Os loucos sabem
São Paulo, 17 de dezembro de 2015. 20h
Estávamos sentados nos fundos da nossa ala no hospital, um quadrado minúsculo em que podíamos receber ligações em um telefone público, fumar e pegar um pouco de sol. O nosso jardim era bem bonito, mas estava fechado porque não tinha nenhum auxiliar de enfermagem para vigiar os malucos que porventura quisessem subir nas árvores ou correr atrás do próprio rabo.
Ficávamos lá porque não tínhamos muitas opções. A sala de tv era desconfortável e se dormíssemos demais recebíamos "pontos negativos" no prontuário.
Quando mudamos de unidade (Ana, Priscila e eu), passamos a ficar mais tempo em um banco próximo ao pé de jabuticaba, embaixo da mangueira. O maior perigo era cocô de passarinho. Foram dias de extremo marasmo, mas nós gostávamos. Já pensou em fugir do mundo, dos problemas, das brigas, das dívidas, da família?
Enfim, estávamos sentados nos fundos da nossa ala no hospital.
Ana Cláudia era uma jovem de 19 anos, esquizofrênica, e ouvia uma voz que a mandava fazer coisas que ela não queria. Se ela não fizesse matariam o pai dela, era o que a voz dizia.
Ela quebrava pratos, apagava cigarros no próprio corpo, bebia urina, batia nas pessoas.
Mas era uma boa pessoa, entende?
Às vezes segurava minha mão, os olhos se enchiam de lágrimas e ela dizia “Ah, Betina... Você tem tanta sorte! É tão bonita, está na faculdade, tem alguém que te ama... Eu queria tanto ter tudo isso. Eu nunca vou ter essas coisas... Sai daqui e melhora, promete que não vai voltar! Eu quero te encontrar na praia... Você vai pra Caraguá?”
Ana Cláudia também cantava.
Enchia o pulmão de ar e cantava. E todos cantávamos junto com ela.
Priscila sempre a incentivava.
Lembro dessa tarde em que ela deitou a cabeça no meu ombro e pediu a Cláudia que cantasse uma música, que seria a nossa música.
Elena era a auxiliar que estava com a gente naquela tarde.
Fui feliz. O sol brilhava na minha pele e levava embora o amarelado que tinha tomado conta. Eu ri de verdade quando percebi qual era a música.
Alguns dias depois mudamos de ala, mas eu ainda ouvia Priscila cantarolar a música durante a noite enquanto esperava o sono chegar.
O sono da Priscila não chegava, mas o meu sim. E dá-lhe clonazepam.
Deus me livre de clonazepam!
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sara
Em: 17/12/2015
É triste esta realidade..o nosso cérebro é um mistério. Tenho um vizinho que melhorou bastante e agora tá trabalhando e parece uma pessoa feliz. Pena que nem todos tem um final feliz.
Resposta do autor em 21/12/2015:
Acho que é tão difícil falar de finais felizes... A partir do momento em que a doença é controlada, fica mais fácil viver, mas as crises sempre vem e é tão difícil lidar com elas! Ajuste de medicação sempre traz alguns efeitos colaterais. Vou falar sobre eles no próximo capítulo!
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