Demorei algum tempo até sair daquela inércia e voltar a entrar no quarto. Tempo...perdera a noção dele naqueles dias, dias que agora pareciam quase uma névoa, ou fruto de uma loucura avassaladora que se apoderara de mim.

 

Entrei e estava tudo igual...vazio. Mas o vazio era preenchido por uma estranha sensação de vida nas paredes, na cama, no ar...ouvia a gargalhada aberta de Skya, ecoava pelo ar, e enchia os meus ouvidos. Cheguei a apertá-los com as mãos para afastar aquela sensação de quase loucura.

 

Arrumei as minhas coisas sem me ater ao fato de gostar de tudo no lugar, bem arrumado. Arremessei tudo na mala, peguei uma roupa qualquer e entrei no banho. Queria que a água sobre a minha cabeça varresse toda aquela sensação inédita e por isso mesmo estranha, exigente.

 

A água caindo forte sobre mim não varreu nada, pelo contrário...minha pele queimava, a água era gelada mas minha pele insistia em arder. Toquei-me na barriga e o calor que emanava da pele incendiou minha mão...toquei-me toda, largos minutos...calor, e uma sensação de que outra mão me tocava...loucura.

 

Demorei muito tempo debaixo de água, não queria sair dali mas tinha uma vida à minha espera, vida real.

 

Vesti-me quase a correr, meu telefone não parava de tocar. Karen ligou e fiquei a saber que meu negócio ainda ia a tempo de ser feito. Claro que fiquei excitada, o objetivo maior daquela odisseia não se perdera, eu iria fechar o negócio do ano para a minha empresa e ganharia mais um ponto no meu currículo que já colecionava êxitos.

 

Antes de sair daquele quarto em definitivo, andei por todos os cantos...não sei para quê, objetivamente não sei dizer o porquê. Parei algum tempo na varanda, olhei para a espreguiçadeira e sorri...teria sido um sonho? O vento beijou-me a face e meu cabelo voou em direção ao meu nariz...senti o cheiro do shampoo de Skya, mais um sinal claro da minha loucura.

 

Ia deixar o quarto quando decidi entrar mais uma vez no banheiro para certificar-me que nada ficava para trás, sou boa em esquecer meus pertences em quartos de hotel. Nada estranho saltou-me aos olhos. Olhei-me no espelho...não sou a Susan, mas poderia dizer que meus olhos brilhavam e que meu semblante era outro, mais leve...mas não sou a Susan, o que vi foi a velha Catherine de sempre.

 

Abri um armário e algo chamou-me atenção...um perfume, ou o que restava do seu conteúdo. Eu não estava louca, alguém estivera comigo naquele quarto, já que aquele frasco de uma fragrância inesquecível não me pertencia. O perfume de Skya, aquele que me levava a lugares bons...o cheiro dela, um dos seus cheiros, já que ela adorava um creme de coco e limão que simplesmente deixavam meus sentidos em alerta...cheiro bom, cheiro dela...Skya.

 

Peguei o frasco e aspirei profundamente. Cheiro de vida, de riso...cheiro de novidade. Borrifei algumas gotas nos meus pulsos...cheirei demoradamente...gravei na mente, regravei porque ele já estava lá.

 

Pensei em deixá-lo ali, esquecido, para o bem da minha sanidade mental...mas não consegui, guardei-o na bolsa e fui embora.

 

Na receção fui informada das duas opções que tinha para chegar mais depressa ao meu destino. Seguiria no trem das 10:30 e em menos de duas horas estaria na cidadezinha do Sul. Estava tão perto...

 

Quase perguntei por Skya, mas a moça estava tão ocupada dando assistência a várias pessoas que achei minha preocupação irrelevante. A sensação de que tudo não passara de um delírio da minha cabeça voltara com força.

 

Até chegar ao destino final, o trem parou quatro vezes e todas as vezes me vi expectante com os olhos fixos na porta à espera de um milagre...

 

Sem milagres, vida que segue.

 

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A passagem relâmpago pela cidadezinha do Texas culminou num negócio de milhões para os próximos 10 anos e num Mr. Samson soltando fogos-de-artifício. Eu? Fiquei muito satisfeita, claro que sim. Era o meu trabalho, algo que fazia por paixão e que fazia muito bem. Mas sinceramente...começava a ficar cansada.

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Casa! Ah, que bom. A melhor parte das minhas inúmeras viagens é o momento de meter a chave na porta, abrir e sentir o meu ambiente. Mas não foi sempre assim, há algum tempo atrás adorava viajar, saltar de avião em avião era o maior prazer, depois de bom sex* obviamente.

 

As coisas mudam, ou será que eu estou a mudar? Há algum tempo que sinto que as viagens, negócios, negociação particularmente, não me dão a mesma satisfação de outrora. Mas como não sou de perder muito tempo pensando, vou vivendo...

 

Casa...sensação boa. Saudades do meu gato mas é tarde para ir buscá-lo. Pela Susan, eu iria tranquilamente mas a mulher dela não gosta muito de mim e não faço o menor esforço para mudar a situação, ela não me interessa nada. Mas tenho que respeitar a vida da minha amiga, e se a mulher dela não gosta de mim, então Scout só amanhã de manhã.

 

Senti falta dele, do olhar perscrutante, da orelha em pé, ou mesmo da indiferença, ou seria arrogância? Saudades do meu companheiro.

 

Comecei a rir sozinha...não me considero uma beleza do tipo irresistível, mas é claro que sou uma mulher atraente. No mundo em que vivemos em que se valoriza mais o embrulho do que o conteúdo, diria que meu embrulho está muito acima da média. Dizem que sou sexy, meu corpo está muito bem porque dele cuido com esmero, tenho outras tantas qualidades que saltam á vista e no entanto em plena sexta-feira numa cidade que ferve, estou refastelada no meu sofá e com saudade de um gato que não me liga nenhuma.

 

Catherine, tu não estás bem!

 

Estava cansada da viagem...muito cansada.

 

Depois de duas taças de vinho o sangue subiu e o cansaço já não me incomodava tanto.

 

Fiquei irrequieta, quase elétrica. Pensei em ligar para alguém, um homem, claro. Mas eu não gosto muito de dar esperanças a ninguém, não gosto de repetir noites de sex* com pessoas eventuais e o único não eventual que me ocorria no momento era o Mathew e definitivamente não. Mathew quer romance, filhos, casamento...tudo que eu não quero.

É engraçado como sex* era bom até o momento em que as coisas mudaram na cabeça dele. Casamento? Não!

 

E ele nem é desses convencionais idiotas, mas insiste em morarmos juntos, insiste que sou a mulher que ele quer para mãe dos filhos dele...socorro, filhos? Nem pensar. Mal dou conta do Scoutie...nem pensar. Não gosto de crianças, diria que detesto, só não grito em voz alta porque acredito que até minha consciência ficaria horrorizada.

 

Varanda! Lua linda...minha mente fez um rewind numa velocidade tal que me deixou zonza. A taça de vinho tremeu na minha mão...a lua lembrava uma noite em que...pareceu-me tão distante e não passara mais do que alguns dias.

 

Permaneci ali por algum tempo com o pensamento desconexo. A única coisa que me atrelava a uma realidade meio entorpecida era o cheiro dos meus pulsos...aroma de vida.

 

Scoutie...saudades tuas meu bichano. Quase gritei. Aquele ser sem as faculdades mentais de muitos humanos, me entendia como ninguém.

 

Estava a evitar ouvir música. Não era uma atitude consciente porque não refletia sobre tal fato, mas não queria saber de música...

 

Mas estava irrequieta e jazz costumava ser um excelente calmante em noites de alguma atividade mental...coisa rara, ou nem por isso? Sei lá! Já nem sabia se pensava muito ou pouco, a única certeza é que ultimamente minha mente vagava...

 

Comecei minha viagem com Ginger me slowly. Meus pensamentos voaram sem parar em nada. Eu ainda tinha algum controle e não me permitia focar em nada, nada.

 

Somi começou a cantar Last Song, fui invadida pelas melhores lembranças. Uma menina num trem...o riso dela...os sneakers...o olhar...os olhos mais lindos...o cheiro...a liberdade...a música...o bloco de notas...os fones...a gargalhada...o atrevimento...a pele...a boca...os seios...as mãos...

 

--Fuck! Estou doida! - Gritei!

 

Saí do sofá e fui beber água. Não queria mais saber de vinho. Aquele aroma me remetia a outros momentos, outras garrafas de vinho partilhadas com a menina dos sneakers que eu sequer sabia se existia ou se era fruto da minha mente insana...mas e o perfume?

 

--Skya...por onde andarás?

 

Eu não sabia nada dela...lembrei-me do Google, claro.

 

Tablet nas mãos e muita ansiedade.

 

Digitei Skya...mãos tremendo. Louca que tu és Catherine...completamente.

 

Nada de especial...em termos. Vi uma foto dela tocando contrabaixo e quase fiquei paralisada. Ela tocava violino também mas não como instrumento principal, guitarra, e ainda cantava. Skya...minha Skya.

 

Dessa vez ri e bem alto. Minha? Onde? Loucura absoluta.

 

Ela não mentira, tinha mesmo esse mix como progenitores...mas mentiria porquê? Vi uma foto da mãe dela e sim, ela é uma mulher lindíssima, muito parecida com a Skya, mas minha Skya é mais linda...o sorriso é único.

 

Elas já tinham tocado juntas num quarteto...vi muitos vídeos, Skya era um show tocando
contrabaixo.

 

Queria mais...queria saber coisas inéditas. Onde ela morava, por exemplo. Eu sei que é loucura mas já era madrugada e enfim...

 

Nada. A única coisa que vi é que ela passava muito tempo em concertos pelo mundo, digressões, temporadas...

 

Ah, finalmente um site com mais informações...Skya decidira parar um pouco com os concertos para navegar por outros mares...palavras do site. Que mares?

 

Nada da vida pessoal, amores, lugares...nada. Bem que ela dissera ser low profile...mas era famosa, estava por toda a internet... e mesmo assim informações dispersas...nada dispersas, as informações eram condizentes com a atividade dela, com a sua arte...eu é que queria saber mais...

 

Skya era sonho ou realidade?

 

Que sonho Catherine? Ela estava na internet...olhei mais uma vez a foto...aquela com o contrabaixo...linda, entregue...sexy...tesão. Tesão doido que me consumiu toda...o que eu não daria por um beijo daquela boca? Daria qualquer coisa...

 

Fui para cama. Caí nela e viajei...queria ter paciência para self satisfaction...não tenho. E não quero nada...só quero Skya.

 

Chet Faker, Love and Feeling...sorri, cantei com ele...desafinada, mas afinadíssima com meu desejo por aquela menina...menina? Mulher...maravilhosa...Skya...só mais uma vez...uma vez...uma noite...

 

Adormeci embriagada e não foi de vinho...embriagada de algo que não tinha nome...

 

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--Cuidaram bem de ti meu amor? - Beijava e cheirava meu Scoutie que parecia feliz com minha presença.

 

--Muito bem dona Catherine. Acho até que ele e a Younie desenvolveram uma afinidade acima do normal. Stauss é que pareceu não ter gostado muito.

 

Gargalhadas.

 

Scoutie pulou-me das mãos e aproveitei para abraçar a minha amiga.

 

--Tu e essa mania de ver romance em tudo Susan.

 

Mais risos.

 

--Não é excesso de romantismo, eles não se largaram. Uma coisa de outro mundo...

 

--Doida!

 

--Tudo bem por aqui?

 

--Por aqui sim, mas quero saber de ti, da loucura que foi essa viagem cheia de aventuras.

 

Ah se ela soubesse...não quis partilhar Skya com Susan. Ia dizer o quê? Que fizera sex* com uma mulher e que tinha adorado? A Susan? Não...nem à minha melhor amiga teria coragem de contar aquela loucura...sim era uma loucura, privação de sentido...segredo meu.

 

--Por incrível que possa parecer correu tudo bem...

 

--Sério? Eu sei que o negócio foi um sucesso. Karen contou toda orgulhosa, aliás segundo ela, a senhorita é um sucesso absoluto naquela empresa.

 

--Nada de novo...

 

--Sim, mas pelas circunstâncias e conhecendo a senhorita, pensei que voltaria possessa e sem negócio algum.

 

--Talvez não me conheças tanto assim...

 

Susan olhou-me com alguma curiosidade mas ela estava com pressa e não aprofundou os questionamentos, mas eles viriam...conheço minha veterinária predileta e em algum momento ela perguntaria alguma coisa...daquele seu jeito de quem não quer saber nada mas que acaba sempre descobrindo tudo.

 

--Preciso ir, meu amor me espera.

 

Sorrisos felizes...dela.

 

--Ah esse amor...

 

--Vamos passar o fim-de-semana num chalé maravilhoso. Estou muito entusiasmada.

 

Sorri feliz por ela.

 

--Preciso aproveitar porque daqui a pouco começa mais um período de loucura na editora dela.

 

--Mas ela está sempre em loucuras Sue...

 

--Graças a Deus, isso significa que ela está feliz e se meu amor está feliz eu fico mais feliz ainda.

 

--E eu feliz por ti...

 

Mais um olhar intenso dela sobre mim...Susan era de uma perspicácia...

 

-- Está tudo bem?

 

--Claro que sim. Vai logo que a Ciara não pode esperar.

 

--Na segunda almoçamos juntas?

 

--Como sempre...

 

Risos.

 

--Nem sempre...a moça é muito ocupada.

 

--Almoçamos juntas, prometo. Saudades tuas...

 

--Hã? Tu admitindo saudade que não do Scoutie?

 

--Doida!

 

Risos altos.

 

--Eu sei que a ocasião não permitia...mas conheceste alguém nessa viagem? Alguém que ficou perdido como tu no meio do nada? Um homem de revista? Mais um? O tal? Aquele que vai conseguir a proeza de quereres repetir o sex*...uma...dez vezes?

 

Gargalhadas.

 

--Bebeste alguma coisa? Tu nem és disso...

 

--É a excitação...estou doida para ficar com a minha Ciara.

 

Risos tímidos.

 

--Mas moram juntas sua doida...

 

--Sim, mas é diferente Cathe...uma pena que não entendas nada disso.

 

--Vai lá antes que a tua mulher me esfole viva.

 

Risos.

 

--Dramática. Preciso promover esse encontro...acho que vocês podem ser amigas se esquecerem um bocado algumas características.

 

--Sei...claro. - Ri de forma cínica.

 

--Pateta. Tchau Scoutie, cuide bem dessa doida adorável.

 

Susan saiu voando. Ela estava feliz e eu feliz por ela. Quase que entendia aquela alegria...quase...

 

 

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A semana no trabalho passou na mesma intensidade de sempre, reuniões, discussões e com direito a uma leve crispação com o meu chefe que nada mais é do que o presidente da empresa, já que eu respondo diretamente a ele. O motivo foi o meu pedido de férias, na realidade nem foi um pedido, eu simplesmente comuniquei que vou sair por duas semanas.

 

Já estava certa disso antes de ter passado dois dias perdida no meio do nada e agora nada me dissuadiria. Precisava de paz, estar com a cabeça vazia, pelo menos sem preocupações de trabalho.

 

Alguma coisa não ia muito bem na minha cabeça, não reconhecia algumas certezas, ou então questionava...não sou de muitas questões...nunca perdi tempo em muitas viagens ao meu íntimo, vivo a minha vida da forma mais tranquila, sem muitas emoções mas sem problemas e inquietações.

 

Vida...levantei-me da minha cadeira giratória que adorava e posicionei-me na enorme janela envidraçada com vista para o parque da cidade. Vista linda que só agora eu me dava conta...linda mesmo.

 

De repente veio a imagem de um bosque numa tarde em que vivi com os pés suspensos do chão. Não foi apenas naquela tarde...três dias em suspensão, elevada a mundos desconhecidos...

 

Aquela sensação estava a angustiar-me...eu queria voltar a ser a Catherine normal, a Catherine com a qual sabia lidar...

 

--Catherine...Catherine...

 

Minha secretária chamava meu nome há algum tempo e eu perdida em outros mundos...Santa Karen que me trouxe de volta à realidade.

 

--Sim Karen. - Olhei com meu ar de superioridade...precisava da velha Catherine com urgência.

 

--A Susan ligou, vem buscar-te para almoçarem.

 

--Ok, obrigada. Porquê ela não ligou diretamente para mim?

 

--Ela tentou várias vezes mas não atendeste...

 

Eu estava no mundo da lua...

 

--Ah, estava em outras ligações...- Mentira deslavada...estava sim em outra galáxia.

 

--Com licença.

 

Ela saiu e voltei para a vista da janela. O parque parecia lindo àquela hora, poderia comer alguma coisa por ali com Susan, mas ela não entenderia...nunca gostei dessas coisas ao ar livre. Tantas vezes ela pediu que fizéssemos lanches no parque, comer hot dog na rua, nunca quis...

 

--O que tanto procuras no céu dona Catherine?

 

A voz de Susan atrás de mim assustou-me. Perdera a noção do tempo e ela chegara para o almoço.

 

Olhei para a minha amiga com uma expressão dúbia e ela percebeu, claro que sim.

 

--Catherine...

 

--Hmmm...fome?

 

--Sim, mas não é isso...desculpa a intromissão...

 

--Sem rodeios Sue...

 

--Quando é que vais contar-me o que aconteceu na tua última viagem?

 

A pergunta veio como um balde de água gelada na minha cabeça.

 

Fim do capítulo