CAPITULO UM

Já era bem tarde quando cheguei em casa, super cansada, e com uma dor de cabeça de matar. O dia no escritório tinha sido infernal, problemas em cima de problemas, e fala sério, parece que existem dias que são intermináveis. Esse era meu estado de espirito quando entrei porta adentro e fui recebida por Boris, o gato mais preguiçoso do mundo, que mal levantou a cabeça da almofada onde estava deitado, e me olhou com aquela cara de “não me incomode, por favor,” que ele sabe fazer muito bem.

Joguei as chaves sobre a mesa, a bolsa no sofá, e fui largando os sapatos pelo caminho, na cozinha enchi um copo de água gelada, peguei duas aspirinas no armário e engoli. De volta pra sala me larguei no sofá e liguei a televisão, sem vontade nenhuma de ver nada, apenas por ligar, acendi um cigarro, e distraída fui surfando pelos canais, e foi ai que do nada uma bomba caiu em meu colo.

Um rosto, um rosto do meu passado, um rosto que eu conhecia décor, um rosto assombrado, um rosto amado... Aquele rosto estampado na tela da minha televisão. Parei de respirar literalmente, e só percebi isso quando engasguei, sem acreditar caminhei, e agachei bem em frente à tela fixando meus olhos escancarados naqueles olhos azuis.

Meu Deus não havia dúvida era ela, Clara, a minha Clara. Mais velha, lógico, mas inconfundivelmente ela. As covinhas encantadoras, o sorriso aberto, os olhos incrivelmente azuis como um dia claro de verão, a voz rouquinha e doce, sim agora estava ouvindo, ou melhor, sorvendo cada palavra, mesmo sem conseguir me apegar a nenhuma, escutava sem ouvir de verdade, apenas escutava.

Percebi que era uma reportagem sobre costumes de uma louca capital que nunca para, ela era a repórter. E só então me dei conta que ela estava no Brasil, na verdade em São Paulo, bem perto de mim e ao mesmo tempo tão distante quanto uma pessoa pode estar.

E de repente em um átimo de segundo, ela sumiu, o programa havia chego ao fim. Há quanto tempo ela estaria de volta? Como isso tinha acontecido e eu não sabia? Por que não tinha me procurado? Ou será que tinha? Será que eu conseguiria encontrá-la? Que canal era mesmo aquele? O que? Como? Quando? Perguntas começaram a brotar aos borbotões em minha cabeça, e sem perceber comecei a pronunciá-las em voz alta, o que só percebi quando ouvi um miado, e vi que meu diálogo havia assustado o Boris, que me olhava de um jeito bem estranho tipo “endoidou foi?”.

Tinha que fazer alguma coisa para vê-la, mas o que? Planos, comecei a elaborar planos, cada vez mais malucos e sem sentido. Até que enfim cai em mim, e parei horrorizada. Por um momento havia deixado de ser Ana, a calculista, centrada e fria advogada, e voltara a ser Aninha, a tresloucada adolescente de vinte anos atrás. Jesus, eu endoideci em menos de cinco minutos, ela ainda conseguia me tirar do sério, mesmo sendo apenas uma imagem na televisão. Sorri encabulada, ela sempre conseguia fazer isso comigo, me deixar completamente desconcentrada. Balançando a cabeça como quem acorda de um transe, voltei a me sentar no sofá, e tudo aquilo que tínhamos vivido juntas anos atrás retornou e  bateu em minha porta da memória de uma forma tão cruel e real que pude sentir tudo novamente como se o tempo não tivesse passado.

A música tocando na vitrola, o pessoal dançando, os meninos na caça, as meninas esperando as músicas lentas pra poderem se agarrar aos seus paqueras, e eu num canto escuro tentando me esconder pra que ninguém me visse e tirasse pra dançar. Tinha sido obrigada a ir ao bailinho de aniversário da minha prima chata (diga-se de passagem, que naquela época eu achava todo mundo chato), sinceramente odiava aquele tipo de coisa, gostava mesmo era de ficar em casa, lendo, ouvindo minhas músicas e pensando nas meninas que eu achava interessantes, em como seria tocá-las, beijá-las. Sim, eu era diferente, mas não estava me preocupando muito com isso, afinal eu não devia nada pra ninguém, e a única coisa que eu queria mesmo era ficar rica e famosa, ganhando casos importantes assim como meu pai que era um conceituado advogado, eu era sua única filha, e seguiria sua profissão.

Assim sendo estava ali apenas por pura e simples pressão da minha mãe, mas gostaria poder estar em outro lugar. No alto dos meus magníficos dezesseis anos, nada mais me importava a não ser eu mesma, e foda-se o mundo, porém ainda tinha que obedecer às ordens de meus queridos pais, então se me obrigavam a ir naquela festa idiota eles tinham que saber que  não podiam me obrigar a ficar mostrando os dentes pra todo mundo.

Enquanto eles estavam distraídos conversando fugi para a rua, pra fumar escondido, um hábito que havia adquirido há alguns meses, tirei um cigarro do maço e olhei ao redor para ver se não havia ninguém me espionando, nesse momento olhei para a janela do outro lado da rua e deixei o cigarro cair da minha mão, lá estava a garota mais bonita que eu já tinha visto na vida e, ela estava olhando pra mim. Aliás, ela estava rindo de mim, e que sorriso lindo meu Deus. Mas apesar da beleza daquele sorriso eu fiquei com raiva, tudo bem que eu era uma garota alta e desengonçada, magra sem muitos atrativos, com um cabelo curto sem corte definido, de um castanho desbotado, e óculos. Mas isso não dava o direito dela rir de mim, então fechei a cara, virei de costas  e tirei outro cigarro do maço, sem olhar novamente pra janela.

Tinha dado apenas uma tragada quando percebi que alguém havia parado ao meu lado, levantei os olhos assustada, achando que podia ser um dos meus pais, mas lá estava a garota, parada olhando pra mim com um pequeno sorriso nos lábios. De perto ela conseguia ser ainda mais encantadora.

- Oi! – me disse com seu  jeito maroto.

- Oi. – respondi desconfiada e de mal grado.

 O que será que ela queria? Como podia ser tão bonita e ainda ter uma voz tão doce? E aqueles olhos? Nunca tinha visto cor igual. Ela tinha um cheiro de sabonete como se tivesse acabado de sair do banho.

- Estava te olhando da minha janela. – continuou.

- Percebi. - disse emburrada. – Aliás, não estava só me olhando e sim rindo de mim.

- Não! Você esta enganada, eu não estava rindo de você e sim porque você se atrapalhou e deixou o cigarro cair. Eu te assustei? Fica tranquila não vou falar pra ninguém que você estava fumando. – retrucou delicada.

- Hum, como se isso me incomodasse. Além do que pra quem você falaria se nem te conheço? – respondi ironicamente

- Conhece sim. Não se lembra de mim?  Sou a Clara, amiga da Lia sua prima que esta fazendo aniversário. Te vi na casa dela, há mais ou menos uns seis meses atrás. Será que é por isso que não me reconheceu?

Eu sinceramente não me lembrava da garota, mas isso não me assustava, pois sempre que ia até a casa da Lia ficava sentada no sofá lendo um livro que levava de casa, não me dava bem com minha prima que era toda cheia de frescura, e nem reparava se havia outras pessoas lá ou não.

- Sou prima dela sim , mas sinceramente não me lembro de você. E se é amiga da Lia por que não foi convidada para a festa?

- Eu fui, mas estou gripada e minha mãe achou melhor eu ficar em casa. Não faz mal que você não se lembre de mim, eu me lembro muito bem de você. Seu nome é Analu, não é? - perguntou

- Ana Lucia. Não gosto de apelidos! – respondi taxativa.

Então ela abriu aquele sorriso incrível que me deixou petrificada e sem se sentir nem um pouco incomodada com a minha broca apenas disse:

- Tenho certeza que seremos grandes amigas Analu! Você vai ver!

Sem que eu esperasse deu-me um abraço e partiu me deixando atordoada, parada ali como um dois de paus sob uma lua imensa, com o coração batendo mais do que bateria de escola de samba.

E foi assim que conheci Clara a única mulher que amei verdadeiramente na vida.

Quando dei por mim estava sorrindo com lágrimas nos olhos, sozinha na sala escura. Tinha sido há tanto tempo atrás, e ainda me lembrava como se houvesse sido ontem. Cada pequeno detalhe, tudo gravado a fogo em minha mente. Como podia ser? Haviam se passado vinte anos e eu ainda me lembrava do cheiro dela. Do gosto, da maciez dos lábios. Levantei de um pulo tentando não pensar no que tinha acabado de acontecer comigo, e fui tomar banho. Mas a lembrança do seu rosto me perseguiu por toda a noite, as lembranças foram me dominando, e demorei muito pra adormecer, e quando finalmente consegui dormir foi com ela que sonhei.

Fim do capítulo