Capítulo 4 - Ansiedade
Não sei o que tinha dado em mim pra responde-la daquela maneira. Essa pessoa não era eu. Desde quando eu era audaciosa? Não me lembrava de ter sido assim desde... acho que desde a adolescência. Talvez fosse isso. Talvez estivesse tendo uma adolescência tardia. Será que isso existe? Talvez as coisas que não fiz naquela época eu deva fazer agora. Mas isso inclui um certo tipo de flerte, ainda mais com mulher? Eu devia estar ficando maluca, que flerte que nada, era apenas uma colega de trabalho. Eu estava encantada com essa minha nova etapa de vida, e essa sensação parecia fazer parte disso. Helena desperta algo em mim que eu não sei o que é.
No outro dia, lá estava aquela ansiedade novamente. Mal podia esperar chegar na escola para encontra-la. A troco do que, eu me perguntava. Por que isso tudo? Relaxa, Renata, relaxa. Só não conseguia dizer isso para meus olhos que a procurava por toda a sala dos professores, mas não a encontrara.
Entrei pra primeira aula desanimada por não ter visto. E, relembrando minha mãe, já achei que era um sinal para eu parar com todas aquelas tolices de ansiedade, e me focar no meu trabalho. Era disso que eu estava precisando. E foi isso que fiz. Durante as 3 aulas antes do intervalo eu só pensava em células, vasos, xilema, floema, e tudo que dissesse respeito à biologia. Só quanto tocou o sinal que fui para a sala dos professores é que meu coração disparou. Lá estava ela, tomando café. Também olhava pra porta, e quando me viu, sorriu e veio em minha direção. Eu não queria ter visto minha cara nessa hora. Devia estar parecendo uma pateta. Ela me cumprimentou com um beijinho e puxou uma cadeira para que sentasse ao seu lado. Sentei e começamos a conversar. Era engraçado, que, uma vez do lado dela, toda aquela ansiedade sumia, dando lugar a uma sensação de paz que também me causava estranheza. Sabe velha aquela velha amiga que você não vê há anos mas quando encontra parece que faz poucos dias? É mais ou menos essa a sensação. Eu não precisava pensar no que falar pra ela, tudo fluía de forma natural. Parecia que nasci para aquilo. Pena que essa calma toda só durou os 15 minutos do intervalo, quando o sinal estridente nos lembrou que 3 aulas ainda esperavam pela gente. Nos levantamos e nos dirigimos para a porta. Antes que pegássemos o rumo contrário em direção às nossas salas, ela me segurou pelo braço e disse:
- Será que hoje podemos ver o filme legendado que você me prometeu ontem?
Ainda bem que estava apoiada nela, porque senão minhas pernas de adolescente de 37 anos não suportariam aquilo não. Tomei fôlego e respondi:
- Podemos sim. As crianças estarão com o pai, então posso sair.
- Tudo bem. No mesmo local de ontem, pode ser?
- Claro. Pra sessão das 21:00?
- Perfeito. Te espero lá.
Ela deslizou a mão pelo meu braço e eu torci para que ela não tenha percebido que eu me arrepiei. Nem eu sabia o porquê disso, quanto mais explicar para ela. Melhor eu ir pra sala. Até que dou aula não penso nessas coisas.
*****
E lá estava eu e minha pontualidade britânica, esperando por ela na praça de alimentação perto do cinema. Como ela não chegava, fiz uma coisa que sempre tive vontade de fazer e nunca tinha feito: pedido um chope num desses quiosques e tomado, aproveitando o sossego da minha própria companhia, observando as pessoas passando ao meu redor. Já ia dar meu terceiro ou quarto gole quando sinto uma mão tocando meu ombro. Me viro, e, claro, era ela. Me levantei e a cumprimentei com um beijinho, sentindo o mesmo perfume do dia anterior.
- Vejo que você começou antes de mim!
- Desculpa, não resisti. Sempre tive vontade de tomar um desses chopes.
- Jura? E nunca tinha tomado?
- Não, sozinha não.
Ela sorriu e brincou comigo:
- Então vou dar uma volta e deixar que você termine ele sozinha.
Eu sorri de volta e disse:
- Nada disso. Senta aqui comigo e peça um também. Você bebe?
- Sim.- Ela disse isso fazendo sinal pra garçonete que logo trouxe uma tulipa de chope pra ela. Ela sorriu e brindou comigo: ao filme legendado!
- Ao filme legendado!
Quando falamos isso eu me toquei da hora. Era 21:30. E disse pra ela:
- Acho que perdemos a sessão das 21:00.
- Desculpe, eu me atrasei. Tive um problema no escritório e só consegui sair há pouco. Podemos tentar outra sessão.
- Ou ficarmos aqui, tomando chope, o que você acha?
- Por mim tudo bem, Renata! Desde que você se lembre que você me deve um filme!
Nós duas sorrimos e então eu pude reparar na tatuagem do ombro dela, era o símbolo do infinito. Ficava discretamente no ombro, mas ela parecia fazer questão de exibi-la, dessa vez num vestido de alcinha, lindo, diga-se de passagem.
- Adorei sua tatuagem. É o símbolo do infinito?
- Sim, é. Você gostou mesmo?
- Achei bem interessante. Desde ontem era pra ter te falado. Algum motivo especial por ter escolhido esse símbolo?
Ela me olhou bem dentro dos olhos, como se tivesse procurando por cumplicidade, e me respondeu:
- Ela já teve um significado sim, mas agora é só um símbolo.
- Isso tá me cheirando coisas do coração. - me atrevi a falar. Ela riu da minha ousadia e respondeu:
- Você acertou. A gente faz coisas inconseqüentes quando se é mais jovem. Isso aqui foi uma delas. Eu fiz pra minha ex esposa.
Pronto. Ouvi direito. Ex esposa. Ela era lésbica, sapatão, fancha, bolacha... todos aqueles nomes feios que sempre a gente ouviu por aí. Mais uma vez o velho frio na espinha, o tremor... mas eu tinha que disfarçar, não queria parecer preconceituosa, mesmo porque eu não era, ainda mais diante da naturalidade que ela me contara. Mesmo tentando disfarçar, acho que ela percebeu. E me falou:
- Te assustei?
Tentei responder mais uma vez naturalmente:
- Não.
- Não me pareceu, mas tudo bem. É que pensei que você soubesse. Todos na escola sabem, mas esqueço que você é nova por lá. Mas é estranho, porque parece que te conheço há muito tempo.
Bingo! Era essa a sensação que eu tinha quando estava com ela, que parecia que a conhecia há muito tempo, mas resolvi não dizer nada disso. Apenas continuei no assunto, tentando não parecer uma idiota preconceituosa. Tentando não parecer uma bela, recatada e do lar.
- Então foi da dona da tatuagem que você se separou há dois meses?
Ela tomou um grande gole do chope e me respondeu:
- Foi sim. Da minha primeira e única esposa. E espero que a última também.
Não sei porque fiquei triste quando ouvi isso. Será que fiquei triste com a hipótese dela não querer se casar nunca mais?
- Não fale assim...
- É verdade, Renata. Eu me machuquei muito, e não quero isso de novo pra mim.
Nisso eu era boa. Consolar amigos com dor de amor. Não importava se eu estava consolando agora uma amiga que sofria por causa de uma mulher.
- Eu entendo, mas é porque é tudo recente. Talvez mais pra frente você mude de idéia, não é? Você é uma mulher bonita, interessante, jovem, não deve ficar muito tempo sozinha.
Ela sorriu carinhosa pra mim. Mais uma vez tive aquela sensação de ter o coração cheio de ternura.
- E você, pretende casar novamente?
- Eu? Sabe que não pensei nisso... mas acho que não.
- E por que não? Você é uma mulher bonita, interessante, jovem... não deve ficar muito tempo sozinha!
- Hey, essa frase é minha!
Nós 2 rimos e começamos nossa segunda tulipa de chope.
- Eu não sei se quero me casar de novo. Tenho que pensar em muitos aspectos pra poder considerar essa hipótese. Tenho 2 filhos. Não sei se gostaria de ter um homem estranho morando na mesma casa que minha filha de 17 anos. A gente ouve tanta história por aí...
- Você tem razão nesse sentido. Mas e namorar, você tem namorado? Já namorou?
Eu dei uma risada alta e disse:
- Claro que não! Nem sei como se faz pra namorar!
- Essas coisas a gente não esquece.
- Eu acho que eu nunca soube. Só namorei o Artur a vida toda. Comecei tarde. Fui namora-lo já com 19 anos, na faculdade. Antes disso só alguns beijos inocentes.
- Jura?
- Sério. Eu era a mais anormal da minha turma. Preferia ficar em casa lendo um livro do que sair pra ir em boate, barzinho, essas coisas. Agora você entende porque fiquei feliz em poder tomar um chope sozinha.
- Entendo. Aquela hora eu só estava brincando com você.
- Eu sei, Helena. Relaxa... mas me conta, você ficou quanto tempo casada com a famosa aí da tatuagem?
- Namoramos 2 anos e moramos juntas por 8 anos. 10 anos no total.
- Nossa, é tempo pra caramba.
- Até eu descobrir que ela tinha outra.
Fiquei em silencio por alguns instantes. Não sabia o que dizer. Deixei que ela continuasse. Talvez ela estivesse precisando conversar.
- Eu já desconfiava na verdade. Estávamos afastadas há algum tempo, mas isso de vez em quando acontecia, e depois tudo voltava ao normal. Mas daí comecei a vê-la falando baixinho ao telefone, indo dormir ou antes ou depois de mim, me evitando. Até que um dia cheguei mais cedo no escritório e ela estava beijando a estagiária.
Não consegui esconder a minha surpresa:
- Espera aí, vocês trabalhavam juntas?
- Trabalhamos ainda. Ela é minha sócia.
- Nossa. Não deve ser fácil pra você encontra-la todos os dias. E a estagiária?
- Bem, a estagiária não voltou mais. Mas infelizmente tenho que encontrar a Milena quase todos os dias.
- Poxa...
- Vamos continuar a tocar os projetos que começamos juntas, e os novos que estão aparecendo estamos dividindo. Uma hora vai acabar e finalmente cada uma vai pro seu lado.
- Você ainda gosta dela?
Ela fez sinal pro garçom que trouxe nosso terceiro chope. Só depois ela me respondeu:
- Eu não sei. Pra te falar a verdade não sei. Talvez nem goste, ou talvez seja despeito, ou orgulho ferido, então, não posso responder o que sinto por ela. Mas uma coisa tenho certeza, não é aquele amor de antes. Ser traída é horrível. Ver a traição é pior ainda. Ela acabou comigo. Jogou fora tudo o que tínhamos planejado juntas. Não me respeitou.
Percebi que aquilo era sério. Que assunto delicado!
- E ela aceitou a separação numa boa?
- Sim. Acho que ela está, ou estava apaixonada pela garota. Eu não a julgo, estávamos numa rotina chata, mas ela deveria ter sido honesta comigo e aberto o jogo. O que me magoa é ter feito tudo pelas minhas costas. Sempre fui fiel a ela. Mas tudo bem. As pessoas são diferentes... eu não agiria assim, mas ela agiu...
- Ela está junto com a menina ainda?
- Não sei. Ela me diz que não. Mas não acredito em mais nada que vem dela. Na verdade, quero que ela seja feliz. Eu vou ficar bem.
Num gesto instintivo, protetor, ou sei lá o que, peguei na mão dela e disse:
- Claro que você vai!
Ela se assustou no inicio, mas retribuiu o carinho na minha mão e me disse:
- Obrigada. De verdade.
Pra cortar o clima, eu completei, sorrindo:
- Afinal, você é uma mulher bonita, interessante, jovem - ela completou dizendo junto comigo - e não deve ficar muito tempo sozinha.
Rimos juntas, também pelo efeito dos chopes, e continuamos a conversar sobre coisas das nossas vidas. Nunca tinha me sentido tão bem ultimamente como naquele dia. As horas passaram voando e só fomos nos dar conta quando vimos que quase tudo da praça de alimentação estava fechando. Pagamos a conta e descemos juntas até o estacionamento do shopping. Ela me acompanhou até o meu carro, e disse:
- Obrigada pela noite. Fazia muito tempo que não me divertia tanto. E obrigada por me ouvir. Acho que estava precisando. Minhas amigas também são amigas da Milena, então fica complicado poder falar.
Tomada novamente por aquele impulso que vem não sei de onde, peguei na mão dela de novo e disse:
- Eu que agradeço por você ter me tirado de casa. Também não me divertia assim há tempos. Nem consigo me lembrar quanto tempo.
- Desculpa pelo atraso. Te fiz perder o filme.
- Imagina. Nossa conversa foi melhor do que qualquer filme.
Ela sorriu e apertou a minha mão. Depois me puxou e me abraçou. De novo aquele turbilhão de sensações. Coração disparado, pernas bambas, corpo arrepiado, frio no estomago e na espinha, e aquele cheiro maravilhoso dela. Só fui sair daquele transe quando ela me desejou boa noite, bem perto do meu ouvido, e me beijou a bochecha. Só consegui olhar em seus olhos e dizer:
- Boa noite, nos vemos na escola segunda. Obrigada mais uma vez pela noite.
Fim do capítulo
Obrigada a todas pelos comentários. continuem, por favor!
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line7
Em: 27/05/2016
Há Química total entre as duas, não tem como negar o coração 😏d84;😊 agora ela descobriu ela é lésbica ! Foi praticamente até um susto por talvez imaginar a possibilidade de que pode e vai acontecer algo e mais entre as duas...rssss..o clima bem suave e gostoso de se ler😊 até mais LINDA 😙
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