Capítulo único
EXPEDIÇÃO (11/07/12)
A água fria em meu rosto tentava amenizar a tensão que me consumia cada vez que tinha aquele sonho. O passado voltava com força e me revelava o que eu já sabia: estaria comigo para sempre. Respirei profundamente quando uma voz feminina surgiu da porta do banheiro.
-- Estás bien?
O sotaque espanhol carregado me trouxe de volta ao presente. Marisa era uma espanhola quente que conheci na última viagem até Matchu Pitchu. Vivemos uma louca aventura por entre as pirâmides incas. Um arrepio de tesão atravessou-me a espinha.
-- Si, cariño... -- enxuguei-me e a ataquei, literalmente falando. -- Com vontade de você, minha gostosa... -- o gritinho que ela deu só me deixou mais fogosa. -- ...Isso, grita pra mim... Diz que quer que te coma gostoso...
A espanhola proferiu todas as palavras obcenas em seu idioma e tomou conta de meu corpo, porque a minha alma estava em greve desde muito tempo.
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Sete horas da manhã e todos os pesquisadores se reuniam no pequeno auditório da faculdade. Era minha primeira expedição depois do acidente ocorrido em Xingu. Procurei não trazer as lembranças de volta e esperava sinceramente que ninguém as trouxesse também. Vi quando Ricardo entrou acompanhado de uma morena que, de imediato, não reconheci, mas, á medida que se aproximava das primeiras filas de cadeiras, me fez crer que estava tendo visões. Seu olhar encontrou o meu e nada dizia. Não parecia ter me reconhecido o que, de alguma forma, me devolveu o controle sobre minhas emoções. O pesadelo de ontem foi uma premonição. Não acreditava em nada que não fosse real, mas aquilo era coincidência demais. Ter sonhado com ela uma noite antes de nos encontrarmos de maneira surpreendente era de se estranhar. Ela continuava grande, em todos os aspectos. Não queria observar, mas foi mais forte que eu. Ricardo se aproximou perguntando algo que respondi no automático. Para disfarçar meu nervosismo, dei atenção aos formulários preenchidos pelos alunos. Isso foi o suficiente para que eu recobrasse a consciência e começasse a explicar sobre a nova missão. Procurei com todas as minhas forças me desligar da presença dela com medo de deixar transparecer todo o volume de sentimentos que me assolavam sem nenhuma piedade. A mulher concentrava-se nas apostilas com todas as informações sobre a expedição e anotava de quando em vez na sua caderneta.
-- Bom, acho que é tudo. -- disse com a voz um pouco trêmula. Rezei para que não tivessem percebido. -- Vamos dividir a equipe em duas por ordem alfabética, os primeiros cinco nomes formarão a equipe um e o restante a equipe dois. Ricardo, você fica com a primeira equipe.
-- Poderia citar os nomes da primeira equipe, apenas por excesso de zelo?
A voz grave da mulher teve um poder descomunal sobre meu corpo. Achei que me desmancharia ali mesmo na frente de todos. Com muito cuidado, para que não percebessem, me apoiei na mesa fingindo que olhava uma lista, sentando-me para lê-la e, calmamente, citei um por um os nomes que comporiam as equipes, inclusive o dela... Juliana.
-- Equipes prontas às cinco da manhã. Instruções e às cinco e meia, impreterivelmente, partiremos para a reserva indígena pataxó. Aconselho o descanso de todos, pois a tribo se encontra no topo de uma chapada e a única maneira de chegarmos lá é andando, ou seja, escalando praticamente. -- dei um sorriso amarelo observando todos se retirarem.
Assim que me vi só pude respirar normalmente. O ar nunca me pareceu tão rarefeito tamanha a dificuldade que foi tê-la perto novamente. Trinta anos se passaram desde a última vez. Talvez ela tenha esquecido tudo. Não pareceu surpresa em me ver, nem demonstrou nenhuma reação que denotasse ter me reconhecido. Melhor assim.
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Acordei num mau humor incrível. Marisa se aconchegava em meu corpo e eu a repelia como se estivesse leprosa. Levantei-me às três da manhã e comecei a preparar meu equipamento. Verifiquei tudo umas quatro vezes. Estava ansiosa para vê-la, era a terrível verdade. Tinha pedido a Ricardo para ficar de olho nela dando como desculpa o fato dela ser nova na equipe. Aproveitei e dei-lhe um sermão por não ter sido avisada da presença de um novo componente na equipe. Ouvi a voz carinhosa de Marisa e seu corpo quente encostar-se ao meu.
-- Já, mi vida?... Mais pesadelos?
Queria dizer-lhe que não era mais pesadelo, que o horror tornou-se real... Real demais. Aceitei-lhe o abraço e voltamos para cama.
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No horário previsto encontrei as equipes formadas esperando as últimas instruções. Procurei Juliana com os olhos. Não estava lá. O aborrecimento com aquele atraso ultrapassou os limites. Nem mesmo Ricardo havia chegado na hora.
-- Dois elementos das equipes estão atrasados... Isso é inadmissível!
Um moleque que não aparentava ter mais que dezoito anos, um pouco assustado com meu rompante, levantou a mão pedindo para se pronunciar.
-- O instrutor Ricardo e Juliana já estão nos esperando no sopé da chapada com o equipamento. Ela se ofereceu para carregar a bagagem com ele para adiantar nossa subida...
Meu rosto pegou fogo na hora. O que eles estavam pensando? Por que não fui comunicada destas decisões! O moleque parecia adivinhar meus pensamentos quando interviu mais uma vez.
-- Ele tentou entrar em contato com a senhora, mas não conseguiu. Disse que só dava desligado ou fora da área... -- o menino parecia tremer. --... Me pediu para avisá-la assim que chegasse... Me desculpe. -- a última frase foi dita num miado.
O olhei com piedade. Era um menino, não tinha culpa de nada. Olhei para meu celular descarregado.
-- Qual o seu nome, meu rapaz?
Vi os olhos dele tentarem sair da órbita tamanho o susto que teve.
-- Sérgio, senhora... -- a voz mal saia de seus lábios.
-- Ok, Sérgio, fica frio. Isso acontece. -- dei-lhe um sorriso sincero e ele pareceu voltar a respirar. -- E pode me chamar de Mari... -- me direcionei aos outros. -- Isso serve para todos. Bom, vamos lá.
E iniciei as instruções imaginando Ricardo e Juliana... Sozinhos.
Xxxx
Ouvia a voz de Ricardo entusiasmada numa conversa animada, rindo das próprias piadas, enquanto uma Juliana sisuda verificava os equipamentos. Ela continuava a mesma. Voltou o olhar negro para a galera que se aproximava sem fixar em ninguém. Pegou sua caderneta e começou a anotar enquanto todos se colocavam em posição para a subida. Ainda falei sobre segurança reforçando o que foi dito meia hora antes.
-- Ricardo, você sobe primeiro com a equipe um, te sigo daqui a meia hora.
Ajudei as equipes a se prepararem. Vi quando Juliana partiu na frente sem a condução de Ricardo. Liguei o rádio e o interpelei.
-- O que ela pensa estar fazendo? Por que não te esperou? -- falava e me admirava com a destreza da morena galgando os obstáculos como se tivesse feito isso toda a vida.
-- Ela já subiu uma dezena de vezes. É amiga do filho do cacique Ipapamacã¹... Esqueci o nome. Não se preocupa, ela tem experiência. -- Desligou e voltou a subir a trilha.
Ela era amiga de Anderú[1]. Minha nossa que coincidência! Eu estava atônita, era essa a verdade. Como ela podia ter voltado assim sem me avisar? Interrompi o pensamento quando um dos rapazes me chamou a atenção para o uso de algum equipamento. Quando voltei a tê-la na mente lembrei-me que ela não tinha nenhum dever de me avisar nada. Foi assim que preferi, afinal. Tinha me esquecido que eu a tinha excluído de minha vida.
A subida era feita por etapas. Até que as “crianças” estavam indo bem. Com certeza se prepararam muito para estar aqui. Abri um sorriso maroto quando pensei em Papa... Era assim que eu chamava o cacique mais rabugento que eu tive o prazer de conhecer. Estava louca para lhe dar um abraço. Duas horas depois estávamos no topo e lá estava ele de braços abertos para mim.
-- Potoquinha!!!
-- Papa!!
Odiava quando me chamava de Potoca, mas era tão carinhoso, apesar de potoca significar uma mentira deslavada. Quem sabe ele não estivesse certo em me chamar assim. Talvez eu seja mesmo uma fraude.
-- Venha, deixe kakuçus[2][3] fazerem trabalho sujo! -- e deu sua característica gargalhada. Velho abusado.
Na sua tenda tudo era muito simples e tinha um cheiro de erva seca que não desagradava, pelo contrário, dava-me uma sensação de segurança enorme.
-- Então, Potoquinha... Passado bate na porta e se não deixa entrar, paz fica lado de fora com ele... -- sorria tranquilo enquanto servia sua bebida preferida em dois copos.
Velho desgraçado!! Ele não sabia de nada. Estava me testando como sempre.
-- Ela muito bonita... -- lascou antes de tomar um gole exagerado, me fazendo acompanhá-lo.
Miserável! Ele sabia...
-- Eu não adivinha... Apenas sente coração de Potoquinha... Faz tempo... E kauim ajuda também!! -- ergueu o copo mostrando a bebida.
Filho da puta!! Sempre me embebedava pra arrancar-me os segredos. Me deu tapinhas nas mãos como que me consolando.
-- Que faço, Papa? -- Caí num choro doloroso e me joguei nos seus braços como criança que fez “dodói”. -- Por que não me contou que a conhecia? -- fungava enxugando as lágrimas com a camisa dele.
-- Papa já disse... não adivinha... Mas conversa com ela e kauim me deu umas pistas... -- sorriu mais uma vez -- Menina enfezada, difícil falar, mas Papa entendeu tudo direitinho. Não disse nada pra não mudar destino... Perigoso isso...
Ri quando ele se referiu à cara feia da outra. Era assim que se lembrava dela. Ainda criança, tinha a mania de ser brigona. Admirava-lhe a força, o ímpeto. Sua estatura a ajudava nos intentos mais perigosos. Afrontar os meninos que nos perturbavam e dar-lhes a maior surra. Eu, menina franzina, meio vesga, de cabelos curtos e cacheados, tímida ao extremo era levada por sua mão grande para as maiores aventuras que duas meninas poderiam viver. Ela quase nunca sorria, mas, quando o fazia, tudo ficava lindo e eu me sentia a melhor criatura do mundo. Uma dor fina atingiu-me o peito, intensa, quando a lembrança de nosso último encontro chegou sorrateira. Levantei-me e deixei a tenda desanimada.
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-- O pessoal já começou a tirar fotos. Juliana já tinha algumas com ela e pediu que você desse uma olhada. -- Ricardo pôs o cartão de memória na minha mão e foi se encontrar com os outros.
Imediatamente peguei a câmera e abri o arquivo. A imagem dela apareceu me assustando ao ponto de eu quase derrubar a câmera.
-- Espero que não tenha esquecido isto...
A figura da mulher deu lugar à imagem de duas adolescentes abraçadas com o rosto pintado. Uma gritaria, ao fundo, de outras pessoas se abraçando e comemorando. Era a nossa passagem para a faculdade. Chorávamos abraçadas. Um pouco de alegria e um muito de tristeza: despedíamos-nos. Ela conseguiu vaga numa faculdade de outro estado e eu havia conseguido vaga no tão sonhado curso de antropologia. Os pais dela estavam de mudança.
-- Promete que vai sempre me escrever... Me telefonar... -- ela chorava em meu ombro. -- Não esquece de mim?
Desliguei o aparelho, sufocada com a emoção que aquelas imagens me causaram. Precisava de ar e saí em busca de alívio. Cheguei a um regato próximo da reserva. Sentei-me bem na beirada e fiquei a chorar convulsivamente. Meus olhos se encontraram no passado e revi a noite antes de sua partida. Resolvemos passar o máximo de tempo juntas. Os pais dela tinham viajado para acertar detalhes da mudança e só voltariam no dia seguinte para buscá-la. Ela havia preparado um jantar para nós, regado a vinho. Não bebíamos. Ela tinha quinze anos e eu dezesseis. Era a primeira vez que o fazíamos. Rimos muito com as lembranças da infância e bebíamos cada vez mais. Não sei como as coisas saíram do controle. De repente fui tirada de meus devaneios pela presença dela. Senti o coração explodir dentro do peito quando sua mão tocou meu ombro. Ergui-me de maneira estabanada e só não caí porque braços fortes me ampararam a queda.
-- Achou mesmo que eu tinha me esquecido de você?
Minha voz não queria sair da boca. Voltei mais uma vez para a nossa despedida. Vi pela enésima vez o olhar que ela me deu, já dentro do carro de seus pais pronta para sair. Me arrepiei toda ao ver a frieza que eles emitiam em minha direção. Ela me culpava por tudo o que aconteceu. Eu a tinha violado com minha maluquice da noite anterior. Nesse momento resolvi tirá-la completamente de minha vida. Não liguei. Não escrevi. Mudei-me para a casa de uma colega de faculdade ao arranjar emprego de meio expediente na biblioteca da faculdade até transferir o curso para outro estado bem longe de casa. Tudo para mantê-la longe.
-- Me desculpe, Juliana... Eu não tinha certeza de que você...
-- Esse é o seu grande problema, Mari!!! -- sacudiu-me irritada. -- Você pensa demais!! Você adivinha!! Você age como se soubesse o tempo todo o que eu penso ou deixo de pensar!!! Foi assim desde menina com suas confusões! Com seus medos!! Covarde!!
Eu não sabia do que ela estava falando. Talvez ainda estivesse magoada por causa daquela noite.
-- Acha que viveria sem isso aqui? -- tomou-me em seus braços e invadiu minha boca com a sua sofregamente.
Ela havia conquistado meu território e eu o entregava de bom grado. Estava mais uma vez sentindo sua língua dentro de minha boca. Mais uma vez depois daquela noite. Ela soltou-me de repente.
-- Eu te cacei, Mari... -- a voz embargada me aturdia. -- Acha que fui a mesma depois que fizemos amor? Sim... Depois que fizemos amor na noite de despedida... Acha que dormi um só dia sem ter você em meus sonhos? Acha que vivi uma vida minha? Por que me rejeitou naquela mesma noite?! Não sabe a dor e a decepção que me acompanharam desde quando percebi que você tinha ido embora sem se despedir, sem conversar comigo. E depois, o que vi em seus olhos quando você se deu ao trabalho de me olhar antes de eu ir... -- ela deixava que lágrimas escorressem livremente por seu rosto. -- Não adiantou se esconder! Segui seus passos apenas para te dizer que eu sabia de tudo e te queria da mesma forma, sua idiota! -- respirou fundo e se recompôs para me dizer gelidamente. -- Estou indo para o Japão amanhã. Até nunca mais. -- Deu meia volta e partiu.
Minha ficha tava demorando a cair. Quando isso aconteceu, a única coisa que pude fazer foi chorar e gritar muito. Eu havia perdido a vida inteira longe dela e ela me amava. Que estupidez a minha. Não sei quanto tempo fiquei me lamentando antes de correr para encontrá-la.
-- Onde ela está? -- perguntei aflita a Papa que vinha em minha direção.
-- Partiu em um helicóptero... Sinto muito Potoquinha...
Eu apenas sabia dizer não. Foi assim que aconteceu.
xxxxx
O aeroporto lotado não me impediu de vê-la atravessar o mar de gente e me por praticamente no colo, num abraço cálido de saudade.
-- Fez boa viagem? -- me perguntou beijando-me os lábios carinhosamente.
-- A melhor que já fiz ou farei na vida...
FIM
[1] Pai;
[2] Jesus Cristo;
[3] Rapazes.
Fim do capítulo
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