- Não!  — todos me olharam, incluído as negras  — nã-não pode ser está

- o que houve, Mabel?  — perguntou mamãe, já deixando sua impaciência aparecer

- Essa negra será minha criada Papai, iria comunica-lo, mas com a chegada de Tio Basílio acabei deixando para depois.

- Ora filha, Keke já é sua criada.

- Sim papai, mas veja, Keke é criada de todos nós e eu gostaria de ter alguém que dedica-se somente à mim e talvez à Pedrinho. Mamãe ficou de comprar uma escrava pra isso, poupo-lhes o trabalho de ir ao porto. E essa negra veio na embarcado espanhola, deve saber algo desse povo e me ajudar nos agrados para Afonso  — eu falava tão rápido tentando ser convincente que sentia meu fôlego sumir. Instalou-se um silêncio de segundos que no meu interior parecia horas  — mamãe?

- Seu pai decide

- Ela não poderia ser sua criada depois da minha ida?  — questionou Henrique

- Não me sentiria à vontade tendo uma criada que fez...coisas com você. Me perdoe  — um breve silêncio constrangedor

- Bom, sendo assim, teremos que encontrar outro presente.  — três suspiros foram ouvidos. Henrique de insatisfação, o de Shiara, que até então estava calada, misturou-se ao meu que também era de alívio.

                          II

Um mix de emoções. Eu nem conseguia dizer o que estava sentindo naquele exato momento, exceto por uma sensação que sobressaía-se: alívio. Muito. Não sabia do que aqueles senhores seriam capazes, mas pelo desespero e pelas lembranças secretas de Blanka eu podia imaginar. Senhora Elizabeth mandou que Mabel me guiasse e me explicasse minhas obrigações de criada, já no interior da casa, movida por impulsos abracei Mabel

- Eu não irei esquecer o que fez hoje por mim -- ela demorou um pouco para retribuir o abraço por ter sido pega de surpresa

- E-eu.. está tudo bem Shiara  — percebendo o estado em que me encontrava, suja, suada e provavelmente com cheiro ruim, desfiz o abraço

- desculpe  — falei apontando pro vestido que eu havia sujado

- não se preocupe, venha, preciso lhe explicar algumas coisas

Os escravos que viviam na casa tinham, posso assim dizer, algumas regalias, como o convívio com os senhores era maior os negros eram mais cuidados e o odor da rotina não era tanto, pois tinham mais banhos e não viviam somente no canavial.  Dos quase 100 dias  que passei aqui esse havia sido o melhor banho, talvez o único que eu, de fato, pudesse chamar de banho, minha pele já ardida de tanto esfregar, queria tirar todo aquele peso que carregava nas costas, e não era das canas que falava, era o peso de ser herdeira de um trono que eu me envergonhava, renegava, de ser rebelde e de me encontrar onde estava. Mansa nos deixou ensinamentos que vem sendo destruído pela fome de dinheiro, conselhos ricos esquecidos por tão pouco!

                                  II

Será que ela morreu?  Shiara pareceu demorar uma vida naquele banho, eu devia chama-la, mas ela estava tão desorientada pelo ocorrido que achei que fosse merecido um banho demorado. Eu devia voltar pra sala, mas não queria, não queria olhar pra minha mãe e responder-lhe mentalmente os seus questionamentos, não queria mais falar de meu casamento, nem olhar as fuças de Henrique

 - Você irá fazer um buraco na minha cozinha, pare de bater esse pé, sinhá  — O banheiro dos escravos ficava fora da casa e eu estava na cozinha aguardando a volta de Shiara. Zenir, a negra que cozinhava desde minha infância, estava ali e eu nem percebi sua presença até ela falar comigo.

- Parei

-… Pare de bater seus dedos na mesa, fique quieta. Parece até que vai morrer do coração

- Jesus! Não posso fazer nada?

- Pode. Pode sim, você é dona daqui. Mas pode ir fazer lá longe, olha o tamanho disso aqui, vá tamborilar seus dedinhos e pesinhos em outra região — fiz uma careta, apertando os olhos. Ela era assim, não podia ter barulho na cozinha, nem conversa, que ela estava brigando, a única voz permitida era a dela cantando as cantigas do seu povo. Com um suspiro e antes de concluir a minha birra com Zenir, ela aparece

- Já estou pronta, sinhá  — estava de cabelos molhados e uma outra roupa, a sua antiga, provavelmente, ela teria lavado.

- Ei, você, venha cá e me ajude a servir o jantar  — falou Zenir. Com um olhar, consenti que Shiara atendesse o que lhe era pedido. Ao retornar ao encontro de todos, já me aguardavam na mesa aguardando o jantar

- Que demora, minha querida.  — falou tia Carmen enquanto Zenir e Shiara nos servia

- Desculpa tia Carmen, estava fazendo companhia à Zenir na cozinha

- Céus, Mabel! Elizabeth, você precisa mostrar à Mabel que não temos a obrigação e nem há como socializar com os empregados

- Mas tia, não faço por obrigação, não vejo razões para não conviver com os que moram em nossos domínios.   — tocando em minhas mãos por cima da mesa, disse  —

- Escute, já fazemos demais por eles, imagine como seria a vida de promiscuidade, de perdição, sem Deus que essas..pessoas..teriam. Veja como nós somos bons, mesmo com todas as diferenças ainda os ajudamos.

                                  II

A minha vontade era de vomitar naquela senhora que estava mais preocupada em mostrar sem cabelo bem arrumado do que parecer um ser humano. Ela falava com desdém, como se não estivéssemos ali e, ainda por cima, como se fosse um favor nos tirar de nossas casas e nos escravizar. E me entristecia ver que todos naquela mesa e, talvez, todos no ocidente concordasse com isso... incluindo Mabel. Ela, passiva, aceitou as bestilhagens que lhe fora dito. Poderia eu culpa-la por pensar assim?

- Eu não gosto de conversa atoa na minha cozinha, mas também não precisa ficar feito mosca morta. Qual teu nome menina?   —  a senhora da cozinha me questionou

- É shiara  — ela me olhou como se suspeitasse de algo, com os sonhos semicerrados

- a Abasi?  

- Só Shiara, senhora  — quanto menos pessoas souberem da minha linhagem, por enquanto, será melhor

-  Acha que nasci ontem, criola?  — falou colocando as mãos na cintura  —

- Oxóssi!

- Não fala o nome de Deus atoa não, se não quem vai te botar naquele tronco sou seu! E pra negar o sangue azul e ficar parecida com as outras negras vai ter que apanhar muito ainda, ram! E venha cá, me ajude a tirar a mesa

Zenir tirou a mesa enquanto eu lhes servia chá

- Prima, acredito que não ficará chateada se sua criola nos servir na minha comemoração, não é mesmo?  

- Na verdade, eu-

- visto que ela não lhe será útil pela noite  — perguntou Henrique a Mabel, deixando-a sem resposta e fazendo eu senti meu coração bater mais rápido

- Tens razão, ela pode sim ir  

- Desculpe senhores  — com o nervosismo, acabei derrubando um pouco de chá sobre a mesa e logo sai para limpar. Vendo meu estado, zenir preferiu que eu ficasse com a louça e ela terminaria por lá.

Ouvi passos na cozinha, estava só, senti um corpo encostar no meu e eu sabia de quem era

- Nos divertiremos um pouco hoje a noite  — era Henrique.

Fim do capítulo