?

- Vamos almoçar com ela no hospital.

- Fia, ce vai conhece a minina da Régia.

- O Daniel disse que ela é linda. Tem olhos azuis muito vivos e é uma sapequinha!

- Ele teve sorte em conhecer. Não sei se teremos. - Becky suspirou.

- Teremos sim, fia. A dotora gringa vai dar vorta com ela.

- E você e o Daniel, Lilly, me conta isso. - disse, rindo para mãe.

- Conta o quê? - a moça ficou vermelha. - Mana, que casa enorme!!!!!! - mudou de assunto, ao chegarem ao portão.

- Minha fia, ce num viu nada ainda. Vai demora uns dois dias pra ce vê tudo. E tem o hospitar! Lindo. E o Dr. Arthur, que homi fino...

 

As mulheres Staionoff gastaram o resto do tempo colocando a conversa em dia.

 

***

***

 

Foi muito rápido, por isso difícil de assimilar.

 

Luciana chegou do hospital mais cedo do que o esperado. Tinha combinado levar a família de Becky para jantar, junto com Clara e Marcella.

 

- Chegou muito cedo, amor. Tem alguma coisa em mente? - o sorriso maliciosa de Becky se desfez, pelo olhar sério e grave da doutora. - Luck, o que foi?

- Becky, melhor você sentar...aconteceu algo na fazenda...

- Papai...

- Régia... - por um momento, pareceu que a doutora choraria - ...tocaia...

- ...a polícia pegou ela? Ela matou alguém?

-...morta. Becky, Régia morreu!

 

A jovem levou a mão à boca, tentando conter a súbita pressão no peito. Sentou-se lentamente a beira da cama. Luciana, pouco habituada a confortar alguém, postou-se ao lado dela, afagando os cabelos loiros.

 

- Nã...não po...pode...Luck.  Ela não pode ...não morre...Não ela. - desandou a chorar copiosamente.

- João ligou. Ele foi encontrar com ela na cabana. Disse que estava um horror: havia sangue na parte não carbonizada da cabana, três corpos, estando um com uma bala na cabeça, outro completamente carbonizado e mutilado, sem cabeça e mãos; o outro parcialmente queimado, era de um dos cabras envolvidos na briga, antes dela deixar a fazenda. Enquanto estava lá, alguns tiros voaram sobre ele. Disse que a região da cabana parecia um campo de guerra.

- Não ...mas, quem garante que é Régia...ela é esperta...

- Os caras estão se vangloriando que mataram a muié macho.

- Luck, ontem ela saiu daqui....

- ...para morte. - a médica constatou.

 

Luciana esperou até Dra. Paz regressar e a história foi contada para o resto da família. Consternação geral.  Inconformidade também.

 

- (Dios mio. Não pode ser. Dra. Luciana, Jesse não se deixaria matar assim. Não pode ser. Onde fica essa fazenda, quero ir lá).

- (Dra. Paz, João é um capitão-do-mato, conhece essas coisas e disse que foi tocaia desleal. Pelo estrago, ele deduz que Régia resistiu bem, mas deveria ter muitos homens.) - Luciana usou de toda sua paciência, considerando o momento que passava a médica.

- (Esse homem é de confiança. Pode ser um deles. Eu quero ir lá. Manda a políci..)

- (Doutora, colocar a polícia agora poderia atrapalhar nossos planos com Anna. João era a única pessoa que Régia confiava. Ele limpou o lugar e não aconselha colocar a polícia no meio. Os federais estão por lá já, porque esse povo arruaceiro anda amedrontando outros acampamentos.Tem havido muito conflito naquela região por posse de terras. Régia é mais uma nessas estatísticas e melhor, pelo bem de Anna, permanecer assim.)

- (E é isso: uma mulher como ela terminar assim, nas mãos de um bando de mortos de fome, gananciosos? Sem qualquer justiça. Sem esclarecimentos...

- Dra. Paz, eu conheço a história dela; você também. Que justiça ela teve na vida, senão a que fez com as próprias mãos? Aqui você está resgatando a continuidade dela em Anna. Vá descansar. Rezar, lembrar dela. Prestar a homenagem que quiser.) - Luciana foi enfática, colocando fim ao teimosismo da médica.

 

A médica saiu da sala cambaleante. D.Ruth ameaçou ir atrás, mas Luciana pediu que ficasse, pois ainda restava algo a dizer.

 

- Ruth, Becky, tem mais que precisam saber: quem está dando trabalho é o Andras. João acha que ele estava junto na tocaia, pois é o que mais propaga e vangloria a morte da Régia. Ele espalha a estória de que a cabeça dela virou troféu e as mãos cinzeiros. Está andando com o rapaz que a Régia desfigurou. Parece que ela deixou o cara muito marcado. Seu pai está se sentindo vingado.

- Esse meu pai. Que fazer com ele, mãe?

- Entregar a Deus. Ou ao diabo. Ele tá pedindo, fia.

- Espero que Clara de um jeito logo.  - a jovem suspirou.

- Vixi, fia. D. Clara. Como ela vai reagir...

- Como vou reagir?

 

***

***

 

Clara passara pela cozinha, como de costume. Era mais perto para chegar até seu quarto.

 

Percebera a casa um tanto silenciosa, uma vez que havia se informado que todas estavam em casa.

 

Ela viera direto do aeroporto. A viagem fora muito produtiva. Em poucos dias, iria para a fazenda com a senadora, que queria conhecer o local. Conforme indicado por Luciana, também uma empresária de uma linha de cosméticos iria junto. A idéia principal era audaciosa, pois envolvia a venda das terras para o governo e a utilização do fundo arrecadado para empréstimos às famílias. Clara deixaria de ser a dona da fazenda, mas passaria a ser o "banco" por trás das famílias. Em contra-partida, os empresários arrendariam do governo as partes que lhes interesassem, utilizando a mão-de-obra assentada. Claro, havia algumas jogadas meio confusas, mas nada que comprometesse o projeto, caso ele desse certo. E daria.

 

A secretária, após deixar suas coisas no quarto, dirigiu-se até a biblioteca, aonde com certeza acharia Luciana.

 

No caminho, percebeu a Dra. Paz saindo um tanto quanto abalada, com os ombros chacoalhando, como quem estivesse chorando. Com a partida de Régia, seria natural a mulher estar assim. "Régia partindo corações", pensou isso sentido um aperto também.

 

Relembrou os olhos azuis pousados nela, por sobre a cama de Anna. Nunca imaginou que fosse tão forte a ponto de resistir ao amor que viu neles. Resistir ao fato de que não haveria ninguém a quem desejaria tanto quanto àquela mulher. 

 

E, no entanto, a deixou ir. A viagem desviou um pouco sua atenção. Proporcionou-lhe um álibi para não ir levar Régia ao campo de aviação. Deu-lhe tempo para não dizer o que deveria ser dito: não vá!

 

A porta da biblioteca estava entre-aberta, por isso pode ouvir D. Ruth fazer a pergunta. Elas estavam muito estranhas. BEcky sentada ao lado de Luciana, com os olhos vermelhos. Ruth também. A médica encontrou os olhos da secretária e deixou transparecer o olhar ensinado aos médicos para dar as notícias ruins aos parentes de seus pacientes.

 

Todas levantaram ao mesmo tempo.

- D. Clara, minha fia, algo aconteceu na fazenda...

- Régia...foi presa? - tinha certeza que era com ela, quem mais a interessava naquele cafundó dos judas.

- Foi morta, Clara. - Luciana foi direta, para desgosto de Becky.

- Luck!

 

Clara deu um passo para trás, como se tivesse sido atingida no peito. Olhou de uma para outra, depois para a porta da biblioteca, como quem procurasse uma rota de fuga.

 

Então avançou na direção da médica e a segurou pelo braço, com certa brutalidade. Luciana não se moveu, mas Rebecca ficou assustada e segurou a secretária.

 

- Quem disse isso? É mentira!!! - havia uma certa fúria no olhar da tão cordial secretária.

 

Com um puxar de braços, a médica se desvencilhou. Mas a secretária continuou a sua frente.

 

- D.Clara, foi o João quem contou. - Ruth falou.

- Mentiroso. - a secretária só pensava em negativas. - Cadê o corpo dela? Quero ver. Sem corpo, sem morte.

- A cabana foi parcialmente incendiada. Havia sangue. Carbonizada, aparentemente degolada e as mãos decepadas. - a doutora continuava a dizer, friamente, como que querendo punir Clara. - João enterrou o que sobrou.

 

Clara vomitou no tapete persa da doutora. Não conseguia imaginar a atrocidade ao corpo lindo, o rosto, as mãos. Não era ela. Não podia ser. Sentiu aquelas mãos, os olhos, o corpo quente. Olhou com tanta raiva para as pessoas a sua frente.

 

- Desenterra. Quero testes, autópsia, dna; sei lá. Dra., Régia não morre. Ela mata. Morrer não. Quero provas contundentes..- e, aos poucos, foi perdendo o controle...- Eu quero ela de volta....não acreditem que ela morreu...vamos acha-la...

 

D. Ruth, com cautela, tentou abraçar a secretária. Foi empurrada.

 

- Clara, precisamos acalmar o povo de lá. Meu pai....- Becky tentava colocar foco no assunto.

- Seu pai é um homem morto se estiver envolvido nisso. - a secretária quase cuspiu as palavras.

 

Luciana foi parada com um olhar de Becky, para não responder à Clara.

 

- Ok. Entendemos. Mas, o que vamos fazer? - Becky foi cautelosa.

- De hoje em diante, ele que cuide da vida dele. - Clara estava transtornada ao deixar a biblioteca.

 

 

Saiu sem saber para onde correr, atravessou o jardim e foi bater à porta do chalé.

 

Quando a dra. abriu, foi direta:

 

- (Tu acreditas que ela tenha morrido? )

-( Não. Não Jess...Régia. )

- (Obrigada.) - fez um aceno de cabeça e foi embora.

 

 

***

***

 

A cabana estava semi-destruída. Ainda era possível se abrigar, mas não oferecia segurança.

 

Estava uma manhã bonita. Pássaros cantavam.

 

João ainda estava limpando os vestígios. Tinha algumas coisas de Régia. Precisava recolher.

 

Pressentiu os passos, escondeu-se, colocando a faca entre os dentes.

 

Não pensou duas vezes e, em segundos, retinha alguém nos braços, com a faca rente ao pescoço. Levou um pisão no pé com o salto da bota e uma cotovelada, que o surpreendeu; dando tempo do invasor ganhar distância; tempo suficiente para o caboclo ficar ainda mais surpreso pelo que viu.

 

- Ocê!?!? Qui diabos..como...cê é doida, inferno!

 

Diante dele, Clara esfregava o pescoço, com uma expressão de raiva.

 

- O que você tá limpando tudo?

- Muié, cê só pode sê dismiolada, memo! A úrtima pessoa que pudia aparece aqui, é ocê. A zóio azul sua patroa num te segurou?

- João, cadê ela? Fala! - Clara agarrou o caboclo pelo colarinho.

 

Com um empurrão, ele a jogou no chão, onde havia um mancha vermelha. Ela se afastou.

 

- Muié, qui deu agora? Remorso por ter atormentado ela. Agora é tardi. Tá morta. Enterrada. Carvão!

 

Novamente, o estômago de Clara revirou e um líquido amargo saiu de sua boca, uma vez que estava sem comer desde o dia anterior.

 

Arrumara um vôo cego com um conhecido do comandante do jatinho da doutora. Tivera que se acalmar para lograr seu intuito. Com sua habitual praticidade, dentro de suas condições emocionais, chegara a fazenda na primeira hora do amanhecer. Não fora vista, pois pedira carona ao pessoal do armazém. Nada que dinheiro não comprasse. Uma vez na fazenda, a partir do ponto que lembrava, subiu a cavalo mesmo. Errou um pouco, mas chegou. Não percebeu a presença do caboclo até ser atacada e se defender por reflexo. Para alguma coisa deveria de valer suas aulas de defesa pessoal.

 

- Como pode ser, João?

- Dona, aqui tá feio. Argumas barracas foram incediadas. Tem famía querendo bandear para nosso lado, mas num to deixando. Meus cabras tão barrando, mas estamos no fogo entre os movimentos de sem-terra e os fazendeiros. E tem os macacos pretos dos federais.

- Mas....e ela....vingança?

- O mardito daquele pai da loirinha tem dito que o cabra que ela desfigurou foi o mandante. Ele ficou uns dias aqui, mor de recuperar e dispois um bando levou ele imbora.

- João, se aquele Andras estiver envolvido....quero que você o mande ter aquela tão adiada conversa com o demônio. - Clara falou com muita dureza, surpreendendo o caboclo.

- Dona, se ele continuá fofocando como tem feito, num vô precisa suja minhas mãos com aquele verme!

 

Clara fixou o olhar em um canto da habitação semi-destruída. João seguiu o olhar e viu uma peça de roupa. A secretária, engatinhando, foi até a peça.

 

- Era dela. - pegou e levou ao rosto.

- Dona, vorte pra cidade. Aquele bode veio sabe que ocê é a dona. Ce vai virar arvo, pode morrê. Num quero ter o esprito da Régia me atormentando por deixa ocê em perigo.

- João, essa fazenda é minha. Essas pessoas são responsabilidade minha agora. Régia morreu por elas. Se for preciso, também morro. Mas não antes de ver os cabras que fizeram isso com ela mortos e entregues a mim. Você vai arranja isso. Será bem pago. Deixe-me um pouco aqui. - fez sinal para o caboclo sair.

 

Ele deu três passsos e parou.

 

- Nunca vô entendê as muié. Qui deu no ce? Agora que ela morreu, fica aí, indignada. Cheia de dor. Poderia ter tido ela a hora qui quisessi. Esnobô. Atormentô. Feiz ela ficar cozinhando os miolo em pinga. E agora, fica aí com esse trapinho na mão. Cê tevi ela onde ninguém tevi. Ce viu nela o que ninguém acreditou ser possível existir. Régia amou você. Sentiu vergonha por não estar a sua altura, quando pra mim ela era muito mais qui ocê, sua patroa e toda a muierada junta. A dondoca pudia fica sonhando, mas num pudia enxergar o sangue. Dona, num sô seu amigo. Ainda sô lear a Régia. E só.

 

Clara ficou muda. O que dizer, se o caboclo estava certo. Levantou-se e encarou o homem.

 

- Por sua lealdade a ela, que imploro ajuda para vingar sua morte. - olhou para a camiseta em suas mãos - Seria tarde para dizer que vou enxergar o mundo sobre o mesmo ângulo que ela? Nunca perdi nada brutalmente. Ontem eu era ignorante sobre a perda e suas conseqüências. Hoje, perdi tudo, e ficou a sede de vingança.

 

O caboclo entendeu, mais do que Clara imaginara, o que se passava com ela.

 

- Vamos. Quero Andras ajoelhado aos meus pés. - atirou a camiseta longe e saiu da cabana.

 

***

***

 

 

- Dra. cadê a Clara?

- Não sei, Marcella. Achei que ela estivesse aqui na mansão. Você soube sobre a Régia?

- Falei com a Becky. Fim esperado para a arruaceira que ela era. Como Clara reagiu? Não nos falamos ainda. Becky apenas me avisou do cancelamento do jantar. Estranhei que Clara não o tivesse feito e estou tentando o celular dela. Também já tentei os ramais da mansão, até cair no seu.

- Estranho mesmo. Ela ficou abalada. Decidimos deixá-la sozinha. Todas ficamos chateadas. Becky está um caco. Tomou calmante para dormir. Ruth se recolheu junto com Lilly, que num pára de chorar, pois foi a última a ver Régia com vida.

- Vou até a casa dela. Quem sabe. Por favor, se ela aparecer, avise-me.

- Conhecendo Clara, logo ela vem querendo preparar um enterro e fazer as coisas dentro de um protocolo. Dê tempo para ela se recompor.

- Pode ser. MInha viagem para o Chile amanhã está confirmada?

- Por que não? Você quer guardar luto pela Régia? - a médica foi irônica.

 

***

***

 

- Conta tudo que você sabe, Sr. Andras?

- Sei o que todo mundo no boteco sabe: degolaram a muié macho baderneira.

 

Clara sentiu o sangue ferver. Não suportava olhar a cara do infeliz a sua frente, com aquele ar vitorioso.

 

- O João disse que você está espalhando isso. Contando como se estivesse presente. Não é, João?

 

O caboclo estava com a mão na coronha do revolver no cinturão. Apresentava a pior cara possível em uma pessoa. Acenou com a cabeça.

 

- Meus cabras diz que ocê fica fazendo brinde, pagando rodada de pinga e dizendo que a cabeça dela ficava mió fora do corpo. E que ela num teve nem tempo de gritar.

 

O homem engoliu em seco, quando Clara o pegou pela garganta.

 

- Andras, não tem mais proteção de Rebecca, Ruth ou Luciana. Agora, você está falando com a dona dessa fazenda, dessas terras, desse lugar onde você está fazendo inferno. Eu vou jogar você além das cercas. Junto com esse camarada que você está exaltando como herói por abater uma mulher sozinha. Pelo que eu sei, ela levou alguns com ela também. Quero saber toda a história. Ainda não me convenci de que ela está morta. Mas, se me convencer, que Deus o leve ao diabo, certo João? - e riu ferozmente.

 

***

***

 

 

 

- Luciana, Clara sumiu!!

- Marcella, como sumiu?

- Não está na casa. O carro está lá. Ela não. A casa estava organizada. Só o cofre aberto. Será que ela foi...

- Mas, e o carro. Se fosse assalto, levariam o carro. Estranho.

- Veja no hospital..

- Estou no hospital. Pensei que ela pudesse ter vindo ficar com Anna.

- Vamos esperar amanhecer.

- Não sei. Estou apreensiva.

- Marcella, às 4 h da manhã, nada podemos fazer. Não me parece assalto.

 

***

***

 

- Então, belo ato de coragem: uma tocaia, 4 homens contra ela, aparentemente bêbada. Ela acerta um com um tiro, mas é rendida pelos outros três, que a degolam e ateiam fogo na cabana. O imbecil que ateou fogo, morre no incêndio. O outro, foge, alardeando que a matou. E você viu tudo, certo?

- Ouvi, D. Clara. - o homem não aparentava tanta altivez mais - Ouvi no boteco. E decidi armentar a coisa, prá mór de parecer perigoso.  

- João, hoje eu quero esse homem confinado. Amarra num canto.

- Eu tenho dinheiro. Vô imbora. Num preciso ficá aqui...

- A polícia vai querer falar com você. Segundo o povo, você é um dos assassinos. E eu quero culpados. Use seu dinheiro para pagar advogados.

 

Clara jamais chamaria a polícia. E também, apesar de tudo, temia por Andras. Não poderia ser tão cruel com Rebecca. Régia tivera pena. Ela também teria. " Ai, Régia, será que finalmente estou entendendo você?"

 

Um dos homens de João levou o pai de Rebecca. Mais tarde, ele contaria que Andras tentou suborna-lo. Agora, dizia-se um homem de dinheiro.

 

- Tá todo mundo querendo arranca a pele dele. Régia era quirida, a líder. Tava todo mundo triste com a partida, imagina agora com tragédia.

- João, Régia temia pela segurança dele. Deixe-o fora da vista do povo.

- Ocê precisa ir embora, também.

- Onde você a enterrou? - Clara ignorou o aviso.

- Dona, tem gente de oio em ocê. Num dá facilidade.

- Quero ir lá, depois vou embora. Daniel pode me levar?

- Onde, João?

 

Após um tempo de hesitação, ele disse que foi perto da cachoeira, onde Régia gostava de ir.

 

***

***

 

Estavam na sala, quando BEcky entrou agitada.

 

- Daniel ligou. Clara está na fazenda. Está um demônio. Interrogou papai. Mandou prender ele. - Becky falou.

- O QUÊ??? - Luciana levantou abruptamente da cadeira. - Ela enlouqueceu!! Essa não é a Clara. Liga para Marcella. - a doutora esqueceu que dava ordens para Rebecca, uma vez que num tinha a secretária para mandar.

 

A Dra. Paz estava entendendo algumas coisas em português e demonstrou aprovação ao ato da secretária. Mais do que nunca, teve a certeza que Clara era o motivo da partida de Régia. Precisava ter uma conversa com Clara, quando ela retornasse.

 

- Mas, como ela chegou lá tão rápido? - D. Ruth indagou.

- Ruth, Clara é uma mulher muito bem relacionada e hábil. Se alguém pode conseguir algo, esse alguém é a Clara. Por isso é minha secretária. - um certo orgulho transpareceu na voz da médica.

- O que deu nela, mãe?

- Fia, seja o qui fô, pena que foi tarde demais!!! - a jovem senhora ficou pensativa.

 

Ao meio da tarde, Luciana recebeu uma ligação de Clara. Disse que estava retornando para São Paulo pela manhã e conversariam. Não deu margem para o mau humor da médica, alegando que o sinal estava fraco e não conseguia ouvir.

 

***

***

 

Daniel, com mais dois homens de confiança de João, acompanharam Clara.

 

- Num consigo credita, D. Clara. Ela é a muié mais brava, valenti, corajosa, isperta. Num pudia morre. Tão linda! - o rapaz fazia força para não chorar.

- Você gostava muito dela, Daniel? - nunca conversara com o rapaz.

- Ela era muito séria. Caladona. Olhava com aqueles zóios para genti. Eu gostava de vê ela na lida. Saía com a genti pra trabaiá. Sarvô muito caboclo de picada de cobra. Sabia de tudo um tanto. Fazia parto das muié. Cuidava da criançada. Caçava mór de ter comida prá nóis, quando saímo da outra fazenda.  Atirava com uma puntaria de dá inveja. Eu vivia na cola dela, queria ser iguar a ela. E...bem...era  única muié que eu achei linda. - dizendo isso, ficou rubro.

- Então, ela era boa para vocês?

- Ela era nossa protetora. Lutô com muito valentão que quis tirá a gente daqui. O demônio baixava e ela não tinha medo. Meu pai di veis in quando, amansava. Certa veiz, ela acertou ele em cheio. Ficou desacordado. E ela cheia de culpa. - ele riu do mal feito - Só com Anninha que ela parecia ser outra: brincava, ria, colocava ela montada nos ombros e saía por aí. Foram as pocas veiz que vi ela sorri. E ai, ficava mais linda. E, agora, sem cabeça...

- Num pensa nisso, Daniel! - Clara sentia-se mal ao imaginar.

 

Passaram pela cabana, e Clara tomou nota mentalmente para mandar reconstruir a edificação. Não queria que aquilo ficasse como mórbida lembrança do que ocorrera.

 

A beira do rio que levava até a queda d´água, estava uma cruz tosca.

 

- Daniel, pode me deixar sozinha?

- Cê vai fica bem? Num queru sê assombrado por ela, se acontece argo com ocê..

- Daniel, a última coisa que imagino Régia fazendo é assombrando. Ainda mais você, que é um doce de rapaz. - a secretária foi sincera.

 

Ele ficou vermelho. Sorriu timidamente.

 

- D. Clara, sei qui fiz coisa errada ispiando ela, mas eu vinha ver ela tomar banho....

- E...- a secretária queria rir.

- A Becky mi deu um tar de binóclo, eu disse que quiria ispiar passarim, mas sem quere, vi a Régia...- Clara achou que ele desmaiaria pelo sangue que lhe afluía ao rosto. - Bem...num intendo muito, mas as vezes...bem....ela chorava. Num sei se doía o que ela fazia.

- Fazia?

- Bem..num tinha muita vista, mas ela parecia se cutucar nas partes...bem...nas partes baixas, depois estremecia toda..e...acho que doía, pruque ela chorava depois.

- Daniel, que coisa feia espiar uma pessoa assim, num momento privado. Tá contando, porque tá com medo dela te puxar o pé, é? - a secretária entendera tudo que fora dito, mas queria parecer que ralhava com ele.

- Não, D. Clara, num tenho medo dela, a sinhora mesma acabou de me sossega. To contando, pruque muitas vezes, ela gritou seu nome. E chorava. Entonces, quero que a sinhora tumbém fique trunquila, pruque ela num vai deixa nada ti acontecê.

 

Clara sentiu uma dor enorme. Abraçou Daniel.

 

- Obrigada, querido. Agora, me deixa aqui um pouco. Fico bem. - disse, empurrando o rapaz, para que ele não visse as lágrimas que levaram ao choro copioso.

 

Não acreditava na morte dela. Não podia se deixar levar por isso. Era impossível. Pensou que se preparou para a partida dela, sempre achando que ela voltaria de alguma forma. E por que queria a volta dela? Com bem disse o João, a única coisa que soube fazer foi atormentar a mulher.

 

As ultimas vezes juntas não restaram palavras bonitas. O passo necessário não foi dado. Mas, houve a vontade de restabelecer a cordialidade. Percebeu que não seria o suficiente para a mulher que a amava.

 

Se soubesse que seriam tão finais as suas palavras, não teria hesitado em dar-lhe a certeza do amor, mesmo que aliada à negativa de uma vida juntas.

 

Percebeu o quanto estava com ódio. Quebrara um ciclo de não-violência. Queria, como objetivo e foco para aliviar sua perda, a punição dos canalhas. Não sabia usar armas; tinha algum dinheiro e, se isso desse poder, era assim que ia agir para vinga-la.

 

Olhou ao redor: as árvores, o rio, a cachoeira. Viu Régia em seu esplendor, deitada na pedra sob a queda d´água. Então, aqui fizeram amor. Régia fez amor com ela, em seu delírio. Em sua dor de não poder ter. Como queria estar entre aqueles braços, saboreando as gotas da água no corpo moreno, delgado, de pele acetinada. Em sua urbana banheira, quantas será que foram as vezes em que se amaram ao mesmo tempo, ainda que distantes. Seria a intensidade dos orgasmos em momentos de fantasia com ela uma recepção das ondas de energia daquela mulher magnética? Queria tanto que ela surgisse por entre a mata, feroz, ágil, buscando justiça. Arrebatando-a pelo caminho, em beijos, abraços, mãos invadindo por entre seus meios; passando por ela, deixando-a exausta e exaurida, para seguir defendendo seu povo, sua filha, seu orgulho.

 

- Você não pode ter morrido. Não você Régia. Volta para mim, meu único amor. - disse isto, como uma prece.

 

Deitou-se na relva. Lembrou-se do passeio ao templo, quando dormiu com a cabeça no colo da lider. Foi um momento feliz que tiveram.

 

- D. Clara, vamu. Vai iscurecê. Num quero ficá mais. - Daniel estava cauteloso.

 

Desorientada, a secretária levantou-se e foram embora.

 

 

***

***

 

Na pista de pouso, foram cercados pelos caboclos.

 

Clara estava apenas com João, Daniel e mais dois homens do capitão.

 

Os outros era um bando de uns 10 homens.

 

Dentre eles, um cara com o rosto totalmente desfigurado, ainda ostentando um trapo para segurar o queixo  e outro cobrindo um dos olhos, parou diante de Clara. Uma das mãos enfaixada, pendendo em um ângulo meio esquisito para frente.

 

Os demais foram rendidos.

 

- Entonces, ocê é a nova dona da fazenda qui o bostão falou. - disse, soltando o mau hálito sobre o rosto da secretária.

 

Clara ficou calada, olhando para ele.

 

- Ce era muié da machona? Viuvinha agora? - começou a rir, seguido pelos outros

- Qui ce quê homi? Aqui só tem famia. A genti num quê briga. - João tentou falar, mas levou um soco no estômago.

- O qui eu queru eu já tivi. Mais, se essa coisinha cheirosa continuá aqui, achu qui quero mais. - disse, mexendo nos cabelos de Clara, que se afastou por instinto.

- Tire as mãos de mim. Você pode espalhar que ela morreu, mas eu duvido. E, se foi verdade, você é um covarde que precisou mandar outros fazerem o que ela fez na sua cara apenas com as mãos dela.  Saia das minhas terras. Eu vou voltar e quero pegar todos os culpados. Você está mais do que se entregando. Penas, pois isto está ficando fácil demais, porque eu quero caçar você; quero ter motivo para arrancar sua carcaça com todo requinte de crueldade e dor. Sua cabeça vai ficar na porteira dessa fazenda, como meu troféu, em homenagem a ela! - Clara estava controlada, firme.

 

A gargalhada dele foi estridente.

 

- Topetuda. O bostão lá falo que ocês são metida memo. Gostei. Bem...cê tá de partida, num vamu podê nos conhecer mió. Você vai gosta do que posso de dá. - disse isso, mexendo nas calças.

 

Clara sabia que estampava seu nojo, quando ele tirou a mão do bolso e jogou um saquinho.

 

- Presentinho pro cê! - jogou em cima dela, e saiu galopando, com o bando atrás.

 

O grito de Clara foi horripilante. João, recém liberto dos capangas, correu para o lado dela. No chão, rolando feito dados, duas órbitas azuis pararam olhando para eles. Clara desmaiou.

 

***

* Vários cantores fizeram versão do clássico Someone To Watch Over Me, inclusive Amy Winehouse.

Fim do capítulo


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