Capítulo 10 - Macarrônico
28 de fevereiro de 2099
– Imogen, não me faça perder a paciência com você, esse assunto estava encerrado, você vai levar Theo para tomar as vacinas amanhã. – O pai de Theo bradava à sua mãe, naquela manhã chuvosa em San Paolo, antes de ir para o trabalho.
– Dizem que estas vacinas estão contaminadas, não quero submeter nossa filha a esse risco. – Sua mãe a segurava no colo, Theo era um bebê de dez meses.
– Mulher, deixe de paranoia! São as vacinas que toda a população toma e já tomou, as mesmas que eu e você tomamos.
– Ela não precisa disso, estas doenças nem existem mais, não precisamos correr esse risco. – Ela embalava o bebê, que chorava em seu colo.
– Você vai levá-la, não tem mais conversa, eu me certificarei que você foi. E tire essa criança daqui! Esse choro está me dando nos nervos!
***
Imogen tinha um amigo de infância chamado Amadeu, um jovem de cabelos negros e traços italianos, que lhe contava em segredo seus movimentos como militante anti governo, a sua luta velada e perigosa contra um sistema que privilegiava os americanos e seus descendentes, em detrimento aos latinos, os autênticos habitantes daquele continente decadente.
Ela não precisava ouvir relatos para enxergar a desigualdade social berrante que havia ali, na Nova Capital. Bastava uma volta por San Paolo ou outra cidade para ver os grandes prédios de cem andares ostentando luxuosos apartamentos com fachadas dinâmicas, em contraste com bairros miseráveis, com prédios igualmente altos, mas com milhares de moradores se empilhando em pequenos cubículos. A situação era ainda mais estarrecedora nas grandes capitais, alguns prédios eram repletos de gaiolas humanas amontoadas, os pequenos recintos de tela de metal, que mediam não mais que dois por dois metros, e eram o lar destas pessoas.
A América teve seu sonho de reerguer e tornar-se novamente a grande potência podado e destruído pela Europa. Eles nunca abririam mão desta nova posição confortável no cenário internacional, por isso, por trás das promessas de apoio e ajuda, o governo europeu boicotava e fazia todo o possível para que a Nova Capital nunca decolasse rumo ao seu ambicioso propósito.
***
– Não vacine seu bebê, não ceda ao seu marido. – Amadeu conversava com ela no final daquele dia, estavam sentados no gramado, à beira do lago num dos poucos parques arborizados em que toda a população tinha permissão para frequentar.
– Ele está me pressionando, terei que levá-la amanhã. – Imogen brincava com sua pequena filha, que estava sentada em seu colo, sacudindo um coelhinho de pelúcia.
– Por que nosso povo é tão passivo diante destas injustiças sociais, Imogen? Você sabe, não sabe? Já falei tantas vezes sobre isso.
– As vacinas.
– Sim, mas não fale em voz alta, uma das motos aéreas da fiscalização do governo está do outro lado do lago, eles possuem escutas. E tem drones espiões nessa área também.
– É tão difícil acreditar nestas histórias, boatos… Talvez o povo apenas tenha aprendido a baixar a cabeça para as decisões do governo, aprendeu a idolatrar a cultura americana e aceitou esta invasão por vontade própria.
– Não seja boba, Immy. Ninguém em plenas faculdades mentais, e sem manipulação alguma, olharia ao redor e acharia que está tudo ótimo. Temos marchas anuais de agradecimento ao governo! As pessoas moram em gaiolas menores que um banheiro, com infestação de pestes e insetos, e agradecem por suas misérias. É claro que tem algo errado aí.
– E se eu não vaciná-la? Que diferença fará?
Amadeu sorriu, brincando com as mãozinhas de Theo.
– Essa bela garotinha de olhos azuis será mais uma pessoa consciente, umas das poucas, porém uma a mais para ajudar a combater o governo no futuro. Alguém que vai lutar para devolver o governo da América Latina aos latinos, e acabar com as pretensões megalomaníacas falidas dos americanos no poder. – O bebê olhava atentamente para Amadeu enquanto ele falava com entusiasmo.
– Você pode me ajudar? – Imogen ajeitou o pequeno boné na cabeça de Theo, para proteger do sol.
– Posso, conheço algumas pessoas que podem fraudar o sistema, talvez consigam mudar o status de vacinação dela, como se ela estivesse em dia, mesmo sem tomar nenhuma.
Ela balançou a cabeça, concordando. E o plano foi executado com sucesso.
***
– Conhece a orientação pelas horas? – Sam conduzia Theo pela mão para a área onde o teto havia caído, passavam alguns minutos das oito de uma manhã ensolarada.
– Tipo, olhar o relógio? Ver as horas? – Theo não fazia ideia do que ela pretendia.
– Não, orientar-se pela posição das horas. É simples: fique parada aqui. Meio dia, ou 12 horas, é exatamente à sua frente. 3 horas é estendendo seu braço direito, 6 nas suas costas, e 9 estendendo o braço esquerdo.
– Hum… Entendi, para me localizar por estes comandos, correto?
– Isso. Vamos testar: aponte para onde seria 7 horas para você.
Theo virou-se para trás, apontando na diagonal à suas costas.
– Você pega rápido. – Ok, agora vamos para o teste de verdade. Tome.
Sam colocou uma arma na mão de Theo.
– O que é isso? A arma paralisadora?
– Não, é uma arma de verdade, portanto cuidado para onde aponta. É sua agora, você vai andar sempre que possível com ela na cintura ou nas costas, mas cubra com a camiseta.
– Isso é loucura, eu não enxergo.
– Mas eu posso te orientar. – Sam se aproximou, e destravou a arma. – Em algum momento que porventura eu não puder te ajudar, ou se eu precisar da sua ajuda, você pode se virar sozinha.
Theo mexia na arma, pensativa.
– Vamos. – Incentivou Sam. – Aponte para as 10 horas, apenas aponte.
– 10. – Theo apontou para sua esquerda, um pouco à frente.
– Isso. Agora dispare 5 horas.
– Tem certeza?
– Você precisa aprender a usar a arma. Vamos lá, aponte 5 horas e dispare, já está destravada.
Theo apontou empunhando a arma prata para trás, e disparou.
– Aaaai! Você me acertou! – Sam gritou.
– Meu Deus eu acertei você?? Onde? – Theo desesperou-se.
– Eu falei 5 horas, você atirou na minha direção, estou sangrando!
– Eu vou procurar ajuda! Fique calma, vou chamar uma ambulância. Cadê seu comunicador? – Theo largou a arma no chão, e procurava por Sam tateando o ar.
– Não adianta, minha visão já está ficando turva, seu tiro me acertou em cheio! Oh Deus, não te vejo mais…
– Sam? Onde você está?
Apenas silêncio e Theo estava prestes a ter uma síncope, com o peito apertado e os olhos já molhados de desespero.
– Sam, por favor fale comigo, Sam! – Theo continuava tateando o ar, de um lado para outro, aos tropeços.
Tomou um susto quando sentiu a arma sendo recolocada em sua mão.
– Regra número um: nunca solte a arma, o inimigo pode estar blefando. – Sam disse, sorrindo.
– Sua… Não acredito que você fez isso! – Theo tentava acertá-la com as mãos, Sam segurou seus dois pulsos.
– Hey, hey, pare! Você está segurando uma arma! Vai acabar me acertando de verdade.
– Agora até que me parece uma boa ideia. Que droga, isso não se faz! E solte meus pulsos!
– Eu estava brincando, acalme-se.
– Brincando? Brincando? Eu acreditei que você estava morrendo! – Theo puxava seus braços.
– Eu sei, você estava quase chorando. – Sam riu, Theo voltou a debater os braços, tentando acertá-la.
– Theo, pare.
E Theo desistiu de lutar.
– Pode soltar meus braços?
– Não sei, posso?
– Me solte. Isso não foi engraçado, ok? – Theo ainda parecia possessa, suas bochechas estavam vermelhas.
– Você ficou chateada de verdade? – Sam perguntou séria, ainda a prendendo.
Theo hesitou antes de responder.
– Se eu fosse você tiraria essa arma da minha mão. – Theo finalizou a frase com um sorrisinho, trazendo alívio e também um sorriso de Sam, que teve um impulso repentino de puxar os pulsos de Theo para trás de suas costas. Mas antes de colocar o impulso em prática, Theo soltou seus braços, e guardou a arma na calça, na cintura.
Sam tirou a arma da cintura dela, pegou sua mão e colocou na pistola.
– Nunca guarde destravada, você pode se ferir. Aqui, pegue aqui, está sentindo? É a trava, assim trava a arma, assim destrava. Entendeu?
– Sim. – Theo repetiu o gesto, agora sem a ajuda de Sam.
– Ótimo, lembre-se sempre da trava, e nada de atirar em mim. Vamos para o carro.
– Sam, posso te pedir uma coisa? – Theo falava, a caminho do carro.
– Claro.
– Nunca mais prenda meus pulsos, ok? – Theo falou, esfregando o pulso esquerdo.
Antes de entrar no carro, Sam recebeu a ligação de sua irmã. Todas as manhãs elas tinham uma breve conversa por texto, às vezes uma delas fazia ligação com voz, como agora. Ela gesticulou para que Theo entrasse no carro, enquanto recostou-se na carroceria da caminhonete.
– Que bom te ouvir, Lynn.
– Desculpe por ontem, não pude continuar a conversa, Gerard está gripado, não foi à escola, tinha que dar atenção à ele.
– Tudo bem.
– Fez algum progresso na investigação?
– Tenho fé em Deus que faremos um grande avanço esta tarde. Chegaremos na cidade de onde aquela vacina saiu, deve ter algo lá.
– Deus está do seu lado, não esqueça disso, se tiver algo mesmo, você encontrará, Ele está te guiando.
– Eu sei, estou no caminho certo. E nosso pai, melhorou?
– Um pouco, ele é teimoso, não quer ir na fisioterapia, mas esta semana foi todos os dias, ainda está mancando e usando muletas, mas o quadril está melhor, dói menos.
– Que bom, que bom. – Sam ficou em silêncio um instante. – Ele pergunta de mim? Fala algo a respeito?
Foi a vez de Lindsay ficar em silêncio.
– Às vezes, raramente para ser sincera. Ele não gosta de tocar nesse assunto.
Sam corria sua mão pela lataria do carro.
– Ele ainda não consegue entender meus motivos, não é?
– Sam, tenha paciência, quando você conseguir o transplante e voltar para cá tenho certeza que ele será mais compreensivo com você. É mais do que orgulho ferido em ver a filha deserdando do exército, ele não entende bem o que aconteceu, não acredita que puderam fazer isso com você.
– Eu sei… Às vezes nem eu acredito. – Sam respondeu cabisbaixa, com desolação.
– Ânimo, mantenha o foco na sua busca. Já encontrou um lar para a garota?
– Theo. Ela ainda está comigo e eu realmente gostaria que você começasse a chamá-la pelo nome.
– Conversei com Mike ontem, ele concorda comigo, essa menina está atrapalhando seu foco, o tempo que você passa se preocupando e tomando conta dela, poderia estar se dedicando à investigação.
– Ela me ajuda na investigação, e me faz companhia. – Sam se animou. – É bom ter a companhia dela, é bom olhar para o lado e ter alguém comigo, ela me faz bem, Lynn, você não imagina o quanto Theo me faz bem, ela é meu alento.
– Cuidado, irmã. Ela pode estar mal-intencionada e será tarde quando você descobrir, não se apegue à ela, ok?
– Tarde demais. – Sam sorriu torto.
***
No meio da tarde, depois de algumas centenas de quilômetros e uma discussão acalorada sobre polêmicas bíblicas, seguida por uma sobre qual o melhor tipo de macarrão, finalmente chegaram na pequena província de Gracias a Dios, onde não sabiam o que ou como procurar.
– As pessoas também estão sorrindo para nós? – Theo perguntou, sentando-se de forma curiosa no banco da caminhonete, ajeitando os óculos escuros.
– Nem um pouco. Na verdade nem estão olhando para nós.
– Algo estranho por aqui?
– Absolutamente nada. A não ser uma grande fumaça branca no céu, que parece estar saindo de algum bairro próximo. – Sam olhava pelo para-brisa para a direção da fumaça, dirigia devagar.
– Alguma fábrica talvez? Nós vamos até lá? – Theo indagou.
– Tem alguma sugestão melhor?
– Você pode parar em algum lugar e perguntar onde fica a fábrica ultra secreta de vacinas.
– Ninguém nos falaria. – Sam olhou para ela, com os olhos apertados. – Você está sendo irônica, certo?
– Às vezes eu acho que você viveu numa bolha. Se bem que bolha e exército europeu dá no mesmo. – Theo zombava.
– E às vezes acho que você saiu de um circo. Ok, vamos para a fábrica, faremos de conta que somos empresárias interessadas em fazer negócios.
– Não parecemos empresárias, Sam. Vamos dizer que estamos procurando emprego, é mais crível.
Sam deu uma olhada em Theo, com um sorrisinho, e baixou o seu boné pela aba.
– Até que você tem boas ideias, fugitiva do circo.
Aquela cidade não tinha nada de anormal ou diferente das tantas outras cidades por onde passaram, pessoas circulando e tocando suas vidas, a maioria delas vestidas de forma humilde, e um bom tanto de mendigos espalhados pelas ruas, de todas as idades, todos latinos. As ruas eram estreitas e sinuosas, a cidade mais parecia uma vila acinzentada, e elas seguiam em seu grande carro na direção da fumaça branca.
– Um conglomerado industrial, quase tudo de metal e aço, parece bem conservado e limpo. Não tem nenhuma placa, identificação, nada. Mas é daqui que está saindo a fumaça, dos galpões dos fundos. – Sam narrou o que viu.
– Vamos colocar nosso plano de candidatas à uma vaga de emprego em prática então, você tem experiência em… Contabilidade. E eu em tecnologia da informação.
– Eu quero ser a nerd. – Sam reclamou.
– Eu serei a nerd, você a contadora.
– Você é cega, você tem no máximo experiência em empacotar coisas, ok? – Saíram do carro e Sam tirou seu boné, jogando para dentro do carro. Tirou o coldre da perna e também jogou pela janela, guardou a arma no cós, atrás.
– Isso é preconceituoso. Posso ser nerd e cega.
– Ok, ok, eu serei a contadora e você a nerd cega. – Sam disse e ajeitou a jaqueta verde musgo que Theo usava.
A porta frontal dava para uma bela recepção, decorada com mesas e balcões de vidro, um homem estava sentado atrás do balcão.
– Soubemos que vocês tinham vagas em aberto, viemos nos candidatar. – Sam falou.
– Vieram para as vagas de empacotadoras? A seleção já começou.
– Isso, temos experiência nessa área. – Theo respondeu, com vontade de rir. – Podemos participar? Viemos de longe para esta seletiva.
– Hum, me acompanhem, vou tentar encaixá-las. – O recepcionista colou crachás em seus peitos e as conduziu para dentro da empresa.
Enquanto caminhavam por um corredor estreito, Sam sussurrou discretamente.
– Faça de conta que não é cega.
– Como se fosse simples. – Theo sussurrou de volta.
– Aguardem aqui, quando a entrevistadora aparecer naquela porta, se identifiquem e entreguem suas ID’s, para que ela tenha acesso ao currículo de vocês.
Concordaram e sentaram-se em cadeiras plásticas amarelas, estavam sozinhas naquela pequena sala com outras cadeiras amarelas cor de ovo.
– Quando a entrevistadora aparecer, me fale como ela é. – Theo disse.
– Por quê?
– Não posso jogar meu charme para cima dela? Minha vasta experiência como empacotadora pode não ser o bastante para conseguir a vaga.
– Não vamos fazer as entrevistas.
– Não?
Sam a puxou pela mão, e entraram numa outra porta. Após andarem por outro corredor estreito, desembocaram num amplo pavilhão, repleto de máquinas engenhosas, os funcionários mal olhavam para elas, que caminhavam devagar.
– O que é aqui?
– A fábrica.
– De quê?
Sam riu.
– De macarrão.
– Talharim, provavelmente.
– Claro que não, mas também não é de fetuccini. – Sam disse, decepcionada, ainda caminhando pela lateral do recinto.
– Spaghetti?
– Ahan. Vamos continuar circulando pelos galpões com naturalidade.
A caminhada por toda a fábrica foi longa, andaram por minutos, entrando e saindo de ambientes enormes e repletos de máquinas e funcionários com uniformes amarelos. Tudo girava em torno de macarrão.
– Tem que ter algo aqui. – Sam parou no final de um dos galpões, olhando ao redor, com as mãos na cintura.
– Apenas macarrão? Não tem nada suspeito? – Theo perguntou.
Sam ficou em silêncio um instante, e falou em voz baixa.
– Talvez isso seja algo.
– O que?
– Seguranças mal encarados nos fitando.
– E isso é bom?
– Parecem guardar uma porta. E está escrito “acesso restrito”.
– Quantos são?
– Dois.
– Hum. Eu posso simular um desmaio na frente deles, e você entra.
– Não, você ficaria em poder deles, não sei o que fariam com uma invasora.
Pensaram mais algum tempo, e Theo teve uma ideia.
– Tem algum banheiro por perto?
– Tem um no canto esquerdo. Quer que eu te leve lá?
– Me dê as instruções para chegar até um funcionário do sex* masculino.
– O que você vai fazer?
– Vou atrair os seguranças. Quando eles saírem, você entra na sala, eu dou um jeito de fugir.
– Theo…
– Vamos, me diga como chego em algum funcionário.
– Ok, tem um homem a uns 10 metros à sua frente, à esquerda, dois passos à sua esquerda.
Theo apertou a mão de Sam.
– Tenha cuidado. Te vejo depois. – E soltou sua mão, caminhou na direção do funcionário.
Tente não esbarrar nas máquinas. – Sam disse após Theo chutar a haste de uma grande máquina, chamando atenção.
– Moço? – Theo se aproximou do homem de meia idade, que lidava com uma máquina, obtendo sua atenção.
– Sim?
– Eu não enxergo, você poderia me conduzir até o banheiro mais próximo?
– Claro, segure meu braço. – Ele estendeu o braço, e Theo colocou sua mão, sendo conduzida por ele. Sam permanecia numa máquina próxima, simulando estar prestando atenção ao processo de fabricação.
Dois minutos depois os berros puderam ser ouvidos de todo o galpão.
– Socorro! Seguranças! – Era Theo falsamente alegando um assédio.
Os dois seguranças foram correndo na direção do banheiro, ao chegarem lá Theo disse quase aos prantos que aquele homem havia a atacado ali dentro. Eles acreditaram e carregaram o pobre rapaz pelos braços, contra a vontade dele. Theo fugiu sorrateiramente, indo na direção da porta proibida. Sam já havia entrado.
Era uma espécie de ambiente asséptico, não havia nada ali, apenas o branco das paredes, tetos e piso, e outras três portas. Próximo à outra porta haviam trajes de segurança biológica pendurados, todos também brancos. Sem hesitar, foram direto aos trajes, vestiram-se rapidamente, apesar de Theo ter alguma dificuldade em encontrar mangas e pernas.
– Sua atitude não foi nada cristã. – Sam resmungou.
– Me ajude a terminar de me vestir.
– Hum… – Sam resmungou, fitando a porta.
– Hum o que? Por que não entramos?
– A porta está trancada com trava biométrica.
– Digital?
– Não, íris.
– Temos que conseguir o olho de alguém autorizado a entrar aí.
Sam a olhou espantada.
– Sinceramente? Tem vezes que eu não sei se você está falando sério ou sendo irônica.
– Na dúvida leve a sério. Mas não neste caso.
– E o que faço neste caso? Dou um tiro nesta fechadura?
– Temos que achar outras pessoas com estes trajes e usar a íris dela. De preferência ainda nela.
– Ok, vamos dar uma volta em outras salas.
Uma porta lateral se abriu, e uma pessoa com o traje branco adentrou apressada, com uma prancheta eletrônica em mãos.
– Vocês tem autorização para estarem aqui? – A mulher perguntou, com desconfiança.
– Claro, fomos enviadas pelo gerente da outra empresa. – Sam enrolou.
– Outra empresa? Que empresa? Ah, desculpe a confusão, você é inglesa, certo? O laboratório Merkel mandou vocês para a auditoria de qualidade, eu sabia que eles estavam tramando uma auditoria! – Ela se aproximou e falou de forma confidente. – Tudo bem, eu sei sobre a auditoria surpresa, mas não contei para ninguém, fiquem tranquilas, eles não as estão esperando. – Ela sorriu, com cumplicidade.
– Fico feliz em saber que manteve a auditoria em segredo, seus superiores ficariam decepcionados em saber que a notícia se espalhou, e sei que você continuará mantendo a discrição, correto? – Sam disse.
– Nunca vi vocês, nem faço ideia de onde sejam. – Ela respondeu, sorrindo e dando uma piscadela, através do visor de acrílico do traje. – Fiquem a vontade, podem entrar. Só não as guiarei porque não as conheço. – Deu outra piscadela.
– Ainda estamos sem as identificações de acesso cadastradas, você poderia abrir a porta? – Theo disse, imitando sotaque inglês.
– Claro. E sem querer fazer fofoca, mas fiquem atentas à Juana do setor de etiquetação e embalagem, ela não lava as mãos cinco vezes, como manda o protocolo.
– Daremos uma atenção especial à Juana. – Theo disse.
– Que sotaque estranho, você é de qual parte da Inglaterra? Já viajei para lá a trabalho algumas vezes, mas não sei de qual região é seu sotaque.
– Reino Unido, do interior do País de Gales, um vilarejo com dialeto próprio.
– Eu sabia! É um belo sotaque, achei elegante.
– Obrigada. – Sam respondeu por ela, a puxando pela mão para dentro da outra sala.
As três entraram numa antessala onde jatos de ar no teto e no chão às higienizavam, Theo assustou-se com os jatos, sem entender o que acontecia.
– Era água? O que era isso? – Perguntou antes de seguir para a próxima sala.
– Não faça perguntas difíceis. Vamos.
A primeira sala que encontraram parecia apenas um escritório normal, exceto pelo fato de todos estarem usando as mesmas roupas protetivas. Andavam de forma lenta, como se estivessem observando as atividades de todos, minunciosamente. Chegaram até outra sala, maior e com apenas meia dúzia de funcionários, rotulavam caixas metálicas grandes. Sam percebeu que havia uma porta com a placa que dizia “depósito”, mas com fechadura biométrica também.
Sam conduzia Theo com uma mão em suas costas, para disfarçarem, e parou na frente de uma das funcionárias, que gerava as etiquetas numa máquina, e colava nas caixas.
– Juana, certo? – Sam perguntou.
– Sim?
– Somos da Merkel, acho que já ouviu falar de nós.
– Claro, vocês são auditoras, supongo. – Ela disse, nervosamente. Juana era uma mulher hispânica de aproximadamente cinquenta anos, que misturava sua língua com palavras em espanhol.
– Preciso que você nos conduza até a sala onde você armazena estas caixas.
– Não tengo autorização para conducir ninguém lá.
Sam limpou a garganta antes de voltar a falar, de forma séria, quase sisuda.
– Como você deve saber, tem câmeras nos lavatórios dos funcionários.
– Tem?
– Tem. Se preferir, você pode me acompanhar até o lavatório e mostrar como é seu processo de higienização. É procedimento de rotina.
Hesitante, Juana as conduziu até o depósito, onde centenas de caixas metálicas estavam empilhadas. Sam aproximou-se das caixas, olhava atentamente para elas, procurando informações, nomes, endereços, qualquer coisa que as norteasse.
– Juana, é você que empilha estas caixas? Estão mal acondicionadas.
– Não, não, é o pessoal da logística, casi nunca entro aqui.
– Vou precisar visitar o local onde isso é fabricado, você pode me informar de onde vem?
– O Beta-E ou os líquidos?
Sam sentiu um arrepio correndo seu corpo com aquela palavra, era a certeza que estava no rumo certo, uma felicidade queria explodir em seu peito, mas ela precisava manter o semblante sério e profissional.
– O Beta-E.
– No tengo ideia, apenas recebemos e se mezcla com outros líquidos. Parece que vem do Peru, es todo lo que sé.
– Entendo. – Sam olhou as caixas demoradamente, possuíam travas numéricas.
– Preciso que abra uma das caixas, para verificar o acondicionamento.
Juana abriu rapidamente uma das caixas, sem pronunciar nenhuma palavra, apenas digitou os números apressadamente.
Sam manuseou uma das caixas brancas, abriu e olhou atentamente a ampola inserida com outras cinco.
Embaixo havia uma etiqueta que dizia “Gracias a Dios – Responsável técnico: Odín Rojas Hernandez”
– Juana, será a última coisa que pedirei a você, depois disto finalizarei meu relatório sobre sua atividade e seus procedimentos, provavelmente com informações satisfatórias. Preciso que me leve até o responsável técnico, achei uma discrepância neste rótulo.
– Qual o nombre está nesta ampola? O Odín ou o Fabian?
– Odín.
– Lo siento, Odín foi mandado embora, até hoje ninguém sabe porque o demitiram, parece que acabou hablando más de lo debido. Eu gostava de bater papo com ele no intervalo do café, ele tinha tantas ideias mirabolantes, eu não entendia casi nada do que ele hablaba.
– Fabian assumiu seu lugar, devo supor.
– Assumiu, mas casi nunca está aqui.
– Está hoje?
– Não, hombre difícil de achar!
Sam devolveu a ampola à caixa, e guardou no invólucro metálico.
– Eu agradeço seu tempo dispensado, vamos retornar à inspeção e você ao seu serviço, falarei muito bem de você ao meu gerente na Inglaterra.
Juana sorriu e apertou animadamente a mão de Sam.
A dupla tratou de sair o mais rápido possível dali, caminhando a passos rápidos de sala em sala, até saírem de volta ao galpão de fabricação de macarrão, já sem a roupa branca.
– Aquela ali! – Um segurança berrou, apontando para Theo.
– Sujou. – Theo tentou fugir, mas foi contida pelo segurança, que a carregava pelos braços.
Em segundos uma bola humana com três pessoas voou por cima da esteira onde descia grandes quantidades de macarrão. Sam havia interferido.
– Theo, fique de pé! – Sam ordenou, com o cano da arma enfiado na testa do segurança. O outro grande homem da segurança também se aproximou. Os funcionários acompanhavam espantados aquela celeuma, macarrões caiam no chão, rolavam das máquinas.
– Você se machucou? – Theo estendeu o braço, colocando a mão no rosto de Sam, de forma afoita.
– Não, estou bem.
Sam ergueu-se, com o segurança em seu poder, e bradou olhando para o outro homem.
– Não me siga, o levarei apenas para garantir nossa segurança. – Sam se movia de forma violenta, arrastando o rapaz, que resistia.
– Você vai se arrepender disto. – Ele respondeu.
Sam o ignorou, e seguiu para a porta de saída.
– Theo, siga minha voz, me acompanhe.
Foram até o carro estacionado num terreno ao lado. Ainda apontando a arma ao segurança, Sam pegou a arma paralisadora dentro do carro e atirou nele. Em segundos o carro já tomava distância em alta velocidade, fugindo de Gracias a Dios.
Macarrônico: adj.: Diz-se do gênero irônico de poesia ou prosa em que à língua original se adicionam burlescamente, palavras latinas ou de outra língua. 2. Diz-se de qualquer idioma pronunciado ou escrito erradamente.
Fim do capítulo
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Julia Eidrian
Em: 09/09/2015
Essas duas se colocam em cada uma Kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
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