Capítulo 1 - O bom filho a casa torna
Azizah conferiu as balas na pistola em suas mãos com o coração apertado. Destravou o gatilho. Tinha medo de abrir aquela porta. Tanto por não saber se estariam vivos ou não – e como seria sua reação nas duas hipóteses – quanto por se ao passar por aquele beiral, pudesse retornar aos dias tão temíveis de sua infância naquele lar conturbado. Segredos que morreriam com ela, os quais nunca teria coragem de contar a ninguém.
A vizinhança estava soturna, como se todos tivessem morrido – e talvez realmente tivessem. Eu não devia ter vindo aqui. Pensou com o pânico se aproximando, causado por flashes em sua mente ao olhar para o inocente tapete de boas vindas. No entanto, em seu íntimo, precisava saber sobre sua mãe. Azizah tinha fugido de casa aos 16 anos e há dez anos não tinha notícias de ninguém.
Deu três batidas na porta com o nó dos dedos, por mais que as boas maneiras estivessem quase extintas após O Dia. Aguardou, prendendo a respiração. Olhou atenta a vizinhança silenciosa e fantasmagórica na qual cresceu. Ainda dá tempo de ir embora. Eles nem devem mais morar aqui. Minha mãe deve estar morta. Eu demorei demais.
Seu cabelo escuro, cacheado e longo ocultava seu rosto, caindo por seus braços tatuados e ombros pequenos que estavam à mostra por uma regata branca cavada. Tinha um dragão de três cabeças nas costas, uma caveira no braço direito e uma serpente enrolada em seu antebraço esquerdo. Afastou o cabelo gentilmente e notou que suas mãos tremiam. Sentia o pulsar do coração em sua garganta. Eu não devia estar aqui.
Então deu um ligeiro pulo ao perceber a porta se abrir, apontou a arma instintivamente. Um homem calvo, por volta dos 50 anos, surgiu com uma espingarda em mãos. Tinha uma aparência suja e desleixada, assim como sempre a teve. Reconheceu aquele olhar que ainda assombrava seus sonhos. Era seu padrasto, Carlos Henrique.
- Azizah. – Parecia surpreso. Mediu a garota de cima a baixo. - O bom filho a casa torna. – Deu um sorriso mordaz.
Você veio por sua mãe, não por ele. Repetia em sua mente. Ele abaixou o cano da arma ainda sorrindo, aquele sorriso que lhe trazia náuseas. Ela ainda mantinha a mira na altura de seus olhos. Sentia o cano tremer. Os dedos de nossa protagonista deslizaram suavemente pelo gatilho de sua pistola. Ele acompanhou o movimento com o olhar. É só um tiro. Só disso que preciso pra ter de volta minha paz. Sonhou em estourar os miolos daquele desgraçado incontáveis vezes e lá estava ele em sua frente, parecendo implorar por isso com aquele sorriso repulsivo ainda estampado. Não existia mais lei, não existia mais nada que a fosse punir por cometer um homicídio.
- Filha…!
A voz de Célia, sua mãe, a tirou daquele transe momentâneo a fazendo se lembrar do porque tinha ido até ali. Abaixou o cano e correu os olhos para dentro do cômodo sentindo-se tragada, como o mar que afoga e destrói. Continuava tudo do mesmo jeito. A mesma bagunça e sujeira que se lembrava, mas em pior estado. A angústia jazia sem fim em seu peito. Avistou sua mãe entranhada no sofá da sala com uma aparência cadavérica, olheiras profundas, seu cabelo ralo, claro e oleoso grudado em sua cabeça lhe dava uma aparência de como se já fosse um deles, como se apenas um fio de vida a separasse. Havia uma ferida aberta em sua coxa esquerda, a mostra por um vestido vermelho de algodão. Uma mordida. Azizah sentia o cheiro de morte pairando no cômodo mal arejado.
Guardou a arma no coldre de couro em sua coxa, coberto por uma calça jeans surrada e agarrada ao seu corpo realçando suas curvas que já tinham sido mais sinuosas. A escassez de alimentos que permeava a cidade, o país, quiçá o continente, tornava as coisas mais difíceis. Não existiam mais meios de comunicação, não se sabia de mais nada que ocorria pelo mundo.
Aproximou-se da mãe, insegura, com a garganta doendo de segurar as emoções. Ajoelhou-se ao seu lado, sentindo as mãos firmes de dona Célia segurando seu rosto já molhado por lágrimas que guardava a sete chaves em seu peito. Lágrimas de ressentimento, amor, abandono e vingança, de ambas as partes.
- O que houve com você? – Azizah cortou o silêncio.
- Foi mordida. - Carlos Henrique respondeu o óbvio. Ele estava encostado na porta da sala, a espingarda pendurada em seu pescoço. – Chegou no momento certo pra se despedir. Ela não vai durar mais muito tempo. Foi ontem à noite.
Nossa protagonista olhou novamente para a mãe. Aquela mãe que ignorou todas as atrocidades que aconteciam naquela casa, aquela mãe omissa, negligente, permissiva. Por mais que quisesse, não conseguia odiá-la. Não naquele momento. Por um segundo, arrependeu-se de ter ido embora. De tê-la deixado com ele. Ela também era vítima, tal como a filha.
- Você cresceu tanto… está a cara de seu pai. Ele teria orgulho de você agora.
Era seu pai Yesher em todo. O cabelo cacheado, os olhos escuros, os traços, a personalidade, a pele, era dotada de uma beleza exótica originada pela mistura de culturas e ascendências diferentes. Yesher faleceu quando a filha tinha pouco menos de cinco anos. Judeu ortodoxo. Escolheu com cuidado o nome da primogênita, que vinha do hebraico, significando “forte’. E era tudo o que ela mais precisava naquele momento e ao longo de toda sua vida precisou: força. A garota desconfiava se o pai realmente teria orgulho dela, de quem ela tinha se tornado com o passar dos anos. Azizah beijou a testa da mãe, a mulher ardia em febre. Realmente tinha pouco tempo. Já tinha visto como acontecia.
- Eu te amo, Azi. – Chamou-a pelo apelido de infância. Ambas choravam - Me perdoa por não ter sido uma boa mãe pra você.
- Eu devia ter te tirado daqui, eu devia ter voltado. Não devia ter te deixado com ele. – Disse baixo, olhando em seus olhos com ternura, mesmo sendo quase impossível que ele não ouvisse.
- Você fez o que tinha que ser feito... não se culpe. Tinha seu irmão, também...
- E Ricardo?
A feição da mãe mudou instantaneamente.
- Está no quarto. - Carlos respondeu frio. - Seu antigo quarto.
Ela se levantou insegura. Observando a troca de olhares entre o casal.
- Não vá lá, filha. – Célia estava temerosa. - Carlos, por favor... não a deixe entrar lá...
Tinha algo errado. Caminhou no mesmo momento até a porta de madeira, não sendo impedida pelos suplícios de sua mãe. Roçou levemente no cano de sua arma e antes de abrir a maçaneta ouviu um grunhido peculiar bem baixinho. Não. Eles não teriam feito isso. Abriu a porta temerosa e deparou-se com seu meio-irmão. Ou o que costumava ser Ricardo.
Deveria ter pouco mais de quatorze anos. Era mais alto que Azizah, se lembrava do irmão ainda pequeno, com quatro anos. Aquele não era Ricardo. Não o menino doce que tinha em sua mente. Estava preso pelo pé, por uma corda esgarçada na beira da cama que parecia que logo iria se arrebentar de tanto o morto-vivo forçar sua liberdade. Ele estava com os braços esticados, rosto desfigurado e dentes arreganhados em sua direção, ansiava por um abraço mortal para sanar sua fome.
- Vocês são loucos?!
Sua mãe chorava copiosamente.
- Foi ele quem mordeu sua mãe. Ela o estava alimentando ontem e...
- Alimentando?!
- Nós não conseguimos matá-lo… - Célia tentava justificar.
- Caso não tenham percebido, ele já está morto.
Ela tirou a arma de seu coldre. Sabia o que tinha que fazer. Mas logo viu Carlos Henrique levantar a espingarda em sua direção.
- Eu não vou deixar você matar meu filho. - Ele dizia sério. Ela mirou na direção do homem. Aquilo parecia irreal. Sabia que não devia ter voltado. Foi burrice. Estupidez. Onde estava com a cabeça? Eles eram todos loucos. Se já eram assim antes, depois do Dia tinham pirado ainda mais.
Ouviu passos em sua direção e o grunhido bem mais perto. A corda tinha se rompido, como previsto. Azizah não conseguiu atirar e a arma caiu no chão, tentou afastá-lo no mesmo instante, mas o zumbi caiu por cima dela. Ela segurava no pescoço da coisa, apertando-o, mantendo suas mandíbulas o mais longe o possível. Ele podia ser forte, mas ela era mais.
Os gritos da mãe soavam pelo cômodo. Azizah mirava aqueles olhos doentes e sem vida em cima dela. Não teve muito contato com seu irmão, mas se conhecia a família que tinha, sabia que sua vida também não devia ter sido fácil. Ficou imaginando como Ricardo tinha chegado àquilo. Rolou por cima dele, que batia os dentes um no outro loucamente e a menina se afastou rastejando no chão, de costas. Chutou o rosto do morto-vivo que se aproximava novamente. Sua mãe gritava como podia. Olhou de relance Carlos, que matinha aquele sorriso doentio no rosto. Tirou a faca de seu coldre e percebeu o sorriso sumir no rosto do desgraçado.
- Não! – Ouviu o grito desesperado de seu padrasto.
E a meteu no crânio a sua frente com toda a força. Foi fácil. Ele era como um estranho. Não era seu irmão. O morto-vivo parou de se mexer no mesmo momento, caindo sobre seu corpo. Carlos apontou a arma para a enteada e disparou, mas errou. Ele chorava. Disparou novamente, pegando no corpo morto em cima de Azizah, poupando sua carne. Sua mãe ainda gritava, tinha caído do sofá e grudou na perna do marido, tentando impedi-lo. Ele tentou afastar Célia, dando um chute em seu rosto, o que aumentou ainda mais o ódio de Azizah. Ela nesse relance alcançou a arma caída há menos de um metro e disparou friamente, com precisão. Se ele tinha errado, ela não cometeria o mesmo erro.
Carlos levou a mão ao peito e em seguida olhou o sangue vermelho vivo na palma.
- Sua vagabunda… - Caiu ajoelhado no chão e logo seu corpo perdeu as forças e tombou ao lado de Célia, que jazia imóvel. Azizah se levantou, aproximou-se do padastro e o virou com o bico de seu coturno, queria olhar nos olhos do maldito. Ele sorriu, vertendo sangue através do sorriso sádico.
- Te vejo no inferno, sua putinha. - Vociferou.
- Eu não acredito em inferno, seu porco estuprador.
E descarregou o pente na cabeça de seu padrasto sem pestanejar, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. Continuou disparando, mesmo após ter acabado as balas de sua pistola. Ela se afastou até suas costas encontrarem a parede. Deixou-se escorregar, atingindo o chão. Ficou imóvel olhando os três corpos desfalecidos a sua frente. Seu corpo tremia de nervoso, ela abraçou suas pernas. O que eu fiz?
A casa estava silenciosa, como nunca havia sido.
No seu íntimo, todos os seus problemas se resolveriam após a morte de seu algoz. No entanto, aquela angústia em seu peito continuava presente. Tal como antes. E agora ainda pior. Tinha se igualado ao maldito, roubando sua vida, tal como ele havia feito com ela.
Ela enfiou o cano da pistola na sua boca, sentindo o gosto gélido do ferro. As lágrimas escorriam como um rio, ela soluçava de desespero. As coisas nunca iriam melhorar. Esse vazio e dor nunca iriam abandoná-la.
Ela disparou.
Fim do capítulo
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lucy
Em: 27/10/2016
confesso que adoro um belo filme ,série e estórias de zumbi e espero ler mais ....perfeito , perfect, nota mil bjs e até a próxima ...vai ser já já rs
como comecei a ler hoje , sei que tem mais capítulos e não acabou , urruuuuuuu e tá compleeetoooo
Resposta do autor: Oi Lucy! Seja bem vinda! Fico feliz que esteja gostando <33 muito obrigada pelo comentário! Bjss
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AMANDA
Em: 23/10/2016
Me senti dentro de um conto de fadas moderno, e claro uma grande pitada de ficção simplesmente perfeito! Pena que acabou!
Resposta do autor: Oi Amanda! Ahh como é bom ouvir isso! Fico muito feliz que você tenha gostado do Dia! Em breve estarei de volta com mais uma por aqui. Muito obrigada pelo comentário! Bjs
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Nikita
Em: 27/03/2016
Caraca!!! Confesso que morro de medo de histórias de zumbi, tanto que até hoje não consegui assistir Guerra Mundial Z sem fechar os olhos... Então já pode imaginar que a serie The Walking Dead nem pensar, né?! Rsrsrsrs
Cara, sem palavras ADOREI o inicio quanta adrenalina...
Vou parando por aqui, pois tenho que ler os próximos... ;-)
Bjs gata
Resposta do autor em 02/04/2016:
Ahhh The Walking Dead é bom demais! Tente ver que não vai se arrepender! Muito obrigada pelo comentário e por ter começado a ler a história! Espero que continue acompanhando, vem muita coisa boa por ai ;) Bjs!
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Ana Carolina 02
Em: 26/02/2016
Oi ;) , moça ... Cadê o restante? Quando você irá postar novamente? É a sua primeira história? Se for você está de parabéns pois é muito boa ! Você sempre gostou de escrever ? Eu poderia fazer mais perguntas, mas deixa pra próxima ! Beijos volte logo
Resposta do autor em 26/02/2016:
Oii! Pretendo postar o terceiro capítulo até domingo ;) Amo escrever, desde pequena, assim como sempre gostei muito de ler. Já escrevi muitas histórias, mas nunca tive coragem de compartilhar com ninguém, até esse momento. Me deu um estalo e resolvi postar aqui e ver no que dava rs. No entanto, é a primeira vez que me aventuro com zumbis no meio de um romance. Fico muito feliz que tenha gostado! Agradeço os elogios! Até breve! Beijos.
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