Eu me lembro do dia em que fui embora de uma forma confusa e complicada. Eu não dormia mais no quarto que havia dividido com Izzy; por escolha minha havia passado a dormir na sala, na verdade apenas passar a noite ali já que eu pouco conseguia dormir.

Era final de tarde quando comecei a recolher as minhas poucas coisas. Meu material de primeiros socorros, meus equipamentos como estetoscópio, medidor de pressão e essas coisas. Então comecei a dobrar e organizar minhas roupas e guarda-las na minha mochila. Foi quando ela apareceu.

– O que você tá fazendo? – perguntou Izzy parada na outra ponta do sofá de três lugares; eu não tinha ouvido ela chegar.

– Arrumando – falei erguendo o olhar para ela mantendo meu rosto sem expressão.

Ela parecia confusa, como se estivesse tentando entender o que estava acontecendo. Então eu vi a expressão dela mudar levemente, ela havia juntado as peças, mas não queria acreditar.

– Porque está juntando suas coisas na mochila, Charlie? – ela me perguntou dando um passo a frente e me encarando de um jeito sério.

– Porque eu vou embora – falei simplesmente e voltei a guardar as ultimas peças de roupa.

– Como assim??? Embora?? – Izzy disse num tom assustado – Embora pra onde? Charlie você não tem pra onde ir! Não há mais nada lá fora. Estamos seguros e bem aqui. Porque você vai..

– Porque meu lugar não é aqui – falei interrompendo-a e a encarando com um olhar que eu pretendia que fosse sério, mas que saiu parecendo triste também; ao menos isso a fez parar de se aproximar.

– A culpa é minha, não é? – ela perguntou num sussurro abaixando a cabeça – Sou eu e a Claire....Eu sinto muito Charlie....te juro que tento não aparecer com ela na sua frente....Eu...Se não estou sendo discreta o bastante eu posso mudar e..

– Para, Izzy – falei de um jeito firme que a muito tempo não usava – Chega. Acha mesmo que eu não ver vai mudar algo? Pois saiba que piora! Não ver é dar motivos pra imaginar e a minha imaginação nessas horas me mata.

– Mas é loucura você ir embora! Sair por ai assim sozinha.... Charlie por quê? Você pode acabar morrendo lá e..

– E o que? Eu já estou morrendo aqui. Eu já estava morrendo antes de você aparecer. Pra mim chega de atrasar esse fim – falei calmamente.

– Charlie...

– Não – interrompi ela de novo; Izzy já estava chorando e foi nessa hora que eu comecei a chorar também – A muito tempo eu já havia entendido meu destino, futuro, sina, carma ou o que seja, chame como você quiser chamar. Dane-se o nome, eu sempre soube que pra mim o futuro era viver sozinha. Por isso nunca quis nem procurei alguém. É assim que eu tenho que passar os restos dos meus dias.

– Todo mundo encontra alguém.....Não se pode viver a vida toda sem ninguém Charlie.

– Só que eu não sou como todo mundo – falei quase irritada – Eu passei anos sozinha. Eu estive sozinha, mesmo quando ainda estava com a minha família. Eu sempre, sempre, me isolei de tudo e de todos, mesmo quando fingia estar envolvida com meus pais e irmão, mesmo naquele tempo eu era solitária.

– Mas você já viu que não precisa ser mais assim! – falou ela de um jeito triste.

– Errado – falei suspirando – Eu contrariei tudo o que vinha fazendo na minha vida toda quando me permiti sentir algo por você – disse pegando as últimas peças de roupa – O meu erro foi esse. O meu erro foi pensar, por um segundo sequer, que eu podia ter um futuro diferente. Que eu poderia ser como o resto do mundo e achar alguém pra mim. Esse foi o erro – a encarei antes de fechar o zíper da mochila – O meu erro, Izzy, foi aceitar o que sentia e tentar ser diferente do que fui durante 35 anos. Eu não vou achar ninguém. Primeiro porque duvido muito que apareça outra pessoa que possa se tornar próxima a mim um pouco apenas do que você foi, já que eu não vou permitir. E segundo, porque não há ninguém que me queira de verdade. Eu não nasci pra dividir a vida com alguém – disse fechando a mochila – Eu nasci pra seguir sozinha sempre; e é isso o que vou fazer agora.

– Charlie você vai acabar se matando assim!!! – ela disse chegando perto de mim, mas eu me afastei.

– Que seja. Eu não me importo.

– Eu me importo! – ela falou com uma expressão desesperada – Pode achar que não, mas eu me importo. Posso não.....sentir mais o mesmo que antes. Só que isso não te faz menos importante na minha vida e....

– E você vai se sentir mal se souber que me deixar fez com que eu ficasse tão mal que acabei me mantando – falei o que ela não conseguiria falar – Eu não quero sua pena, nem suas desculpas, nem suas preocupações baseadas em um remorso por saber que fez algo errado – disse séria – Você não fez nada errado. Você não tem culpa de sentir o que sente, nem de não sentir o que eu gostaria que sentisse. Você se confundiu com seus sentimentos quando achou que sentia algo a mais por mim e eu fui a culpada por deixar que isso tudo chegasse tão longe quanto chegou.

– Isso não é verdade! Eu amei você sim, só que.....não.....não durou.... – ela disse olhando para o chão.

– Então não era amor, Izzy.

– Você não pode afirmar isso – ela disse me encarando – Não pode saber o que eu senti! Eu amei você sim.

– Não amou. Não era amor. Não o que eu chamo de amor – falei pegando a mochila e colocando ela no chão – O que eu chamo de amor é algo que não acaba. Um tipo de sentimento que vai além de tudo o que alguém pode sentir de verdade. O tipo de sentimento que......que eu achei que nunca sentiria. Porque eu aprendi a não sentir nada durante a minha vida toda. Mas eu ainda acreditava e acredito no amor. Mas pra mim, sempre houve uma boa definição pra isso. Porque pra mim, Amor seria o único sentimento com força suficiente pra destruir as paredes que eu construí em volta de mim que me impediam de sentir o resto das coisas. Isso é amor. E algo grande e forte assim, não acaba.

– Então.....acho que um dia eu vou acabar vendo meu erro. É isso o que você tá dizendo? Que eu vou ver que só você me amou? – falou ela séria.

– Não é o que eu estou dizendo. Mas é o que vai acontecer – disse me sentando – Um dia você vai saber o que é amor de verdade e dai vai perceber o quanto eu te amo e então vai conseguir ter uma noção do que me fez sofrer. Nesse dia você vai se sentir mal pelo que me fez e talvez.....nos melhores sonhos que eu possa ter....vai me querer de volta.

– Se pensa que isso vai acontecer um dia, então porque está indo embora?? – ela perguntou tentando controlar a voz.

– Porque eu não quero esperar a vida toda. Porque eu não quero continuar aqui sabendo esse não é o meu lugar – me levantei de novo, eu ainda estava chorando – Porque eu simplesmente não sou feita de aço e por isso não consigo suportar ver você tão feliz sabendo que a razão não sou eu e que você nem ao menos precisa de mim. Eu vou embora amanhã Izzy, e nada vai me fazer mudar de ideia. Nem a sua pena e o seu remorso – ela não conseguia me responder por causa do choro que estava segurando – E não tenho saco pra esperar o tempo suficiente pra você se arrepender, porque vai demorar. Sei que vai porque te conheço e você vai querer passar por muita coisa antes de procurar algo sério.

– Charlie....eu sei que te magoei muito, mas você não merece o que esta procurando. Você tem direito de buscar a sua felicidade; mas tá indo atrás da sua destruição. Você tá se destruindo e a culpa é minha e eu tenho que impedir.

– Não – disse respirando fundo – Não tem que impedir nada. Minha felicidade nunca existiu, Izzy. E eu estar me destruindo é uma escolha minha. Se eu vou me matar ou me destruir é problema meu, não seu. E se um dia você se arrepender.....eu não quero estar viva. Porque eu não vou me arriscar a sofrer de novo por você. Eu não vou me arriscar a sofrer por mais nada nem ninguém. Se eu vou me destruir, ao menos vou fazer isso consciente e sem remorsos.

Depois disso eu sai da casa e fui caminhar, sem nem deixar ela tentar dizer algo ou sequer me tocar. Caminhei pelos campos da fazenda até escurecer e só voltei quando tudo estava apagado e todos estavam dormindo. É nessa parte que minha memória fica confusa, porque me lembro de chorar até não ver mais o caminho a frente, e depois me lembro de correr por alguns quilômetros.

Quando voltei pra casa, tinha cortes pelos braços e mãos, joelhos, rosto; provavelmente devido à alguma queda que sofri enquanto corria, ou algum lugar com espinhos por onde eu deva ter passado. Fui embora antes de amanhecer e de alguém acordar.

Se Izzy se arrependesse, então que sofresse como eu sofri; porque eu não saberia. A pura verdade; eu não esperava que minha vida durasse muito mais.

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– Lembrar disso não é uma sensação boa, pequenina – falei pra mim mesma acariciando a cabeça do pequeno filhote que estava no meu colo – Você precisa de um nome, não vou ficar e chamando de pequenina pra sempre, não é um bom nome.

Eu estava na estrada a mais de dois meses quando, passando por uma cidadezinha abandonada, encontrei uma ninhada de cachorros, não achei a mãe deles em lugar nenhum e apenas dois estavam vivos. Um macho preto e branco que acabou morrendo um dia depois de eu ter começado a cuidar deles; e a fêmea toda preta com o focinho, a ponta da orelha esquerda e as quatro patas brancas.

– O que seria um bom nome, heim? – falei num sussurro encarando o filhotinho que ainda era pequeno o bastante para caber nas minhas mãos, os olhinhos verde-amarelados dela me encaravam com curiosidade – Sam; vou te chamar de Sam – falei para ela e a acariciei antes de me arrumar para dormir.

Fim do capítulo