Pentimentos por Cidajack
Capítulo 13
TREZE
Outra missão ingrata para Clara: achar os pais de Rebecca.
Bem, na verdade, a secretária sabia que isto ocorreria cedo ou tarde. Mais óbvio ficou com a descoberta das terras e o que a loirinha tinha nas mãos.
Começar a procurar não era tão difícil. Tinha uma excelente agência de investigações e toda a sorte de recursos que fossem necessários. O problema número um era: a relutância de Becky.
De um lado, a doutora querendo achar os pais de Rebecca e, do outro, a loirinha não querendo acha-los agora.
- Mas, Becky, qual o problema dessa vez? Antes era por que você não queria traze-los para seu relacionamento com a doutora por não ter onde abrigar e mantê-los; e agora, qual o problema?
- Eu diria que o problema agora piorou. Ok. Temos as terras. Não temos recursos para mantê-la totalmente, mas podemos dispor de parte dela para pelo menos tornar outra parte produtiva. Realmente, agora posso colocar meus pais em um lugar, coisa que não podia antes. Vou precisar de Luck para procura-los, sei que não será barato e isto ainda me aborrece, mas não é o foco principal mais.
- Então?
Os olhos dela ficaram fixo na secretária.
- Você ouviu aquela estória da aposta, não ouviu?
Clara tinha certeza que Becky não engolira tão facilmente aquela inusitada estória. Desde a noite em que ouviram a narrativa, nunca mais, ao menos na presença dela, ouvira a loirinha mencionar o assunto. Tal comportamento, muito atípico para Becky, denotava que ela ainda não formara um julgamento ou, na pior das hipóteses, estava com vergonha do que estava sentindo.
A secretária tinha certeza que ela não havia comentado algo com a doutora. Caso contrário, a médica não estaria tão branda com relação a localizar os pais dela.
Embora a médica parecesse muito diferente do que habitualmente era, a secretária sabia que a fúria ainda rondava aquele potentado e ela não estaria tão calma sabendo o que foi toda a loucura que levou Becky à situação que a doutora a encontrou.
- Ouvi. Você está zangada com eles? Quero dizer, com ele?
- Não sei, Clara. Zangada, não; mas, ressentida. Juro que tentei, todo esse tempo, justificar o que foi feito, mas não consegui. Não só por mim, mas por todos nós. Mamãe e Lílian não tinham que serem tiradas de suas vidas, por mais humildes que fossem, e arrastadas para um destino incerto, sem chances. E isto tudo porque um homem sem juízo, perdido em um vício imbecil, teve a estupidez de jogar tudo o que tinha e perder. E, mesmo que tivesse ganho, com certeza perderia de novo.
Becky estava sentada à cabeceira da cama de Anna, que ainda não voltara do coma. Desde que regressaram da fazenda, a loirinha tomara para si cuidar da menina.
Régia tinha estado no começo, quando realmente constataram que era a tal síndrome e os médicos quiseram uma reunião com ela, para explicarem as chances e o que seria feito. Disseram que o tratamento estava sendo feito corretamente, os sinais vitais estavam ótimos, os órgão que poderiam sofrer maiores danos estavam sendo mantidos estáveis. Tal reunião ocorrera após dez dias de internação e tratamento, portanto sabiam que era cedo para avaliarem os danos e possíveis seqüelas.
Agora, já interavam-se vinte dias que a menina permanecia em seu sono profundo.
Todas tinham retornado da fazenda, após uma série de providências a serem tomadas e muito por fazer, com Régia no comando de sua gente.
A estada na fazenda e a descoberta daquele povo, ocasionaram uma avalanche de situações e decisões a serem tomadas.
Advogados para as questões das terras; médicos para cuidar de Anna; detetives para achar os pais de Becky; administradores e pessoas de confiança para levarem as coisas laboriosas da fazenda; além, é claro, das atribuições diárias de cada uma delas, mais especificamente Clara e Luck.
Logicamente, a questão escolar de Becky foi esquecida.
Em suas vidas particulares, as revoluções não eram menores.
Clara estava cada vez mais perdendo o controle de seus sentimentos, sem saber o que fazer com suas emoções.
Luck não entendia por que Becky não estava exultante com a idéia de localizar seus pais. Parecia-lhe que ela estava, inclusive, evitando falar neles. Várias vezes perguntara o que acontecera de fato, uma vez que não entendia como um homem larga suas terras e vem com pouco dinheiro para uma metrópole, com a família inteira. Ao menos, se não quisesse mais a fazenda, poderia tê-la vendido e feito um bom dinheiro.
Dos dias na fazenda, a doutora ficou com duas belas cicatrizes nas costas, das feridas mais profunda; e com a certeza que Becky ia se dar muito bem, se soubesse convencer o pai a administrar as terras, tornando-a produtiva.
Isto também alertava a médica para o fato de que a vida da loirinha iria mudar. O que antes era uma suposição, começou a se delinear quando Clara comentou que Becky pediu conselhos e andava pesquisando negócios que pudessem aproveitar o que ela tinha descoberto.
Régia tornara-se a principal ligação entre elas e a fazenda. Luck confiava na mulher e em sua liderança para acomodar seu bando e aproveitar a mão-de-obra, bem como arregimentar mais.
Becky admitiu que a líder seria a responsável por tudo. Entretanto, a queria junto de Anna. A menina não saía do coma e Régia estava preocupada com as coisas na fazenda. Dessa forma, o acordo era que Becky tomaria conta de Anna enquanto Régia ficaria nas terras. Qualquer alteração no estado da menina, ela seria trazida imediatamente para ficar com a filha. Na ausência dela, Becky assumiu toda a responsabilidade para com a garota.
Por isso, ali estavam.
- A doutora sabe o que aconteceu?
- Não! Nem quero pensar. Sei lá. Ela pode reagir mal aos meus pais, agora que resolveu procura-los. Já vai ser uma situação meio difícil pela forma como iremos nos reencontrar. Você sabe que meu estilo de vida não é nada nos padrões aceitos por meus pais.
Becky sabia que ia ser outra dor-de-cabeça. Lógico, jamais deixaria que isto interferisse em sua relação, ainda mais agora que tinha a certeza que não devia nada mesmo, em termos morais, para seu pai. Por todas as razões imagináveis, ele perdera o respeito que Becky ainda sentia, mesmo sem saber se o veria novamente.
Imaginava a doutora enfrentando o pai. Na verdade, pensava em si mesma, uma vez que teria que intermediar as forças. Se fosse só o pai, seria mais fácil. Mas, tinha a mãe e a irmã. Se os reencontrassem juntos, gostaria de restabelecer a ligação familiar. E teria que introduzir a médica nesse contexto. Sem a estória toda, já seria um trabalho para Hércules. Com a sórdida menção a aposta, jamais teria a única coisa com a qual poderia jogar com a médica: o respeito pelo pai.
Clara olhou para Becky e viu que a mente dela trabalhava como nunca. Ela estava em uma sinuca de bico. Colocada na berlinda.
- Becky, que uma coisa se resolva por vez; mas, não deixe a doutora no escuro por muito tempo. Senão quem irá perder o respeito dela é você. Lamento, mas cumprirei minha obrigação e acharei seus pais. Não sei quanto tempo você tem, mas pode ir pensando em algo, pois meu prazo é em torno de "pra ontem" e eu não vou segurar por muito tempo.
A loirinha passou a mão pela testa de Anna e suspirou.
- Será que ela tem olhos azuis como a mãe?
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Depois de alguns dias, o ritmo da vida na fazenda até que não era mal.
De dia o povo cuidava da vida, acertando coisas aqui e acolá no acampamento, buscando dar um ar de lar às barracas improvisadas.
Ainda preferiam ficar na parte mais afastada das terras, temorosos por algum ataque. Ou, talvez, inseguros ainda com o resultado, até então, muito benéfico, trazido pelas duas mulheres.
Entendiam quem Rebecca era. Sabiam que as terras eram dela. No geral, não houve maiores conflitos. Um ou outro achava que deveriam ter as terras para eles, mas o bom senso prevalecia, quando pensavam que antes tinham as terras e nada para alimentarem suas famílias. Agora, entretanto, conforme Régia havia falado, a loirinha pensava em tornar o lugar produtivo e distribuir as terras de forma justa.
Dessa forma, aquele povo estava aguardando o que, Régia dissera, viria.
E aguardavam com felicidade. Saídas não se sabe de onde, apareceram violas e a cantoria corria solta nas noites estreladas, em volta da fogueira, onde sempre tinha um café quente ou, para os mais animados, uma boa de uma cachaça.
Luciana estava gostando da vida ali. Sabia que era temporário, mas gostava de ver.
Ela e Régia conversavam muito. Melhor dizendo, se entendiam em seus diálogos econômicos e silêncios intermináveis. Como se entre elas, as palavras fossem demais.
Já Rebecca, vivia atrás de Régia tagarelando. E a líder tinha uma enorme paciência com ela. Luck ainda não podia fazer esforços, muito menos cavalgar; assim, Becky e Régia passeavam sozinhas pelas terras, pois a loirinha queria saber e conhecer a extensão do que era de seus pais.
Régia além de ser a rastreadora que era, também tinha vasto conhecimento em plantas, adquirido com os pais e em seus tempos de botânica. Mostrava e explicava os benefícios medicinais de uma infinidade de plantas, bem como suas combinações.
- Quer saber, se eu fosse você Becky, procuraria explorar essa riqueza, dentre as opções que tem. Você não vai querer cuidar de vaca e nem ficar correndo atrás de colheitas. Aqui, nessa vastidão, você tem uma verdadeira fábrica de cosméticos, remédios fitoterápicos e tantas outras oportunidades.
- É, mas eu não sei. Não entendo nada de negócios. Vou precisar falar com a Luck. Ela é uma administradora fantástica.
De repente, ficou quieta. Parou o cavalo e desmontou, à beira de um riacho.
- Você ficou pensativa e muda: devo temer o que vem por aí? - a líder zombou.
Rebecca riu sem vontade.
- Sabe, eu realmente estou sentindo que minha vida vai mudar muito. E não é uma coisa ruim quando eu penso que me sinto muito dependente de Luck. Com o fato de ter que cuidar disto tudo; diante de todas as coisas que você, ela e Clara ficam falando, terei uma ocupação e tanto. Coisa que exigira de mim dedicação. A dependência financeira que tenho de Luck ainda é uma coisa que me causa desconforto e isto tudo aqui abre as portas apra que eu me estruture sob esse aspecto.
Régia não desviava os olhos da loirinha. Deveria se sentir intimidada, não fosse a compreensão que aquele olhar demonstrava por suas palavras. Isto a encorajou.
- Mas, é ruim quando eu penso na reação dela ao me ver dividindo minha atenção com outras coisas, pessoas, interesses. - a loirinha parecia angustiada.
A líder olhava Becky, que se sentia como que conversando com Lucky, mas sem o temor de não ser bem entendida.
Sim, por inúmeras ocasiões, percebera que a médica a olhava livre de todos os tumultuosos sentimentos que sempre bailavam naqueles olhos hipnotizantes. Sabia que aquele era um olhar só dela. Que Luck, seja lá com que esforço, o revelava só para ela, Becky. Entretanto, também houveram vezes que o olhar contradizia as palavras, denotando um controle e ponderação que também só eram reservados para ela, caso contrário, o temperamento explosivo da médica faria seus habituais estragos, sem medir conseqüências.
Gostava de Régia. Pensava que ela poderia ser Luck. A semelhança física aliada aos olhos de um azul idêntico, mas que eram suaves, mais abertos, receptivos; essa mistura poderia ter despertado minha curiosidade e, até mesmo, desejo.
- Você me olha como se procurasse um equilíbrio de forças. Como se buscasse em mim alguém conhecido. Certa pessoa com quem tem familiaridade, mas ao mesmo tempo, ainda é uma estranha.
- Mas, você sabe o porquê dessa sensação, não sabe?
Ela riu, mostrando os dentes brancos, perfeitos; fitando-me com aqueles olhos que eram encantadores e suaves, naquele momento.
- Nós somos parecidas, eu sei. Eu e a doutora lá temos mais em comum do que nossa aparência. Ela é durona. Ou, somos endurecidas. Temos ambição, raiva, desprezo pela vida e ela conta com dinheiro para torná-la ainda mais forte e dura. Mistura perigosa. Perfeita para criar pessoas de pedra. Ela sempre pegou o que quis, da forma que uma pessoa ambiciosa sabe fazer. Ela domina o poder. Não sabe viver com as sobras de suas perdas.
Ela abaixou-se e pegou uma pedrinha, lançou no riacho. Ficou olhando.
- Eu a entendo. Nós precisamos das mesmas armas, mas em lutas diferentes. Eu usei armas muito perigosas, aceitei e me acostumei com perdas de batalhas, mas terminei minha guerra. Ela...bem, só depende dela render-se a si mesma e sair menos ferida dessa guerra, que me parece, inglória.
Olhou-me. Aqueles olhos eram penetrantes, vasculhavam a alma, mas não para tirar vantagem. Não para buscar medo. Não para impor. Ao menos, ali, onde nada lhe era ameaçador. Já vira Régia como líder e sabia que aqueles olhos também sabiam impor autoridade e congelar alguém no lugar. Entretanto, ali estava ela, branda, uma mulher vivida e aproveitando de sua sabedoria. E esta brandura era visível no olhar, na postura, em tudo.
Diferentemente de Luck, que mesmo em sua brandura aparente, tinha agitação no olhar, tinha aquela superioridade de quem não precisa de ninguém. E desprezo.
Régia era linda também. Rústica, simples, sem adereços.
- Você se sente um capricho dela, não?
Baixei os olhos. Ela veio e, suavemente com os dedos ásperos, tocou meu queixo e me fez encara-la. Definitivamente, aqueles olhos não me queimavam por dentro, não me faziam perder a respiração e nem deixar de pensar. Eles não me faziam esquecer que nada, mas nada mesmo, nem meus temores ou minhas inquietações, tinham importância quando ela me fitava e deixava transparecer que sem mim a vida terminava. Sem mim, o monstro que não ousava me assustar, ficaria livre impedindo que a beleza ali ainda existente fosse trazida para a luz.
Os olhos de Régia eram lindos: suaves, ternos e compreensivos; mas, definitivamente, não eram os de Luck e nem tinham o mesmo efeito sobre mim.
- Seria injusto eu pensar isto sobre o que tenho com ela. Não sou um capricho, não sou um brinquedo. Sou a mulher dela, a companheira, a amante. E isto, pode ter certeza, não foi por escolha só dela. Eu escolhi ser tudo para ela. Escolhi ser por ela, porque só assim posso ser por mim.
- Então, o que incomoda você? - foi a pergunta branda, de alguém que parecia não ter se surpreendido com a resposta.
- Pensar que ela depende mais de mim do que eu dela. Que se eu começar a viver minha vida, ela se sinta abandonada. Se eu começar a sair desse casulo no qual nos fechamos, ela pense que a borboleta quer voar. Pode parecer que não, mas Luck é um poço de ressentimentos, de medos, de desilusões, de frustrações. Eu ainda não consegui alcança-la por inteiro. A vejo sofrer e não sei como ajudar, porque ela se fecha e olha para mim de uma forma que jamais olhará para outros. Poderia ser o suficiente para mim, mas não o é.
- Clara disse que você já abrandou muito a ferocidade da doutora.
Apenas sorri. Não queria ser domadora de pessoas. Ainda menos a que amo.
Dirigi-me para o cavalo, que esperava pacientemente. Régia vinha logo atrás.
- Régia...
- Hum?
- Você ganhou sua guerra?
Ela passou por mim e montou. Achei que não responderia. Mas, quando ela me olhou, seus olhos tinham perdido a brandura. Neles, a frieza da guerreira.
- Com certeza, não perdi!
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- Você sabia que Clara está namorando?
Luck pegara Becky de surpresa.
Sim, sabia. E como sabia. Mas, deveria falar?
- Ela disse? - foi a pergunta dissimulada.
- Sim. E eu acho que você sabe quem é a pessoa.
Becky não sabia o que falar. Estavam na barraca que fora erguida para elas. A médica estava deitada de bruços e a loirinha olhava os ferimentos, que já estavam cicatrizando, pelo menos, os superficiais. Dois eram mais profundos. Depois de algum tempo, o médico que veio para o acampamento, descobriu que a ferramenta deixara um estilhaço enferrujado que não fora removido a tempo, o que não permitia o fechamento de um dos cortes, que teve que ser curado aberto. Esse era o incômodo que a doutora sentia. De resto, os poucos pontos foram retirados.
- Você vai ficar com mais uma cicatriz. Nossa, para quem é uma pessoa comum, você tem muitas. Lembra daquela que eu gosto...
- Becky, você sabe. Não disfarça. Essa sua breve hesitação e mudança de pressão nas minhas costas, denotam que toquei em um ponto delicado.
- Faz algum tempo que você não toca em um ponto delicado, doutora....- a loirinha tentava ganhar tempo.
- Tentando me distrair, hein? Péssima tática. - a médica disse em tom jocoso.
- Tá certo..ok...eu sabia...sei...é que..bem...
- Entendo. Clara pediu para você não comentar. Ela é muito reservada. Entendo que ela mantenha sua privacidade; entendo que você mantenha sua palavra; apenas lamento que ambas não confiem em mim e tenham tanto medo. Que posso fazer com a vida particular de alguém?
Sentiu a mão suave de Becky em sua pele. Quente, macia e, ao mesmo tempo, firme. Gostava do toque dela em sua pele. O jeito que vasculhava seu corpo, sem hesitação, sem medo e com segurança. Deveria ser assim também com sua vida. Mas, ela se entregava para Becky, na vida, da mesma forma que no amor?
Luciana, ainda sentindo o incomodo do ferimento, virou e encarou Becky. De repente, sentiu vontade de beija-la e o fez. Como sempre, a resposta foi imediata e Becky se deixou abandonar naquela boca gostosa e voraz.
- Nossa!!! Quer me matar, doutora?
- Estou preparando você..para tocar em um ponto delicado...- dizendo isto, a médica depositou uma série de beijos, que cobriram toda a região do pescoço - ..pensando bem, vários pontos delicados....- ela podia ouvir os suspiros e gemidos leves - ...eu quero todos..- lambendo a pele do ombro, descendo para o vale entre os seios.
- Faz tanto tempo. Essa correria toda. Meus ferimentos. A falta de privacidade.
Beijou-a novamente, mais demorado, saboreando a língua molhada, sugando, passando a sua por cima e por baixo, deixando descansar sobre a umidade e fundido os gostos, até cobrir a outra boca com a sua e se abandonar, só interrompendo para respirar.
Becky olhou e viu o desejo nos olhos azuis. Nem precisaria ver, estava sentindo, na maneira como a médica, esquecendo qualquer dor ou incômodo, buscava uma posição que favorecesse a necessidade que sentia.
Luck estava nua da cintura pra cima. Os seios livres, acima das ataduras. Becky também sentia falta. As vezes que a banhou, aproveitou cada momento, para tocar e sonhar com o amor que não faziam. Luck até tentou algumas vezes, mas não conseguia. Sentia dores e ficava irritada. Para Becky, só o fato de poderem dormir juntas, já tinha amenizado bastante a falta.
Mas, agora, Luck mandava tudo às favas.
- É bom que você tenha certeza de terminar o que iniciou, doutora...- Becky estava ofegante...- não existe uma parte em mim, agora, que não seja um ponto delicado. - a loirinha estava faminta e um banquete a esperava, a julgar pelo olhar da doutora!
- Tira a roupa.
Um pedido tão simples e, ao mesmo tempo, poderoso. Sem desviarem os olhares, a loirinha tirou a camisa e a bermuda, com a calcinha indo junto. Estava nua diante de olhos famintos. Era embriagador ver o que causava na médica. Ela engolia em seco, como se nunca tivesse visto o corpo a sua frente.
- Deita.
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Então, isso era São Paulo!!!
Conhecia o exterior e não conhecia a cidade carinhosamente apelidada de Sampa.
Melhor dizendo, até conhecia o aeroporto, mas era tão pequena quando passou com o pai pela cidade, a caminho da Suécia, onde fora visitar a avó.
Pais e família. Nem era bom lembrar disso agora. Lembrar deles, de tudo que ocorreu e o que isto a tornou.
Também conhecia o interior, dos tempos de faculdade; e as rotas alternativas para seus vôos clandestinos, quando esqueceu a faculdade.
Enquanto voltava do hospital para a casa da doutora, acompanhada por Clara, Régia deixava-se perder em pensamentos. Olhava tudo, mas não via quase nada. Imersa em recordações há tanto tempo esquecidas, quase agarrou-se ao teto do carro, quando a secretária tocou em seu braço.
- Tudo bem com você?
- Sim. Cansada, espantada e preocupada. - a líder respondeu, em sua maneira telegráfica de falar, voltando a olhar pela janela.
Passou por um estádio e depois a secretária apontou um lugar que era o palácio do governo do estado. Também passaram por um cemitério e ela mencionou sobre o fato de pessoas famosas estarem enterradas ali. Era um lugar bonito. Régia pensou que até para ser enterrado e ser comido pelos vermes, os ricos inventavam pose.
Tinha sido chamada para a conversa com os médicos. A doutora a previniu de que seria apenas um reunião para que a equipe médica fosse apresentada à mãe da criança.
Do aeroporto, Clara a levou para o hospital, onde pode ver Anna em seu sono e total fragiliadade. Nunca, em toda sua vida miserável, tinha se sentindo tão sem poder, sem solução e totalmente impotente.
Ainda hoje, após 4 anos, não sabia o que a levou a ter aquela criança. Não lamentava ter tido Anna; lamentava não ser a mãe que imaginou que poderia ser.
Mas, aquele criaturinha era a única que conseguia, com um simples olhar e sorriso, fazer todas as angustias, mágoas e descréditos da humanidade, recuarem e ficarem adormecidos. Ela era o porto-seguro de uma alma alimentada por sangue e vingança. Era a única prova de que um dia tinha tido um amor. E, mesmo isso, esse amor, saberia que perderia quando Anna entendesse a vida na qual o egoísmo de sua mãe a colocara.
Não chorava. As lágrimas ficavam na superfície dos olhos. Os nós na garganta, o nariz congestionando, a dor no peito. Chorava o choro das pessoas com vergonha de sentir amor, de se emocionar, de aparentar alguma fraqueza. Esse tipo de choro era como cravar agulhas nos próprios olhos.
Foram se afastando. Ainda era um lugar movimentado, mas aos poucos foi ficando menos congestionado.
Percebeu que estavam se afastando dos prédios e entrando em uma região de casas. Ou melhor, fortalezas; com muros altíssimos, guaritas, muita vegetação e uma vista diferente.
De repente, o carro parou e um portão se abriu. Os seguranças, que Régia achou exagerado, deixaram-na passar e Clara informou para eles que, conforme o email passado, ela teria passe livre.
A líder não pode deixar de notar que foi olhada com espanto. Não sabia se pelo fato de parecer demais com a médica, ou por estar vestida como estava.
- Eles estão pensando que vocês agora arrumaram um jagunço para tomar conta do castelo. - e deu um sorriso meio sarcástico.
Mais uns minutos até a entrada principal e finalmente entraram na casa.
- Vixe!!! Para que tanto espaço? Dá para morar umas 20 famílias aqui! Que desperdício.
- A dra. Luciana disse para alojá-la na casa de hóspedes....
- Essa é a casa de hóspedes?!?!?!?!?!? - o olhos azuis ficaram enormes e quase fizeram a secretária desmaiar ao fitá-los, tão lípidos e sinceros.
Clara queria rir, mas resolveu ser a profissional de sempre.
- Não, Régia, claro que não! Eu ia dizer que estava levando você até lá, mas cruzando pela casa, para que você pudesse conhecer o interior dela.
- Ah...Vixe! Levei um baita susto. Se essa fosse a de hóspedes, fiquei imaginando como seria a da doutora!
Realmente , a casa era enorme, mas não por vontade da médica. Era uma herança do casamento. Como o Dr. Thomas também a herdara, a médica a mantinha por tradição.
Com a chegada de Rebecca e o fato de passarem a maior parte do tempo no apartamento, a médica chegara a cogitar mudar de casa, mas ainda era uma idéia muito prematura, segundo a própria doutora comentara.
Eram vários quartos, biblioteca, salões; coisa bem antiga. E decorado com muita obra de arte pertencentes a família e as adquiridas pelo doutor, um colecionador contumaz.
O cômodo mais bonito que chamou a atenção de Régia foi o salão de esgrima. Os olhos azuis brilharam como os de uma criança que entra em uma loja de brinquedos.
Várias armas brancas, com os mais variados desenhos de lâminas; alguns escudos e brasões; o amplo salão para a prática e o armário de troféus. A maioria ganhos pelo doutor, mas uma quantidade considerável portava o nome de Luciana.
- Nossa! A muié não é fraca não. Tudo isso é dela?
- Como você pode ver, ela tem seu lado de guerreira também. A especialidade dela é florete, claro; mas, ela coleciona espadas mesmo, de vários estilos.
Régia contorceu o rosto ao tentar levantar uma espada, de lâmina larga, com um cabo intrincado e um pouco curta. Dava a impressão de ser leve, mas era consideravelmente pesada.
Segurando com as duas mãos, a líder esboçou uns golpes. E, em seguida, já manejava com uma mão só.
- Você leva jeito. - Clara observou.
- Nada demais. Um rifle chega a pesar quase igual. - deu de ombros, desdenhando o que fez - E uma enchada também. - esboçou outro sorriso irônico.
- A doutora é ambidestra e chega a manejar duas espadas ao mesmo tempo, com muita habilidade. Precisa ver que ar majestoso! Que altivez...
- Você baba por ela, não?
Ops...essa conversa não está na ordem do dia, a secretária pensou.
- Veja, essa katana. Ela trouxe pessoalmente do Japão, após receber a indicação sobre um mestre na fabricação de tal arma.
O objeto distraiu Régia e Clara ficou aliviada por desviar da questão prévia.
- Ela é magnética, não?
- Sim. Essa arma é uma obra de arte...
- ...eu quis dizer a doutora; não tente me trapacear, moça da cidade! - a líder começava a gostar de provocar a secretária.
Sem uma palavra, Clara indicou o caminho da porta para Régia.
Atravessaram em silêncio o jardim, chegando ao pequeno chalé ao fundo, entre as árvores.
- Ele é completo, com banheira, inclusive. O que precisar, basta teclar os números demonstrados ao lado do telefone e todos os empregadas têm ordem para atendê-la. Claro, se quiser, tem uma cozinha com os utensílios básicos, caso você queira preparar algo por si mesma. Lógico, tudo o que precisar, será providenciado.
Régia abandonou suas poucas coisas no chão e sentou no sofá, olhando para as mãos.
- Você acredita que ela vai se recuperar?
Clara , que ainda pensava nas perguntas sobre a doutora, demorou a entender o que a líder queria dizer.
- Becky disse que elas voltam logo, assim que os ferimentos cicatrizarem...
- Anna...será que posso ter esperanças?
Clara se estapeou mentalmente. Como pôde ser tão insensível. Por algumas horas, esquecera o motivo pelo qual aquela mulher estava ali, longe de seu ambiente, parecendo um peixe fora d´água.
Sentiu vontade de ter algum contato físico com ela. De repente, a mulher a sua frente parecia muito cansada, abatida e desamparada; apesar da altivez e orgulho de sempre.
Quando se deu conta, estava ao lado de Régia, acariciando os cabelos negros. Foi envolta, pela cintura, em um abraço apertado. Gostou de sentir a conexão entre elas. Era estranho, pois muito pouco elas tinham para que essa sensação de pertencer parecesse tão forte e certa. Abandonando seus pensamentos, manteve o foco de seu intento.
- Régia, estamos fazendo tudo o que podemos. A doutora não está medindo esforços e nós, eu e Becky, estamos comprometidas em zelar por ela. Só resta esperar. Se serve de conforto, você tem amigas aqui. Atrevo-me a colocar a doutora nesse rol.
Sentiu o abraço se tornar mais forte, porém parecia que um peso fora tirado daquelas costas.
Novamente, sem se dar conta, estava aplicando uma massagem no ombros da líder, tentando desfazer o nós e a tensão. Sentia a mulher sucumbindo aos toques e se deixando levar à entrega total.
- Cansada da viagem?
Régia emitia sons ininteligíveis que se propagavam pelo corpo de Clara.
- Hummm..isso é bom! Poderia me acostumar. - podia sentir a tensão dos seus ombros se desfazendo nos toques daquelas mãos suaves e firmes.
- Mãos macias, cheiro bom, toques firmes.... mulher da cidade...
Clara sentiu as mãos calejadas reterem as suas, paralisando os movimentos e a trazendo para a posição inicial, com a cabeça de Régia encostada em seu abdomen.
- Tou cansada de tudo. Um cansaço que parece vir da própria eternidade. Tanta coisa me pesa sobre os ombros. Ser mãe...ser boa mãe. Não merecia ser. Arrependo pelo que fiz a ela. Não é certo. Não pode ser!
Clara só podia ouvir, pois estar presa fortemente entre aqueles braços desviava seus pensamentos, levando-os novamente para seus sentimentos. Percebia que cada vez mais era ali que queria ficar. Racionalmente, não entendia. Mas, a emoção não queria saber. Os sentidos não queriam razão. O cheiro dela, o contato. E a tristeza que agora lhe era confiada. A tristeza que parecia ser sua também. Quem era aquela mulher? O que sabia dela? Por que o sofrer dela lhe aflingia tanto? Como resposta, sentia as lágrimas brotando em seus próprios olhos.
- Shhh...Calma. Não se torture. Tudo vai ficar bem! - ...e também sentia as lágrimas que queimavam a pele dos braços, onde a líder descansava a cabeça.
A líder, então, de repente, se levantou e casualmente roçou a pele dos seios da secretária no trajeto que findou com um beijo suave nos lábios a sua frente.
Clara só pode pensar e se agarrar em Marcella para retomar o controle de seus sentimentos, tão abalados e confusos. Mas, ainda assim, por segundos, deixou sua boca ser explorada. Sabia que queria, mas não podia. Não era justo. NÃO!!!
- NÃO!!!! Pare...- empurrou a mulher, sem olhá-la.
Olhos azuis escurecidos a fitavam. Não sabia se frustração, raiva ou desejo, ou mesmo tudo isso junto, os deixaram daquela cor. Só sabia que queria se perder neles. Não podia.
- Não. Por favor, não dificulte as coisas.
- Pensei que estivesse facilitando. - a resposta foi seca, sem entonação.
- Pois é, mas para mim não é tão fácil assim!
- Por eu ser mulher?
- NÃO!!! - os olhos verdes se arregalaram, em uma negativa vêemente.
Régia estava ficando perdida por eles. Eram estranhos, pois assumiam tonalidades inimagináveis. Já vira muitos felinos e só podia comparar aquele verdes ao de um animal selvagem acuado.
- Por eu ser uma cabocla sem-terras? Uma mulher do mato, mais acostumada a lidar com jagunços do que com mulher da cidade?
Clara não queria que ela pensasse assim. Não era isso.
- Acredite em mim, não é isso mesmo!!!! Sou eu. Meus medos. Inseguranças. Quero ser sua amiga. Aceite que será assim, por favor!
Régia riu. Sacudiu a cabeça e apenas riu.
- Você precisa descansar, amanhã se reunirá com os médicos. Depois, se quiser, ficará com Anna. Ou, conforme a doutora me instruiu, ela quer que você compre umas roupas.
Régia olhou-se. E riu de novo.
- Tem razão! Preciso de umas mudas mesmo. Não quero assustar Anna quando ela acordar. Embora, penso que ela não me reconheceria em outras roupas!
Clara olhou e corou, ao perceber que olhara o corpo a sua frente além da conta e Régia a observava com um sorriso maroto.
- Certo. Boa noite. Se precisar, meu ramal está anotado no telefone. Vou ficar aqui hoje.
Régia não respondeu. Simplesmente encostou seus lábios suavemente nos da secretária.
- Boa noite.... amiga!
A secretária fez um esforço tremendo para não se deixar levar, saindo rapidamente e atravessando correndo o jardim, querendo impor a maior distância possível entre seu desejo e o objeto desejado.
"Oh, Deus!!!" foi o pensamento de uma Clara sôfrega, encostada na porta do seu quarto.
Nunca se sentira assim antes! Queria aquela mulher. Mais: queria ser dela! Tudo nela era fascinante. Como um fetiche. "É isso, Clara: ela é um fetiche. Sim, só podia ser: a semelhança com a doutora, o passado de aventureira, o perfil de liderança, as mãos fortes e àsperas, o corpo delgado com aqueles braços definidos; a voz com leve sotaque; o cheiro de terra; ai, pare de se torturar, Clara. Isto não está ajudando."
Respirou fundo e recompôs a linha de raciocínio (se é que ainda tinha algum).
"O.K. Fetiche. Você é uma mulher racional. Continue assim! Você tem uma parceira que é devotada, está a sua espera, com quem pretende construir algo sólido. Esse é o seu jeito. Essa é você. Sem devaneios. Sem novos enganos. Muito melhor. Tudo certo, então?"
Foi até o banheiro e molhou o rosto e o pulso. Bem. Melhor tomar um banho e ligar para sua parceira. E esquecer os olhos azuis e a mulher na casa ao lado.
Como se tivesse escolhido o momento, o celular tocou. O número familiar de Marcella no display..
- Oi, querida! Saudades...Tava correndo?
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Sem a presença de Régia, Luciana era o que de mais parecido com um líder aquele povo tinha.
Saindo com mais frequência da sua cabana, agora que os ferimentos estavam cada vez melhores, ela começou a especular com os caboclos as possibilidades e as intenções daquele povo. Régia comentara algo sobre como se tornou líder daquele povo. As poucas palavras dela resumiam bem: um pouco de tutano, força bruta e algum tipo de promessa e eles seguiam, carentes por serem guiados e recompensados de alguma forma.
Ainda não entendera, entretanto, por que o tal João de Deus era subordinado à Régia, já que ele se gabava de ter preservado aquela terras para o benefício deles. Ele era visivelmente contra o aparecimento de Rebecca, mas por algum motivo, a líder o tinha sob rédeas curtas.
Rebecca ganhava a fama de ser a herdeira e a principal benfeitora daquele povo. Luck, com seu autoritarismo, estava se tornando uma espécie de braço direito de Becky. De alguma maneira, queria que o povo temesse a loirinha, garantindo que as coisas não voltassem ao estágio inicial, quando se rebelaram contra elas ao simples estalar dos dedos de João ou Régia.
Entretanto, Becky estava ganhando seu espaço e se tornando muito próxima e querida do povo. Mais uma vez, Luck percebeu que o respeito que a lorinha angariava não vinha da força física, mas da compreensão e real interesse pelas pessoas que a cercavam.
Ali, em sua terra natal; em seu berço de infância, a menina Becky voltava em olhares, suspiros, brincadeiras e prosas nostálgicas. A mulher que Becky se tornara sob os olhos atentos da doutora tinha, de alguma forma, mantido a conexão com aquela menina, apesar de quase perder a ponte, quando a passagem pra adolescência foi bruscamente quebrada pelas mazelas e infortúnios do pai dela.
Enquanto a médica era mais prática e só estava interessada no lado produtivo; a loirinha fazia o que sabia de melhor: amizade com todo o tipo de gente, buscando sempre saber as necessidades e aflições de cada um.
Luck não sabia ser como Becky, mas fazia um esforço enorme para se deixar conduzir pelos caminhos traçados por ela, como sua protetora física e como defensora de seus ideais. Becky era forte, determinada, capaz de fazer excelentes julgamentos; mas retia muito a fé na bondade de cada um, coisa que para a doutora colocava em risco toda a clareza de seus julgmentos, fundamentalmente honestos. Tinha que protegê-la, com qualquer arma que tivesse.
Dessa forma, os homens de Régia procuravam por Luck para informar toda sorte de acontecimentos que ocorriam no acampamento; acontecimentos que, por sua vez, Becky sabia através das mulheres e, ainda mais, ela sabia do dia-a-dia daquelas pessoas.
- Aquele João de Deus ainda não me inspira confiança. - falou uma médica muito pensativa.
- O povo aqui tem várias opiniões sobre ele. Alguns dizem que ele só obedece Régia porque ela o tem de rabo preso. Outros, acham que ele é quem realmente manda. Tipo um conselheiro. Também não gosto dele. - a loirinha sentiu arrepio ao lembrar que ele quase atirara nela e, por pouco, não tinha matado Luck.
A médica também tinha as mesmas péssimas lembranças do que foi o encontro entre eles.
- Não acredito que Régia seja comandada por ele. Ainda lembro muito bem como ela pôs ordem no incidente que nos envolveu, apenas com um olhar. Ela não é de receber ordens. Entretanto, o que se percebe é que Régia é querida e os liderou para essa "terra santa" aqui. Mas, quem descobriu a terra e, por assim dizer, preservou foi o João.
De repente, a loirinha ficou tensa. Se a médica estivesse olhando para ela, coisa que a posição dificultava, pois Beck estava trocando os curativos; veria que algo a incomodou com esse comentário.
- Eu vou conversar com ele...
- NÃO!!! Não.
Luck parou Becky e virou-se abruptamente, franzindo o rosto ainda com incômodo.
- O que houve? Por que essa reação? Ele fez algo para você? Se fez, eu arranco tudo que ele tem de masculino naquele corpo...
Becky riu e isto suavizou a tensão.
- Não me fez nada, Luck. Calma, amor. - tomou o rosto anguloso entre as mãos - Adoro vê-la assim, tão protetora. - deu um beijo afetuoso nos lábios da médica.
- Hummm...acho que devo uma ao João...- a médica retribuiu o beijo, derretendo-se ao suave toque de sua amante - Essa será minha recompensa por protegê-la?
A loirinha intensificou o beijo, deixando a médica sem fôlego.
- Não....posso pensar em melhores recompensas...
Por alguns momentos, esqueceram o que conversavam.
Embalada pelo abraço da doutora, Becky tentou dissuadi-la de ir conversar com o caboclo.
- Não gostaria que vc fosse falar com ele. Ainda sinto arrepios pelo que ele quase nos causou. Espera Régia chegar. Sei lá. Ele é rancoroso. Sem ela aqui, sabe-se lá o que ele pode fazer ou mandar fazer. Ouvi dizer que tocaias são a especialidade dele.
Com o queixo apoiado no ombro de Becky, Luck concordou com a loirinha. Pelo menos, naquele momento, pois não queria deixar a jovem mais alarmada.
- É, foi o que ouvi também. Parece que ele tinha que atocaiar alguém por essas terras e descobriu que estava vazia. É uma estória confusa! Vou descobrir direito, pois não vejo como isto pôde ajudar a preservar as terras.
De repente, a médica teve uma clara visão do que poderia ter acontecido. E se o pai de Becky estivesse sendo ameaçado por causa das terras, por esses capangas? E, com a notícia do aparecimento de uma herdeira, não estaria Becky correndo riscos?
Olhou para Becky e essa a fitava com curiosidade.
- O quê? Que foi? Você ficou esquisita.
- Becky, aconteça o que acontecer, não sai de perto de mim ou de Régia. E, se for preciso, sempre ande junto das mulheres e das crianças. Não quero você perto desse João de Deus. E, eu sei que ele tem uma corja que o segue: fique longe desses caras.
A loirinha estava ficando preocupada.
- O que você teme?
A médica sentou e trouxe Becky para junto de si, acariciando os cabelos da loirinha.
- Não sei se estou correta, mas me ocorreu que se o tal estava atocaiando alguém por essas terras e seu pai, de repente, sem mais nem menos, abandonou tudo; podemos ter aí a explicação: não fica fácil deduzir que seu pai estava sofrendo algum tipo de pressão?
Becky sentia seu corpo se retesando sob o toque de Luck.
- Não quero assustá-la, como percebo estou fazendo, mas indo além e precisando ser cautelosa, eu julgo que você, uma vez identificada como herdeira, também corre perigo de sofrer alguma emboscada.
A loirinha sentia sua boca azedando pela queimação no estômago. Luck estava perto, muito perto de saber todos os sórdidos acontecimentos e, com certeza, chegaria lá. Mas, como só Régia e João de Deus sabiam da estória toda, ela ainda teria tempo, pois Luck não iria confrontá-lo, para não alertá-lo. E, com a discrição de Régia sabia que podia contar.
O abraço da médica se tornou mais forte, ao mesmo tempo que um afetuoso beijo foi depositado na testa de Becky.
- E, acompanhe meu raciocínio: ele é jagunço, portanto, trabalha sob ordens, certo?
Becky sentia que ficava cada vez mais difícil disfarçar a tremedeira e a náusea que tomavam conta dela, porém tentava bravamente e tinha como aliado o entusiamo da médica envolvida em suas deduções.
- Ou seja: existe um mandante. Se existe um mandante, temos uma causa ou várias por detrás dessa perseguição. No momento, só me ocorre as terras como motivo da disputa e você, sua irmã e mãe como possíveis alvos a serem preservados.
"Oh! Deus!" Becky sentia como se fosse vomitar.
- E, se minha linha de raciocínio estiver correta, o mandante está perto. Está na vizinhança.
Becky começou a tremer visivelmente. Luck, que a abraçava, percebeu e abraçou-a ainda mais junto de si, em um momento ( o primeiro desde que estavam juntas) no qual a loirinha queria estar bem longe daqueles olhos, que agora fitavam-na carinhosamente, ainda que vasculhadores.
- Você está com medo? Eu assustei você? Shhhhhh...fica calma. Eu estou aqui, Régia vai voltar e, com ela, Clara vem nos buscar. Vou tirar você daqui o quanto antes.
Rebecca só pôde concordar. Não confiava em sua voz para falar alguma coisa.
- E, sem dúvida, precisamos achar seus pais rapidamente!
"Oh, Deus!"
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A reunião contou com a presença de Clara, Marcella e do Prof. Arthur, além de uma equipe médica multidisciplinar, encarregada do acompanhamento de Anna.
- Régia, como um dos membros do conselho que rege esse hospital e também como cientista, quis estar presente nessa reunião; contando, é claro, com sua permissão.
A líder simplesmente aquiesceu e sorriu.
- Deliberei que a Srta. Marcella também participasse, uma vez que ela é a Diretora Geral dos Hospitais e supervisora direta deste. Ela, representando a Dra. Luciana, é a responsável pelo bem-estar e garantia de que Anna terá as melhor infra-estrutura disponível em nossos hospitais.
Clara, que até então estava ausente da preleção feita pelo Prof. Arthur, prestou atenção na interação entre Régia e Marcella. Péssimo começo, constatou com receio.
Sentiu certo remorso, já que a diretora estava melhor informada sobre a líder, em um nível muito íntimo e, de antemão, já formara uma opinião nada simpática por Régia.
Infelizmente, a líder em sua natural neutralidade de expressão e pouca conversa, nada contribuiu para amenizar a impressão prévia.
- Sua filha está bem alojada, em nossa UTI pediátrica, a ala mais nova que dispões dos mais modernos equipamentos e, a pedido da Dra. Luciana, uma enfermeira a acompanha dia e noite. Você também, após a devida assépcia, poderá ficar o tempo que quiser com ela dentro da unidade. Um quarto foi reservado para você e todo serviço de hotelaria do hospital está ao seu dispor. - foram as únicas palavras que Marcella dirigiu à Régia durante a reunião.
Clara que poucas vezes usou o tão aclamado sexto sentido feminino para justificar algo, pode sentí-lo fortemente agora, não nela diretamente; mas emanando entre as duas mulheres, que se olhavam com certa avaliação. Somente a presença do mito sensorial, poderia explicar a situação. A secretária jamais imaginou que a diretora pudesse sustentar com tanta frieza e rigidez o olhar igualmente glacial que recebia de Régia.
"Mas, como Régia poderia saber que estamos juntas? Marcella tudo bem, mas Régia!?! E, também , que pretensão minha achar que Régia esteja rivalizando com Marcella por minha causa. Estou ficando paranóica!"
Sentiu um arrepio e sacudiu a cabeça.
- Quer que aumente a temperatura, Clara? - a diretora perguntou, percebendo o tremor
- N..não! Não é necessário.
Régia estava à cabeceira da mesa, com Clara a sua direita e o Prof, seguido por Marcella, a esquerda. Isto colocava a secretária frontal à diretora. Sentia os dois olhares sobre ela e, de repente, sua agenda passou a ser a coisa mais interessante na sala.
Num gesto sútil, Régia colocou a agenda do lado correto em frente aos olhos que fitavam o pequeno caderno. Clara pôde sentir que corava.
Foi salva pela situação, quando o Prof. Arthur voltou a sua explicação.
- Régia, qualquer termo que você tiver alguma dúvida, pergunte. Todos aqui estamos empenhados em deixá-la o mais interada possível do estado de saúde de sua filhinha.
A líder aquiesceu com a cabeça, mantendo seu habitual ritmo de conversação.
- Ela tem alguma instrução? - um dos médicos, um sujeitinho antipático e metido, questionou em voz alta.
Régia ficou quieta, com um olhar de deboche. O Prof., cavalheiro como sempre, mas sem saber algo sobre a líder, interveio como pode.
- Bem, como disse, o que ela não souber , estamos todos aqui para explicar e, o colega sabe que não precisamos exagerar em jargões no momento.
- Régia é bióloga. Deve entender alguns termos melhor que eu ou Marcella, aqui presentes. - Clara argumentou, visivelmente irritada e desafiando o tal médico.
Régia olhou para ela, impassível. Nem um músculo em sua face se mexeu, mas o olhar era ainda mais debochado. "Céus, ainda por cima, existe a cumplicidade entre nós!", a secretária pensou, subitamente interessada pela folha da agenda a sua frente. Nem ousava erguer a cabeça e encarar Marcella. Se o tivesse feito, teria percebido o olhar desaprovador.
"Clara, você está imaginando coisas! Está tudo pefeitamente normal."
A reunião transcorreu sem novos constragimentos.
Muita coisa a dra. Luciana já havia explicado. Foi comentado que somente há pouco tempo a interação da substância acetilsalícilica com varicelas foi considerada provável causadora da Síndrome de Reye e, recentemente apenas, tal advertência foi colocada nos rótulos dos produtos que contém tal princípio ativo. Ou seja, algo novo até mesmo para as classes envolvidas e órgãos governamentais de vigilância sanitária.
De bom, constataram que os órgãos vitais de Anna estavam sendo controlados e mantidos estáveis, não aparentando acúmulos de gorduras. O fígado estava bem. O cérebro, ainda aparentava um leve inchaço, bem reduzido em relação à chegada de Anna no hospital.
De resto, não sabiam quando ela sairia do coma e nem se esse tempo acarretaria em algum tipo de seqüêlas.
Queriam que Régia ficasse ciente que todos os esforços e tratamentos estavam sendo feitos e que ali estavam os mais renomados cientistas que existiam no estado, quiçá no país.
Por mais impassível que Régia quisesse se demonstrar, Clara podia ver o olhos se enternecendo. Estavam úmidos e vítreos.
- Como médico, também estou acompanhando o caso com interesse. E, como amigo, estarei aqui caso Anna necessite de qualquer cuidado no período em que nenhuma das meninas estiverem aqui.. - foi a vez do Prof. Arthur.
- Se algo acontecer com minha filha....
Todos se entreolharam, apreensivos com a possível reação da líder, diante das incertezas de mãe que apresentava no momento.
-...não por mim, que eu não poderia fazer nada por ela; mas, pelo que estou recebendo aqui, sei que ela teve o melhor e tudo foi feito para salvá-la, assim como preservar seu bem-estar.
Régia fitava uma a uma as pessoas na sala. Todos estavam paralisados, como que hipnotizados pelos olhos que prendia cada um, momentaneamente. Finalmente, deteve-se em Clara.
- Fiz muitas besteiras na vida e em mais uma delas, me deparei com essas pessoas. Eu quis lutar contra elas, sei que usei de força bruta e seria justo se elas quisessem me matar...- ela riu e Clara também sorriu - ..no entanto, decidiram lutar comigo, ao meu lado, pela vida da minha filha. Dizem que sou uma guerreira, mas teria perdido essa guerra, sem esperanças, se não tivesse essas mulheres me ajudando nessa fatalidade.
Todos estavam em silêncio, até o médico arrogante, apesar de inquieto, parecia meditativo.
- Só posso agradecer ao esforço e mobilização de todos aqui. Estamos ganhando algumas batalhas, mas ainda podemos perder a guerra, eu sei; mas, como disse, jamais poderei me lamentar de que algo foi deixado sem fazer.
Olhando para Marcella:
- Quando posso ver minha menina?
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Rebecca estava preocupada, pois não queria contar para Luck sobre o pai, mas também sabia que já estava com tantas coisas pendentes para contar, que temia a reação quando o fio da meada começasse a desenrolar.
Ela queria saber sobre Paula ; saber sobre o envolvimento das duas; queria perguntar sobre a pessoa do cartão que o Prof. Victor entregou para ela, dizendo que seria interessante o encontro da loirinha com tal pessoa. Enfim, tinha tanta coisa que sabia sobre a médica, sem que essa desconfiasse, que temia cada vez mais trazer todas essas descobertas à tona e causar um estrago na confiança conquistada; o que com certeza abalaria a relação das duas.
Era incrível, mas apesar de todas as provas e demonstrações, a relação das duas ainda era algo que denotava fragilidade. Becky sabia que precisava o quanto antes discutir esse assunto com Luciana, antes que fosse tarde. Se tudo era pautado em confiança, elas estavam indo muito mal. E, ao que parecia, tudo o que tinham até o momento estava alicerçado em terreno arenoso.
Não que a situação com o pai fosse algo tão delicado. Luck ficaria muito brava; lidaria com o pai dela como se ele fosse o verme dos vermes; nunca teria confiança nele e, provavelmente, ficaria insegura a respeito do que ela, Becky poderia fazer quando estivesse novamente com a família. Aliás, a loirinha percebia que a médica já estava e era evidente a preocupação.
Por outro lado, as reações de Luck em nada poderia modificar o que ela sentia pela médica. Rebecca, mesmo, estava sentindo esse desprezo pelo pai. Porém, queria muito manter a relação com o resto da família. E, o que realmente incomodava era que não tinha a menor idéia de como o pai reagiria. Percebeu que não tinha mais a mesma certeza de que o conhecia tão bem. Por isso, imaginava que a única forma de manter algum clima de coexistência pacífica era manter Luck fora das rusgas familiares, envolvendo-a apenas no que concernia ao fato de serem um casal e, sinceramente, isto por si bastava para mais uma situação estressante. Ou não!
Com a médica desconfiada de que João de Deus atocaiou o pai dela, as coisas ficavam muito próximos da verdade.
Esconder de Luck as coisas que coletara sobre ela; não contar sobre o pai, negando a ela a chance de ser a companheira no momento difícil; a possível alavancada para algum tipo de emancipação, era motivo mais que suficiente para a médica romper tudo. Se Becky estivesse olhando a situação, veria que toda e qualquer explicação vindas agora, seriam meras desculpas para atitudes que eram primordialmente nobres; porém, transformaram-se em culpas.
Contrariando o que Luck dissera, Becky foi procurar o capitão-do-mato, usando como desculpa uma visita ao filho dele.
- Como está o nariz?
- Vai ficar torto, mas eu gostei: fiquei com cara de mau! - disse o rapaz, todo gabola - Foi minha primeira briga. Até que estava indo bem....
- Nem vou comentar! Nem vou comentar. Você sabe o que penso sobre toda essa situação. - a loirinha ficou irritada.
O rapaz, que deveria ter uns 16 anos, ficou um pouco assustado. Todos no acampamento respeitavam a médica e a obedeciam, mas sabiam que a loirinha virava um capeta quando queria. Por baixo daquela bondade e aparente calma, estava um ser poderoso, não só com as palavras.
Pouco acostumado às mulheres, o rapaz com seus hormônios aflorados, não podia deixar passar desapercebidas as mulheres da cidade.
Ele fitava Becky e fazia um inventário mental sobre cada uma delas e seus apelos.
Se a loirinha imaginasse os pensamentos dele sobre certa doutora, o mataria.
"A dotora é um arraso, com aqueles zóios maravilhosos, pele morenada, cabelos brilhantes, toda seriona e ares de liderança. Parecia com Régia, mas tinha o corpo mais feminino, com curvas e tudo no lugar certo. E olhava como uma ave, um falcão majestoso". Ele estava com certos hábitos que não eram muito bem vistos.
"A loirinha, nossa!!!". Ele olhava e se deixava perder nos olhos verdes. O sorriso. E o corpo..nossa, como ela conseguia aquele corpo? Os braços mais lindos que ele já vira e, bem, as pernas...e também aquela barriga: o que era aquela barriga? E os peitos...belos melões. A médica tinha menos, a outra quase não tinha. Mas, essa Rebecca tinha tudo o que eu queria!". Nossa. Apesar de ser o furacãozinho que era e falar muito, o coração dele balançava por ela.
"O povo ali comentava que ela era muié-macho. Ela era caso da doutora. Bem, nesse caso, as duas eram? Vixe! Danou-se. Mas, será? AS duas, tão lindas. Dois muierão".
Cada vez que esse pensamento invadia sua cabeça, o rapaz não sabia se deveria acreditar. E, se fosse verdade, tinha vontade de chorar. Não sabia no lugar de quem gostaria de estar.
"Bem, de qualquer forma, ainda tinha a outra, a tal que era babá delas. Era bonitona também". Ficava pensando como aquela mulherada da cidade, cheias de não me toques, que nunca virão uma enxada ou podão, arrumavam aqueles braços cheio de músculos e barrigas tão lindas. Aquelas camisetas coladas não deixavam nada para ficar matutando. Ele estava deitado na enfermaria e, fingindo dormir, pode ver o corpo da outra. "E aqueles cabelos fininhos, parecendo fios de ouro".
"Eram duas loirinhas de zóios verdes. E duas morenas de zóios azuis. É, porque até aparecer essa mulherada da cidade, a líder era a mulher mais bonita que Daniel tinha visto. "Um pouco masculina, meio magra, peito normal, mas um pedaço. E brava, como onça do mato!"
"Ai, meu Deus, me perdoa por ter esse pensamentos tão sujos! E , bem, o senhor sabe o que mais eu faço...será que vou ficar cego ?"
Nesse exato momento mesmo, os olhos de Daniel estavam grudados nos peitos de Becky, que se aproximara para ver o ângulo do nariz. "Vou ficar cego, sim. Se ela súber, ela fura meus zóio.."
Ah!!! E ainda tinha o cheiro delas. "Meu Deus, eu vou pro inferno! Ou fico doente!"
- Por que um rapaz bonito quer ter cara de mau?
Ele corou.
- Ocê acha que sou bonito?
A loirinha riu para ele e acentiu com a cabeça, veementemente!
- Você é sim. Aposto que vai ter um monte de namoradas, se já não tem!
Ele não sabia o que fazer ou falar, então balançou a cabeça fortemente, negando ter namoradas. Sabia que ficava cada vez mais com calor e as orelhas queimavam.
Becky sorriu e ele queria sair correndo para o mato.
- Cadê o seu pai, Daniel?
- Disse que foi verificar algo nas cercas. Parece que tem gente mexendo por lá.
- Você sabe onde fica? Pode me levar?
Daniel ficou meio com receio, mas pensou que poderia passar mais alguns minutos com a loirinha.
- Ta bom.
Mentalmente, Becky se recriminava por desobedecer Luck, mas tinha algo em mente e ia realizar.
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Quanto tempo mais ela vai ficar?
Clara estava distraída, sentada no sofá na sala de Marcella, organizando algumas coisas no laptop e no palm, além da inseparável agenda tradicional.
Ao término da reunião, o Prof. Arthur ofereceu-se para levar Régia à U.T.I pediátrica, após um tour pelo hospital.
Marcella, por sua vez, tinha outro compromisso agendado. Assim, por duas horas, Clara conseguiu manter a concentração e organizar as suas pendências.
Por isso, estava tão absorvida que nem percebera que Marcella retornara à sala.
Ao ouvir a voz, já que não entendeu a pergunta, levantou a cabeça e encarou com olhar vago a diretora.
Manhã estressante?
Marcella estava com um ar de poucos amigos. Totalmente azeda.
A diretora atirou-se no sofá ao lado da secretária, após largar a pasta e o laptop sobre a mesa. Era visível a tensão no rosto. Era característico em Marcella o surgimento de uma veia no meio da testa, quando algo a irritava.
Como sempre, nessas situações, Clara passou o dedo suavemente em tal veia, tentando aliviar o semblante tenso.
Após colocar suas coisas de lado, depositou a cabeça de Marcella em seu colo.
Senti a sua falta ontem. - não era mentira da secretária.
Eu também.
Clara podia sentir a diretora relaxando.
Não gosto dela.
"Ops!"
Quando ela vai embora?
Vamos em três dias.
Você vai voltar para lá? Por quê?
A doutora quer que vá para preparar a volta dela e de Becky.
Abruptamente, Marcella levantou.
- Merda! Será que Luciana ainda não pode fazer nada sozinha? E Becky? O mínimo que poderia fazer era tomar conta da mulher dela.
Clara nem se deu ao trabalho de retrucar. Sabia que aquela reação não era o normal de Marcella.
Levantou-se e foi atrás da diretora, abraçando-a por trás e beijando sua nuca.
Alguém está de pá virada hoje! - disse enquanto beijava a testa, que apresentava o característico sinal novamente. - Sei que não é TPM. - tentou aliviar a tensão.
Não consigo entender porque vocês estão tão protetoras com essa .....essa.....jagunça! Depois do que ela fez...
Clara largou a diretora, com um certo ar de exasperação. Então é isso! Vai começar.
E a postura dela? Pode alguém ser mais arrogante e antipático? Como se tivesse condições para isso!
A cada palavra da diretora, Clara sentia o sangue ferver.
Não fosse a benevolência de Becky...
Clara a fuzilou com os olhos verdes quase amarelos, característica que poucos sabiam denotar sua raiva. Infelizmente, a diretora também não aprendera ainda sobre eles e continuou o ataque.
...o que está olhando assim? É a bondade de Becky que está ajudando essa fulana sem eira e nem beira, porque a doutora não teria esses gestos nobres e nem tamanha preocupação. Poderia, quando muito, ceder o hospital, mas não se empenharia tanto.
Chega, Marcella. Você está falando de situações que desconhece. Estar com raiva é uma coisa; fazer suposições levianas, outra. Posso entender sua antipatia, mas a indiferença ao momento difícil pelo qual ela passa, é inadmissível.
Marcella encarou Clara. Era a primeira vez, em todo o tempo que se conheciam, quer como amigas ou amantes, que presenciava uma atitude mais brusca por parte dela. Nunca vira os olhos daquela cor, muito menos, a expressão tão gélida.
Eu a julgo pelo que você me contou. Eu amo você e, se ainda não ficou claro, não costumo ser tolerante com quem ameaça tirar o que amo!
Por um momento, a secretária hesitou. Não sabia se entendera a frase corretamente. E nem como reagir ao que entendeu. Teve, entretanto, controle para sustentar o olhar.
Você correu um sério risco de vida pelos desmandos dela. Sinto por Luciana e Becky, também; porém, eu amo você e ela poderia tê-la tirado de mim, quando finalmente consegui ter seu amor. Pode parecer besteira para você e irracional que eu me sinta assim; naturalmente, a situação da criança sensibilizou todos; mas, no que me concerne, ela poderia ser a causa de um sofrimento meu e não vou querer bancar a boazinha agora, só para não ofender seus princípios humanitários.
Clara estava sentindo o peso daquelas palavras e as implicações. Até mesmo a ironia. Sentia culpa. Não estivesse tão preocupada com a situação, estaria ponderando sobre o fato de não conhecer Marcella como gostaria.
Marcella, você está construindo sua raiva por uma pessoa baseada por algo que poderia ter sido. Todos nós percebemos que teria sido um engano e, a despeito das conseqüências, teria sido algo honesto. Ela estava defendendo pessoas que dependiam dela, pessoas que nós estávamos ameaçando mesmo sem termos entendimento disso. E nem foi ela, foi um dos homens que ela lidera.
O olhar de Marcella era de incredulidade.
- Você pensa que me sinto melhor? Vamos colocar assim: alguém, sob o comando dela, poderia ter machucado ou mesmo matado vocês para proteger pessoas que ela defendia; então, eu posso, com direito, sentir muita raiva dela em defesa do meu amor que foi ameaçado. É algo honesto, mesmo que seja um "engano", como você diz.
Mas, você nem ao menos está dando uma chance a ela. Vi o que fez quando ela veio agradecê-la...
Clara, esse hospital não é meu. Se Luciana quer agradar Becky e deixar todos seus brinquedos novos para ela brincar com quem bem entender, não é a mim que essa troglodita tem que agradecer. Como disse a ela, estou cumprindo ordens de meus superiores.
O clima continuava pesado. Clara começava sentir culpa por ter exposto demais a líder.
Você deveria dar uma chance a ela. Três pessoas...melhor dizendo, quatro incluindo o Prof, não podem estar tão erradas ao entenderem e perdoarem os atos dela.
Eu não entendo o que os motivaram e nem quero. Com muita consideração por você, que parece ser muito afeiçoada a essa pessoa, eu consegui ser profissional.
Marcella olhou Clara e a secretária sabia que ela estava com outras inquietações.
O que você está pensando?
Como você sabe tanto sobre ela? Aquele ironismo com o médico, sobre ela ser bióloga. Parece-me que ela exerce certo magnetismo sobre você.
Clara desviou o olhar.
Seria a semelhança com a doutora? Ou, existe algo que você não me contou. Quem sabe, eu também desenvolva adoração por ela?
Clara recolheu suas coisas. Pendurou o laptop no ombro, pegou a bolsa e a pasta.
Em casa, conversaremos melhor.
Ah! Você vai para casa, hoje. Bom saber. Farei a janta. Vai levar a sem-terra junto?
A secretária saiu, sem uma palavra.
**********************************
O hospital era enorme. Ou, assim parecia para Régia.
Ao contrário de muitas pessoas, achava fascinante o ambiente. Lógico, o hospital ali era diferente. Coisa luxuosa. Um disfarce para suavizar que muitas pessoas ali passavam por sofrimentos e momentos agonizantes.
Mas, era interessante perceber a calma, a ordem, aquela ar de limpeza, o cheiro.
Passaram rapidamente pelo Pronto-Socorro, que nem de longe lembrava os tradicionais atendimentos públicos. O local de espera era mais parecido com uma sala de recreação.
Enfim, foram descendo pelos andares e o professor ia explicando cada ala o que fazia e mostrando todos os equipamentos. Conforme ele havia dito, aquele era o primeiro hospital do grupo que recebera o certificado de padrão internacional.
Mais uma vez, Régia ficara impressionada com a parafernália de segurança no andar de Luciana.
Bem, não tínhamos essa necessidade...ou, por outra, não nos aperceberamos dela até o dia que uma pessoa, muito revoltada com as limitações do plano que possuía, conseguiu invadir o andar da diretoria e render uma das secretárias de Luciana por alguns tensos minutos.
Foi Clara?
"Interessante" o Prof. Arthur pensou, ao sentir o súbito interesse.
Não. Clara ainda não trabalhava com Luciana. Felizmente, conseguimos controlar a situação. De qualquer maneira, quando o Prof. Thomas ficou sabendo, ordenou toda essa reforma na área de segurança. Ele não quis saber de "mas, mas" e ficou muito irritado com a fragilidade e facilidade com que a pessoa invadira seu território. Foi um inferno, pois algumas pessoas receberam a culpa e foram sumariamente demitidas.
Ele era o marido da doutora, não?
Sim. Como soube?
Andamos conversando.
Atravessaram para o prédio adjacente, através de um dos andares, e chegaram à ala das U.T.I's.
O professor sempre contando e orgulhosamente explicando a modernidades e tecnologia de ponta utilizada.
Antes de se afastar do exercício da profissão, Luciana foi a responsável pela criação de toda a ala infantil, que é uma parte exclusiva do hospital, dedicada somente aos pequenos. Infelizmente, algumas coisas ainda estão por terminar, desde que ela se desinteressou.
Enquanto observava todos os detalhes que envolviam desde a decoração, até o cuidado com quinas de móveis, vedação de tomadas, brinquedos e toda sorte de atenção aos problemas e necessidades dos pequenos, bem como de seus acompanhantes; Régia não podia deixar de sentir muita admiração por Luciana. E respeito. Até onde pode entender, aquilo tudo representava parte de um império, no qual a médica era a toda poderosa.
Finalmente, o professor informou que fariam a assepcia necessária para entrar na U.T.I. Assim, após devidamente preparados, Régia encontrava-se ao lado de sua filha. O professor ficou alguns minutos, explicando a função de cada aparelho preso ao corpinho frágil. Depois, ao perceber que a líder não lhe prestava mais atenção, retirou-se, deixando-as sozinhas.
Terrível batalha lutar contra as insistentes lágrimas. Não que Anna estivesse aparentemente sofrendo. Ao contrário, estava parecendo o que era: um anjinho dormindo.
Porém, o peso de ser mãe abatia-se sobre ela de uma forma massacrante. Olhava aquele serzinho em meio a tantas máquinas; queria saber o que estava acontecendo com ela em seu sono, sua ausência desse mundo. Sinceramente, queria estar no lugar dela.
Queria saber, em primeiro lugar, o que a levou a querer continuar aquela gravidez e trazer um inocente ao mundo no qual ela nada tinha a ofertar.
Não fora por religião; não fora por princípios morais; nada disso. Quanto mais pensava, menos entendia. Nada na concepção daquela criança foi digno. Tanta raiva, vingança, sangue, sofrimento, desamor. Desamor. Perdera tudo que julgou amar. Pior: perdera todos que lhe demonstraram amor, sob qualquer forma. Perdas, perdas, perdas. O único ganho que teve, conquistado a ferro e fogo, foi o direto a viver sua vida. Lutou por isso, barganhou com a sorte e a desprezou também. Ignorou limites, transpôs barreiras, criou novos códigos. Venceu em sua teimosia e obstinação. E, ao sair da guerra, levou consigo algo que nunca imaginou: uma vidinha.
Não era pouco. Era um prêmio lindo!!! Uma dádiva e benção. Mas, seu tipo de luta não merecia tal recompensa. Em mais uma de suas atitudes egoístas, se achou merecedora de uma compensação por tudo que perdeu pelo caminho de escuridão pelo qual trilhou.
Cada vez que aqueles olhinhos a olhavam; cada vez que a boquinha perfeitinha sorria, mostrando os dentinhos branquinhos; cada vez que a vozinha balbuciava "mamãe", ela sabia que cometera um crime horrível, trazendo aquela criança para uma vida de incertezas; porém, também sabia que só assim poderia ter esperanças que viver valia algo.
Não merecia ser mãe, mas queria com toda a força que tinha, conquistar esse merecimento. Tinha uma dívida para com Anna. Agora, nem sequer sabia se poderia cumprir sua missão. E isto doía.
Ao levantar a cabeça, seus olhos se depararam com dois farois esverdeados apontados para ela. Eram sinais abertos para que suas lágrimas caissem, livres, sem vergonha. Mesmo com o vidro entre elas, a líder e a secretária travaram um diálogo silencioso através de seus olhares. Tudo era muito intenso.
"Então, o amor voltou para provar da minha dor novamente".
Fim do capítulo
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