Capítulo 1 - Fotofobia
13 de fevereiro de 2121
“Nunca imaginei que a morte poderia ser tão sarcástica. A aguardo sentada numa cadeira desconfortável, ladeada por outras tantas cadeiras igualmente desconfortáveis e que parecem zombar da minha solidão. A sala é branca, fria e comprida, como um frigorífico. Não consigo tirar os olhos daquela porta de vidro translúcida, nem consigo ver o que acontece além daquelas portas, mas posso imaginar.
Aguardo impaciente pela confirmação daquilo que não quero acreditar. Ao mesmo tempo que almejo que alguém com a roupa ensanguentada apareça na minha frente me dizendo algo que vai mudar minha vida, também odeio essa possibilidade. Odeio tanto que sinto vontade de vomitar.
Então é assim que se morre antes de morrer?”
1º de janeiro de 2121
Samantha ajeitava seu casaco surrado de couro marrom enquanto caminhava com passos rápidos debaixo de uma chuva fina, curiosamente não havia ficado no bar para o momento da passagem do ano. Após dois drinques havia abandonado aquele lugar decadente e seguia na direção do seu velho carro, faltavam vinte minutos para o réveillon.
- Socorro! Alguém!
Ela escutou os gritos abafados vindo de dentro de uma rua estreita e escura e parou em frente, já com sua arma prateada em punho, tentando entender o que acontecia ali dentro.
- Alguém! Alguém me ajude!
O som agora estava próximo e ela enxergou a origem. Uma garota vinha correndo em sua direção, parecia aterrorizada e corria aos tropeços por aquela rua repleta de entulho tecnológico e restos robóticos.
- Hey! Pare aí! – Sam gritou, erguendo a arma.
- Você! Você precisa me ajudar! – A jovem de cabelos castanhos esvoaçantes se agarrava à gola do casaco de Sam como se agarrasse à sua tábua da salvação. Ela usava uma venda nos olhos, uma faixa de ataduras um pouco suja, assim como sua roupa.
- Me solte! – Sam tirou as mãos dela de sua roupa, e olhou para dentro da ruela, procurando a temível ameaça, sem sucesso.
- Me tire daqui! Me ajude a ir para longe! – A garota olhava de um lado para outro, apesar de estar vendada, com a respiração ainda ofegante.
- Moça, não tem nada atrás de você, mas esse lugar é perigoso, recomendo que retorne para sua casa ou vá para algum lugar seguro. – Sam disse, tentando decifrar de onde ela teria saído.
- Me leve com você, por favor. – Ela deu um passo afoito a frente, Sam recuou por reflexo.
- Não, de jeito nenhum, eu não posso me dar ao luxo de levar alguém comigo. Volte pelo mesmo caminho de onde veio, ok?
Sam olhou para cima e percebeu que a chuva engrossara.
- Não, por favor, me tire daqui. – Ela implorava.
- Eu realmente preciso ir, se precisar de ajuda peça no bar aqui ao lado. – Hesitou um instante, mas acabou retomando seu rumo para o carro, na quadra ao lado.
Há poucos metros do seu velho automóvel prateado do século passado, escutou passos em sua direção, virou-se e viu a mesma garota, a seguindo.
- Não venha atrás de mim! Eu não disse para você… – Sua frase irritada foi interrompida pela presença de um grandalhão careca, trajando um sobretudo negro, que abordou a jovem de forma truculenta.
- Me ajude! Eu não posso voltar para lá! Me largue! – Ela dizia, se debatendo, tentando se desvencilhar dos braços dele.
Sam sacou novamente sua arma, mantendo-a abaixada, junto ao corpo. Ainda não sabia como proceder, nem se deveria entrar naquela briga, sabia que não podia perder tempo com problemas alheios, seu prazo agora era de seis semanas, seis semanas de vida.
- Largue a garota, ela não quer voltar com você. – Finalmente bradou, ela se mantinha próxima ao seu carro.
- Não se meta, vagabunda!
- Do que você me chamou? – Sam deu dois passos na direção deles, ele ainda tinha dificuldade em sair dali carregando a garota, que se debatia desesperadamente.
- Vai cuidar da sua vida, dessa vadia aqui cuido eu. – Ele disse e em seguida aplicou uma gravata em seu pescoço, finalmente a imobilizava e começava a arrastá-la na direção da ruela.
Sam ergueu a arma, lhe fazendo mira.
- Largue a garota. Agora.
Ele olhou para trás, por cima do ombro, com um semblante jocoso.
- Tem vaga no Circus, quer trabalhar lá? – Ele riu e voltou a arrastá-la.
- Me solta! – A garota debateu-se com o resto de suas forças, saindo do golpe que a imobilizava.
O brutamontes a puxou pelo braço e sacou a arma, lhe apontando contra a cabeça, agora eram duas armas em riste.
- Acabou a palhaçada, sua puta metida. Agora volte para o buraco de onde você saiu, só estou fazendo meu trabalho. – Ele disse.
- Você vai voltar sozinho para o lugar de onde veio, senão eu atiro. – Sam respondeu, segurando firmemente a pistola com ambas as mãos. O local era mal iluminado, as luzes dos letreiros quebrados de neon mal clareavam aquele estacionamento, e um véu de chuva continuava caindo sobre suas cabeças.
Ele gargalhou, apertou ainda mais o braço da garota vendada, que sequer podia enxergar a batalha que se travava naquela noite fria de ano novo.
- Volta para a cozinha. – Ele falou fazendo menção de virar-se, e então ouviu-se o tiro. Sam havia atirado na direção dele.
- Merda! – A garota exclamou, balançando a mão ensanguentada.
Sam aproveitou que o tiro havia o assustado e desviado sua atenção para se aproximar mais, e com mais dois disparos decretou o fim ao homem e à agonia da jovem, que agora se contorcia segurando sua mão aberta e coberta de sangue.
- Desculpe, eu mirei no braço dele. – Sam se aproximou, olhando assustada para ela e sua mão ferida.
- Ele morreu? – Ela perguntou, mantendo o semblante de dor.
- Sim. Fique aqui, vou arrastá-lo para o beco.
- Outros podem vir, Elias pode estar atrás de mim, não me deixe aqui.
- Não vou deixar, eu já volto. – Sam guardou a arma no coldre de couro que levava preso à perna direita, e arrastou o homem corpulento até onde a luz era mínima.
Olhou ao redor, certificando que não houvera testemunhas daquele embate sangrento, e voltou ao encontro da garota, que agora segurava a mão esquerda ferida com a outra mão.
- Deixe-me ver. – Sam falou, tocando em seu braço, fazendo com que ela se assustasse, mas por fim estendeu sua mão, com um orifício no centro e sangue por toda a parte.
Ambas já estavam com seus cabelos molhados pela chuva, a garota trajava apenas uma blusa preta, de mangas compridas, mas não espessa o suficiente para o frio que fazia ali.
Elas estavam no lugar onde um dia fora a fronteira entre Estados Unidos e Canadá, países que haviam praticamente sumido do mapa após uma sequência de explosões nucleares e ataques por bombas eletromagnéticas, infringidos pelo Grande Oriente, há mais de oitenta anos. A América do Norte agora era terra de ninguém.
- Não está tão ruim. – Sam falou, mexendo cuidadosamente em sua mão.
- Não importa minha mão, você está de carro? Me leve para longe daqui, eu imploro. – Ela disse, puxando sua mão de volta.
- Esqueça, não vou levar você comigo. Vá para a casa de algum parente, ou conhecido.
- Não posso voltar para o lugar onde estava, e não tenho conhecidos aqui.
- Me desculpe a franqueza, mas não é problema meu. – Sam dizia com impaciência, gesticulando. – Deve ter algum posto de pronto atendimento ou hospital nas redondezas. Ou tente o bar aqui ao lado, alguém pode te ajudar, te levar para algum abrigo.
- Você não entende… Eu não posso ficar aqui. – Ela começava a tremer o queixo, com frio.
Sam a analisou por alguns segundos.
- Você não enxerga? – Falava agora num tom mais acolhedor. – Por isso está com esta faixa cobrindo os olhos?
- Me cegaram no lugar de onde acabei de fugir.
- Agora?
- Não, umas duas semanas atrás. – Ela respondia com a voz baixa e a cabeça idem. – Obrigada por ter me ajudado, mas por favor me dê uma carona para longe, é tudo que lhe peço.
- Não posso, realmente não posso, meu tempo é curto.
- Mas eu não irei atrapalhar, não te atrasarei.
Sam olhou para os lados contrariada, deu um suspiro profundo e por fim respondeu.
- Ok, vamos sair dessa chuva. – A pegou pelo alto do braço, a conduzindo até seu carro.
- Para onde?
- Entre aqui, no meu carro.
- Obrigada, prometo ser um boa companhia. – A garota sorriu de lado, mesmo com uma dor lancinante na mão.
Sam apenas a fitou, e seguiu com o carro pela autoestrada comum, que dava acesso à uma supervia, onde os carros trafegavam com ajuda de sensores, numa média de 200km/h. Apenas carros da polícia e do governo tinham autorização para trafegar pelos ares.
- Enrole isso na sua mão. – Sam inclinou-se para trás, pegando um pedaço de toalha e lhe entregando na sequência.
- Obrigada… Qual seu nome? – Ela disse, já enrolando o pano azul em sua mão, cuidadosamente.
- Samantha.
- Posso te chamar de Sam?
- Não por muito tempo. – Apesar de não necessitar de maior atenção por parte do motorista na supervia, Sam mantinha o olhar adiante e as mãos ao volante.
- Como assim?
- Amanhã chegaremos em Alberta ainda pela manhã, você estará longe o suficiente e então sua jornada ao meu lado chegará ao fim. Esse é o trato.
- O que farei em Alberta?
- Se vire. Mas não vou te largar no meio da estrada, vou encontrar um abrigo para você, esses abrigos para nômades e viciados, sempre tem algo por aqui, essa terra tem muitas pessoas desgraçadas, e estão sempre morrendo com seus vícios, liberando leitos.
- Você é inglesa.
- Sim, reconheceu o sotaque?
- Não, a frieza. – Sorriu por fim.
- Não posso esquecer minhas origens. Você não me parece uma nativa das terras áridas daqui de cima, é da Nova Capital?
- Sim, San Paolo. A propósito, Theodora, mas me chame de Theo, por gentileza. – Ela estendeu sua mão direita no ar, aguardando o aperto de Sam.
Após o cumprimento, Sam observou a toalha enrolada em sua mão, que não era mais azul, já havia sido tomada por vermelho.
- Eu tenho algumas coisas na minha caixa médica que podem dar um jeito na sua mão, afinal que a furei.
- Foi por uma boa causa, eu preferiria morrer a voltar para aquele lugar.
- O que é o Circus?
Theo ajeitou-se no banco do carro, puxou a mão para perto do corpo, demorou para responder.
- Um bordel.
Sam lançou um olhar carregado de julgamentos para ela, que mal sabia que estava sendo observada.
- Nossa. – Foi o que finalmente balbuciou. Sam crescera numa família fervorosamente católica e conservadora, assim como toda a nação europeia. E agora ela era uma mulher de vinte e três anos carregada destas crenças.
- Como foi parar lá?
- Longa história… Resumindo: tráfico sexual.
- Ficou lá por quanto tempo?
- Em março completaria dois anos. Os dois piores anos da minha vida, diga-se de passagem.
- Dois anos…
Theo apenas balançou a cabeça, de forma afirmativa, devagar.
- Por que te cegaram? Isso não faz sentido, avariar o próprio produto. – Sam questionou.
- Acharam que assim eu pararia com minhas tentativas de fuga. Eu nunca iria parar de tentar fugir de lá. Se você não tivesse surgido teria sido apenas mais uma das dezenas de fracassos que acumulei.
- Você estava presa nesse lugar, sendo obrigada a trabalhar? Isso é terrível, não acredito que esse tipo de coisa ainda exista. – Sam a olhava perplexa e com pesar, imaginando o que ela havia passado até então.
- Acredite… Existe.
- E você trabalhava como… Era forçada a trabalhar?
Theo apenas balançou a cabeça confirmando, corria os dedos pelas ondulações da porta do carro, desconfortável.
Viajavam por uma supervia quase deserta, cheia de falhas na estrutura, poucos se arriscavam a andar por ali, principalmente à noite. A visão que se tinha era de cidades fantasmas, quase nada estava destruído, mas a contaminação radioativa fez com que quase todos na América do Norte debandassem, pelo menos os que não morreram durante os ataques.
Restaram os que moravam na parte norte do Canadá, fugitivos e refugiados de outros países miseráveis. Já era possível andar sem máscara naquela região, mas na Zona Morta, a região onde um dia fora os Estados Unidos, era impossível expor-se ao ar livre sem uma máscara respiratória na maior parte do território.
- Tem alguém nos seguindo? – Theo perguntou.
Sam deu uma olhada nos retrovisores e na imagem da câmera externa, e não encontrou nada anormal.
- Aparentemente não. Hey, relaxe, esse carro não é rastreável e estamos nos distanciando a uma boa velocidade, já estamos em segurança. Daqui a pouco vamos parar para dormir.
- Você dorme no carro? – Theo perguntou.
- Ãhn… Às vezes. Eu costumo dormir em lugares abandonados, mas razoavelmente seguros. Algumas poucas vezes dormi nestas pensões de beira de estrada, quando o corpo pede um descanso decente. O carro é desconfortável e os lugares abandonados não me deixam ter uma noite tranquila.
- Onde vamos dormir hoje?
- Estou procurando algum lugar abandonado nesta região, mas ainda não achei nada interessante pelo localizador. – Disse apontando para uma tela no painel do carro, então se deu conta que Theo não veria seu gesto. – Aqui, no navegador do carro.
- Já é ano novo?
- Sim, estamos em 2121 há… uma hora. Talvez eu tenha achado algo. – Ela disse saindo da supervia, tomando uma via inferior, entrando num bairro pouco habitado, com poucos postes funcionando.
- Quando chegarmos, você teria algum analgésico para me dar? – Theo disse mostrando a mão, com um semblante doloroso.
- Não tenho certeza, vou dar uma olhada.
- Como você faz para tomar banho? Caso você seja uma adepta de banhos… – Ela riu.
- Sim, sou adepta. Geralmente encontro chuveiros nos banheiros de postos de recarga. Quando não acho chuveiro, apelo para um banho portátil, aqueles sacos que você pendura, sabe?
- Não.
- Ok, depois te mostro. – Mostrar seria algo inútil, logo se deu conta.
Sam voltou a observar Theo, que estava agora com a cabeça recostada no banco.
- Por que a venda nos olhos?
- Estou com sensibilidade à luz.
- Fotofobia.
- Sim. – Theo sorriu. – Você conhece essa palavra.
- Conheço, por que?
- Nem todo mundo conhece. Eu gosto destas palavras.
- Que palavras?
- Essas que quase ninguém sabe da existência.
- Palavras difíceis?
- Não, palavras que não são comumente usadas. Mas algumas vezes estas palavras são grandiloquentes.
- E grandiloquente é uma delas.
- É sim. – Theo sorriu novamente.
Sam voltou a monitorar os espelhos e imagens externas, tudo parecia em paz.
- Conheço algumas. – Sam disse, de forma relaxada.
- Palavras não usuais?
– É.
- Ok, diga uma.
- Hum… Atelofobia.
- Medo de não ser perfeito.
- Isso, de não ser bom o bastante.
- E de errar. – Theo completou.
- Está incluso.
- Mas sem erros não há aprendizado.
- Se aprende acertando também. – Sam contestou.
- Precisamos das duas coisas.
- Eu só citei a palavra, eu não sou atelofóbica.
- Ok, cite mais uma.
- Hum… Exfiltrar.
- Ex o que? – Theo perguntou, franzindo a testa.
- Exfiltrar, exfiltração.
- Não faço ideia do que seja.
- É um termo militar, é o contrário de infiltrar.
- Ainda preciso de mais explicações.
Sam gesticulou, preparando o que dizer.
- Quando um grupo de soldados ou prisioneiros fazem um ataque de dentro para fora, ou já dentro do terreno inimigo. Entendeu?
- Estou elaborando visualmente em minha mente.
- Ok. Acho que achei um posto. Reze para ter água quente.
- Eu adoraria um banho quente, estou ensopada e morrendo de frio.
- Eu também, mas prepare-se para a possibilidade de um banho frio. Eu me acostumei a banhos gelados no…
- No?
- Ok, fique aqui no carro, vou perguntar se eles tem chuveiro.
Doze minutos depois, Sam abriu a porta do passageiro, tomando Theo pelo braço.
- Sam? – Ela perguntou, assustada.
- Sou eu.
- Por que você demorou?
- Eu não demorei. Anda, estamos com sorte, tem água quente aqui, mas só tem um chuveiro, tome primeiro, limpe esse sangue na sua mão.
Sam pendurou uma toalha dentro do cômodo onde havia o chuveiro, e mostrou para ela onde havia outro gancho, onde estavam as roupas secas.
- Sua roupa molhada você pendura no lugar das secas, ok?
- Ok. Você vai ficar aqui por perto, não vai?
- Estarei aqui do lado. Não demore.
Sam recostou-se no azulejo amarelado daquele banheiro não muito agradável nem muito limpo, ouvia o barulho do chuveiro ligado e aguardava Theo terminar seu banho, ali dentro não fazia tanto frio. Depois de alguns minutos, percebeu que a toalha que estava pendurada na parede em frente ao chuveiro havia caído no chão, foi até lá para rependurá-la, quando viu sua nova companheira de viagem nua, de costas.
Como se presa num feitiço, não conseguiu tirar os olhos dela, os braços de Theo eram quase inteiramente tatuados, desenhos coloridos sobrepostos que decoravam principalmente os ombros. Mas era mais do que tatuagens que lhe atraia a atenção, estava paralisada a observando.
Theo virou-se parcialmente, mantinha apenas a faixa envolvendo seus olhos, repousou o sabonete num aparador no azulejo, após tatear a parede o procurando. Sam pode então ver alguns hematomas na região das costelas, e na parte de dentro da virilha e coxa, sentiu um mal estar com aquela visão, várias possibilidades terríveis passaram por sua cabeça, pendurou a toalha no gancho e afastou-se, voltou para o outro lado, onde estava recostada anteriormente.
- Eu estou congelando aqui, garota. Apresse-se. – Sam resmungou.
Logo Theo surgiu, usando algumas roupas visivelmente usadas já por algum tempo.
- Não demorei tanto assim, é que a água está quentinha…
- Ãhn… Demorou sim. Ok, espere aqui.
Depois de vinte minutos, o carro adentrava de forma lenta a lateral de uma grande construção acizentada pelo tempo, com a parte da frente parcialmente demolida. Havia uma abertura ao lado da parede, por onde Sam conseguiu manobrar e entrar com o veículo.
- Venha. – Sam pegou Theo pelo braço, a levando até um patamar mais alto. – Sente-se aí enquanto eu ajeito um lugar para dormirmos.
- O que é aqui?
- Parece um teatro abandonado. Ou algum lugar de espetáculos. Tem um piano no palco.
- Sério? – Theo ergueu a cabeça, animada.
Sam seguia retirando entulhos de um local próximo ao palco, atrás do carro.
- Mas não deve funcionar, está em péssimo estado. Como todo esse lugar… Reze para que nada despenque sobre nossas cabeças essa noite.
Theo apoiava as mãos no piso do patamar onde estava sentada, movia a cabeça de um lado para outro, curiosa, mesmo sem enxergar nada.
- Tem janelas? – Ela perguntou.
- Que?
- Aqui tem janelas?
- Não. Quer dizer, lá atrás das fileiras de cadeiras tem algumas aberturas. Mas as paredes laterais não tem janelas, tem apenas coisas indecifráveis pintadas, deveria ter sido algo colorido e vibrante. No palco tem algumas cadeiras, a maior parte delas estão quebradas, e um pano avermelhado que provavelmente era alguma cortina. O pé direito aqui é bem alto, tem alguns arabescos pintados lá em cima.
- Que cor são as poltronas da audiência?
- Vermelhas. Ou laranja. Sei lá, algo com tom terra que desbotou. Quando terminar de ajeitar e limpar aqui, vou dar um jeito na sua mão e dormiremos, porque estou quase dormindo de pé.
- Minha mão dói como se fosse explodir.
- Eu imagino, aguente mais alguns minutos.
Um pouco depois, Sam apareceu com seu kit de socorro, uma caixa de ferramentas metálica. Pousou ao lado de Theo e se pôs a separar algumas coisas.
- Precisa de pontos? – Theo perguntou, já estendendo a mão trêmula.
- Darei dois pontos na parte de trás, onde o estrago é maior. – Sam respondeu limpando o ferimento.
- Você tem algum anestésico?
Sam a olhou rapidamente, e começou a preparar a agulha para a sutura.
- Me deixe explicar a situação: Você não está numa clínica nem num hospital. Não sou enfermeira nem médica. Não estamos sequer num quarto ou uma casa, talvez tenhamos insetos nos fazendo companhia hoje. Minha maleta de primeiros socorros foi roubada e esta aqui foi montada com certo improviso. Entendeu porque não haverá anestesia nestes míseros dois pontos em sua mão, garota?
- Eu tenho nome.
- Ok. Entendeu, Theo?
- Perfeitamente. – Disse com sarcasmo.
- Você aguentou todas essas tatuagens, não pode reclamar de dois pontos na mão.
- Você viu minhas tatuagens? – Theo perguntou, intrigada.
- Vi de relance, quando fui pegar a toalha que havia caído no chão. – Respondeu sem jeito.
- Hum.
- Termine de enrolar isto. – Sam disse após alguns minutos, depois de começar a enrolar a atadura em sua mão.
Afastou-se e voltou a ficar em frente à Theo, tomou suas mãos, lhe entregando água e comida, uma barra proteica.
- O que é?
- Sua ceia de ano novo. E de nada. – Sam disse colocando um comprimido em sua boca. – Tome, é o analgésico.
- Pegue um pedaço da barra.
- Não, é todo seu, estou comendo também. Desça daí e venha dormir. O colchão não é tão grande como um duplo, mas é maior que um simples, cabe nós duas.
- Onde está?
- O que?
- O colchão.
- Ah. Ainda estou me acostumando com o fato de você ser cega.
- Eu estou sem enxergar, mas sei que um dia minha visão vai voltar.
- Amém. Anda, venha. – Sam a pegou pelo braço, a levando até o colchão, ambas deitaram e puxaram os cobertores rapidamente.
- Cubra-se.
- Brrrr… Posso dormir no carro, se ficar mais confortável para nós. – Theo disse.
- O carro seria ainda mais desconfortável para você.
- Por quê?
- Porque você é mais alta que eu.
- Sou?
- Só um pouco.
- Eu tenho 1,74cm, e você? – Theo indagava despretensiosamente.
- 1,70cm.
- É, pouca coisa… Achei que você fosse mais alta.
- Baseada em que?
- Você parece ser… Imponente. Acho que essa é a palavra.
- O que mais você acha? – Sam se divertia, virou-se na direção de Theo.
- Acho que você deve ser uma típica inglesa, cara de poucos amigos, de quem está sempre pronta para bater o guarda-chuvas em alguém e reclamar do tempo.
- Não são boas considerações.
- Também acho que você é uma pessoa honesta e que está fugindo de algo que não teve culpa.
Sam virou-se novamente para cima.
- Quem sabe… – Sam respondeu, encerrando o assunto.
As duas ajeitaram-se no colchão que ela havia colocado sobre assentos das poltronas do teatro, depois de algum tempo o sono quase derrubava Theo, mas Sam permanecia acordada, alerta, fitava o teto.
- Você reza? – Sam perguntou, despertando Theo.
- Ãhn?
- Você ora antes de dormir?
- Não.
- Por que não?
Theo deu um suspiro pesado.
- Não sou adepta. – Falou com a voz sonolenta. Theo permanecia virada para o lado de fora, coberta até o pescoço com cobertores.
- Pois deveria.
- Ok.
- Não estou te impondo nada, só acho que… Enfim.
- Ok.
Sam passou a observá-la.
- São belas tatuagens, tem significado? – Sam disse.
Theo levantou o rosto do travesseiro
- Algumas sim.
- Sempre quis fazer uma tatuagem.
- E por que nunca fez?
- Não gosto de agulhas. E não acho algo correto, modificar o corpo por vontade própria, me parece coisa de pessoas da vida, pessoas sem valores.
Theo mantinha o rosto erguido, prestando atenção, mas sem se virar.
- Desculpe, não quis te ofender. – Sam continuou, Theo ficou em silêncio alguns segundos.
- Não dói tanto assim. Se você tomar alguns ácidos antes da seção a dor é menor.
- Tomar o que?
- Nada, esquece.
Silêncio.
- Como conseguiu os hematomas?
Theo virou a cabeça para o lado, com o queixo por cima do ombro.
- Você sabe onde eu trabalhei.
- Claro. Desculpe. Vamos dormir.
Theo voltou para a posição inicial, ajeitou as cobertas embaixo do pescoço.
- Boa noite, Sam.
Sam deu um sorriso de canto, ao ouvir seu nome.
- Boa noite.
Fotofobia: s.f. Intolerância à luz, sintoma próprio de certas afecções nervosas; fotodisforia.
Fim do capítulo
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Dressa Gomes
Em: 25/04/2020
Adorei a história conheci por uma amiga incomum fiquei viciada em ler a história e outras que já finalizei a segunda parteâ¤
Parabéns a autora..........

Jennyfer Hunter
Em: 30/07/2019
Cris....
Que primeiro capítulo! Uma maneira leve de apresentar um pouco a realidade das personagens e de mostrar envolvimento. Intrigante e envolvente! Já vi que viciarei e me tornarei uma pessoa grandíloca depois dessa história! Kkkk
Sucesso certo!
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Donaria
Em: 12/05/2017
Cara autora tenho que confessar que passei diversas vezes os olhos sobre sua história, achava super interessante o enredo, mas ai pensava....será que ela vai conseguir manter esse enredo interessante, ficção misturado com romance não é pra qualquer um. Agora estou aqui me redimindo...tenho que lhe encher de elogios, você conseguiu fazer Theo e Sam tomarem forma, tomarem vida. Eu consigo visualizar e sentir tudo, sofro horrores com essas duas, consigo visualiza-las no futuro com todas aquelas coisas malucas. ah... também adoro o humor da Theo e a ingenuidade da Sam, morro de rir das duas. Você está de parabéns. Ja terminei a primeira parte e estou começando a segunda. Espero que venha mais historias. beijos
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Leituralesbica
Em: 19/11/2016
Boa noite!!!!
Criei uma página com a finalidade de divulgar romances lesbicos uma vez q eu mesma encontrei dificuldades em encontrar. Posso postar trechos desse romance apaixonante?
Resposta do autor:
Boa noite, td bom?
Agradeço a leitora, pode postar trechos sim, fique a vontade, não esqueça de colocar os créditos, ok?
Adoraria visitar seu site, qual o endereço?
Abraços
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Olá Cristiane, Tenho lido várias histórias aqui no lettera, mas é primeira vez que estarei lendo algo escrito por vc. Quero parabeniza-la pela criação e manutenção deste espaço.
Apesar de Sam parecer fria, ela é muito atenciosa e tbm não deve estar sendo fácil saber que a sua vida está por um fio.
Vou continuar desbravando cada linha .
Bjs
Darque
Resposta do autor:
Olá Darque! É um prazer tê-la apreciando uma história minha, espero que curta ;)
Eu que agradeço pela visitação ao site.
Abraços!
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Ana_Clara
Em: 26/11/2015
Bom, com o início de Resiliência decidi ler novamente 2121. Não posso deixar de comentar as minhas impressões sobre a Sam... rsrsrs Os mesmos sentimentos que tenho pelo Mike de cara preconceituoso e muitas vezes antiquado, a Sam por alguns capítulos conseguiu o mesmo feito. kkkk Como a esperança é a última que morre, então o amor a mudou. Que bênção!!!
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viiihellen
Em: 02/11/2015
Já gostei... A Sam é bem delicada, sqn rsrsrs!!!
Espero que as duas se dêem bem...
Resposta do autor:
Muitos coices ainda virão... rs
Obrigada por me ler <3
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GabihGon
Em: 02/11/2015
Comecei a dois dias, e já estou completamente apaixonada pela Theo e pela Sam, já passei raiva pelo Mike e chorei pela Sam, perdi folego nas lutas hahahahha
Estou a pouco de chegar nos capitulos atuais e acompanhar junto, mas desde ja que historia incrível. Parabéns!
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Leni
Em: 09/10/2015
Cara, a Théo é muito sangue frio. Porra, o que a Sam obriga ela engolir depois de tudo que a pobre passou. Tenho minhas suspeitas quanto a essa aparente "paciência" da Théo para com a Sam, pra mim ela não passou pelo inferno por nada. Tá certo que a ciborg salvou ela num primeiro momento e gosta muito da mesma, mas já tá ficando chato pra Théo servir de saco de pancada toda hora...Carai, desse jeito ela vai chegar ao final da história que nem o Exterminador do Futuro, (só os pedaços, rs). Adorando a força dessa mulher! Parabéns
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Sem cadastro
Em: 05/10/2015
Muito bom! Você detalha tão bem os acontecimentos, que a gente fica imaginando como tudo aconteceu. Parabéns!!
Resposta do autor:
Oie Leninha!
A história tá bem visual né? quando escrevo eu sempre imagino como se fossem cenas de filme ;)
Obrigada, bjos!
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Ana Maria
Em: 30/09/2015
Prezada Cristiane,
Estou absolutamene encantada com essa primeira postagem. Parei no meio só para olhar o contador de capítulos. Yes, tenho vários ainda para ler!
Muito grata para ótima leitura qe terei pela frente.
Fã de carteirinha aqui.
Ana Maria
Resposta do autor:
Obrigada por continuar me acompanhando, e pelo carinho ;)
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Mica Brito
Em: 29/09/2015
Me sentir num filme futurista kkk, adorei! =0)
Resposta do autor:
Um filme futurista sangrento e romântico ;)
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Sem cadastro
Em: 12/09/2015
Voce pode me dizer cade as outras autoras ,diedra ,gurgel,wind a drikka, artemes
Resposta do autor:
Oi Celia, aos poucos o pessoal ta chegando ;)
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Sem cadastro
Em: 10/09/2015
oi autora!Quase meu coração sai bela boca hoje quando abri o abcles e tinha sumido, não acreditei, primeiro foram as outras historias suas que tinha saido do site mais graças a Deus tava lendo 2121 no seu senão ia pirar mais uma historia não lida é fogo. É uma pena o termino do abcles me lembra o extinto "xana in box" nao sei se vc chegou a conhecer ele também saiu do ar de repente e ninguem sabia o porque, foi desesperador, muita gente chorou inclusive eu,a quantidade de historias que o xana tinha era imensa e da noite pro dia sumiu tudo.Bom... das minhas autoras favoritas ate agora so encontrei vc e Endless dei uma olhada na lista de autoras e não vi o nome da Lua de Morais, amo o conto Pernambuco,rio,Bahia e espero que ela poste aqui.Adorei a segunda versão do final 2121 kkkk vixe, surreal muito bom.bjs
Resposta do autor:
Olá!
Então, eu não cheguei a conhecer o xana in box, apenas o fator x e o abcles mesmo, entrei nesse mundo em 2013.
Prometo nunca sumir com o Lettera, ok?
Aos poucos o pessoal tá aparecendo aqui, já encontrou suas favoritas?
Em breve começo a segunda fase de 2121 ;)
Bjinhos!
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Mari
Em: 07/09/2015
Assim, como muitas já fizeram, quero lhe agradecer por não nos deixar desamparadas por muito tempo. Fiquei absolutamente surpresa com o fim repentino do ABCles e mais ainda com a perda de tantas histórias que foram postadas unicamente lá. Espero que a Nadine, Kernelb, Drk, Gi Franchini, Sara Lecter, Drey, Mel Bessa e tantas outras voltem a postar suas obras aqui. Para sempre serei sua fã pela atitude rápida, solidaria e altruista que tomou. Obrigada por abdicar de seu tempo para nos deixar mais felizes. Gostaria ainda de pedir que crie um link para patrocínio para manutenção do site. Não sei como isso seria resolvido com as autoras, mas a manutenção de um site necessita de tempo e recursos financeiros. Eu, particularmente estou apta a colaborar.
Resposta do autor:
Oie Mari!
Desculpe a demora para te responder.
Obrigada pela força, aos poucos as autoras estão descobrindo o Lettera e postando suas histórias novas e antigas.
Obrigada por tudo, grande beijo!
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Sem cadastro
Em: 06/09/2015
Autoraaa,que capítulo maraa! Já me apaixonei rsrsrs
Eu já tinha visto 2121 nas atualizações recentes do Abcles...mas como já estava bem adiantado,achei que não fosse conseguir acompanhar...
Já ameei esas duas! Rsrsrs Não vejo a hora de ler os próximos capítulos...
Beeeijoo
Resposta do autor:
Eu fico feliz em saber que fisguei você, pq você continua do meu lado ;)
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Sem cadastro
Em: 05/09/2015
Amo essa estória.
Agora é só ter paciência pra esperar chegar onde eu estava lendo!
Obrigada pelo espaço!
Ficou lindo!
Resposta do autor:
Oi Vilma!
Já chegou no capítulo onde vc estava?
Bjos!
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Liane
Em: 05/09/2015
Olha só, essa historia é viciante, escreve muito menina....relendo por aqui, mas não vou comentar....pra não correr o risco de falar demais rsrsrs
Ps: Acho que ainda não disse que AMEI o nome do site
Mais uma vez obrigada por tuuuuudo
Resposta do autor:
Oi Liane!
Desculpe ter demorado para te responder...
Gostou do nome Lettera então? Minha inspiração foi a música que o Renato Russo canta :)
Eu que agradeço a leitura e comentário!
Bjinhos
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Sem cadastro
Em: 04/09/2015
Maravilhoso tamben seria se as autoras postassem aqui suas historias mais antigas completas.eu mesmo tava lendo a balairina de lua de moraes poxa fiquei muito frustada
Resposta do autor:
ah vocês precisam dizer o nome, assim fica muito impessoal :/
Acho que aos poucos as autoras vão encontrando esse site e vão postando, daí vocês fazem campanha para postarem as antigas também.
Bjos!
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Sem cadastro
Em: 04/09/2015
Olá passei para agradecer por criar um espaço onde as leitoras e autoras possam se reencontrar. Já vi duas histórias que acreditava estarem perdidas.👏 👏👏👏
Resposta do autor:
Olá pessoa sem nome!
De nada ;)
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Sem cadastro
Em: 04/09/2015
Inscrição feita com sucesso aqui :D
por nostalgia me inscrevi com mesmo nome e senha do Abcles e li de novo só pra matar a saudade rsrsrs
beijos autora!!! :p :p :p
Resposta do autor:
Oi Camila!
Seja bem-vinda!
Bom findi ;)
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luhh991
Em: 04/09/2015
Boa tarde, Cristiane em primeiro lugar "Adorei a história", mas o que mais impressiona e fascina é o seu domínio da escrita. Parabéns !!!!!
Resposta do autor:
Obrigada Luh! E agradeço de coração o elogio ;)
Postarei o restante nos próximos dias. Bjos!
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