Capítulo 3 - Desastres e covinhas
-- Fer, almoça comigo? – Helena colocou apenas a cabeça no canto da porta da sala da sócia.
-- Almoço, mas você não ia almoçar com o Gui?
-- Ele teve que desmarcar, tem que ficar na redação pra cobrir o estrago quando parar esse temporal – falou fazendo careta.
Fernanda riu do gesto infantil da amiga.
-- Falei que a gente devia ter frequentado mais o bloco de engenharia, você escolheu alguém da comunicação, deu nisso.
-- Pois é! – gritou já se afastando no corredor em direção à sua sala.
Sentou e pela décima vez naquela manhã checou a caixa de entrada de e-mails. Não encontrou o que gostaria de ver. Já havia passado um dia e nada da resposta sobre o novo contrato. Pelo menos não tinha recebido uma negativa também, o que mantinha as expectativas elevadas.
Entre os novos emails havia um da clinica de fisioterapia. Colocou a mão espalmada na testa cobrindo os olhos:
-- Não acredito que esqueci.
Abriu o email apenas para constatar que era um comunicado de não comparecimento pedindo que entrasse em contato para novo agendamento. Ligou imediatamente.
-- Clinica Restaurar bom dia.
-- Oi, bom dia, preciso reagendar um horário.
-- Quando está marcado e com qual profissional?
-- É com a Raquel, estava marcado para hoje cedo, mas tive um imprevisto e não pude comparecer – mentiu.
-- Quer fazer hoje a tarde? Tenho um horário livre as 16h30.
-- Tem mais tarde?
-- É o último horário dela hoje, sinto muito.
-- Ok, pode ser então.
-- Seu nome?
-- Helena Medina.
-- Marcado Helena, hoje às 16h30.
-- Muito obrigada.
Desligou e Fernanda apareceu na porta:
-- Vamos aproveitar que a chuva diminuiu um pouco.
Helena pegou a bolsa e saiu.
No restaurante, após o garçom retirar os pratos, Helena ficou olhando através do vidro pensativa. Fernanda a observou por algum tempo e então interferiu:
-- E então? Vai me contar o que está acontecendo?
-- Como assim Fer, bebeu e eu não vi? Do que está falando?
-- Ai Helena, sério? Vou ter que falar o que já falei mil vezes? Te conheço há quase dez anos e ...
-- Tá bom, tá bom... Ah, nem sei direito o que estou sentindo amiga. Já teve a sensação de que a vida está passando e você não está vivendo de verdade?
-- Vai ter que ser mais específica...
-- Eu não sei também... Só sinto que tem algo mais na vida e eu ainda não percebi...
-- Está tudo bem entre você e o Gui?
-- Está tudo como sempre foi né Fer. Mas isso também me preocupa, a nossa relação não evolui. Chegamos a um ponto onde supostamente as coisas deveriam se aprofundar mais. Mas como aprofundar uma relação se sequer temos tempo pra conversar de verdade sabe...
-- Mas como assim Helena? Vocês precisam arrumar tempo. Sua felicidade é mais importante que qualquer outra coisa, né. Eu e o Arthur também temos problemas por causa do trabalho, mas a gente dá um jeito, sacrificamos outras coisas.
-- Honestamente Fer... Não sei se minha felicidade está em mais tempo com o Guilherme. Eu adoro o Gui, mas não sei se é do jeito que precisava ser entende? E o pior é que nem sei se é diferente pra ele.
-- Ai Helena... Nesse caso vocês precisam descobrir se devem continuar nessa relação né...
Helena apenas suspirou. Não achava que teria a coragem necessária para ter essa conversa com Guilherme. Esperava que as coisas mudassem entre eles. Esperava não ter que machucar uma das pessoas que mais amava no mundo, ainda que com um amor diferente do que gostaria de sentir.
******
Chegou na clinica no horário marcado e minutos antes de o temporal se intensificar. Foi orientada pela recepcionista a se dirigir à sala onde Raquel atendia e aguardar que ela a chamasse.
Estava distraída observando um senhor que fazia exercícios com um andador quando ouviu o seu nome:
-- Helena?
Se levantou e estendeu a mão, mas Raquel já se inclinava para um beijo no rosto, ambas sorriram sem jeito.
-- Ahn, me desculpe, sou uma pessoa de toque – brincou Raquel.
-- Imagina, eu é que sou muito formal eu acho.
-- Me acompanhe. Bem, ainda temos pelo menos oito encontros. É melhor decidirmos como vai ser – Raquel falava enquanto andava até o local onde fariam os exercícios.
-- Será beijo no rosto e não se fala mais nisso – sentiu o rosto vermelho e se arrependeu da brincadeira quando Raquel se virou para trás, assoprou uma arma imaginária formada com os dedos e piscou.
Helena tirou o blazer e se sentou para os exercícios. Como a camisa que usava não lhe dava mobilidade, desabotoou as mangas e as levantou acima dos cotovelos.
Raquel a observava orientando quando ela fazia algo da maneira errada.
Mais uma vez se viu curiosa sobre a tatuagem no braço. Olhou Helena distraída e notou que seus olhos eram completamente negros, com um brilho que parecia enfeitiçar. Continuou observando seu rosto e se deparou com duas covinhas e uma boca que sorria.
-- E então? É só isso? – Helena a encarava sorrindo, esperando uma resposta.
-- Ãhn? Ahh sim... sim... Já terminamos por hoje – Raquel se levantou rapidamente e derrubou da mesa uma pasta com papeis que se espalharam pelo chão.
Caio passava nesse momento e se dirigiu à amiga:
-- Raquel, PHD em desastre ataca novamente, eu te ajudo – abaixou-se e começou a juntar os papeis – cuidado, ou da próxima vez ela derruba você – falou para Helena.
Raquel levantou rapidamente com vários papeis na mão:
-- Não acredite nele. Só está enciumado porque roubei você da agenda dele.
-- Ah então é você a moça nervosa que gostaria que eu acordasse uma hora mais cedo – falou rindo.
-- Ai que vergonha. Me desculpe, eu estava realmente estressada naquele dia.
-- Tudo bem, só estou brincando. Você acabou nas mãos de um dos melhores profissionais da casa – disse, piscando para Raquel que fez um sinal de reverência, entrando na brincadeira.
Helena colocou novamente o blazer, se despediu dos dois e foi até a recepção agendar a próxima sessão.
Mal ela saiu Caio deu um beliscão em Raquel.
-- Aaai! Tá maluco?
-- Se eu soubesse que a paciente era gata desse jeito eu jamais deixaria você tirar ela de mim.
-- Fiz um favor pra você. Se fosse o fisioterapeuta dela não poderia pensar nem em chegar perto da moça.
-- Hum, você está certa. Mas já que não sou, vai me ajudar né?
-- Toma vergonha na cara Caio, ela não é uma das minhas amigas que você vive cantando. Olha lá hein!
-- Calma... calma. Não vou agarrar a moça aqui não... Embora eu tenha vontade...
Foi interrompido por um tapa que Raquel lhe deu no braço. Em seguida lhe deu um beijo no rosto.
-- Já vou, até amanhã!
-- Vai como com essa chuva? Tá louca?
-- Vou descer e colocar a roupa de chuva. Assim que diminuir um pouco eu saio.
-- Se cuida hein garotinha.
-- Pode deixar, beijo beijo.
Raquel foi até a garagem do prédio e quando começava a se preparar para enfrentar o tempo ruim, ouviu o alarme do carro ao lado sendo desligado. Instintivamente olhou e viu que se tratava de Helena.
-- Não vai dizer que um PHD em desastre tem licença para andar de moto? – Helena perguntou de maneira divertida.
-- Não só tenho como sou muito boa nisso.
-- Não duvido disso, mas acho que hoje seria sábio deixar a adrenalina de lado.
-- Mas com essa chuva, conseguir um táxi nessa cidade vai ser como ganhar na mega sena. Não tenho escolha.
-- Posso te dar uma carona se é esse o problema.
-- Não quero te atrapalhar, mas obrigada pela oferta.
-- Não me atrapalha de maneira nenhuma. Além do mais, com o trânsito que vou pegar, vai ser bom ter companhia. Onde mora? Ah... pra onde vai eu quis dizer...
Raquel riu do constrangimento desnecessário de Helena.
-- Eu moro no Água Verde, vou pra casa mesmo.
-- Somos quase vizinhas então. Eu moro na região – disse, abrindo a porta do passageiro.
-- Bem, se não vai mesmo te atrapalhar... – Raquel entrou no carro e sentiu um cheiro gostoso, meio cítrico. Tentou se lembrar de onde conhecia aquele cheiro, mas Helena já entrava do outro lado pedindo desculpa pela bagunça do carro:
-- Eu praticamente moro no carro e na agência.
-- Agência?
-- Sim, sou publicitária.
-- Ah que legal, então deve ser bem criativa.
-- Bem, espero que eu seja né – as duas deram risada.
-- E você? É fisioterapeuta há quanto tempo, parece bem nova.
-- Está preocupada que eu não tenha experiência o suficiente pra te tratar moça?
Helena percebeu o que havia dito e ficou séria:
-- Não, nem pensei nisso... eu apenas...
-- Ei, relaxa, vai acabar batendo o carro de tão nervosa. Só fiz uma piada. Tenho 26 anos e sou fisioterapeuta há quatro.
Helena pareceu aliviada.
-- Você leva tudo bem a sério né Helena?
-- Ah, acho que sim. Eu acho que a vida me fez assim, tive responsabilidades desde muito nova.
Raquel não falou nada dando a impressão de que aguardava a continuação da história.
-- Meu pai morreu quando eu tinha 14 anos. Como sou filha única, tive que ajudar minha mãe a segurar a barra.
-- Sinto muito por isso Helena.
-- Tudo bem, já superamos essa fase tão triste.
-- Bom, já que me perguntou, também tenho esse direito. Quantos anos tem?
Helena olhou para ela rapidamente e sorriu. Raquel não conseguia deixar de se encantar com as covinhas cada vez que ela sorria.
-- Tenho 29.
-- Pode virar aqui a direita por favor Helena.
Quando ligou a seta indicando a conversão Helena percebeu que os carros voltavam de ré. Acelerou um pouco mais e viu que por causa da chuva forte, dois pinheiros haviam caído, impossibilitando o acesso à rua que era de mão única.
-- Bem, no fim terei que me molhar de qualquer forma.
-- Não Raquel, a chuva está muito forte, quase nem enxergo através do vidro. E essas árvores caindo? Te levo em outro lugar, me diga onde – falou já saindo devagar.
-- Pior que não tenho conhecidos que morem por aqui, vou descer e ir correndo Helena, não vai acontecer nada.
-- Não vou deixar, só se pular do carro em movimento Lara Croft – deu uma gargalhada que Raquel achou contagiante.
-- Já que está me sequestrando, o que faremos?
-- Já que estou te sequestrando, nós vamos para a minha casa e quando essa tempestade se acalmar e a prefeitura tirar os troncos e galhos do caminho, eu trago você aqui.
-- Tudo bem então, você é o sequestrador da vez.
Helena não sabia porque estava sendo tão gentil com alguém que acabara de conhecer. Geralmente não era assim. Tinha dificuldade para fazer amigos e demorava a sentir-se à vontade. Entretanto, por algum motivo teve uma conexão quase imediata com Raquel. Sentia-se feliz por poder ajudá-la em uma situação difícil.
Em menos de dez minutos chegaram ao condomínio de Helena.
Margarida estava preocupada com a filha.
-- Que bom que chegou Helena, a cidade está um caos. Eu vi na TV.
-- Está mesmo. Mãe, essa é Raquel, minha fisioterapeuta.
-- Muito prazer Raquel, fique à vontade.
-- O prazer é meu. Me desculpe pela intromissão em sua casa, mas estou impedida de ir para a minha – falou de forma gentil.
-- Amigas da Helena são mais que bem vindas sempre. Mas como assim não pode ir pra casa?
Passaram a narrar a situação da rua. Margarida falava sobre outros pontos da cidade que estavam sem acesso, segundo informações do telejornal.
Fim do capítulo
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