Pentimentos por Cidajack
Capítulo 11
A cabeça de Rebecca começou a latejar. Só então lembrara que fora atingida na cabeça quando a trouxeram para o acampamento.
- Você tem algum remédio para dor-de-cabeça, Clara?
- Só fiquei com o celular e a carteira no bolso. Ficou tudo na pick-up.
Clara olhou ao redor e viu uma caixa do lado da cama da menininha. Ao verificar, constatou que estava vazia.
- A aspirina acabou. - virou e sacudiu a caixa. - Vamos ver se Régia tem mais com ela.
- Do jeito que o fulano que atende aqui falou, não tem mais nenhum medicamento. Nem água potável. Nem comida suficiente. Não entendo, Clara: por que eles querem as terras, se mal podem se manterem vivos? Suas crianças morrendo de doenças praticamente erradicadas; os adultos não aparentam melhores condições de nutrição e saúde; não entendo, mesmo!
Clara ponderou o que a jovem disse. Ela tinha razão, mas algo fazia aquele povo se agarrar ao pedaço de terra no qual se estabeleceram. Pela cumplicidade com o dono do sítio, dava para perceber que eles estavam acobertados pelo povo do local, o que descaracterizava a atuação dos sem-terras encabeçados por políticos.
Dava para perceber que fazia pouco tempo que tinham se estabelecido ali. Uns dois anos, no máximo.
- Você é a dona das terras...
- Eu não. Meu pai.
- Na ausência dele...
Rebecca, que estava sentada junto à doutora, levantou-se ao mesmo tempo em que colocava os dedos na têmpora, como querendo impedir alguma explosão. Fez uma careta.
- Clara, minha cabeça vai explodir. Está uma bagunça de pensamentos aqui dentro. Não consigo pensar claramente, sem argumentar com Luck. Depois de toda essa confusão, mais do que nunca eu quero sair daqui. Porém, a figura ali disse que o dono das terras fugiu. Fugiu de quê?
- Ou, de quem?
Ambas olharam para o garoto, que dormia.
- Quer saber? - Clara falou em um tom resoluto - Régia é quem tem que nos explicar muita coisa. Vamos.
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A janta era simples. Alguma espécie de caça, farinha, batata e toda sorte do qualquer coisa que desse para ingerir.
Becky se deu conta de que sua dor-de-cabeça era, em parte, fome. Por mais que lembrasse que muitos estavam sem comer, não conseguia ser moderada. Comeu com gosto, mesmo que estivesse tudo muito insípido.
Clara conversou com Régia sobre a menina. Chamava-se Anna, tinha quase 4 anos. Era a única filha.
- Antes que você pergunte pelo pai, ele está morto, com a minha melhor faca cravada no peito dele. Algum cachorro deve ter comido a partes da masculinidade dele, quando eu arranquei e joguei fora. Anna foi a última coisa que ele fez: assinar a sentença de morte. - com certa fúria e dureza nos olhos, arrancou um pedaço de carne vorazmente do osso que a prendia.
Becky parou de comer repentinamente. Clara bebeu de um gole todo o líquido, alguma aguardente, que tinha no copo, preso em sua mão.
- Régia, temos que esclarecer algumas coisas.
A mulher fez um gesto para Clara continuar.
- Uma das filhas do dono destas terras descobriu recentemente que ainda as possuía. Aparentemente, por conta própria, ela deduzira que o pai se desfizera das terras. Na verdade, ela sabia pouca coisa sobre os negócios do pai. A própria extensão do latifúndio a surpreendeu.
- Então ela mandou a advogada de zóio azul e a engenheira aí pra investigar.
Apesar de surpreendida pelas novas profissões das suas patroas, Clara susteve a farsa.
- Mais ou menos. O fato é que ambos os lados desta contenda foram pegos de surpresa. Elas jamais imaginaram que encontrariam vocês; e vocês, por outro lado, ficaram preocupados com a visita repentina. Régia, se não for muito atrevimento, você poderia nos explicar o que acontece? Rebecca e eu ponderamos e chegamos à conclusão que estas terras nada valerão, já que vocês estão nitidamente sem recursos. E, parece-me que não estão sob nenhuma orientação de algum partido.
A estória era mais simples do que parecia: todos eles eram pessoas que viviam em uma mesma fazenda. Tinham um acordo verbal com os donos da terra. Um belo dia, o sujeito simplesmente resolveu expulsar todo mundo. O acordo era com o pai do infeliz. O pai morrera em uma briga e o sujeito esperou até assentar a poeira. Fez a última colheita e simplesmente não dividiu nada. Como era um acordo verbal, expulsou todos.
- Mas houve uma ironia nessa injustiça. - os olhos de Régia brilhavam na luz do lampião - O pai do descarado era um viciado em jogo, com apostas altas. Foi morto quando tentava usurpar mais terras de algum infeliz que perdera tudo pra ele. Igual o antigo dono daqui.
Ao ouvir isto, Clara segurou firme o pulso de Becky, antes que ela pudesse falar qualquer coisa. Talvez pela luz fraca, a líder não percebera a tensão e continuou com a narrativa.
- Então a ironia: o cabra morreu antes de poder fazer qualquer coisa com estas terras. Nem mesmo o filho sabia da aposta. Quando ele nos expulsou, a cidade inteira dava estas terras como abandonadas. Ninguém entendia porque, já que o antigo dono era um homem honrado e vivia decentemente. Mas, que as terras estavam desocupadas, estavam. Migramos de lá para cá, com algumas poucas rações e tudo o que pudemos juntar.
Régia completou a narrativa explicando que somente algumas poucas pessoas sabiam que eles estavam ali. Não queriam encrenca com o antigo patrão, caso ele ouvisse algum boato de que o pai ganhara as terras. Por isso, resolveram ficar nesta parte que parecia ser a mais abandonada e distante.
Clara sentia que Becky não ia se conter por muito tempo.
- Como você soube dessa estória? Você conhecia o pessoal que morava aqui antes? - a secretária perguntou.
- O João de Deus estava na cidade quando o infeliz, dono daqui, perdeu tudo. Pelo o que ele conta, o sujeito apostou tudo e, numa última tentativa de pegar de volta, apostou uma das filhas. Parece que o velho jogador tinha um olho grande pra cima de uma delas.
Contrariando o que Clara esperava, uma voz calma se fez ouvir.
- Régia, você pode chamar o João aqui? - Rebecca pediu.
Sem perguntas, a líder indicou a porta da barraca e o jagunço que as acompanhava saiu correndo. Minutos depois, João entrou.
- Ele ta aqui. O que você quer dele Rebecca?
- Quero ouvir tudo sobre a noite da aposta.
- Que....que aposta? - o sujeito olhou desconfiado para Régia.
- Como o dono daqui foi depenado pelo véio patrão. - a líder esclareceu, impacientemente.
- Por que devo contar? - o homem desafiou.
- Por que eu também to curiosa, João de Deus. Desembucha. - a líder falou, sem margem para réplica.
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Foi a estória mais inacreditável que todos presentes já haviam escutado.
Enquanto o homem falava no seu linguajar, Becky esforçava-se para entender tudo, embora quanto mais ouvia, menos queria ouvir.
O pai perdera o que ele reconhecia como sua propriedade em um jogo de cartas. Desesperado pela possível ruína moral e financeira, tentou literalmente uma última cartada: uma nova aposta, tipo tudo ou nada. Porém ele não tinha mais o que apostar. Daí o outro jogador, que era o dono das terras mais próximas, uma raposa que sabia bem o que queria, fez a sua cartada de mestre: toda a terra e dinheiro que tinha ganho contra a filha mais velha do adversário. Dizia o sortudo que a menina era muito bonita, diferente da irmã e de todas as pessoas da região. Chegara a mencionar os olhos verdes encantadores.
- "As terras e o dinheiro contra sua delicada jóia de ouro e esmeraldas", foi o que o meu antigo patrão disse. Inté hoje num esqueço o momento. Não sei se foi preciso muita coragem ou muita farta de miolo, mas o cabra aceitou. Aceitou e perdeu. Perdeu e sumiu da noite para o dia. Nóis fomos mandados atrás do cabra, mas ninguém queria capturar o infeliz. Eu nunca vi as filhas dele, mas sei que o patrão ficou muito bravo e cuspindo fogo quando vortemo de mão abanando.
- Mor de que cês num cumpriram o serviço? - Régia quis saber.
- Sem o sujeito, palavra de aposta num tem validade. Pouco me importava a filha do sujeito, mas as terras de certo estavam abandonadas. Nóis só carecia de tempo.
Rebecca, que permanecera o tempo todo olhando fixamente para o lampião, levantou-se.
- Estou cansada.
Sem mais uma palavra, saiu da barraca, deixando três pares de olhos fixos no vazio onde até então ela ocupara.
- Saia, João.
Com um mal-disfarçado olhar rancoroso, o homem saiu.
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- É ela, não é?
Clara assentiu com a cabeça.
- Mais uma vez a desgraça da cobiça. Ela não sabia de nada?
Novamente o silêncio e o assentimento.
- Mas, as coisas foram bem pra ela. Você disse que ela é sua patroa, não?
- Régia, minha patroa, de fato, é a doutora. Rebecca é a parceira dela, se você me entende.
Clara pode ver um brilho diferente nos olhos da líder.
- A forma como aquele furacão verde defende aquela mulher não precisa de palavras para dizer o que acontece entre elas. Quer saber, foi esse amor aberto que me fez ter paciência com ela. Sei o que é amar e perder. Perder para a ignorância e, depois, para morte.
Clara estava em pé, junto ao poste central da barraca.
- Você está com sono, Clara?
- Não.
Com um gesto, Régia indicou a cadeira próxima a sua.
- Quer se embebedar comigo, ou as muié da cidade só sabem fazer perguntas?
Sem responder, Clara sentou e entornou o primeiro copo de um gole só. Régia riu e depois num gesto idêntico, engoliu sua bebida.
- Já disse que gosto de você, Clara?
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Antes de dormir, Becky cuidou de Luck. Enquanto refazia os curativos, percebeu movimento nos olhos da médica e, por alguns segundos, eles ameaçaram abrir, ficando semicerrados. Um fio de voz saiu do corpo ainda quente.
Luck não conseguia falar, pois os lábios secos grudavam e a língua não ajudava, além de estar com a voz rouca, pela falta de uso.
Becky ajudou-a a beber um pouco de chá.
- Onde.....minhas costas....dói tudo...Becky...
Antes que pudesse dialogar, sentiu a rigidez da doutora relaxar e ela adormeceu novamente.
"Luck, Luck, que maravilhosa idéia, meu amor! Muito obrigada." sorriu sarcasticamente.
A jovem estava exausta. Deitou no fino colchão da cama que estava perpendicular à da médica. Ainda que quisesse, não pode dar vazão ao turbilhão de pensamentos. Adormeceu instantaneamente.
Pouco tempo depois,acordou sobressaltada. O que parecia ter sido alguns minutos, revelou-se horas, de fato.
O dia tinha amanhecido. Duas coisas a tiraram do sono, normalmente pesado: a menina estava tendo convulsões e o rapaz tentava segura-la, enquanto Luck fazia um esforço supremo para levantar da cama.
- Calma, amor. Não força, seus ferimentos estão abertos.
- Douglas...ele precisa de mim...- a morena ainda estava delirando.
- eu sou médica....eu não vou deixar ele morrer...- ela se debatia e Becky estava novamente se jogando sobre ela para segura-la.
- de novo....- ela estava confusa, olhando para a menina, mas o olhar não era vago, como antes.
- Luck, meu amor, Luck...não é Douglas, é a Anna. Querida, seu filho não está aqui. Olhe.
- ...ele morreu....eu deixei....- então ela olhou para a menina e pareceu relaxar.
- Sshh....calma...ninguém deixou. Assim, relaxa. Calma.
Enquanto a jovem lutava sua própria batalha, o rapaz tentava acalmar a menininha.
- Droga! Cadê o responsável pela enfermaria? Cadê a Clara?
Luck acalmara-se, mas estava com os olhos abertos. O azul estava intenso, focado em algum ponto além da parede. Eles não viam Becky. Pareciam concentrados em algo. Algum transe.
- Daniel, fique aqui olhando as duas, eu já volto.
- Mas....mas...
Sem que ele pudesse argumentar, a loirinha disparou pela porta e em pouco tempo retornou. Uns quinze minutos depois, Clara e Régia entraram.
- O que houve?
Régia correu para o lado da menina, que gritava agora pela mãe e não parou, alegando que Régia não era sua mãe.
- Sou sim, pequenina. Que você tem? - a febre estava forte de novo.
- Becky!
Todos olharam na direção da cama encostada na parede. Luciana, com muito esforço, tentava olhar na direção da cama da menininha.
- Calma, Luck. Está tudo bem. Descans....
- Fale... os... sintomas ....dela..
- É catapora. Algumas crianças morreram do mesmo mal. Deve ser a desnutrição....
- Não...quem é a mulher......- de repente, os olhos demonstraram reconhecimento - ...ela é a mulher que nos salvou. Ainda estamos com eles? Quem é ela?
- Longa estória amor, quando você estiver melhor, eu conto.
Luck estava cansada, queria repousar, mas uma voz lá no fundo da sua cabeça estava tentando alerta-la para algo. Ela tinha uma coisa urgente para fazer. Ela não queria ouvir nada, queria dormir, mas ela lembrava bem do sonho, da criança: ela tinha que fazer alguma coisa com a criança. Esforçava-se para permanecer consciente.
- Você é a mãe? - fez um gesto para a líder se aproximar. - Eu não estou bem, tenho que saber sobre o que ela tem, antes de descansar.
Rapidamente, Régia contou toda a evolução dos sintomas da menina.
- Meus chás não pareciam adiantar e, depois que o comprimido pra febre acabou....
- Aquela caixa de aspirina....- antes que Clara pudesse falar algo, Luck agarrou o braço de Becky e tentou sentar.
- Régia, quanto de aspirina você deu?
- Muito pouco, a gente quase não tinha.
- Quanto?
- Umas vinte mais ou menos.
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Luciana sentia suas forças se esvaindo. O colchão era fino e ela sentia o estrado pressionando seus ferimentos. O que a fez deitar sobre o estômago. Nesta posição, falar era um ato de extremo esforço.
- Régia, ela tem que ser removida para um centro de terapia intensivo. As convulsões começaram quando?
- Hoje foi a primeira.
- Ainda tem tempo, mas muito pouco.
Recuperando um pouco o fôlego, Luck retomou seu habitual autoritarismo.
- Não sei onde estamos, mas você tem que deixar Clara agir. Apenas garanta a ela carta branca, Régia.
Sem pestanejar, a líder aquiesceu.
- Clara tire essa menina daqui ainda hoje. Avise o hospital para a chegada dela. Possível Síndrome de Reye.
- E você, Luck? Você precisa de cuidados também. Tem que suturar...
- Becky, quem é a médica aqui?
Antes que a loirinha pudesse responder, Régia falou:
- Até agora, nenhuma das duas eram...
- Régia, a Dra. Luciana é médica. Pediatra. - Clara informou.
Sem entender nada, a mulher ficou calada.
- Becky, eu estou bem. Seja lá o que for que tem nesses chás, eu estou bem. Só estou cansada, dolorida e com muita sede.
- Você não está bem. Acabou de ter um devaneio...
- Becky...sermão, não.
Estendendo a mão, a médica puxou a jovem para si e, sem constrangimento, beijou-a nos lábios.
- HUmm...acho que você está melhor, mas...- antes que pudesse terminar a frase, Luck estava novamente desacordada.
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Rapidamente, Clara começou a se mover. Pelo pouco uso, o celular estava funcionando. A secretária contatou o hospital e depois solicitou o resgate. O problema era: qual o lugar mais próximo para alcançarem a menina rapidamente.
- Eu conheço uma pista clandestina. - Régia informou.
Clara e Rebecca olharam com espanto e curiosidade.
- Contrabando. - foi a explicação seca.
- Você consegue passar as coordenadas para o piloto?
- Eu sei pilotar.
Clara só passou o celular para Régia, ainda tentando assimilar as novas descobertas.
Aproveitando, Clara pediu para a líder providenciar transportes para ela ir até a cidade, buscar alguns suprimentos básicos. Principalmente água potável, já que a doutora estava precisando.
- Clara, por que a gente não vai no avião que vem buscar a menina.
- Pelo o que a doutora disse, Anna corre risco de vida. Na nave de resgate não tem espaço para tanta gente. Além do mais, a pista é clandestina. Não quero muito alarde para o fato.
Quando Becky ameaçou ter um de seus ataques, a voz de Luck ecoou no ambiente.
- Clara está certa. Além do mais, não terminei o que vim fazer aqui. Régia, temos que conversar. Entretanto, Clara, você poderia...
- ...junto com o resgate, está vindo outro médico e alguns medicamentos, incluindo vacinas.
Sem uma palavra, mas com aprovação, Luck lançou um olhar que encheu Clara de orgulho. Por sua vez, Becky correu até ela e a beijou, após um forte e longo abraço.
- O que seria de nós sem você, nossa guardiã.
- Rebecca, pára com isso.
Régia sorriu.
- Como você disse, Clara, quando não é provocada, a fera é bem dócil.
Rebecca enrubesceu e todos riram, até a médica.
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A equipe de resgate era esperada para logo após o meio-dia.
Tudo estava pronto para Clara ir até a cidade e retornar a tempo.
Diferente da forma como fora trazida, desta vez, Clara voltou com a caminhonete até o sítio, seguindo pela estrada normalmente, ao invés de seguir pela trilha escondida. Demorava um pouco mais, mas era uma estrada relativamente segura e de fácil acesso com veículos.
No sítio, pegou a pick-up e foi para a cidade. Régia a instruiu a levar o tal de João. Apesar de ficar carrancudo o tempo todo, ele cumpriu sua missão: conseguir os suprimentos sem muito alarde. A cidade era muito pequena, um único armazém. Clara praticamente levou tudo o que tinha no estabelecimento. Constatou que a água seria um problema.
- Quantas pessoas tem naquele lugar, João?
- Umas cinqüenta famílias.
- Cerca de 250 pessoa, então, considerando-se 5 pessoas por família; 100 adultos, 150 crianças. Ai, meu Deus!
Bem, por enquanto daria. A dra. não iria ficar muito tempo e , dependendo do que fosse resolvido, pensaria em algo depois.
Perguntas não foram feitas diretamente, mas todos os olhos da cidade estavam na caminhonete sendo carregada; e, inevitavelmente, todo mundo comentava entre si.
A secretária sabia que em breve teriam notícias da repercussão daquele carregamento.
De volta para o acampamento, deixou tudo por conta dos homens e foi fazer seu relato para Luciana.
Ao entrar na enfermaria, percebeu que nova confusão estava estabelecida.
- Eu vou com minha filha e ninguém vai me impedir. Você pode ser a médica, mas ainda não é a líder por aqui.
- Você não vai sair daqui enquanto a gente não esclarecer tudo. - Rebecca estava furiosa.
A doutora estava quieta, mas o olhar não denotava calma e nem paciência, demonstrava que apenas estava recuperando suas forças.
- Não adianta você ir, Régia. Ela vai ser colocada em uma U.T.I. Vai ficar desacordada por um bom tempo. Se acordar, nem saberá quem é você. A situação dela é grave. - Luciana explicou como médica.
Régia olhava para a filha. À luz do dia, seus olhos eram quase iguais aos da doutora, mas tinham mais calor, mais compaixão. Eram mais ternos. Quando olharam para Clara, estavam com uma ponta de desespero, que rapidamente foi substituída pela teimosia e altivez habituais.
A secretária sentiu por aquela mulher e sua filha.
- Eu vou doutora. - Clara falou. - Se Régia confiar em mim, é claro!
Clara não estava pedindo permissão para ir, nem estava preocupada que a médica pudesse objetar. Percebeu que só se a líder vetasse, ela ficaria.
Luciana percebeu que desta vez, ela não iria mandar em Clara.
- Clara! Nós precisamos de você. Luck...
- Mais uma vez, Clara é a única que está pensando por aqui. - Luciana falou.
- Luck..
- Becky, meu amor, acredito que já temos tudo o que precisamos e, com a chegada do médico, eu estarei sendo medicada. Ainda tenho febre, mas não sinto mais aquele torpor. Só cansaço e dor. Régia tem que ficar, pois precisamos tomar algumas decisões e ela é, afinal, a líder por aqui. Como eu já disse, Anna vai passar por um sério período de tratamento e nem se dará conta de quem está com ela.
Todos ficaram em silêncio.
- Régia, a decisão é sua. - a médica falou, quebrando o silêncio.
A líder olhou para a secretária. Clara estava encantada com os olhos azuis e os sentimentos que viu neles. Sem palavras, acordaram seus destinos.
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Clara, Régia e Anna seguiram na pick-up. A pista ficava uns 45 minutos distante do acampamento.
Na noite anterior, quando ficaram juntas se embebedando, falaram de muitas coisas. Clara falou da sua vida como secretária da médica. Das suas atribuições e responsabilidades. Tentando ser o mais discreta possível, contou sobre a aparição de Rebecca. Contou algo sobre a vida da jovem no período que transcorreu entre a saída da fazenda e a chegada na casa da médica.
Régia demonstrou-se muito revoltada com o que o pai da jovem havia feito. Não escondeu a repulsa pelo velho dono das terras que ganhara a aposta.
- Veja que coisa: um homem com terras, família, uma vida decente; de repente, perde tudo; joga a família em um limbo, perde-se da filha que quis preservar; e tudo por causa de um vício. Cada um faz o seu destino. Rebecca fez o dela, apesar do pai. Com todas as coisas erradas e dificuldades, conseguiu ser íntegra. Sabe Clara, a coisa que eu mais dou valor é a integridade. Todos batem, cutucam, torcem, esfolam minha carne, mas o que sou ninguém toca. Ninguém, homem ou mulher, diz o que devo ou não fazer. Faço e vivo como acredito.
Não foram palavras curtidas no álcool consumido, mas na alma de alguém que estava ali, liderando famílias, cuidando e mantendo, como podia, aquelas pessoas. Eles acreditavam nela.
- Como você se tornou líder dessas pessoas?
Ela sorriu um sorriso amargo.
- Força bruta, um pouco de tutano, alguns truques de sobrevivência... - sacudiu os ombros - Não é preciso muito quando se tem pouco. Essas famílias só sabem trabalhar com a terra, tirar sustento dela. Não sabem argumentar, negociar, pedir. Tirar, se for preciso. Entendem o poder. Precisam de alguém para conduzi-los.
Olhava para o líquido amarelo. Uma mistura de pinga com carqueja. Amargo. Bebeu sem piscar.
- Tem uma coisa, uma curiosidade, que está me incomodando.
- Lá vem suas perguntas, muié da cidade. - sorriu, mostrando os dentes incrivelmente perfeitos.
- Por que você tenta parecer como um deles?
O sorriso suave, transformou-se em um sorriso de fera, com os caninos mais pronunciados.
- Você tenta falar com o sotaque regional, tenta até errar a pronuncia das palavras, mas dá para perceber...
Régia segurou o pulso de Clara. Por um instante, a secretária pensou que tinha ultrapassado a linha. Acabara com a cordialidade.
Ela falou com o rosto a alguns centímetros de Clara, que podia sentir o cheiro do álcool misturado ao suor, algo muito rústico, de certa forma, excitante.
- Secretária de grã-fina, muié da cidade, cheiro bom....- começou a deslizar a mão calejada nos braços da secretária - pele macia....- pegou uma mecha do cabelo - ...pelos sedosos...- sem perceber, Clara fechara os olhos - você acha que eu sou como? Se não sou como eles...- num gesto simples, mas de muita intensidade, passou o dedo áspero pelo contorno do rosto de Clara - ..... também não sou como você. - abruptamente, empurrou o queixo da secretária, que saiu do transe.
Ficaram em silêncio. Régia a olhava fixamente. Os olhos eram muito parecidos com os da doutora. Agora, sob o lampião, apenas refletiam os lampejos da chama. Eram intensos. Não havia raiva, frustração e nem dureza, como os de Luciana. Havia muita determinação, ousadia, destemor. Eram suaves, quando os da doutora eram sempre duros. Ambas tinham o autoritarismo. Régia tinha mais calor, mais benevolência. Era a mistura certa: o lado poderoso e o lado humano.
Clara olhava para ela e tentava adivinhar quantos anos ela teria. Era uma mulher que estava acostumada a viver ao ar livre. Sua pele era extremamente morena, curtida de sol, vento, chuva, poeira. A camiseta regata mostrava os braços bem torneados, mas não por academias. Suas mãos demonstravam que ela estava habituada a trabalhos pesados e os músculos ratificavam essa conclusão. O andar era confiante. Não era tão alta quanto a doutora, mas conseguia impor sua presença. Seu corpo era liso, não tinha muitas curvas. Não fossem os seios proeminentes, poderia se passar por um homem. Os cabelos negros e grossos, preso em uma trança. E os dentes, que a secretária pensava como ela conseguia mantê-los tão claros, com tão poucas condições de higiene.
"Sem dúvida, uma mulher atraente" - Clara pensava em seu estado de embriaguez que não era só pelo álcool.
Sentia tremores estranhos no estômago. Não sabia se era a bebida, se era uma vertigem súbita, mas sentia-se cada vez mais perto daquele mar azul, cada vez mais mergulhando naquela umidade...as ondas lambendo seu corpo, como as labaredas do lampião, tamanho era o calor.
"Por que não me sinto refrescada por este mergulho" , Clara pensava e então se deu conta que a umidade na qual mergulhara era a boca que agora recebia sua língua. A onda que lambia seu corpo, fora a língua que bailava ao redor de seus lábios, em seu pescoço, na orelha; esquentando todo seu corpo.
"Eu vou afundar..." sentia as pernas fracas, quando Régia a puxou para seu colo. "...não, se eu me agarrar..." sentia o corpo preso pelo braço musculoso, não sabia o que fazer com os próprios braços; não sabia o que podia, se era certo, se poderia nadar naquelas águas.
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Estavam ali, sozinhas, naquele pequeno espaço. Régia segurava Anna em seus braços. Clara dirigia. Segurava o volante com tanta força, que as juntas dos dedos estavam embranquecidas.
- Desculpe-me.
- Como?
- Ontem. O que aconteceu. Ou melhor, não aconteceu. - sorriu, sem-graça.
Silêncio.
- Estávamos bêbadas. Eu estou só há muito tempo, você estava ali, toda cheirosa, macia...eu devo desculpas a você. Não é a primeira vez que sou recusada.
Não era isso. Não fora a bebida, não fora a necessidade. Nem fora sexual, ainda que o desejo estivesse presente. Clara não queria ouvir essa resposta.
- Eu não recusei você.....
- Não. Só me derrubou da cadeira e foi se esconder, em algum lugar no meio do acampamento.
Clara riu, sem vontade. Régia também.
- Como já disse, tudo bem. Nunca forcei alguém a ficar comigo. Pensei que você queria...
- Eu queria.....na verdade, eu quero. - a última frase saiu baixinho, como um sopro, através dos lábios da secretária.
A conversa morreu aí. Régia não replicou.
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A secretária estava confusa demais. Ficara tanto tempo sem alguém. E, agora, quando julgava estar segura de seus sentimentos e feliz em sua relação recém-construída, via-se presa em uma armadilha.
Sua praticidade orientava-a a esquecer tudo e voltar seus esforços para seu atual envolvimento. Porém, não conseguia permanecer indiferente aos apelos conjuntos feitos pelo corpo e pela alma. Não podia ignorar o que ocorrera naquela barraca, na noite anterior.
Clara sabia que ela e Régia tinham uma vida totalmente diferente. Um mundo cujas distâncias iam além dos milhares de quilômetros que as separavam geograficamente. Sabia que estava confortavelmente estabelecida da forma como sua vida estava, finalmente, estruturada sentimentalmente. A razão sabia, mas o calor que sentia por estar ao lado daquela mulher rude e tão díspar, deixava margem para todo tipo de questionamento.
De repente, não estava mais tão segura sobre seu relacionamento. Só sabia que seus princípios não permitiriam qualquer tipo de desonestidade para com a outra pessoa. Precisava trabalhar o que sentia. Entender o que era aquilo tudo. Se tal situação a levara a questionar sua relação, seria real o que tentava construir?
Internamente, Clara se estapeava por se colocar em tal situação. Tinha que permanecer focada. Sua principal tarefa era dar assistência à menina e zelar pela integridade de Becky e da doutora. Não era a hora mais adequada para querer ouvir seu emocional.
- Você estava certa.
- Como?
Clara ficou confusa.
- Meu pai era um biólogo sueco perdido junto com um grupo de pesquisadores brasileiros. Adorava aventuras e a vida nas selvas. Fixou-se algum tempo com uma tribo. Minha mãe era uma índia. Aparentemente, ele a amava e manteve a família. Eu tive a primeira infância entre os índios, depois papai me levou para cidade, onde estudei botânica. Herdei dele a cor dos olhos e o amor pela aventura. Tão logo me formei, voltei a morar com eles. Vivíamos bem. Saía com ele e suas expedições. Um dia, fomos visitados por nossos vizinhos de fronteira. Homens envolvidos com toda sorte de tráfico, desde armas e peles até entorpecentes. Fomos brutalmente atacados. Meus pais morreram. Eu fugi. Tinha 23 anos na época.
- Qual a sua idade?
- Vai começar a chuva de perguntas!
- Escuta: se você está contando, é inevitável que eu pergunte. Se não quiser perguntas, não conte mais nada.
Clara não percebeu o olhar de espanto e, ao mesmo tempo, de divertimento que a líder dirigiu a ela.
- 32 mês que vem.
- Foram nove anos intensos...
Régia começou a rir, o que deixou Clara desconcertada.
- Tá certo, Clara, minha aparência de 80 anos comprova que os vivi todos nos últimos 9 anos da minha vida.
A secretária queria morrer pela sua falta de tato. Se todos os tapas mentais que ela estava se aplicando fossem reais, seu rosto estaria muito inchado. Vermelho já estava.
- Não quis dizer que você aparenta mais do que tem...
- Sei que aparento, não se preocupe. É o meu troféu.
- Mas...ainda quero que me desculpe...realmente, eu fui de uma sutileza ...nem sei o que importa sua idade.
- Se é tão importante, você está desculpada. Quer ouvir o resto?
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Após sair ilesa do massacre que acabou com sua aldeia e com a vida de seus pais, Régia estava em sérias dificuldades, pois tudo o que tinha também perdera-se na destruição da sua cabana. Literalmente, estava sem lenço nem documento, no meio da mata. Tinha conhecimento suficiente para sobreviver na selva, mas estava encrencada se quisesse voltar para cidade. Não conhecia muita gente. Conhecia as aldeias vizinhas, falava alguns dialetos, conhecia plantas e era exímia em achar e seguir trilhas. Também aprendera a pilotar.
Alguns dias mais tarde, juntou-se a um outro agrupamento de índios. Mas, sua real intenção era punir os atacantes da sua aldeia. Alcançou uma cidade vizinha, dela conseguiu atingir a capital. Com a ajuda de alguns conhecidos do pai, conseguiu provar que era sua filha e, após averiguação, conseguiu tomar posse do que herdara.
Com a investigação sobre os pais, conseguiu da polícia pistas sobre os criminosos. Era um bando misto, com brasileiros e outros de além fronteiras. O principal foco era entorpecentes, mas também peles, animais e toda sorte de mercadorias.
- Juntei tudo o que tinha e comprei um bimotor. Infiltrei-me nos antros preferidos, plantei sementes e esperei.
- Você está me dizendo que virou contrabandista por vontade própria?
- Quer saber: era dinheiro até fácil de se ganhar. Alguns vôos, policiais corruptos, mercadoria certa....grana no bolso de todos, todos felizes.
- Que aventura! Você conheceu outras mulheres como você?
- Claro que sim!
Clara pode perceber o olhar de Régia vagar em algum lugar das suas recordações. Talvez estivesse enganada, mas pode perceber um certo sorriso.
A secretária percebeu que formulara mal a frase. Não pode deixar de pensar que Régia deveria ter tido muitas mulheres. Parecia ser do tipo que não faz prisioneiras. Refez a pergunta.
- Piloto como você?
- Ah, tá! Desculpe, eu não havia entendido. Além de mim, só mais uma e com ela eu aprendi muito. Por dois anos, aprendi todos os truques possíveis para vazar fronteiras e cercos aéreos, além de aprender a aterrisar em qualquer lugar e situação. Nos tornamos boas companheiras. Mas, coberta por toda a adrenalina da aventura, quase como um lembretezinho, havia a velha vontade de pegar quem matara meus pais.
Clara sabia que a narrativa seria interrompida, pois Régia já a orientara a direcionar o jipe para um lugar totalmente descampado, com uma espécie de estrada inacabada.
- Chegamos. Fiz muitos pousos aqui.
- Será que eles conseguirão.
- Espero que sim. - ao dizer isto, abraçou Anna contra o peito e a beijou. - para o bem dela e das suas patroas.
Fim do capítulo
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