No dia seguinte quando cheguei ao escritório percebi alguns olhares de esguelha em minha direção, pelo visto ninguém tinha engolido a minha história sobre o “retiro”, também pudera eu nunca faltava, às vezes ia trabalhar até doente.

- Bom dia Fátima.

- Bom dia doutora Ana.

- Recados?

- Não senhora. Como a senhora disse que ficaria essa semana fora todos foram transferidos para a doutora Mariana.

- OK. Obrigada.

Meu Deus eu seria uma louca se deixasse Mari ir embora da minha vida, ainda mais depois da noite de ontem. Ela era a mulher certa para mim. Ia colocar minha cabeça no lugar e fingir que Clara não havia voltado. Essa era a coisa certa a fazer.

Ao entrar em minha sala dei de cara com Clarice sentada na minha cadeira.

- Oras, oras, a rainha dignou-se a aparecer diante dos súditos.

- Bom dia Clarice. Creio que está sentada no meu lugar, se não se incomoda...

- Cara de pau, me diz o que faço com você? – Disse se levantando e sentando -se na cadeira em frente à mesa. Tomando meu lugar falei:

- O que te deu a certeza de que eu viria hoje para você estar aqui a minha espera?

- Eu contei pra Mariana como você estava. Sabia que ela iria te procurar e fazer você enxergar a sua criancice, simples assim.

- Quer dizer que você acha que a Mariana tem poderes sobrenaturais sobre mim?

- Não, eu achei vocês trans*riam e isso te faria acordar pra vida!

Eu fiquei boquiaberta com a declaração fria e crua. Não sabia o que responder, por isso fiquei apenas olhando para a cara dela.

- Eu agi errado com ela pra te ajudar e fiquei me auto censurando por conta disso depois. Olha Ana, eu sei que não devia me meter em sua vida, mas acho que precisamos conversar sobre uma coisa. Uma coisa bem séria. Você sabe que Mariana está apaixonada por você?

- Nós conversamos ontem sobre isso.

- E mesmo assim você transou com ela? Meu Deus você não era assim. Pensei que você ainda não sabia! Como você pode usá-la dessa forma, sabendo do sentimento dela?

- Eu não sabia mesmo. Às vezes acho que me preocupo demais com meu próprio umbigo e não percebo o que se passa ao meu redor. Mas não foi como você esta pensando, não usei a Mariana. E depois tomei uma decisão Sisse, vou assumir meu namoro com Mari. Ela é a mulher certa para mim.

- Sério? Não que eu não ache a Mari uma pessoa incrível, mas creio que pra você assumir um relacionamento tem que haver uma coisa chamada amor de ambos os lados. Você é apaixonada por ela? Você a  ama?

- Você sabe a resposta para essa pergunta. Porém gosto muito dela, muito mais do que você imagina. Isso basta pra mim.

- Não Ana, isso não é certo.  Se você não fosse apaixonada por outra pessoa, até poderia dar certo. Mas você ama a Clara, como acha que vai conseguir levar esse relacionamento adiante?

- Eu não quero mais saber da Clara, entendeu? Por isso, por favor, pare de falar nela. – Respondi irritada.

- Viu só, se a mera menção do nome dela te deixa assim, imagine quando se encontrarem por ai.

- Vou agir como se não a conhecesse. Ela mesma disse que era melhor nos afastarmos e está certa. Será melhor pra nós duas. Assim não estrago o namoro dela e nem ela o meu.

- Vai ser fácil, já estou até vendo.

- Para Sisse, o que você quer que eu faça? Ela está seguindo a vida dela, eu tenho que fazer o mesmo com a minha. Eu vivi vinte anos sem ela, posso viver o resto da minha vida. Ou você esta sugerindo que eu vire uma monja, me tranque em um monastério e viva chorando por Clara? Eu mereço ser feliz!

- Não estou sugerindo isso e nem quero que vire uma monja. Mas fala a verdade, você conseguiu viver sem ela, pois não sabia onde estava, não corria o risco de encontrá-la, mas conseguiu ficar sem pensar nela? Agora quer me enganar, ou será que esta tentando enganar a si mesma?

- Não quero enganar ninguém, só acho que se consegui viver sem ela posso voltar a fazer isso.

- E a Mariana merece isso? Merece viver com alguém que não a ama? Que trans* com ela pensando em outra?

- Eu não transo com ela pensando em outra. E sei que posso aprender a amar a Mari com o passar do tempo.

- Uau! A prender a amar. Não sabia que isso podia ser aprendido. Achei que acontecesse e pronto. Ana admita isso é uma canalhice. A Mariana tem o direito de ser amada, de ser feliz ao lado de alguém que a queira de verdade e não viver como um estepe.

- Ela nunca será um estepe!

- Não? Muletas? Soa melhor pra você?

- Olha aqui Clarisse, eu já tomei a minha decisão e você não vai conseguir mudar isso entendeu? Eu não estou mentindo para Mariana. Ela sabe o que eu sinto. Então para de encher o meu saco.

- Já imaginou, se um dia Clara souber toda a verdade e vir te procurar? Se ela entender que a errada não foi apenas você, mas ela também? O que você vai fazer?

- Isso não acontecerá! Ela não quis falar comigo, e a outra parte envolvida jamais vai contar a verdade a ela.  Eu não posso mais viver dessa ilusão. E eu preciso trabalhar, então é melhor você ir embora.

- Eu vou Ana, mas pense bem no que eu te disse. Ah, só mais uma coisa, você já informou Mariana da sua decisão de assumir um compromisso? Porque pode ser que ela seja mais sensata que você.

Dizendo isso ela se virou e foi embora. Fiquei puta da vida. Poxa eu estava tentando colocar minha vida de volta aos eixos e ela vinha com aqueles questionamentos todos. Será que ninguém conseguia me entender? O resto da manhã passou tranquilamente, voltei a trabalhar nos meus processos, estava mais calma e confiante de que tudo voltaria ao normal com o passar do tempo. Na hora do almoço fui até a sala de Mari chama-la pra almoçar:

- Oi Ruiva gostosa. Muito ocupada?

- Pra você? Nunca! – Respondeu sorrindo

- Vamos almoçar? Podemos ir ao Luiggi´s, ou se você preferir tiramos o resto da tarde de folga. – Disse piscando

- Hum a tarde de folga não seria uma má ideia, mas infelizmente não posso. Eu agendei para tirar meu visto no consulado canadense.

Meu coração deu um salto. Como assim tirar o visto? Ela ainda estava com aquela ideia maluca mesmo depois da nossa noite anterior?

- Não estou entendendo Mari. Pra que você precisa do visto agora que não vai mais viajar.

Ela levantou e veio em minha direção, pegando minhas mãos me levou até o sofá e sentou-se ao meu lado:

- Ana, eu vou viajar, meus planos não mudaram.

- Como assim? Depois de ontem, do que me falou como pode querer ir embora?  Achei que a gente tinha se acertado.

- Não há nada que possa ser acertado amor.

- Mas nós voltamos a ficar juntas. Deixei claro que quero você ao meu lado.

- Não Ana. Você deixou claro o quanto me deseja. Eu disse que te amo e é verdade. Mas isso não quer dizer que vou voltar a ter um caso com você. Podemos ficar juntas enquanto eu não for embora, mas é só isso.

- Quem disse que eu quero um caso? Quero assumir você. Te levar para conhecer meus pais. Deixar que todos saibam que você é minha mulher, e um dia te levar para morar comigo.

-Nossa isso seria um sonho realizado para mim, mas não dá, eu não posso.

- Porque não? Eu gosto de você, você gosta de mim, nós temos tudo pra dar certo.

- Temos tudo o que é necessário para vivermos juntas? Você acha?

- Sim, pelo menos da minha parte.

- Ok, deixe-me fazer uma pergunta: você sabe que eu te amo, mas você pode dizer que me ama? Ou pelo menos é apaixonada por mim?

Meu coração congelou. Isso eu não poderia fazer, não iria mentir para ela, se fosse para eu tê-la ao meu lado teria que ser na base da verdade. Mariana não merecia ser enganada.

- Eu gosto demais de você, mais do que eu imaginei que poderia gostar de alguém. Em vinte anos nunca senti isso por ninguém. Eu sinto a sua falta quando não está do meu lado. Te desejo, sinto muito prazer com você. Você me dá tesão só de te olhar. É uma mulher incrível.

- Sei que eu sou especial em sua vida, porém você não disse que me ama. Deixa eu te fazer outra pergunta?

- O que você quer saber?

- E quanto ao que você sente por Clara? Você não a ama mais?

- Por favor, não me pergunta isso.

- Você não conseguiria mentir pra mim, não é mesmo? Não sobre uma coisa tão importante. E isso é uma das coisas que amo em você, e ao mesmo tempo odeio. Seria tão mais fácil se mentisse nessa hora.

- Você não merece uma mentira Mari.

- Vamos aproveitar esses dias que nos restam. E não vamos pensar em mais nada, que tal?

- Mari eu não só aproveitar esses dias. Eu não quero que você vá embora.

- Hoje talvez você não perceba isso, mas será melhor pra nós duas. E eu te prometo uma coisa, se um dia seu coração estiver livre desse amor, e você sentir que pode vir a me amar de verdade basta me ligar que eu volto. Mas agora, não posso assumir nada, não conseguiria viver ao seu lado sabendo que ama outra pessoa.

Senti as lágrimas presas em sua voz e minha garganta fechou. Um nó se formou dentro de mim e senti um medo absurdo. Eu estaria sozinha, como eu nunca estivera antes, pois dessa vez, eu sabia, sentiria falta não só de uma, mas de duas pessoas na minha vida. Nesse momento senti ódio de mim mesma e do que sentia por Clara.

Fim do capítulo