Rafaela seguia para a sala de entrevistas acompanhando irmã Dulce, à medida que avançavam o corredor, a porta parecia crescer aos seus olhos e ela sentia o coração palpitar. Irmã Dulce parou quando segurou a maçaneta e se voltou a ela, Rafa agarrou em sua mão livre procurando segurança, mas tudo que a freira fez foi arrasta-la para o interior do cômodo.

O casal a aguardava sentado lado a lado no sofá, acompanhados da Madre superiora.  A mulher elegante e altiva vestindo uma roupa extremamente branca se levantou primeiro. Seus cabelos eram loiros e caiam em cascatas por seus ombros e Rafaela se lembrou da única pessoa que tinha cabelos como aquele. Beatriz!

- Então, você deve ser a Rafaela – aquele anjo loiro lhe sorriu mostrando os dentes mais brancos que ela já vira em toda sua vida e em seguida a envolveu com os braços longos. O perfume da mulher invadiu todos os sentidos da criança. Ela não tinha lembrança nenhuma da mãe ou da avó, mas recordava perfeitamente do cheiro da mãe de Beatriz. Dona Cíntia cheirava rosquinhas de amêndoas com canela e aquele cheiro não se parecia em nada com o que se lembrava. A mulher tinha o cheiro de rosas, muitas rosas, um jardim talvez... Rafa não tinha ideia de como alguém podia cheirar tão bem.

Então o homem se aproximou sorrindo também e deu-lhe um beijo na bochecha. Seu cheiro também era bom, algo parecido com um frescor de menta, mas não tanto quanto daquela mulher.

- Estamos felizes em te conhecer Rafaela – o homem disse com voz grave – gostaríamos que nos acompanhasse num passeio. O que você acha?

A madre superiora torceu o nariz, antecipando algum incidente a ser provocado pela criança e já ia intervir quando se escutou um barulho vindo da bolsa da mulher.

- Amor, seu celular está tocando.

A jovem senhora pareceu não se importar, e continuou a interagir com a criança enquanto o homem vasculhava sua bolsa a procura do aparelho.

- Você tem olhos lindos, Rafa, mas acho que já deve saber disso – os dedos finos e elegantes acariciaram o rosto da pequena tirando alguns fios dos cabelos negros da sua face.

- Porque me escolheram? – Rafaela disse apertando os olhos.

Irmã Dulce tossiu, mas antes que a mulher pudesse responder o homem se aproximou com o moderno aparelho de celular.

- É melhor vc atender Laurel, é do Hospital.

A mulher olhou para o marido com o ar suplicante, ela endireitou o corpo e sorriu lhe estendendo a mão. De posse do aparelho, se desculpou com as freiras em seguida se retirou da sala para atender a ligação.

- Ei, já volto Rafa – disse com a maior segurança, como se já fosse íntima com a criança.

O homem tentou assumir o comando da conversa, mas parecia não ter o mesmo efeito que sua esposa, e num ímpeto de lhe chamar a atenção, ele a levou para o colo. Alheia a atitude do sujeito, os olhos de Rafaela passaram a analisar o sofá. Ao lado da bolsa da mulher repousava um guarda pó tão branco como a roupa que ela usava. Então uma ideia começou a surgir em seu pequeno mundo infantil.

Minutos depois o anjo loiro voltou para a sala e com o sorriso doce se aproximou do marido que ainda carregava a criança ao colo.

- Estou vendo que vocês já se entenderam.

- Você é médica? – Rafa soltou a pergunta curiosa.

- Sim, meu anjo, eu cuido das pessoas e...

- Pode cuidar da minha amiga? Por favor, por favor, por favor!

 Laurel arqueou as sobrancelhas e dirigiu o olhar para a Madre superiora.

- Vocês tem alguma criança doente por aqui?

Marcos pigarreou, irmã Dulce prendeu a respiração, e todos pareceram estranhos quando a Madre superiora levantou a voz.

- A Dra. Laurel já tem muitos pacientes Rafaela e tenho certeza que a mãe de Beatriz sabe muito bem cuidar da pequena. Ela é filha de uma de nossas funcionárias e já está tendo os cuidados necessários Dra., não se preocupe.

- Mas tia Cíntia chorou hoje cedo, quando eu falei com ela, a Bia não melhorou. Por favor, Dra. Laurel ! – Rafaela disse suplicante.

A médica se viu um impasse, havia algo estranho naquela conversa que ela não conseguiu captar de imediato, seria impressão sua ou a freira havia piscado para ela? Tentou usar de todo seu bom senso para contornar aquela situação.

- O que a criança tem?

As freiras se atropelaram na resposta:

- Catapora.

- Coqueluche.

E Laurel percebeu que havia uma grande mentira por ali. Ela lançou um olhar de repreensão para o marido. Marcos parecia saber de tudo, pois tinha um ar de constrangimento. Ela não queria compactuar com aquilo, podia ver o sofrimento nos pequenos olhos azuis que a fitavam em súplica para que salvasse a vida da amiga.

- Meu amor – a médica disse, enquanto tomava a criança para seus braços – essas doenças são comuns em crianças como vocês, provavelmente sua amiga ficará bem em poucos dias, mas eu prometo a você que se permitirem eu vou até a casa dela para examiná-la e trarei notícias para você.

A criança sorriu aliviada agarrando o pescoço da médica como se aquilo fosse sua salvação, aspirou novamente o perfume daquela nobre mulher e beijou-lhe a face em forma de agradecimento e nesse momento ela soube que realmente poderia amar aquela mulher.

***

O passeio com o casal aconteceu de forma tranquila. Rafaela se mostrou agradável e educada.

- Você me ensina? - Rafa falou com a boca entupida de sorvete.

- O que Rafa?

- A cuidar das pessoas, como você faz? Eu quero ser médica .

Laurel sorriu. Como podia uma pessoa falar sempre com o sorriso estampado em seu rosto? Rafaela mirou em sua face se perguntando se isso realmente era possível e tentou copiá-la porque aquilo lhe parecia ser muito agradável.

- Não vou mentir pra você Rafa, terá que estudar muito se quiser ser médica como eu, mas posso te ajudar. Marcos e eu ficaremos felizes se você escolher essa profissão, e te daremos todo o apoio necessário para que isso aconteça.

Rafaela alargou o sorriso e a abraçou, para poder sentir seu perfume novamente, queria gravar em sua mente o aroma daquela mulher, pois não tinha certeza de quando a veria novamente. A mulher acariciou seus cabelos e os beijou com ternura, Rafaela estava rendida e realmente desejou ser a filha daquele casal.

 Laurel abriu a bolsa e tirou um estetoscópio, mostrando o objeto para a criança.

- Você conhece isso?

- Não – os olhos azuis a fitaram curiosa.

- É um estetoscópio, usamos para poder ouvir o coração das pessoas  - então ajustou o aparelho em seu ouvido e colocou a extremidade do objeto sobre o coração de Rafa demonstrando como utilizar o aparelho.

Laurel arregalou os olhos fingindo surpresa ao dizer.

- Você tem um coração bem forte, parece uma orquestra tocando – em seguida tirou o aparelho dos ouvidos  - Quer ouvir? – e ofereceu a Rafa o objeto posicionando o mesmo em suas orelhas.

A criança se encantou com aquilo, e permaneceu o restou do passeio de posse do aparelho tentando auscultar tudo o que lhe aparecia pela frente, fosse animado ou não.

O retorno ao orfanato aconteceu ao final do dia, Rafaela havia adormecido no banco do carro por isso não houve despedidas, nem promessas. Marcos carregou a criança no colo até o quarto enquanto a esposa aguardava no estacionamento, voltariam dali a uma semana quando os papéis da adoção estivessem prontos.

- Quero saber direitinho essa história da criança doente – A doutora questionou.

- Ahh meu amor, as freiras me disseram que Rafa tem verdadeira adoração por essa criança. Elas acharam que seria mais fácil Rafaela aceitar a adoção se estivessem separadas.

- E mentiram para a criança, deixando ela angustiada com uma doença fictícia? Não posso acreditar que você tenha feito parte disso Marcos? Não viu o olhar de sofrimento nela? Como quer iniciar um relacionamento com base na mentira?

Marcos fez uma cara de completo arrependimento e tentou se desculpar.

- Me desculpe, eu achei que talvez elas estivessem certas, ela já foi devolvida inúmeras vezes.

- Ela só precisa se sentir amada, eu espero que você conserte isso hoje mesmo e que amanhã a tal Beatriz esteja de volta na vida dela.

***

Rafaela acordou com os sinos tocando, não se lembrava de como havia chegado ao dormitório, mas ainda podia sentir o cheiro de rosas da Dra. Laurel. Estaria sonhando? Suspirou, fechando os olhos. O passeio com o casal Ferraz fora realmente agradável, será que eles haviam gostado dela? A algazarra da criançada começou e um travesseiro acertou em cheio a sua cara trazendo-a de volta a realidade. Imediatamente se levantou para revidar, mas ao pegar o próprio travesseiro, lá estava ele, o estetoscópio, seu objeto de elo com aquela mulher, seguramente escondido embaixo da almofada. Ela segurou o aparelho e o colocou em torno do pescoço como fazem os médicos, e com esse gesto simbólico, Rafaela teve a certeza de que essa seria a profissão da sua vida.  

Fim do capítulo