Os olhos da minha mãe estavam indecifráveis, senti uma dor no peito, mas minha mão foi levemente apertada e isso me encheu de força. Olhei para o rosto da mulher que me encarava com um sorriso singelo, a vontade de beija-la foi gritante.

- Você só pode ter perdido o juízo, Amanda. – ela então se pronunciou, desviei o meu olhar de Flávia e passei a encara-la. Nunca me imaginei nessa situação outra vez, mas agora seria diferente.

- Estou em meu mais perfeito estado mental, mamãe. – os olhos dela ficaram marejados, mas não derramou nem uma lágrima.

- O que fizemos de errado, Amanda? – meu pai estava com a expressão de decepção estampada na cara. Minha mãe tornou a falar. – Te educamos, fizemos de tudo para que você fosse uma mulher de bem e você vem e deixa tudo para brincar de casinha com uma menina que mal saiu das fraldas?

Soltei uma risada sem humor, os pais de Flávia, estavam extremamente surpresos com as palavras da minha mãe. Não entendia como alguém podia ser tão inteligente e tão ignorante ao mesmo tempo.

- Eu passei a vida toda me condenando por sentir atração por mulheres... – ganhei a atenção de todos, Flávia segurava a minha mão e parecia que nunca iria soltar, me senti incrivelmente forte. – Nunca tive com quem conversar sobre e por diversas vezes eu me achava uma anormal, uma abominação. – respirei fundo. – Quando aconteceu aquilo com a Fernanda, obtive a certeza que eu jamais seria aceita, que seguir as regras da sociedade tradicional seria melhor do que lutar contra... Eu fui covarde em aceitar ser levada a ser aquilo que todos os “normais” queriam...

- Só queremos o melhor pra você, Amanda... – meu pai tinha a voz mais mansa.

- Vocês não querem é passar pela vergonha de ter uma filha homossexual... – minha respiração se alterou.

- Calma... – ela me fez respirar mais lentamente só com aquela simples palavra.

- Não será mais assim, mãe, pai... – meus olhos marejaram, minha mãe me olhava como se não me reconhecesse, meu pai estava indecifrável.

- Eu não vou aceitar, Amanda... – ela se alterou. – Isso não é de Deus, que vida você acha que vai ter?

- Uma vida sem mentiras, mãe... – meus olhos já não seguraram mais as lágrimas. – Eu estou cansada de ser alguém que eu não sou!

- Você não é isso... – ela ficou ainda mais alterada.

- Isso o que? – eu também me alterei.

- Olha como fala com a sua mãe, Amanda... – meu pai voltou com o tom rude.

- Olha como eu falo com ela? – Flávia soltou a minha mão e passou o polegar para secar as minhas lágrimas.

- Eu tô orgulhosa... – ela me encarou e sorriu. – Estou aqui... Sempre estarei...

- Eu não aguento isso... – a voz alterada da minha mãe rompeu o nosso contato, a mão da minha menina voltou a segurar a minha. – O que essa menina fez? O que você fez com a minha filha, garota? – ela falava diretamente para a Flávia.

- Está fazendo a filha de vocês feliz... – Carolina levantou e fuzilou a minha mãe com os olhos. – Eu não consigo acreditar que você prefira ver a tua filha infeliz, em um casamento de aparências, só por não querer enfrentar, quem sabe, as fofoquinhas das vizinhas, as palavras idiotas das amigas peruas ou os ideais preconceituosos dos seus parentes... Se quer perder a sua filha, está indo pelo caminho certo...

- Não tenho uma filha esquisita... – senti um choque no coração.

- Esquisita é a senhora, que está cega pelo preconceito... – minha mãe encarou a Flávia e eu? Não sei o que dizer para explicar a emoção que me tomou. – Ponha uma coisa nessa sua mente dos anos 30... O fato de alguém ser bi, trans, homo ou seja lá o que for, não altera o caráter, dona Kethelen. A orientação sexual não muda o interior... Se você é mal caráter, continuará sendo mal caráter, se tem um bom coração, ele permanecerá da mesma forma... Pare e reflita, a Amanda é uma pessoa maravilhosa, então não aja como se ela tivesse virado uma criminosa, uma ladra, viciada em drogas ou tivesse uma doença contagiosa... Isso não muda a pessoa incrível que ela é! Espero mesmo que vocês caiam em si...

Eu poderia ter me apaixonado, estar amando uma mulher mais maravilhosa que essa? Naquele momento uma certeza me atingiu, não importa o que eu teria que enfrentar daqui pra frente, qualquer esforço, tudo, absolutamente tudo valeria pra ter aquela mulher do meu lado. Faria de tudo para ser merecedora do amor que eu não tinha dúvida que ela sentia por mim.

- Me perdoe, mãe... – a olhei firme e a minha voz estava da mesma forma. – Vai doer, está doendo a rejeição de vocês, mas eu não vou voltar a ser aquela mulher covarde de antes... Eu amo essa mulher e mesmo que isso signifique ser odiada por vocês, eu vou viver a minha vida ao lado dela...

- Não ouse...

- Não ouse a senhora tentar me calar... – me impus. – Eu amo vocês, mas agora eu viverei a minha vida, ao lado da mulher que amo e das pessoas que não me veem como uma abominação. É uma pena que sentem vergonha de mim, mas pela primeira vez na vida eu sinto orgulho da pessoa que sou!

- Eu estou com você, filha...

Fiquei atônica, minha mãe virou-se para encarar o meu pai, os olhos dele se encheram de lágrimas, sua face se tornou gentil.

- Não estou acreditando que vai se render a essa pouca vergonha... – eu não sabia explicar o que estava sentindo.

- Eu amo a minha filha, Kethelen... – a voz era firme e os olhos continuavam molhados. – Não vê o quanto estamos afastando a nossa filha com esse preconceito idiota? Eu já magoei ela com a minha ignorância em um assunto que só quem passa sabe...

- O que está falando? – ela parecia que teria uma sincope.

- Que já chega disso... – ele me olhou, veio até mim. Flávia soltou a minha mão, para eu abraçar o meu pai que me apertava contra o seu corpo. – Me perdoe, filha... Perdoe por não ter te dado o apoio que você precisava... Me perdoe por ter sido tão indiferente ao fato de você ter sofrido esse tempo todo, eu sou um péssimo pai...

- Não, não... – eu chorava bastante. – Você é um ótimo pai... Por favor, não diga mais uma coisas dessas...

- Eu te amo, minha filha... – Deus, como era bom. – Estarei do seu lado...

- Obrigada, pai...

Essa com toda certeza era a última reação que eu esperava dele, mas a felicidade por estar errada quase esmagou o peito. Ter o apoio do meu pai seria muito importante, agarrei com todas as minhas forças esse presente que a vida estava me dando.

- Viemos rebocar uma... – a voz morreu, me afastei do meu pai e enxuguei as lágrimas que banhavam o meu rosto. Emi parecia curiosa.

- Que foi? – Becca logo entrou.

Emi olhava para todos, Becca logo ficou com os olhos arregalados ao se deparar com os meus pais. Ouvi mais vozes e concluir que logo a tropa toda entraria pela porta, minha mãe estava com os olhos faiscando. As meninas foram entrando, cumprimentaram os meus pais, a sala ficou lotada.

- Chegamos em má hora? – Cássia perguntou correndo os olhos por toda a sala.

- Fiquem à vontade... – minha mãe tinha rancor nos olhos. – Essa situação já deu... – ela saiu do quarto.

As meninas ficaram todas atônicas, meu pai suspirou pesado, me deu um longo abraço e olhou em meus olhos.

- Pode contar comigo, minha menina... – ele beijou a minha testa com carinho. – Boa tarde e foi um prazer...

- Boa tarde... – ele recebeu o mesmo cumprimento, me olhou uma outra, olhou para a Flávia e sorriu. Saiu do quarto.

- Tudo bem? – Rebecca se pós a minha frente, segurou as minhas mãos.

- Agora está... – sorri ainda sobre o efeito de tudo que acabou de acontecer.

- O que aconteceu? – Paloma e Nicole perguntaram juntas.

- Sentem que a história é forte... – Carolina falou e foi exatamente o que elas fizeram.

Passamos a narrar tudo o que aconteceu no quarto, fiquei sentada ao lado da Flávia, estávamos novamente de mãos dadas. Todas ficaram de queixo caído, rimos algumas vezes de comentários loucos vindos de vocês sabem quem. No fim, recebi olhares surpresos e palavras de “isso ai”, mas não especificamente com essas palavras e novamente não preciso dizer quem se manifestou.

- Boa tarde... – uma mulher loira, vestida com um uniforme parecido com o do samu, entrou acompanhada de uma outra morena. Flávia engoliu em seco ao meu lado, estranhei aquela atitude, olhei para Becca, e ela e Paloma estavam quase esmagando as mãos de suas namoradas. O que estava acontecendo ali?

- Boa tarde, Nataly e Brenda... – Carolina levantou para pegar nas mãos das mulheres. Flávia estava petrificada.

- Boa tarde... – as outras meninas disseram em uníssono. Notei que Nicole, segura o riso.

- Viemos buscar a paciente mais linda do mundo... – ela falou e olhou para a minha namorada com muita intimidade pro meu gosto.

- Quanto tempo, Cássia... – a morena, falou com um risinho.

- Oi... É... Brenda... – ela se enrolou toda e quase morreu com um olhar assassino que Paloma lhe lançou.

- O que está acontecendo? – perguntei entre dentes para a mulher pálida ao meu lado.

- Nada, amor... Quer dizer... – ela respirou fundo. – Podemos falar disso depois? – ela sorriu amarelo.

- Olha lá... – não estava gostando nada daquilo.

- Então, Brenda e Nataly... – Nicole chamou a atenção das duas. – Tem lugar para mais sete pessoas na ambulância?

- Todas vocês vão? – a loira que já não fui com a cara, perguntou surpresa.

- Viemos todas de buzão, para irmos juntas... – minha cunhada respondeu.

- Por mim, tudo bem... – a morena falou com os olhos cheios de malicia. – Estaremos cercadas por mulheres bonitas...

Mas, que piranha atirada, quase esmaguei a mão da Flávia que soltou um gemido abafado, Nicole apenas se divertia com tudo.

- Vamos de carro, logo atrás. – Henrique falou pela primeira vez. – Alguém quer ir com a gente?

- NÃO! – Rebecca, Paloma e eu falamos juntas.

- Ok...

Logo iniciaram o processo, não sai nem por um segundo do lado de Flávia, as meninas vieram logo atrás. Em pouco tempo a ambulância ficou cheia, Paloma sentada sobre as coxas de Cássia, Becca sobre as de Emi, Isa nas de Nicole. As duas oferecidas se posicionaram uma em cada lado de Flávia. A loira de frente para mim e a outra de frente para Paloma e Cássia.

- Vamos embora, Zé... – a loira gritou para o motorista.

Sentia a mão suada, mas não ousei soltar a de Flávia, ela encarava o teto da ambulância, Paloma tinha um olhar mortal para a morena, Nick e Isa conversavam baixinho, hora ou outra soltavam uma risadinha, Becca impedia a visão e Emily. O silencio reinava ali, até ser quebrado pela morena com cara de atriz pornô.

- Quando vamos sair novamente, Cássia? – Cássia começou a torci, Paloma a encarou e passou a dar tapas fortes em suas costas. - Quer uma respiração boa a boca? – a mulher estava ficando azul, Paloma, parecia incorporada por um espirito ruim.

- Chega perto da minha namorada, e vai sentir o gosto da minha mão na tua cara, sua atriz pornô... – ela leu meus pensamentos.

- Calma, gatinha... – Cássia mesmo engasgada com sabe Deus o que, segurava a namorada. – Podemos nos divertir em trio... Eu não tenho ciúmes...

- Sua vadia!!! Me solta, Cássia... – ela tentava avançar na mulher.

- Amorzinho, você não arrumou uma namorada também, não é? – Flávia soltou a minha mão e pós sobre o rosto. O meu sangue ferveu e eu contei de um até...

- Vai dá merd*... – ouvi Rebecca falar.

- Amorzinho é o cacete! – levantei.

- Calma, amor... – Flávia falou.

- Calma, Amanda... – Nicole enlaçou os braços por minha cintura.

- E quem é você? – ela me perguntou debochada.

- A MULHER DELA! Vem cá, sua piranha...

Tentei puxar a vagabunda, mas não consegui, tamanha era a força que Nick, me segurava, Paloma tentava fazer o mesmo com a outra lambisgoia.

- Sua boquetera, eu vou quebrar a tua cara... – Paloma, assim como eu, estava descontrolada.

- Amor, não... – Cássia gritava.

- Bate nela, Paloma... – Nicole gritava.

- Vem cá, sua piranha do banheiro, eu vou te partir em duas...

- Amanda, está esmagando a minha cara... – Flávia dizia

- Arrebenta ela, Amanda! – Emily me incentivava.

- Ai, meu Deus! – Isa lamentava.

- Parem com isso! – Becca berrava.

De repente sentimos o carro parar bruscamente, fui jogada para trás, a porta se abriu e o motorista careca estava com uma expressão irritadíssima.

- Mas, que porr* estão fazendo? – ele olhou para cada uma. – Nataly? Brenda? Vocês são duas profissionais e agora estão agindo feito duas idiotas no cio. – silencio total.

- Desculpe... – as duas imbecis disseram juntas.

- Espero que fiquem quietas... – ele nos olhou por uma última vez.

- Sim, senhor... – parecia até o jardim de infância.

O homem bateu a porta, saiu pisando duro, dava para ouvir o barulho do seu calçado no chão, entrou no carro e deu partida, olhei para a Flávia e ela estava de olhos fechados, Paloma sentou no colo de Emily e fez Rebecca sentar no da Cássia, Isa e Nick permaneciam da mesma forma.

Vi a cara de dor da minha namorada, mas não dei o braço a torcer, o silencio permaneceu, evitei olhar para as atrizes pornô, fechei meus olhos tentando relaxar, contei de um até mil várias vezes.

“Eu mato a Flávia... Mas ela parece estar sentindo dor, tadinha do meu amor... Mas que... Tadinha nada... Mas eu amo a minha menina... 1, 2, 3...”.

Não resistir, busquei a mão da minha menina, que imediatamente abriu os olhos, sorri e fui correspondida. Depositei um beijo calmo sobre os seus lábios, respirei fundo depois que separei nossos lábios, ela também respirou fundo e abriu os olhos e ficamos naquela conversa gostosa.

- Eu te amo... – ela passou a mão sobre o meu rosto.

- Eu te amo... – repousei minha cabeça sobre o ombro bom de minha mulher, ela cheirou os meus cabelos e eu fechei os olhos curtindo aquele carinho tão bom.

 

 

 

 

 

Fim do capítulo