Ela escutou a batida na porta e não pode conter o riso. A médica com certeza havia chegado antes do combinado por ansiedade. A policial foi displicente para a porta. O jantar nem estava pronto ainda. Raquel estava num vestido longo branco. Cabelos presos num coque e num estilo jovial. Aquela semana inteira em casa para simular sua suspensão a deixara mais relaxada. Claro, que o fato de ter se rendido a paixão da médica tinha grande dosagem naquela nova mulher que nascia em si. Até a sobrinha havia reparado na jovialidade de sua voz da última vez que conversaram pelo telefone. Chegou sorrindo até o olho mágico. Sorriso este que e desfez assim que notou quem estava parada à frente de seu portão. A velha carranca de sempre assumiu lugar onde há segundos existia um sorriso apaixonado.

Respirou fundo e abriu a porta. Caminhou até o portão e viu a ruiva sem sequer lhe dirigir a palavra entrar em sua casa assim que dera passagem. A seguiu. Somente quando fechou a porta é que Suzana se pronunciou.

- Vejo que está à espera da doutorazinha. – Seu tom saiu irônico. Não era surpresa nenhuma para a policial que a ruiva já soubesse da médica. Seu mau humor brotou em questão de segundos.

- O que veio fazer aqui Suzana? – Aquela voz grave e cortante que a outra conhecia bem.

- Conversar com você longe dos olhares de urubus. Mas, confesso que pegá-la ao fogão no estilo “mulher comum” é algo surpreendente investigadora. – Raquel notou que o olhar de Suzana era detalhista. Prendia-se a inúmeros detalhes de sua sala e esticou sua curiosidade até a cozinha.

- Seja breve e objetiva. Como você mesma disse estou esperando visita.

- Visita ou sua amante? – A pergunta veio com desdém. Raquel notou o esforço da ruiva para diminuir Natália.

- Isso não lhe diz respeito. – Cortou a outra e viu o sorriso de deboche da mulher morrer nos lábios.

Mas, Suzana era uma mulher de muita perspicácia. Era paciente. E sabia o momento certo de agir. A conversa que a levara até a casa da policial era de seu interesse profissional e pessoal. Teria que ter muito tato, pois conhecia há tempos o temperamento da loira. E, houve momentos em que este temperamento a levara à loucura. Se arrepiou ao lembrar-se disso.

Observou a loira mexer algo que estava no fogo. O cheiro era delicioso.

- Não me oferece nada para beber? – Suzana queria provocar e se divertia ao ver  efeito no semblante da policial.

- Não a convidei. – Sempre cortante.

- Qual é Raquel? Pelos velhos tempos... – Aquela frase era insinuante para os ouvidos da policial que sentiu dor ao enrijecer o próprio maxilar.

A loira observou Suzana se servir. A ruiva estava forçando uma intimidade que há muito não compartilhavam.

Raquel estava no seu limite. Sabia que Natália chegaria dali a pouco. Precisava despachar logo Suzana. Para isso necessitava saber o que fizera a dama de ouro da corregedoria se abalar até sua casa. Devia ser algo sério.

- Estou esperando. O que a traz aqui?

- Vamos direto ao assunto. Pelo jeito você não quer muito papo hoje. Tenho investigado o Santos e necessito que você entre em cena. O esquema me parece grande. Envolve gente do hospital da sua namoradinha também. Há médicos no rolo e estou falando de gente graúda.

Neste momento Raquel arqueou a sobrancelha.

- E onde eu entro? – Percebeu finalmente o objetivo da visita daquela mulher. Enquanto Suzana se posicionava Raquel não pode deixar de admirar a beleza dela. Já estava na casa dos 50 e continuava belíssima. Sempre vaidosa, altiva. E aquele ar de mulher perigosamente letal.

- Vê se não surta. – Com aquela frase Raquel quase riu. Mas manteve o ar durão. Não queria dar nenhum tipo de brecha para aquela mulher mudar o rumo da conversa. – Preciso que você se afaste da doutora. Como envolve o hospital, ela ao seu lado a torna vulnerável. Sem contar que ela é alvo fácil para pessoas como o Santos e quem quer que seja mais que esteja envolvido e tenha acesso a ela. Você passará na sala do Anderson às 7 da manhã. Ele está por dentro do esquema e te deixará a par da operação.

Raquel ficou tensa.

“Filha da puta” – Sua mente berrou. Mas, nada disse. Tentava assimilar o que acabara de ouvir.

- É sério? – Foi a única coisa que perguntou.

- Hum! O romancezinho está tão sério a ponto de permitir que ela corra perigo?

- Eu já entendi.

- O que pretende fazer para despachar o grude? – Suzana riu.

- Isso não é da sua conta. Agora que já me deu o recado. Boa noite.

Suzana seguiu Raquel a contragosto. A loira foi até a porta. A ruiva se aproximou.

- Você não muda. Pára de brincar de casinha com essa médica. Isso te cansará logo. Você é como eu. Uma loba que não precisa de ninguém a tiracolo. Somos iguais, Raquel.

Raquel tomou fôlego para responder quando a campanhia tocou. Sua mão já estava na maçaneta. Girou instantaneamente. E avistou Natália sorridente no portão. Raquel foi até ela seguida por Suzana. Fez discretamente as devidas apresentações.

- Você é a famosa Natália... – Suzana era pura ironia. Natália percebeu isso.

- Prazer, Suzana. – O cumprimento fora superficial.

Suzana olhou para Raquel e disparou.

- Não se esqueça do que conversamos. Tenho certeza de que saberá como agir.

A ruiva virou as costas e partiu. Deixando uma Raquel irritada e uma Natália desconfiada.

***

Helena sentiu um toque em seu ombro. Era leve, o suficiente para acordá-la. Abriu os olhos, extremamente sonolenta. Levou alguns segundos para entender onde estava e quem lhe acordava naquele momento.

- Ei, você não pode ficar aqui o tempo todo. Do contrário, quem vai parar numa cama de hospital é você.

- Eu estou bem, Paula. Fique tranquila. Já acabou seu plantão? Quando você volta?

Paula sorriu e sentou-se ao lado da ruiva.

- Passei o dia inteiro querendo lhe perguntar algo...

- Pode perguntar. É sobre a Camila? Não nos vimos neste último ano. Possivelmente não saiba te dizer muita coisa.

Paula balançou a cabeça negativamente. Tomou fôlego e disparou.

- Vem comigo? Passe essa noite lá no meu apartamento. Assim você descansa e ao mesmo tempo não estará sozinha.

Os olhos de Helena transbordaram em lágrimas. O gesto de Paula naquela ambiente hostil a emocionou.

- Não precisa, querida. Mas, agradeço do fundo do meu coração por esse gesto seu.

Paula resolveu mudar a tática.

- Eu preciso de companhia também. Vem logo se não terei que chamar outro acompanhante para me fazer companhia.

Helena sorriu. E acabou aceitando aquele convite.

No momento em que saiam juntas do hospital encontraram Bruna que saía do elevador naquele instante com Marcelo a tiracolo.

Bruna visivelmente demonstrou seu desagrado. Marcelo as ignorou. Paula preferiu não dar importância a nenhum deles. Helena só sabia não gostar do médico.

Foram para o apartamento de Paula. O quarto destinado à Helena era o mesmo que Raul usava quando pernoitava por lá. A ruiva tomou um banho, o mesmo fora feito pela médica. E sentaram no sofá para conversar enquanto esperavam a comida pedida por telefone, chegar.

- Paula, muito obrigada pela confiança.

- Já disse, eu precisava de companhia. – Ambas riram.

- Você faz sempre isso?

- Você é a primeira pessoa que conheço no hospital e trago para minha casa. Fora o Raul e a Natália que são meus amigos. - A comida não chegava. Helena bocejou dando sinais de cansaço. – Se quiser se deitar no sofá até a comida chegar. Fique à vontade. Eu chamo você.

- Não. Fique tranquila. Eu nem sei como te agradecer pela hospitalidade.

- Não precisa. Me fala um pouquinho de você. – Pediu mais para manter o papo fluindo já que a outra não quis repousar no sofá.

- Eu sou designer de interiores. Filha de pais separados. Sem filhos. Minha vida não anda tendo muita graça ultimamente. – Disse com certo desânimo.

- E você e a Camila? – A pergunta saiu naturalmente.

- Digamos que eu entrei de cabeça no relacionamento... Ela também, até certo tempo. Mas, ela faz o perfil cafajeste. Não é mulher de uma mulher só. Quando me dei conta sofri muito e terminei a relação. Mas, tinha o sonho de consertá-la. Isso é ridículo. Achei que meu amor fosse o suficiente. Quando o nosso relacionamento chegou ao fim só havia ressentimento.

- Que barra.

- Nunca mais a vi depois da separação. Estranhei receber o telefonema.

- E por que você tem estado tão abatida. Ainda a ama?

- Eu nunca imaginei vê-la morrendo. Eu achava que nosso casamento seria para sempre. Sabe? Foi tudo o que eu sempre quis. Um dia desmoronou e eu nunca mais quis saber dela. Tinha medo de sofrer mais. Agora a vejo definhar, inconsciente naquela maca. Revivo cada momento que passamos juntas. E, nem sei se posso ter a mesma doença.

- Por isso, precisamos fazer os exames o mais depressa possível. Ela não tem parentes? Amigos?

- A Mila foi uma mulher de muitos prazeres e poucas amizades. Magoou muita gente. Veja o que sobrou... Não sei como as pessoas conseguem viver pela metade. A vida é muito curta para se permitir amar pouco, compartilhar pouco...

As palavras de Helena acertaram em cheio o emocional desprevenido de Paula. Que automaticamente se remeteu à Bruna e lembrou-se dela saindo do elevador juntamente com Marcelo. Vê-los juntos era sempre uma tormenta. E, aquelas palavras aparentemente inofensivas da ruiva a despertaram.

- Você tem razão. Não merecemos somente a metade dos outros. Se for para estar junto precisamos ser inteiros.

O interfone tocou. Era o jantar delas.

***

- Anderson, eu não acredito que terei que terminar com ela.

- Raquel, era para o bem de vocês.

- Que merd*, Anderson. Demorei tanto tempo para me entregar e a Suzana me enfia nessa rede de intrigas com o Santos.

- Na verdade, quem se enfiou foi você quando desobedeceu as ordens dele.

- Ele é um paspalho. Aquilo não tem condições de dar ordens nem para a família dele. – Ela esbravejava.

Do outro lado, observando pelo vidro Santos sorria.

“Isso, Reis. Seu castelo tem data para desmoronar. Está levando uma bela prensa do idiota do Anderson. Logo, logo vocês todos irão para baixo da terra...” Seu sorriso era maquiavélico.

Anderson e Reis protagonizavam o show para convencer Santos. Restava o peixe morder a isca.

Fim do capítulo