Capítulo 19
POV Letícia
Eu mal podia acreditar que estava ali, naquela cozinha, paralisada ainda sob o torpor do que havia acontecido minutos antes. Alice havia me deixado sozinha, ansiando seu beijo, enquanto ela havia me dispensando categoricamente.
Deixando para trás apenas o doce perfume de seus cabelos que havia impregnado no meu nariz. Maldito cheiro de baunilha.
Pisquei os olhos ainda duvidando que aquilo fosse real.
Ela estava magoada. Isso era fato. Mas por um motivo tão bobo que não achei que deveria ser levado a sério, vejo agora que me enganei completamente.
Naquela tarde onde ela entrou pela porta, completamente ensopada, com o cabelo bagunçado, meu intuito inicial, se possível, era de abraça-la e perguntar como havia sido a temida conversa, no entanto, em um momento de completa insensatez me permiti rir da piada de mal gosto que Antoni falou.
Mas confesso vê-la frágil diante de mim, febril e o nariz vermelho denunciando um resfriado, fez com que me sentisse mal, desejando voltar no tempo e não ter dado aquele deslize.
Se um sentimento me definisse naquele momento, certamente seria arrependimento.
Mas agora o erro já tinha sido cometido, não há espaço para lamentações e eu estou plenamente consciente de que ela estava certa em se chatear, só me resta correr atras e convencê-la a me perdoar, por mais difícil que pudesse ser, no fundo tinha certeza de que Alice sempre voltaria para mim.
Um pensamento egoísta, tenho consciência disso, mas se ela pensou que eu fosse desistir fácil, estava enganada.
***
POV Alice.
Acordei um pouco mais disposta essa manhã, apesar de ainda não me sentir completamente curada, estava bem o suficiente para encarar um dia de trabalho.
Hoje iria dar adeus definitivo as férias, o ocupar minha rotina entre um dos escritórios mais renomados da cidade e a faculdade, sem dúvidas iria me abarrotar de responsabilidades, mas naquele momento não me pareceu de todo ruim, aliás era até benéfico para me distrair, quem sabe assim esqueço um pouco o turbilhão de acontecimentos que se sucederam nos últimos dias.
Ainda era cedo, aliás era cedo demais, coloquei o despertador aquele horário propositalmente pois não queria tomar café na mesa e dar de cara com Letícia, muito menos com meu tio, seria uma boa forma de evitar começar o dia de mau humor.
Me arrumei calmamente, me vesti um pouco formal demais talvez...exigências do oficio.
Desci as escadas e rumei a cozinha optando por um café reforçado que Nona havia feito. Fui no carro de minha mãe, um que ela não usava com tanta frequência e rumei ao escritório.
Quando cheguei não pude evitar a surpresa em ver o edifício tão lindo e imponente, haviam comentado que seria reformado, mas nem em sonho imaginei que ficasse tão lindo. Prédio imponente, com estrutura de aço e janelas de vidro azul tomavam 12 andares em uma arquitetura moderna.
--Uau. --Não contive a admiração ao estacionar o carro na minha vaga.
Se por fora era deslumbrante, não era preciso nem descrever como estava por dentro. Via os rostos surpresos e alguns buchichos dos outros funcionários enquanto cumprimentava-os. Devo ter adentrado uns três corredores até finalmente encontrar minha singela sala, que permanecia com os móveis que já estavam antes, mas tudo com uma decoração diferente.
Como havia chegado antes do previsto tive tempo de procurar Patrícia na sala ao lado.
--Bom dia!
--Bom dia, flor do dia. --me respondeu quase sem desviar os olhos da tela do computador
-- Só eu que estou surpresa com essa reforma?
--Essa reforma foi a menor surpresa.
--Como assim?
Perguntei ainda sem entender.
--Ouvi comentários que teremos um novo chefe. Ou chefa, como preferir.
--Quem? E o Dr. Otávio?!
Falei com olhos arregalados.
--Ele vai continuar, mas atuando bem menos, pelo que soube ele fez sociedade com Victória. Convenhamos ele já é um senhor de idade, está na hora de descansar. Além do que houve aquele problema ocorrido.
O problema ao qual Patrícia se referia eram alguns vazamentos de informações sigilosas sobre clientes somados a alguns desfalques em dinheiro sofrido no ano anterior, o que tinha comprometido seriamente a credibilidade do Escritório.
--Verdade. Mas quem é Victoria?
--Victoria Ferraz
--A criminalista? --arregalei ainda mais os olhos
--Ela mesma!
--Aqui?!
--Sim ----Patrícia resmungou sem paciência.
--Nesse escritório?! --indaguei ainda sem acreditar.
--Sim, Alice...
--Trabalhando com a gente?!
Mal podia conter a emoção, ela era uma das advogadas mais brilhantes, uma verdadeira referência no meio jurídico e apesar de nunca tê-la visto, seu renome era conhecido por todos.
--Na verdade, nós que vamos trabalhar para ela...
--Nossa! Será se soa inconveniente eu trazer um livro que tenho dela e pedir para ela dar um autografo?
Perguntei esperançosa, enquanto Patrícia me lançava um olhar reprovador.
--Inconveniente não sei, mas amador com toda certeza. Além do que, pelo que ouvi nos corredores ela não parece ser a pessoa mais receptiva do mundo, dizem que ela é uma megera e bastante exigente.
--Você a viu?
--Ainda não, deve ser uma velhinha rabugenta e mal amada. Me comunicaram que vai haver uma reunião de boas vindas com os advogados daqui a pouco no auditório. Aliás --Patrícia olhou o relógio--É melhor irmos, já deve estar começando.
Pelo menos aquilo não havia mudado, era tradicional a cada começo e final de ano haver uma singela comemoração com todos os funcionários reunidos, pelo menos no primeiro dia de trabalho não haveria aquela hierarquia tão aparente entre chefes e subalternos.
Adentramos no local, que também havia sido mudado, todos os assentos eram de cor azul, contrastando com as paredes cor de gelo, havia uma grande telão mostrando o logotipo do escritório que era refletido pelo retroprojetor no teto. Os assentos estavam quase cheios, mas haviam alguns lugares dispostos no meio, e foi para eles que eu e Patrícia nos direcionamos.
Era possível ver o rosto dos funcionários ansiosos, em mim pairava a mesma dúvida e curiosidade para ver a nova chefe que ficaria a frente aquele grande escritório. Dr. Otávio era um dos advogados mais experientes da sua área de atuação, e também um exemplo de chefe, era educado e tratava a todos com respeito o que era muito raro naquele meio, certamente ele faria muita falta. Recordo de ter ouvido mamãe comentar que ele teve sérios problemas de saúde no ano passado, sua idade avançada não permitia defender suas causas com o mesmo vigor de antes.
Aos poucos foram entrando os advogados, diga-se de passagem só existiam homens trabalhando nessa função no escritório, era terrível ver que mulheres ainda estavam em desvantagem no mercado.
Em meio a cabelos grisalhos, Ela entrou.
Imponente.
Eu e Patrícia nos entreolhamos rapidamente, era incrível quando você conhecia a pessoa há tanto tempo que conseguia se comunicar apenas com o olhar.
Naquele momento nossas bocas se abriram debilmente em surpresa enquanto nos encarávamos.
--Velhinha rabugenta e mal amada? --sibilei para minha amiga incrédula.
Ela sorriu.
Olhei ao redor rapidamente e percebi que não éramos as únicas surpresas.
Todos olharam surpresos.
Ela era linda, tinha um porte tão elegante e austero que me deixou ainda mais boquiaberta. Devia ter entre quarenta ou quarenta e cinco anos, pele branca, cabelos negros abaixo dos ombros, olhos escuros e expressivos.
Nós lábios um sorriso contido que não ousava mostrar os dentes. Usava um vestido azul escuro que parecia ter sido modelado especialmente para seu corpo. Um corpo magro porém curvilíneo, e os saltos a deixavam ainda mais alta do que aparentava.
Sua presença poderia ser resumida em uma única palavra: Impactante.
Meus pensamentos foram interrompidos por sussurros atras de mim, ainda assim não consegui tirar os olhos dela.
--Nossa se eu pudesse...
Ouvi o suspiro alto de João, uma das pessoas mais insuportáveis que tive o desprazer de conhecer. Metido e Inconveniente.
--É melhor tirar o cavalinho da chuva, ouvi dizer que ela joga no mesmo time que a gente.
Eu e Patricia nos olhamos, dessa vez com o cenho franzido
--Não tem problema, faço ela mudar de ideia rapidinho.
Rolei os olhos, mas em meu íntimo pairava uma sensação estranha de curiosidade sobre aquela mulher que pareceu ainda mais instigante após o comentário vil de João.
Dr. Otávio se mantinha ao lado dela sentada na mesa bem posta, enquanto comentavam algo que o fez da uma risada. Ele apenas. Já Victória mantinha os lábios inclinados, sem verdadeiramente sorrir. Ela carregava no rosto uma expressão blasé, como se tudo ao seu redor fosse insignificante demais, ignorando o olhar admirado de todos.
Ela possuía lindos olhos castanhos escuros que faziam harmonia com os fios negros de seu cabelo perfeitamente moldado, nenhum fio fora do lugar. Aliás, nada naquela mulher se mantinha fora do lugar, parecia mais uma boneca de cera de tão inexpressiva.
Ri com meu pensamento tolo.
Foi iniciada a cerimônia entre discursos e mais discursos dos advogados presente, todos eles teceram inúmeros elogios a Victória, enfatizando o quão competente ela era e exaltando seu currículo que de longe era o mais impressionante entre os presentes.
Olhava para ela, me detendo em captar qualquer reação sua diante de tanto enaltecimento, mas seu rosto sequer se movia, em seus lábios havia apenas um esboço de um sorriso que supus ser irônico.
Parecia ser tão fria que nem as mais exageradas bajulações a faziam tracejar algum sentimento.
Foi então que seu nome foi anunciado pelo cerimonialista, e ela caminhou imponente até a bancada que ficava mais próxima a mim, há alguns metros a minha frente.
Iniciou desejando um bom dia a todos os presentes e cumprimentado os advogados reunidos na mesa de honra. Sua voz era grave porém suave e externava uma confiança tremenda. Entretanto, sua proximidade me causou tamanho fascínio, que passei minutos hipnotizada com sua presença, e acabei perdendo o decorrer de seu discurso, captando apenas a ultima parte.
--(...)e eu costumo exigir apenas três coisas dos que trabalham comigo –deu uma pausa estratégica– Disciplina– olhou para toda plateia detidamente enquanto levantava o dedo esguio com unhas pintadas de preto – Responsabilidade – ergueu mais um dedo – e Lealdade – seu olhar intenso fixou detidamente em mim – a tudo que se relaciona a mim e ao escritório.
Nossa troca de olhares durou alguns breves segundos mas suficientes para fazer meu ar faltar e e causarem frio na espinha me fazendo questionar a sensação estranha que sentia em meu íntimo.
--Deus, por que meu coração está batento tão rápido?!
***
Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham n'alma objetos
Que os possam entreter;
Meus olhos... coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente pára
Em encontrando o mar!?
E penso n'isto, cismo...
Mas é tão natural
Cair-se no abismo
De uma beleza tal!...
Olhei!... Foi indiscreta
A vista que te pus.
A pobre borboleta
Viu luz... caiu na luz!
Uma atração mais forte
Que toda a reflexão,
É fado, é sina, é sorte!
Me arrasta o coração...
João de Deus - Atração
Fim do capítulo
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