Pentimentos por Cidajack
Capítulo 20
disclaimer no capítulo UM
Estavam no escritório reunidas. Desta feita, apenas a doutora, Becky, Clara e Régia, via viva-voz, assim como um consultor em agronegócio.
Finalmente, o laudo sobre a fazenda ficara pronto. Era assinado por 3 engenheiros: civil, agrônomo e agrimensor.
Um trabalho de 16 páginas, incluindo a planta topográfica e cerca de uma centena de fotos, além da planta da casa.
Após as explanações do técnico, estavam todas surpresas. Rebecca simplesmente estava perdida.
- Bem, Srta. Rebecca, acredito estamos diante de um elefante branco. - o consultor concluiu.
- Não sei o que dizer. Nunca tive a menor noção da extensão daquilo. Papai e titio cultivavam uns hectares, era certo. O que plantávamos e criávamos era para sustento e comércio local. Sempre ouvi papai comentar que meu avô comprou muitas terras para poucos filhos e que nunca tiveram condições de cuidar. É tudo que sei. Realmente, só brincava nos arredores, sempre achei que muito adentro das terras era de outra pessoa. Aliás, eu achava que tínhamos um sítio.
- Pois é Becky, pelo que o doutor diz, seu pai é dono de uma porção de terra considerável. Pelos registros, após seu tio passar a outra parte para seu pai, ainda foram acrescidas mais duas partes que aumentaram ainda mais a quantidade de terras. - Clara comentou.
- Só não entendo como seu pai comprou terras ao invés de investir nas que já possuía. - a médica comentou.
Rebecca, na hora, entendeu, mas deixou passar.
- Mas, o doutor disse "elefante branco". Explique, por favor. - Rebecca queria mais informações.
- A extensão de terra é considerada latifúndio por exploração; ou seja, uma enorme quantidade de terras não produtivas. Como a srta. lê no laudo, são cerca de 1500 alqueires.
Régia assobiou no viva-voz.
- É terra para caramba! - a líder exclamou.
- Sim. Acontece que sabemos agora que ela não é produtiva por falta de investimento, já que possui excelente solo, planície para pastagem, em grande parte é recoberta por vegetação espontânea, recurso hidrográfico com algumas nascentes. Enfim, tudo está no laudo.
- É verdade. Em minhas explorações, verifiquei a presença de plantas medicinais, árvores de madeiras nobres, plantas ornamentais e outras. - Régia comentou.
- Verdade. - o engenheiro concordou - E é por isso que chamo de elefante branco, pois sem investimento, do jeito que está serviria apenas para o governo fazer assentamento. Nossa avaliação financeira só pôde tomar como base os recursos naturais, já que não tem benfeitoria alguma na propriedade. É certo que a casa principal foi reformada e existe a relativa facilidade em puxar a rede elétrica até boa parte da fazenda; entretanto, temos mais três construções precárias espalhadas em cantos distantes, um curral totalmente sem estrutura e a parte de esgoto em condições terríveis. Desta forma, como as senhoras observam, a avaliação feita para preço de mercado que minha empresa fez é cerca de 70 % inferior ao que seria se fosse uma fazenda utilizada.
- O que o doutor está dizendo é: se Rebecca ficar com ela, tem que investir; se vender, terá prejuízo em relação à perspectiva futura de uma revitalização. É isso? - Luciana resumiu.
- Exatamente. Se pensarmos, o que ela tem ali poderia até ser considerado uma reserva florestal; desta forma, até o aproveitamento do turismo ecológico poderia entrar em suas opções de exploração do local.
- Rebecca poderia aceitar aqueles Títulos da Dívida Agrária. Até onde sei, eles são moeda forte e altamente negociáveis em bolsas de valores. - Clara opinou.
- É uma hipótese. - o consultor concordou.
- Vocês poderiam nos explicar melhor. - a doutora quis saber.
- Bem, a Srta. Clara fala da possibilidade do governo se interessar pela terra para realização de reforma agrária. Na hipótese de que isto ocorra, são feitas novas avaliações e vistorias, objetivando separar o valor das terras e as benfeitorias. Uma vez avaliados, as terras são pagas com os títulos e as benfeitorias em dinheiro.
- Os títulos são resgatáveis em prazo de até 20 anos; porém, são nominais e negociáveis. - Clara completou.
- Se entendi corretamente, o valor pago pelas terras é o que realmente é avaliado? - Luciana perguntou
- Sim. - ambos responderam
- Mas, isto me parece um negócio da China. Até meio fraudulento, uma vez que no mercado estas terras estariam, como o doutor disse, 70 % desvalorizadas. - Régia concluiu.
- Sim. Na verdade, essa prática deveria ser até punitiva, para proprietários que acumulassem grandes latifúndios improdutivos; porém, com o passar do tempo, devido à impossibilidade de se separar quem realmente era improdutivo por ganância de quem o era por real falta de recursos para investir nas terras, caso dos pais da Srta. Rebecca; tal prática tem servido aos dois propósitos: tanto aos benéficos, quanto aos oportunistas.
- Bem, digamos que consigamos esta "negociação", o que o doutor pensa? - a médica argüiu.
- Pelo que apuramos de benfeitorias, receberiam muito pouco. Na verdade, ficariam com os TDA´s, que ao meu ver, pelo correspondente a quantidade de módulos rurais, poderão ser resgatados em uns 10 anos. Lógico que eles são reajustados anualmente.
- Pela avaliação de vocês, por alqueire, resultaria em um valor aproximado de 5 milhões de reais. - Luciana correu os olhos pelo laudo.
- Quanto?!? - Rebecca assustou.
- É pouco. E ainda há a desvalorização de 70 %. Muito pouco. - Clara falou, com o cenho franzido.
- Pouco!? - Rebecca perguntou de novo.
- Sendo realista, não é pouco. - Régia afirmou - Apesar do solo ser rico, ele está castigado. Tem recursos, mas ainda em estado natural. O que se tem aqui são possibilidades. Conheço bem as estruturas. A avaliação me parece acurada.
- Não é pouco! É muito mais do que eu já pensei na vida. Meu pai nunca imaginaria isto. Nossa!! - Rebecca bebeu um gole de água.
- Mas, uma simples pergunta: se houver a desapropriação, como ficam as quase 500 pessoas que nos comprometemos em manter nas terras. Incluo-me no compromisso, porque empenhei minha palavra e autoridade nisto. Aquelas pessoas confiam em mim. Não irei desaponta-las!.
- Calma, Régia. - Luciana falou, num tom quase ameaçador.
- Estou calma, doutora. Se não estivesse, você já teria percebido. - a líder retrucou, criando certa tensão.
- É verdade. Régia tem razão. O que acontece com eles? - Rebecca estava preocupada.
- Não sei ao certo, mas ainda dentro da hipótese da desapropriação com fins de reforma agrária, eles seriam assentados. Claro que, um estudo seria feito para saber quem são, se não estão ali também apenas como usurpadores...- o consultor ponderou.
- Régia, já fez o levantamento de todas as pessoas? - Luciana perguntou.
- Sim. Está tudo no email que passei.
- Mas...o doutor acha que o governo vai ajuda-los? Digo, eles não têm recursos e nem verba. Estão sem casa, sem comida, sem instrumentos, sem tudo. - a loirinha enfatizou.
- Sinceramente, existem créditos rurais e coisas assim; porém, também são feitas algumas exigências que não sei se essas pessoas poderão cumprir. Em alguns casos, assentar nem sempre é suprir necessidades. Mas, isto é entre o governo e os movimentos desses sem-terras.
- Não somos pertencentes a movimento algum. Estamos longe disto. Recentemente, fiz acordo com alguns invasores, mas meu povo não está em movimento algum. - Régia falou, em tom irritado.
- OK. Não vamos resolver nada aqui, mesmo. Temos informações preciosas, mas não temos o principal: os donos da terra. Rebecca tem irmã, além dos pais. Não pode decidir nada enquanto não os encontrarmos. O que me leva a você, Clara. Mas, discutimos isto depois. Doutor, muitíssimo obrigada por sua ajuda.
- Não há de que! Nosso escritório está ao seu inteiro dispor.
- Com certeza!
Com isto, a médica encerrou a reunião. Clara acompanhou o consultor, com quem ainda trocou algumas palavras.
- Régia, fique tranqüila: não vou faltar com vocês. - Rebecca empenhou a palavra.
- Por enquanto, como disse, estou tranqüila.
- Vou ler seu email e depois nos falamos, Régia. - a médica desligou o telefone.
- Ela nos ameaçou? - foi a pergunta para BEcky, que veio sentar em seu colo.
- Não. Mas, vai lutar se for preciso. - a loirinha constatou.
Ficaram em silêncio, até que o interfone as assustou.
- Doutora, o Sr. Waldemar está aqui.
- Waldemar? Aqui? Temos alguma reunião hoje? - a médica perguntou para Rebecca, que negou com a cabeça. - Ele não marcou hora. Não atendo.
O interfone novamente.
- Ele diz que são apenas 15 minutos de vital importância para a doutora. - a secretária falou, meio apreensiva.
- Ok. Mas, avise-o que são 15 minutos, que você vai cronometrar. Nem mais e nem menos. Entendeu? Dê-me alguns minutos e já o chamo. - disse para compreensão inequívoca da secretária.
Luciana não queria que Rebecca fosse vista em sua sala. Ainda não era hora de anunciar a proximidade entre ambas, embora ali naquele andar todos soubessem.
- O que ele quer aqui? Geralmente você não recebe pessoas aqui, na sua sala.
- Muito menos ele, já que temos uma sede destinada para as atividades do processo de qualidade. Bem, de qualquer forma, saia pela porta adjunta que a levará até a sala da Marcella e, dela, você decide o que fazer.
- Vou ter que ir. Tenho reunião com a Clara e o pessoal do escritório de investigações.
Beijaram-se ardentemente. Luciana já estava perdendo o controle, avançado a mão por sob a saia da loirinha.
- Uma rapidinha? - sussurrou ao ouvido, sentindo a umidade em seu dedo.
Sentiu que BEcky não ia resistir.
- Minha sala não é monitorada. - disse.
Para seu espanto, esta simples frase, brochou completamente a loirinha. Em um salto, colocou-se em pé, ajeitando a roupa.
- Quê..o que foi?
- Nada feito. Estou muito traumatizada ainda. Você leu a nota da Marcella. Deus! Ser diversão de segurança não é minha praia favorita.
- Mas...
- Nada de "mas": aqui, nunca mais. - e deu um beijo, mantendo distância. - Fui!
E foi assim que uma doutora muito frustrada recebeu a pessoa que ela mais queria ver no mundo, naquele momento.
- Doutora, como vai?
- 14 minutos e 55 segundos.
- Bem, eu investiguei sobre a empresa da tal Rebecca. E não existe nenhuma SAPA Lake Consultores. Assim gostaria de avisar a doutora que alguém prestou-lhe informações erradas. E acho que ter uma pessoa de identidade falsa entre nós é uma ameaça.
Luciana sentiu o sangue ferver. Mas, por um átimo de segundo, recuperou a frieza habitual.
- Por que você acha que ela nos ameaça?
- Uma pessoa sem referência, dando palpites em assuntos de relevância é uma ameaça a qualquer corporação. Não sei como conseguiram passar por sua habitual astúcia, mas até mesmo pessoas como a doutora, de tão atarefadas, são alvo de muitos larápios.
- Quando é nossa próxima reunião?
- Dentro de quinze dias.
- Então, prepare um material para todos da reunião. Vamos esclarecer isto de uma vez. E, sigilo total. Dois minutos. Mais alguma coisa?
- Quero que saiba que sempre estarei zelando pelo bem-estar e segurança de seu patrimônio.
Neste momento, uma leve batida na porta e a secretária entrou.
- Sr. Waldemar, seu tempo acabou. - ela disse.
Ele esperou por uma reação a seu favor, por parte de Luciana. A médica estava com a cabeça baixa, lendo o resto do laudo da fazenda e não deu a mínima para o que acontecia. Relutantemente, ele se retirou.
**
A cada dez dias, Régia vinha para São Paulo ver Anna.
A seu pedido, não estava mais ficando na mansão, pois alegou que era muito longe do hospital, embora Luciana contra-argumentou que tinham todo tipo de transporte disponível. Mas, a líder insistiu e a médica cedeu, alertada por Becky que tal comportamento deveria ser pelo ocorrido no haras.
Para Régia, o desconforto que era ficar próximo à secretária estava ultrapassando o limite aceitável e, qualquer distanciamento, seria benéfico se mantido.
Entretanto, a líder estava com outros planos que pretendia colocar em prática. Há muito tempo, desde que teve acesso à Internet, vinha rastreando os passos de uma importante figura que poderia ser peça fundamental para que pudesse reabilitar seu nome.
Na verdade, seu real nome nunca fora conhecido em seus atos do passado. Somente algumas pessoas da polícia federal sabiam ligar a contrabandistas e braço direito de nomes chaves da máfia à bióloga Régia Sophia Blixen.
Forçando seu raciocínio, nada a ligava ao passado. Sabia que as principais pessoas que poderiam causar-lhe algum dano, tinham sido mortas. Algumas por ela própria.
Porém, pelos federais ela seria facilmente rastreada e não queria correr o risco de colocar em perigo as pessoas com as quais agora convivia.
Luciana quando soube de toda a história, desculpou-se por não poder ajudar, por não poder colocar em jogo a reputação de suas organizações. Disse que não era apenas por ela, mas pelos outros conselheiros. Deixou muitíssimo claro que respeitava a líder, apoiaria no que fosse preciso, cuidaria sempre das necessidades dela as de sua filha (até em consideração à Rebecca, que se afeiçoara a Anna), mas em hipótese alguma poderia acionar seus contatos para a finalidade de limpar o nome da líder.
Assim, foi com verdadeira admiração pelo que o destino estava armando para ela, que Régia leu a notícia. Na verdade fora alertada com a notícia da prisão, que achou totalmente vacilo. Depois teve a fuga. E, agora, o tal julgamento que movimentava as páginas policiais.
Após se identificar na guarita e ser rigorosamente revistada, foi conduzida para a piscina, lugar onde se viu frente-a-frente com ela.
- Como vai? Pensei que não se lembraria de mim. - a líder disse, sem rodeios.
- Bela Fatal jamais esquece um rosto. Para o bem, ou para o mal! - disse com um sorriso de viés e os olhos azuis límpidos encarando outro par idêntico. - E você, Penumbra, salvou a minha vida. Tenho uma dívida com você e terei prazer em saldá-la.
Devido a semelhança física, Régia desmantelou um atentado contra Bela Fatal, no dia em que esta encontrou-se com a chefe da máfia a qual a líder pertencia. Apesar de sair levemente ferida, a líder deu tempo para a grande mafiosa espanhola agrupar sua gang e exterminar seus agressores.
- Pegue este cartão. O telefone é de um contato meu que me deve favores. Ele cuidará do seu caso definitivamente. Caso algo saia errado, coisa que eu duvido, caso ele tenha amor aos seus cojones, volte a me contatar. - e deu outro cartão - Essa Mariah sabe onde me achar.
Estavam nesta finalização de conversa, quando uma loirinha de olhos verdes chegou junto dela.
Sem qualquer constrangimento, Bela puxou a moça para um beijo ardente, enquanto passava a mão ostensivamente pela bunda da jovem. "O que será que nós temos com loiras baixinhas de olhos verdes?", a líder pensou.
- Penumbra, esta é minha rubita.
- Prazer, Srta. Roma. - Régia falou.
- Você me conhece? - a loirinha falou, envergonhada.
- Com o devido respeito, o Brasil inteiro conhece você. Esse caso do erro em seu julgamento se propagou.
- Minha rubita foi presa injustamente por causa daquele bandidinho de quinta categoria. Sorte dele minha rubita me lembrar que, se não fosse por ele, não nos teríamos conhecido; caso contrário, ele ia preferir morrer a ter minhas mãos sobre sua carcaça. - e deu outro beijo na loirinha, que não parecia muito à vontade com minha presença.
- Bela Fatal, Srta. Roma, não vou mais tomar o precioso tempo de vocês.
- Imagina. Já sabe: qualquer coisa, fala com a Mariah.
- Pode deixar. Mais uma vez, obrigada. - a líder disse.
- Você sabe o caminho da saída? - Roma perguntou.
- Pode deixar. - saiu andando.
- Penumbra...- Bela Fatal a chamou
- Sim, Bela Fatal.
- Você soube que ela morreu? - disse, com certa simpatia no olhar.
- Não sabia. - a líder respondeu, sentindo um aperto no coração, mas permanecendo em seu habitual estoicismo.
- Lastimo sua perda.
Roma olhava para ambas, sem entender, mas sensível como era, entendeu que se tratava de alguém especial. "E quando mafiosas amam..é sério!"
- Eu também. - a loirinha disse, demonstrando legítima simpatia.
Régia fez um aceno de aceitação com a cabeça e se retirou. Ainda pode ouvir Bela Fatal sugerindo para Roma uma utilização bem particular para a piscina.
**
Novamente estavam reunidos para mais uma das sessões mensais do comitê do processo de qualidade. A única mudança era a disposição dos lugares à mesa de reunião: Rebecca estava ao lado da doutora Luciana e, Waldemar do lado oposto, frontal a jovem.
Após todas as pautas discorridas, Luciana cedeu espaço para o Waldemar.
- O Waldemar, demonstrando seu zelo por nossa organização, tem um documento a passar para os senhores e senhoras. É um trabalho meticuloso. Diria espantoso. Eu mesma, sinto-me compelida a tecer alguns comentários, após sua revelação.
- Obrigada, doutora. Gostaria que todos lessem com atenção. Neste relato, um exemplo concreto do abuso da confiança de alguém que, mesmo sendo astuto e minucioso em seus negócios, pode sofrer quando mal assessorado.
Todos liam e erguiam seus olhos diretamente para Rebecca, que estava começando a enrubescer.
- Não sei qual o intuito e nem quero saber. Apenas digo que não permitirei que uma farsa tenha prosseguimento no seio desta consagrada empresa. Srta.Rebecca, como pôde ler, investiguei pessoalmente a sua consultoria, SAPA Lake Consultores e ela não existe, não aparece em nenhuma junta comercial, nenhuma menção em sites, participações ou qualquer trabalho. A srta, não sei com quais argumentos, infiltrou-se entre nós, aproveitando da conturbada vida da empresária Dra.Luciana e...
- Waldemar, eu ia deixar você continuar, mas esse discurso está cansativo. O importante é que sabemos que a Srta. Rebecca forjou sua identificação e não é o que vem dizendo ser.
- Luciana, como você pode..- Prof. Victor queria intervir.
- Victor, estou falando. Serei breve, depois você fala. - e olhou para Rebecca. - O professor está nervoso, porque ele sabe quem é Rebecca.
- Dra. Luciana, por favor...- a loirinha queria cortar o assunto logo.
- Senhores e senhoras presentes, não sei se agradeço ao Waldemar pelo zelo, ou me ofendo pela forma como ele pensa eu conduzo meus negócios e teço meus relacionamentos.
- Mas, doutora, eu não penso...- o homem começou a gaguejar.
- Sim, que você não pensa, acaba de provar; pois, se o fizesse, jamais gastaria seu tempo investigando empresas que EU contrato. O que EU faço ou deixo de fazer, é problema meu. Louvo a sua coragem. Entendo seu medo que alguém pudesse se destacar em funções que você, sinceramente, já está obsoleto.
- Mas...doutora...ela é uma farsa, eu provei..- ele olhava para todos e para os papéis.
- Waldemar.....você é indicação do Prof. Victor, mas antes de ser aceito, eu investiguei sua empresa, eu vi a relação de seus trabalhos, eu falei com meia dúzia de pessoas que utilizaram seus serviços; e, quando digo eu, estou querendo dizer uma equipe de pessoas que me cercam que, se me fornecessem uma vírgula errada em um relatório, seriam sumariamente demitidas; pessoas que sabem que vou dizer EU, portanto não podem me expor ao ridículo de acreditar ou passar informações errôneas.
- Doutora, não quis ofende-la. - ele estava lívido agora
- Waldemar, você simplesmente redigiu um atestado de incompetência para mim; como se eu fosse uma pessoa senil, sem controle de minhas funções. Foi zeloso com as empresas, mas não foi comigo. E EU sou minha empresa!
Todos procuravam pontos distantes nas telas de seus notes.
- Atenção! Quero que escutem.
Imediatamente, toda as tampas dos notes foram fechadas.
- Rebecca é realmente uma farsa. Melhor dizendo, a forma como se apresentou é uma farsa que eu orquestrei, a seu pedido.
- Como?!?! A doutora sabia quem era ela o tempo todo?
- Não só eu como meus sócios, também conselheiros. Ela não está aqui infiltrada, nem tentando espionar ou sei lá o quê que sua cabeça deturpada tenha pensado, Waldemar. Rebecca é minha noiva. - disse, olhando para todos.
As exclamações tomaram a sala.
- Eu ia fazer o anuncio mais próximo às festas, mas o zeloso Waldemar me obrigou a antecipar o comunicado.
Rebecca olhava para o homem a sua frente e tinha pena.
- Ela está me ajudando com alguns aspectos que não posso mais cuidar, agora que assumi outras funções, de acordo com a reforma organizacional. Como sabem, estamos com projetos importantíssimos e muitos envolvem questões sociais e um assunto novo que vem tomando corpo que é a responsabilidade social das empresas. E, sinceramente, eu não tenho tempo para vistoriar creches, asilos e todo esse aspecto beneficente. Com meu marido, eu fazia essa parte. Agora, nada mais justo que minha parceira realize essas tarefas. Enquanto ela quiser, claro.
- Eu pedi que a Dra. Luciana ocultasse o fato, pois não queria que minhas observações e palpites fossem aceitos por receio de discordarem de mim e, indiretamente, desagrada-la. Claro que estamos falando da nossa vida profissional e sei que tanto ela, quanto eu, não misturamos as coisas. Sou totalmente inexperiente, ainda que tenha toda a assessoria que preciso; não posso querer interferir em coisas que vocês, gerentes, conhecem há mais tempo do que eu. Porém, apesar de saber nossos papéis dentro e fora de casa, sei que o aval do nosso relacionamento jogaria certo véu sobre minha real competência. Por isso, ela fez o que fez.
- E jamais pensei que alguém se interessaria ou, por outra, fosse audacioso o suficiente a ponto de verificar a minha estória. Waldemar, como disse, não sei se o parabenizo ou considero-me insultada.
- Doutora...Rebecca....eu ..eu...
- Luciana, por que esse circo todo? - Prof. Victor levantou a voz.
- Porque eu quero que todos, inclusive vocês, caros sócios, saibam que não admito intromissões na forma como conduzo minha empresa. Não admito que por zelo, por puxa-saquismo, por bajulação, por qualquer coisa mais altruísta, alguém investigue o que eu faço; quem eu confio; com quem me alio ou qualquer outra atitude minha, mesmo parecendo incompreensível.
- Waldemar é um colaborador valioso.
- Victor, garanto que eu sou uma colaboradora financeira muito mais valiosa para ele. Portanto, poupe-me o discurso. E, Waldemar, você só permanece, porque Rebecca quer desculpar-se pela situação que o colocou. - disse olhando duramente para o homenzinho - Ah! Antes que eu esqueça, ela detesta bajuladores.
Levantou-se, olhando firmemente cada pessoa presente.
- Espero que ela continue a ter a colaboração que vem recebendo. Quero parabenizá-las pelo excelente trabalho. Sei que Rebecca está em boas mãos. Também sei o quanto ela é teimosa e persuasiva. Que alguém tenha piedade de vocês! Porque eu não tenho. - disse com um sorriso sarcástico. - Só peço que a devolvam no final do dia.
Pela primeira vez, a doutora sentiu que a risada foi realmente verdadeira. As pessoas saíram comentando a piada e algumas começaram a zombar de Rebecca, com humor e descontração. Alguns olhares demonstravam reprovação e não era pelo aspecto profissional. Luciana sabia que algumas mulheres presentes seriam hostis com a loirinha, ainda que veladamente. Mas, no geral, parecia que tudo estava superado.
Estavam todos contentes, exceto Victor e Waldemar. O homenzinho ainda tentou falar com Luciana, mas ela lançou um olhar que o congelou no local. Ele ficou estático e só saiu do transe, quando uma mão gentil pousou em seu ombro. Ele sentiu o calor dos olhos verdes.
- Não entendi a sua necessidade, mas se realmente foi por proteção, fez o que achou certo. Já sabe que o seu certo, não é o dela.
- Você está brava?
- Não. Sabe, tanto quanto você, eu também tenho que provar meu valor. Essa revelação pode atrapalhar um pouco, mas não abalará nada. Você faz o seu trabalho, eu faço o meu. Seremos felizes. - e se afastou, juntando-se às gerentes, que agora queriam fofocar um pouco.
**
As festividades se aproximavam.
Dia 15 de maio era a festa da assistente social. Dia 17 de maio, era a festa dos 25 anos exclusiva para as empresas e convidados e dia 19 a festa para os funcionários e colaboradores. Segunda, quarta e sexta-feira da mesma semana.
Rebecca nunca foi tão solicitada na sua vida, antes tão pacata.
Fazer o acerto dos locais para os eventos, selecionar buffet, degustação dos pratos a serem servidos, bebidas; decoração dos ambientes, escolher roupas, confirmar presenças, mesmo solicitando que fossem confirmadas; foi uma maratona. Luciana não poupou a loirinha que pôde contar com Clara apara ajudar a elaborar a lista de convidados particulares da doutora, além dos outros por parte dos demais conselheiros. Ainda bem que eram somente os professores.
A semana prometia, mas esperavam que os excelentes serviços contratados não as decepcionassem. Clara afirmava para Rebbeca, por experiência, que algo sempre acontecia de última hora.
Como se não bastasse todos os eventos formais, a médica decidira que já estava na hora de apresentar Rebecca para o seleto grupo. Mesmo que alguns já a conhecessem, Luciana decidira que era chegado o momento de oficializar a parceria entre ambas.
No sábado que antecedeu às festividades, Luciana ofereceu um jantar na mansão. Presentes os conselheiros e também alguns diretores e acompanhantes. Pessoas que já haviam visto Rebecca dos corredores da empresa.
Becky estava tensa. Por parte do Prof. Arthur, este deixou claro que ele e esposa seriam discretos, mas que a loirinha tinha que conversar com doutora sobre seu encontro com eles.
O Prof. Victor, conforme lhe dissera, julgava um "insulto" à sua senhora a introdução de Becky como "noiva" da médica.
- Falta de decoro! - dizia para o Prof. Arthur e esposa - Luciana apresentar essa indecente, como sua noiva, para senhoras finas como nossas esposas. - e lançou um olhar para a sua senhora, que não parecia incomodada com a situação.
- Victor, Luciana nunca foi de medir conseqüências. Ela que continue a gerir as empresas com esse sucesso todo e, por mim, pode noivar uma gorila! - sua esposa disse, pegando outra taça do excelente champanhe.
- Chega de besteira. - ele estava cuspindo fogo.
Apoiada pela maioria das pessoas presentes, inclusive por Elenir, a esposa do Prof.Victor, Becky se saiu perfeita e digna de ser a parceira da famosa médica e empresária.
Conversou com os diretores, certificou-se de que todos estavam sendo servidos com atenção. Era um jantar informal, nos jardins da mansão. A própria Rebecca, auxiliada por D. Maria Luíza, cuidara de tudo. Nem mesmo a ajuda de Clara foi necessária.
Quando ao lado de Luciana, trocavam carinhos e gestos criados pela intimidade, portanto naturais.
Um dos assuntos da roda era a reunião com o Waldemar, que virou chacota para todos.
- Não façam assim com ele. - Becky pedia - Coitado, acho que Luck já o fez baixar a bola.
- Uma desconsideração com o que ele já fez por nossa empresa. - Prof. Victor reprovava - Ele estava sendo zeloso; coisa que a doutora também deveria ser.
- Eu sou, Victor: não deixo seu filho se intrometer em nosso I.T. - foi a resposta seca.
Algumas vezes, Rebecca discorreu com a doutora e outros diretores sobre os planos para as festividades.
- Não acredito que você deixa uma fedelha inexperiente opinar sobre nossa celebração mais importante. Ela nem era nascida, quando nós e seu falecido marido, doutora, abrimos o primeiro Centro Médico. - Prof. Victor falou, às costas de Luciana, chegando à roda.
- Você não vai querer ocupar o lugar do Waldemar nas próximas rodinhas de fofoca vai Victor? - ela disse, sentindo Rebecca apertando sua mão, pedindo calma - Victor, relaxa....só não falo para goz*r, porque acho que isto estragaria o apetite de todos presentes...e temos muita comida! - a médica retrucou, com um sorriso nos lábios.
Houve um pequeno surto de engasgos ao redor da cena. Marcella e Clara retiraram-se, antes de desabarem em gargalhadas.
Em determinado momento, Becky estava em uma roda formada por Cecília, Elenir, Clara e Marcella. Luciana chegou, juntando-se ao grupo.
- Cansada? - a médica perguntou, aplicando uma massagem nos ombros da jovem.
- Não. Só tensa. - disse, recebendo um selinho em troca.
Para as demais presente, cena tão terna envolvendo Luciana era como um jogo dos sete erros. Na verdade um só: ternura não combinava com a médica.
- Como sempre, surpreendendo, não Luciana? - Elenir brincou.
- Só surpreendo quem acha que minhas atitudes são fora do comum. Casar não é surpreendente. - disse, enquanto abraçava Becky, afetuosamente.
- Querida, seus casamentos sempre foram surpreendentes, se não extraordinários! - Cecília retrucou, deixando Becky um tanto tensa.
- De qualquer forma, Becky é o motivo da festa e ela decide se é ou não surpreendente. - Elenir desviou o assunto, uma vez que era experiente em apartar as costumeiras rusgas entre Cecília e Luciana.
- Confesso que, para mim, é sim. - e deu um sorriso encantador para a doutora, que fingiu espanto - Quando olhei Luciana prometi que faria dela uma amiga, mesmo ciente de nossas impossibilidades. Ao ganhar seu amor, superei todas as minhas mais remotas expectativa. E adquiri uma responsabilidade enorme, não só na vida pública, como na nossa convivência íntima. A única arma com a qual posso contar é meu amor por ela. Meu respeito é e sempre será pela mulher; não pela empresária, médica, milionária e tantas coisas grandiosas que a adjetivam e me assustam. - olhou para Luciana, que estava com a cabeça baixa, pensativa - Em nosso convívio, eu amo cada imperfeição que ela tenta corrigir para poder me agradar. O esforço que ela faz para ser simples, ser paciente, ser macia comigo. Ser menos do que é.
Fez uma pausa, olhando para Elenir.
- Sim, é surpreendente que hoje, aqui, eu esteja entre senhoras refinadas, na figura de anfitriã do lar que estamos formando.
Pegou a mão da médica e ficou olhando dedos, entrelançando-os com os seus.
- Gostaria que as senhoras enxergassem mais do que duas mulheres ou o que fazemos em nossa intimidade.
Nesse momento, até os professores e demais pessoas, estavam escutando.
- Peço humildemente, entretanto, que enxerguem dois seres humanos tentando o duro caminho do amor, que todos buscamos. Vocês, talvez não precisem, pois encontraram suas metades. Eu nunca tive um amor e Luck, mais do que ninguém, precisa revitalizá-lo. E, se for para isto, eu abro mão de todo o amor que tenho pelas pessoas, para defender, honrar e amar única e incondicionalmente a pessoa que me escolheu como sua parceira, que sei com certeza é meu verdadeiro amor.
Todas olharam para Luciana. O olhar dela sobre Rebecca era adoração legítima. A impressão era que a médica se ajoelharia aos pés da loirinha. Os olhos estavam lacrimosos.
E os olhos verdes da loirinha não poderiam expressar menos do que honestidade e crença sem suas palavras. Levando a mão de Luck aos lábios, beijou-a e acomodou junto ao seu coração.
Muitos casais presentes ficaram motivados pela cena e, de alguma forma, trocaram afetos.
Luciana não era de gestos contidos. Arrebatou a boca de Becky, em um beijo afetuoso, mas intenso. Algumas pessoas ficaram constrangidas, outras aplaudiram.
Cecília, num show único, aplaudiu e fez um brinde cheio de sarcasmo.
- A revitalização do amor onde jamais existiu! - disse, saindo com uma expressão rancorosa.
- Mas, você já fez o pedido, Luciana?- Elenir desviou a atenção de novo.
- Pedido?!? - a médica se assustou.
- Becky, enquanto ela não colocar um anel em seu dedo, não vá na conversa dela! - a simpática senhora brincou e todos riram.
A loirinha olhou para médica, que deu de ombros.
- Ela que não se atreva a fugir. - Becky disse ameaçadoramente.
Ao final da noite, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
Fim do capítulo
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