Capitulo 4 - Primeiras descobertas
IV - Primeiras descobertas
Vivian
Fechei os olhos ao sentir lábios macios encostarem aos meus em um beijo longo. Amélia se despede de mim sem querer ir.
- Eu já prometi me cuidar, amor - sorri para a sua cara de preocupação. - O que te aflige? Eu estou bem, te garanto isso.
- Você vai ficar sozinha com a Emília.
- Qual o problema?
- Emília é o problema. Sério, você não sabe o risco que corre ao dar qualquer abertura para ela. Acho que eu não vou, você precisa de cuidados. Vou ligar no escritório.
- Nem pensar! - A interrompi já evitando o seu deslocamento. - Não quero que você se prejudique ou pare a sua vida por minha causa. Já faltou dois dias, perdeu audiências e reuniões importantes. É sério, eu estou bem, vou ficar bem.
- Não sei, Vivian... não me agrada em nada te deixar aos cuidados dessa criatura. Eu vou chamar a Luciana e perguntar se ela pode ficar com você.
Vê-la chamando a própria irmã de criatura me incomodou profundamente. A maneira infantil que minha noiva trata do assunto é assustador. Tento, mas não consigo entender.
- Maria Amélia! - controlei-me para não gritar e render o assunto. - Emília nem abriu a boca direito nos últimos dias. Foi da cozinha para o quarto dela e ontem só ficou um pouco com a gente na sala porque eu insisti.
- O que é muito mais suspeito ainda. Está decidido, eu não vou.
- Mais suspeito por quê? A sua irmã apenas não tem para onde ir e está bem nítido que ela fica sem graça por causa disso. Você nem ao menos tentou saber o que aconteceu, não trocou meia palavra com ela. Só estou vendo ataques partindo de você. Assim fica difícil te defender.
- Eu odeio o seu coração mole porque ele não te ajuda a enxergar um palmo além do seu nariz. Aquela coisinha que está se fazendo de boazinha é folgada, espaçosa, mentirosa, vagabunda e sem escrúpulos.
Balancei a cabeça em negação. É inacreditável que Amélia continue cultivando a mesma visão sobre a irmã. O que será a causa de tanto ódio? Por que ela simplesmente não me diz?
- E qual seria o motivo para ela se humilhar desse jeito? Vir te procurar? Hein?!
- Eu não sei, mas te juro que vou descobrir o mais rápido possível e te provar que ela não é flor que se cheira.
- Você fica repetindo isso, acusando-a de estar se escondendo de algo grave que fez, mas a nossa busca pelo nome dela na polícia e na Justiça foi inútil, não deu em nada.
- Ainda, meu amor. Ainda! Você desistiu, mas eu vou continuar procurando. Sabe-se lá se ela não falsificou documentos.
Irritei-me tanto com mais uma bobagem vindo da minha noiva que senti o meu coração acelerar rápido. Respirei fundo e disfarcei para não assustar a mais alta.
- Lia, vai trabalhar, é sério. Você sabe o quanto eu detesto sentir que estou atrapalhando. Eu ainda sei me virar sozinha e qualquer coisa te aviso.
- Já está decidido: eu vou ficar - disse desabotoando o lindo terno feminino preto.
- Então eu vou voltar para a minha casa.
Nervosa, saí da cama e só parei porque a minha noiva segurou o meu braço.
- Deixa de ser boba, você não vai a lugar nenhum! O seu lugar é aqui e sob meus cuidados.
Nos escaramos por dois minutos. Um silêncio absoluto acompanha a nossa batalha de olhar. Duas pessoas irredutíveis que no fundo não querem brigar, mas também não desejam ceder.
O quarto começou a querer escurecer ao mesmo tempo que me senti fraca. Para evitar uma queda, decidi me sentar na cama e respirar fundo.
- O que foi? - Perguntou-me e passou a mão no meu rosto. - Você está gelada.
- Eu não estou te reconhecendo, Lia. Nos últimos dias o seu comportamento não está normal. Você me parece desumana e egoísta. Talvez você esteja certa, eu não enxergo um palmo além do meu nariz porque, sinceramente, eu nunca enxerguei esse seu lado. Acredito que será realmente melhor que eu volte para a minha casa. Viver nessa guerra só vai piorar a minha saúde.
- Está vendo? Emília...
- Não se preocupe com a Emília, vou levá-la comigo, assim você pode ficar em paz e ela ter a chance de se reerguer.
Minha noiva deu-me as costas e caminhou até a porta do closet. Permaneceu por um longo tempo, talvez um pouco mais de cinco minutos. Quando pensei em chamá-la, virou-se de repente e o botão do seu terno que antes foi aberto estava fechado novamente. Ajeitou os fios desalinhados do cabelo e pegou a sua maleta na poltrona.
- A última coisa que quero é te ver novamente naquele hospital e por isso eu vou fazer a sua vontade mesmo querendo ficar. Só espero que...
- Eu não me arrependa - a interrompi para completar a mesma frase proferida nos últimos dias.
- Ainda bem que você gravou bem, depois não me diga que não foi avisada.
Com sua postura altiva, Amélia aproximou-se mais uma vez e selou os seus lábios nos meus com carinho.
- Eu te amo, Lia - falei para ela quando se afastou com dois passos.
Não queria que ficasse um clima ruim entre a gente, mas não vi outra alternativa.
- Eu também te amo, Vivi. Só que às vezes não lhe entendo. Tchau.
Tive apenas o tempo de sussurrar uma resposta ao seu ‘tchau' pois quando dei por mim o meu amor já estava longe do quarto.
Fechei os olhos, senti cansaço, culpei-me por ter me estressado tanto. Não me conformo estar no meio de uma briga sem saber o motivo. Tentar arrancar alguma coisa da Lia se mostra um caminho inútil. Sempre caímos no nada, na mudança de assunto, na irritação. O que tem de tão ruim? Como eu vou dividir a minha vida com uma pessoa que não me contou que tem uma irmã? Que não confia em mim para contar os seus segredos? Não consigo entender.
O comportamento da Emília não me deixar suspeitar de nada. É claro que ela está na defensiva, pouco fala, quando o faz é apenas para falar sobre comida. Não tive a chance de me aproximar e dei prioridade para passar mais tempo com minha noiva. O pouco de contato que tive foi na cozinha com ela sempre me fazendo rir. Hoje pode ser um bom dia para desvendar os mistérios dessa mulher intrigante.
Bocejei, dei quatro tapas leves no rosto para espantar a preguiça, me espreguicei e mandei o cansaço para longe.
Quero viver.
Busquei pela janela com passos lentos. Abri a cortina com ímpeto, logo o sol de verão esquentou a minha pele, com certeza vai passar dos 30°C. Sorri para o céu, agradeci a oportunidade de acordar e poder desfrutar dessa luz natural por mais um dia.
Alimentada de vitamina D, dei meia volta, caminhei mais animada até o banheiro para escovar os dentes e lavar o meu rosto. Depois, peguei o meu robe prata e saí do quarto.
Toda manhã os meus lábios insistem em se curvar para cima sem motivo aparente, mas hoje o cheiro que vem da cozinha me faz sorrir abertamente.
Entrei na cozinha e dei de cara com a Emília fazendo uma dança engraçada. Seu corpo balança de forma leve na mesma sintonia que os seus braços no ar. Notei o forno aberto. Será que é uma comemoração?
Emília retira a assadeira com um apetitoso pão do forno e sorri ao se virar e dar de cara comigo.
- Está de sacanagem que você fez pão. Não foi cortado da minha dieta?
- Claro que foi cortado, Vivian.
Olhei incrédula para ela que segurava uma risada.
- Como você é maldosa! Sente esse cheiro delicioso... - disse com água na boca. - Vai comer na minha frente também?
Aproximando-se da mesa, a minha cunhada acenou com a cabeça para a cadeira como se pedisse que me sentasse. Não o fiz.
- Pode tomar o seu café da manhã à vontade, depois eu volto para comer a minha salada de frutas.
Desconcertada e sentindo pela primeira vez o peso da minha restrição desde que fugi do hospital, ensaiei sair da cozinha até ouvir a voz doce da Emília me chamar enquanto se ajeitava em uma das cadeiras:
- Vivian... você realmente acha que eu faria algo diferente da sua alimentação? Só para mim? Claro que não - respondeu como se fosse óbvio. - Esse é um pão de ervas, sem óleo, pouquíssimo sal, saudável e te garanto ser extremamente saboroso. Eu pesquisei, confirmei com a nutricionista que a Dra. Martins me indicou e cheguei a ele - disse apontando para o pão. - Espero que você goste.
Eu gostaria de dobrar a minha boca de tamanho só para colocar no meu sorriso a emoção por cada palavra que saiu da boca da Emília agora. Uma vez eu ouvi falar que existem diversas formas de acarinhar outra pessoa, mas a minha necessidade de toque não me deixava compreender ou procurar por isso. Agora, aqui, de repente, sinto-me a pessoa mais sortuda do mundo por conseguir que o gesto de cozinhar chegue ao meu coração em forma de acolhimento e afago como todo bom carinho faz.
Não consegui me expressar com palavras. Mal sei o que está acontecendo com esse borbulhar de sentimentos. Pensando bem, não será falando que conseguirei atingir o meu objetivo que é agradecê-la.
Me resumi a aproximar-me, abraçá-la e deixar um beijo no lenço que prende o seu cabelo. Fechei os olhos, permaneci com o nariz no local, inalei o cheiro do seu shampoo. Ainda a segurei por um tempo para ter mais do seu contato, então sua cabeça se acomodou confortável no meu tórax.
- Obrigada, Emília.
Senti o seu leve afastamento e abri meus olhos parar dar de cara com as suas lindas covinhas acentuadas pelo sorriso.
- Bom dia, Vivian.
- Bom dia... você tem algum apelido?
- Mili é como meus pais costumavam a me chamar.
- Bom dia, Mili.
Hipnotizada pelo castanho dos seus olhos, seu nariz avantajado, sua pele lisa, sua sobrancelha levemente bagunçada, não conseguia parar de olhá-la.
- Sente-se, deixe-me te servir - disse tentando se desvencilhar sem sucesso.
- Você não é empregada aqui, Emília. Eu posso muito bem me servir, meus braços e pernas ainda funcionam perfeitamente.
Sem que ela me rebatesse como eu esperava, a misteriosa levantou-se ainda abraçada a mim e me levou até ao meu lugar na mesa.
Não tive outra opção a não ser me sentar na cadeira e vê-la começar a cortar o pão.
- É apenas uma gentileza. Faço de coração.
Emília pegou um pedaço do pão, mergulhou na geleia, comeu e em seguida colocou o morango na boca. Pelo sua cara, está aprovado.
Um pouco de geleia foi colocado no canto do meu prato, um fatia de pão no meio e dois morangos filetados no outro canto. Senti-me em um restaurante ao notar que tudo perfeitamente colocado.
- Que ervas tem no pão, querida?
- Manjericão, tomilho-limão, hortelã e um pouco de alecrim. A farinha é italiana; mais pura e sem aditivos químicos. Para acompanhar, fiz essa geleia fresca de ameixa doce. Se você combinar os dois e no final comer o morango, te garanto que terá uma explosão de sabores.
- Você é cozinheira! E pelo jeito do prato trabalhou em uma boa cozinha.
Não perguntei por que tudo o que observei nos últimos dias não me deixa dúvida. O seu cuidado ao cobrir os fios do cabelo, a forma habilidosa como utiliza facas diferentes para cada corte, a construção de sabores com temperos, o amor que coloca em cada prato.
- Sim - disse apenas para confirmar e me serviu.
Fiz como Mili me indicou: peguei um pedaço do pão e o passei na geleia. Delicioso. Em seguida, comi o pedaço de morango e entendi quando o meu paladar comemorou a acentuação do sabor anterior. Revirei os olhos de prazer.
Com a cozinheira ainda parada na minha frente, notei o seu olhar cheio de expectativa por alguma fala minha. Ela sempre espera.
- E então? Está bom?
- Você ainda pergunta, Mili? Isso aqui está perfeito - disse cheirando o pão. - Eu pensei que demoraria alguns meses para que eu pudesse comer um pão. Aliás, deve fazer uns bons meses que não chego perto de um. Eu não tenho como te agradecer. Sério, você deve ser um anjo, não é possível. Deixe-me tocar as suas mãos, quero ver se elas são de verdade.
Não esperei que a Emília esticasse os braços e os trouxe para mim. Notei ali algumas cicatrizes, pequenas marcas antigas e uma indicação de que elas são usadas para trabalhos manuais há anos.
- Por que tanto mistério, Maria Emília Zardini?
Invertendo as posições de nossas mãos, agora é a mais alta que faz carinho com o polegar nas costas das minhas.
- As pessoas sempre esperam que as outras saiam falando sobre a vida delas e se assustam, julgam, perdem a paciência quando descobrem que só se falam aquilo que o outro quer ouvir. Eu não sei o que você espera. Para ser sincera, não me preocupo com isso. Acho que os seres humanos nunca deveriam perder a essência curiosa da criança que foram. É incrível o que o tempo faz com a gente; esquecemos de como é perguntar, esperar as respostas, descobrir, desvendar. Não há mistério.
- Nesse caso, quem é você?
Pelo seus olhos, eu já entendi que era uma pergunta tola. Ela acabou de dizer não quer responder aquilo que espero ouvir.
- Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
Uni as nossas duas mãos e continuei recitando o poema no lugar dela:
- Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...
- Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
- Sou a que chora sem saber porquê...
- Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
- Alguém que veio ao mundo pra me ver
- E que nunca na vida me encontrou!
Quando Emília terminou o poema, o meu corpo se arrepiou por inteiro. O seu olhar parece ter a capacidade de mergulhar na profundeza da minha alma, alcançando lugares jamais visitados antes.
- Agora eu sei que além de cozinhar muito bem, receita poema como ninguém. Como sabe que Florbela Espanca é uma das minhas poetisas prediletas? - Joguei no ar pensando nas palavras de Amélia quando insinuou que sua irmã tem informações nossas e planeja um golpe.
- Só fiquei com vontade de recitar. É uma das minhas favoritas também.
- Você não me pareceu surpresa quando eu comecei a recitar.
- É que na sua voz ficou tão bonito que só fui tomada pelo desejo de continuar te escutando.
Mais uma vez as borbulhas sem explicação tomaram conta do meu corpo. Como pode duas pessoas com traços iguais despertarem em mim coisas completamente distintas? Talvez porque uma eu ame e a outra estou aprendendo a admirar.
Só notei que fiquei tempo demais pensando quando sua suave voz me despertou dos meus questionamentos:
- A primeira vez que soube que a minha irmã tem uma noiva foi quando você saiu daquele elevador. Eu não sabia mesmo, muito menos que ainda... por cima...gosta de poemas. Acredite em mim, eu não te farei nenhum mal.
Senti-me culpada pela desconfiança. Estou entrando na pilha da minha noiva sem perceber. Não posso estar tão enganada como ela diz.
- Eu... eu não... desculpe-me, Mili - pedi sem graça
Soltando as nossas mãos, vi Emília sair de perto de mim e se acomodar no seu lugar. Tentei tornar o clima mais leve continuando no papo, mas no tom de conversa:
- Então eu, você e Lia temos algo em comum: adoramos poemas e Florbela tem um lugar especial em nossos corações.
Emília deixou o seu olhar vago tomar conta de si e em silêncio recomeçamos o nosso desjejum. Servi-me apenas do pão após comer o que estava no prato. É delicioso, não canso de me surpreender a cada mordida. Não pode vir nada de errado de uma pessoa tão... encantadora.
- Estou pensando em dar uma volta pelo quarteirão - fiz novamente a tentativa de quebrar o clima estranho que se formou. - Agnes disse que seria bom eu começar a caminhar.
- É uma ótima ideia. Eu preciso passar no mercado, podemos dar uma volta e depois fazer a compra.
Meu alívio veio da naturalidade com que ela disse. Não gosto de ser tratada como uma doente como Amélia faz. Emília quer me acompanhar, apenas isso.
[...]
Nunca pensei que ver alguém cozinhando fosse se tornar um dos meus passatempos prediletos. Na verdade, é a primeira vez que tenho essa oportunidade, mas se depender de mim, posso ficar na cozinha vendo a Emília fazer o almoço todos os dias aqui desse banco alto no canto da bancada.
Tivemos uma manhã agradável. Com ela ao meu lado, me senti segura e confiante. Seu incentivo me fez ir à pequena praça de esquina em uma distância considerável de casa.
Sentadas em um banco azul, aproveitamos a sombra para descansar da caminhada. Mili começou a discorrer sobre a falta que uma praça perto de casa na infância fez falta. Olhando a placa de longe, vimos que a inauguração foi há sete anos. É incrível como qualquer assunto que sai da boca dela me chama a atenção. Seus olhos brilham com vida, a alegria em cada gesto é encantadora. As palavras que passam pelos seus lábios me fazem querer mais e mais conversas.
Antes de voltar a caminhar, a irmã da minha noiva comprou duas garrafas de água e não pude deixar de reparar que o pagamento foi feito com dinheiro. Logo dissipei o pensamento confuso porque dinheiro para comprar água é diferente do que para se sustentar. Mas voltei a ficar intrigada quando, no caixa do supermercado, o pagamento da compra foi feito com um cartão de débito. A cozinheira escolheu produtos de excelente qualidade e não ficou nada barato.
Ignorei mais uma vez o meu pensamento mesquinho. Pode ter sobrado algum dinheiro e ela se sinta na obrigação de ajudar de alguma forma como um agradecimento à hospedagem.
- Mili, depois que você saiu de casa, por onde andou?
De forma tranquila, Emília tirou os seus olhos do alimento para me encarar por alguns segundos, mas logo voltou sua concentração à panela.
- Eu fui à rodoviária, parei em um guichê qualquer e pedi uma passagem para Americana. Eu sabia que em uma semana teria um festival de música nessa cidade, uma.... amiga... dias antes me falou tanto sobre que imaginei que a encontraria. Acabou que não a encontrei por lá, mas mesmo assim foi divertido.
- Nossa, eu sou de Campinas, bem pertinho! Realmente, pelo menos uma vez por ano tinha ou tem um festival de música por lá. Ia muito na minha juventude, até que me mudei para São Paulo.
Bastante concentrada na panela, ela apenas deu mais uma olhada para mim e assentiu como uma demonstração de quem me escutava.
- E depois? - Torci para ela continuar falando.
- Depois que tirei meus documentos tudo de novo, pois esqueci quase tudo aqui, andei pelo país, percorri as capitais e outras cidades importantes. Logo o Brasil ficou pequeno para mim, precisava me afastar de tudo que me recordava a minha família, foi então que conheci quase toda a América do Sul durante quatro anos. Gostei tanto dessa vida nômade que embarquei para o continente europeu e fiquei lá por cinco anos.
- E então vieram outras partes da América, Ásia, Oceania e África? Você passou esse tempo todo viajando? Não é à toa que o seu dinheiro tenha acabado, até que durou.
Emília deu uma risada curta e voltou a sua atenção para a comida. Acompanhei os seus gestos comandando as panelas. O aroma de sua comida é tão boa.
- Visitei sim esses lugares, mas somente por alguns dias. Prova! - ordenou ao estender uma colher com a sua mão direta na direção da minha boca.
- Mili, eu não vou comer jiló, não adianta.
- Você parece criança, que paladar infantil. Eu te juro que não está amargo. Experimenta!
Balancei a cabeça em negação quando mais uma vez quando a colher foi colocada na direção da minha boca.
Aproveitando-se do seu tamanho, Emília chegou bem próxima de mim, ficou de frente e me encurralou ao colocar sua mão esquerda na bancada.
- Experimenta, vai... por mim.
O seu perfume entrou pelo meu nariz misturando-se ao aroma da comida. Hipnotizada por seus olhos, seu cheiro, sua voz, a energia que em de seu corpo tão próximo, abri a minha boca e o legume sempre detestado por mim foi colocado dentro.
Esperei o sabor horrível que não veio.
Mais uma vez o seu rosto cheio de expectativa espera por algum feedback. Pergunto-me se ela sempre faz isso quando cozinha para alguém.
- Eu não acredito que quero mais uma colher de jiló.
Não é o caso, mas eu posso jurar que comeria um jiló horrível apenas para ter sempre esse sorriso largo, cativante, encantador, provocante e enigmático.
- Olá?
A ausência do perfume da Emília foi rápido. Seu corpo foi parar ao meu lado, meus olhos buscaram a voz que tirou o sorriso que começava a brotar no meu rosto.
- Lu!
Saudei a minha amiga parada na porta.
- Atrapalho? - Perguntou andando até nós.
- Nunca, meu bem.
Luciana me abraçou cheia de saudade. Deve fazer quase dois meses que não nos vemos, só nos falamos por mensagens todo dia. Pudera, ela está trabalhando por duas, nem tenho o direito de reclamar.
- Aposto que a Lia te pediu para vir. Acertei? - Perguntei assim que nos separamos.
- Não brigue com a sua noiva, é apenas preocupação e cuidado - respondeu mostrando a chave dela em suas mãos.
- Não queria te dar trabalho, você deve ter deixado coisas para fazer. Desculpe-me por isso.
- Deixa de bobagem. Eu viria de qualquer jeito, estou com tanta saudade. É tão bom te ver em casa. Você me parece tão bem. Está corada, feliz.
- Ficar naquele hospital estava me matando - comentei antes de olhar para minha cunhada que havia se afastado. - Deixe-me te apresentar a...
- Olá, Maria Emília. Quanto tempo! 18 anos, se me lembro bem.
Olhei para as duas e logo caiu a minha ficha: é óbvio que elas se conhecem.
- O tempo só te fez bem, Luciana. Se eu soubesse que você ficaria tão gata assim, teria esperado você tirar o aparelho dos dentes para te dar a chance que me pedia.
O sorriso que eu gosto foi transformado em sacana. Lu ficou vermelha na hora, sem graça. Eu apenas me limitei a pensar que a Emília brincalhona entrou em ação.
- Você não mudou nada, Emília. A mesma cafajeste galanteadora barata - disse Luciana se recuperando.
A cozinheira se aproximou da minha amiga e sócia, beijou o seu rosto e disse baixo em seu ouvido, mas que eu consegui escutar:
" - Cafajeste que você sempre gostou."
Uma tosse ridícula tomou conta de mim. Um susto? Uma surpresa? Informação desnecessária?
- Vivian, está tudo bem?
Mili imediatamente se preocupou comigo, seus os olhos e toques carinhosos voltaram.
- Tudo... certo... eu só me engasguei, não se preocupe.
- Não está cheirando queimado? - Luciana perguntou fazendo careta.
- Caramba, o meu molho - Desesperou-se Maria Emília.
A cozinheira voltou para o fogão, constatou que o molho para acompanhar os legumes realmente tinha queimado e começou a fazer outro.
- Por que nunca me disse que a Lia tinha uma irmã, Lu?
Essa pergunta estava engasgada na minha garganta desde a hora em que caiu a minha ficha: Luciana sendo amiga de anos da minha noiva, muito mais tempo do que de minha, conhecia a Emília.
- Porque prometi para a Lia que jamais te contaria. Ela dava a Emília como morta, então nunca pensei que ela voltaria e resolvi acatar o seu pedido para esquecer essa história. Nem adianta me perguntar sobre a briga delas, não acompanhei direito e só fiquei muito amiga da Amélia depois da partida da Emília.
Encarei a minha amiga, ela se sente culpada e me olha com esperança de que eu acredite em suas palavras. Quando pensei em dizer algo, ouvi a cozinheira falar:
- Luciana está falando a verdade, ela não acompanhou tanto a nossa briga. Éramos sim vizinhas e ela conversava bastante com a Amélia, mas nada tão próximo.
- Então vocês duas não namoraram? - Perguntei para a minha cunhada.
- Claro que não, Vivian. A Luciana era mais nova e só teve uma dessas paixonites adolescentes que se encantam por alguém que não dá bola. Por incrível que pareça esse alguém era eu, foi por isso que brinquei como também brincava na época só para vê-la vermelha.
Quando escutei a palavra "brinquei", o meu peito pressionado até aliviou. Eu já estava imaginando mil coisas da Emília pelo seu tom usado e com as palavras duras das quais a minha amiga se referiu a ela. "Cafajeste".
- Qualquer uma se apaixonaria por ela, Vivi - Luciana começou a dizer - inclusive você.
Senti as minhas bochechas queimarem, mas preferi responder a primeira coisa que veio na minha cabeça:
- Eu? Jamais, amiga. Você conhece muito bem a minha história de amor com a Lia, dos tantos anos para que vivêssemos o nosso romance, sou completamente apaixonada por ela.
- Eu sei, amiga. Você e a Maria Amélia formam um casal perfeito. Eu só queria tentar me defender.
Olhei para todos os cantos da cozinha. Algo me incomoda nas minhas palavras pronunciadas anteriormente, mas não consigo raciocinar o que é.
- E vocês? Se conheceram através da minha irmã?
- Não, mas eu apresentei as duas - foi Luciana quem respondeu rindo. - Eu conheci a Vivian na faculdade, cursamos direito juntas, mas ela seguiu a carreira de delegada e eu de advocacia. Não éramos tão amigas, mas passei a frequentar a Polícia Federal por causa de alguns clientes e nos esbarramos por lá até criarmos uma verdadeira amizade. Dessa amizade nasceu um sonho que uma vez, sem expectativa nenhuma, discutimos em uma aula...
Luciana brilhou os seus olhos verdes para o meu lado e bagunçou o cabelo longo preto. Completei sua resposta:
- E hoje nós somos sócias de uma empresa que ministra cursos de empreendedorismo para mulheres que sofreram violência doméstica e ainda promovemos palestras para divulgar projetos que podem mudar a vida dessas empreendedoras. Foi a Lu que deu a ideia quando descobri a doença no coração e tive que ser parcialmente afastada da PF.
- Me parece fascinante essa sociedade. Vamos almoçar enquanto vocês me falam mais dessa amizade e esse projeto interessante sobre empreendedorismo feminino.
Com o anúncio do almoço, voltei a me animar. Eu e a Luciana nos sentamos lado a lado enquanto a Emília colocava as travessas na nossa frente. Peito de frango grelhado apanhado de um refogado de legumes como cenoura, brócolis, jiló e os cogumelos Portobello.
Luciana, assim como fiz desde que comi a comida da Mili pela primeira vez, não poupou elogios. Tive que concordar com a minha amiga quando disse não devia nada para a comida de muitos restaurantes que frequentamos.
Fiquei na dúvida se revelo que Emília é cozinheira. Pensei melhor decidindo por fim que isso é um assunto dela, não sou eu quem devo contar nada do que a minha cunhada me revelar. Isso também serve para a Lia. Todas as minhas conversas devem ficar entre mim e a irmã da minha noiva.
O almoço foi agradável. Luciana se aprofundou na nossa sociedade, eu só fiquei admirada com o interesse da Emília sobre o assunto, bem diferente da Amélia que só me pergunta mesmo sobre meu trabalho na polícia.
Para a minha surpresa, elas se deram muito bem. Não me deixei dominar pela dúvida do quanto a minha amiga realmente sabe sobre a briga. Até mesmo deixei a lado o fato de ela me esconder sobre a sua existência. Amélia sabe ser persuasiva quando quer.
Depois de ajudar a Emília com a louça, Luciana anunciou que está de saída.
- ... eu só aproveitei o horário de almoço para saber como você estava.
- Você bem que podia me mandar alguma coisa leve do trabalho, né?! Eu tenho todo o tempo livre e não quero enferrujar.
Com a promessa de que vai separar alguma para que eu possa fazer de casa, Luciana Mendes se despediu da antiga paixão e em seguida a acompanhei até a porta.
- Cuidado, amiga - disse enquanto eu abria a porta.
- Com o quê? - Indaguei confusa.
- Para não confundir os sentimentos. Elas só são parecidas por fora.
Sem esperar pela minha fala, Luciana deixou um beijo na minha bochecha e partiu.
Fechei a porta pensando em suas palavras. Como eu vou confundi-las? Minha amiga e sócia tem razão: elas são diferentes por dentro.
[...]
Mais uma vez estou enfurnada dentro da cozinha enquanto minha cunhada prepara uma sopa simples de abóbora para o jantar. Fico com água na boca só de pensar que ela liberou uma fatia do pão para ser mergulhado.
- Mili, sobre aquilo que falou de manhã, você pode sim preparar a sua comida separada, viu? Não é justo que você se restrinja por minha causa. Eu não vou ficar com vontade.
- Que bobagem, Vivi. Eu preparo tudo como eu gostaria de comer se estivesse no seu lugar. Meu objetivo é sempre trazer alegria ao seu cardápio. Para que isso aconteça, eu também devo apreciar a comida, do contrário não teria sentido servir para você algo que eu não comeria.
A agradeci sorrindo. É tão gostosa a sua relação com a comida.
- Você sossegou em algum lugar ou viajou até acabar o seu dinheiro?
- Morei os últimos anos em Buenos Aires.
Tão perto do Brasil. Mais e mais mistérios. Procurei perguntas não invasivas, mas meu raciocínio foi interrompido com o barulho na fechadura da porta de entrada anunciando a chegada da minha noiva.
- Boa noite, meu amor.
Virei-me na direção da entrada da cozinha e antes de poder ver Amélia, um grande buquê de rosas vermelhas ocupava totalmente a minha visão.
- Boa noite, minha vida.
Peguei o presente e cheirei as rosas. Ela sabe que gosto de flores, por isso sempre me surpreende com elas sem ter data especial, principalmente se discutimos como nesta manhã.
- Boa noite, Lia - ouvi Emília cumprimentá-la.
Ignorando a irmã, a minha noiva tomou os meus lábios para si e me beijou com entusiasmo que faltou nos últimos dias.
- Bem, a sopa está pronta. Eu vou até o meu quarto e comerei mais tarde se sentir fome. Espero que gostem.
A cozinheira saiu da cozinha em um piscar de olhos.
- Eu senti tanto a sua falta hoje. Acho que me acostumei a passar mais tempo com você - Lia comentou se agarrando mais a mim.
- Então vamos jantar, assim você aproveita e me conta como foi a seu dia. Eu me canso só de pensar na correria.
- Tudo bem, vou pedir minha comida pelo aplicativo. Depois que chegar, você esquenta a sua sopa feita para as suas limitações e jantamos.
A alegria que senti o dia inteiro foi se dissipando. Desacostumei-me mal a ser tratada como uma pessoa sem um problema grave no coração.
- Gostou das flores? - Amélia me perguntou enquanto se afastava olhando para o celular.
- Eu adorei, Emília. São lindas.
Cheirei as rosas mais uma vez para demostrar o quanto apreciei o seu gesto. Porém, quando olhei para o seu rosto, vi apenas raiva.
- Emília? Você me chamou de Emília?
Besteira. Eu cometi uma falha sem perceber. Busquei a sua mão para me explicar, mas ganhei o seu afastamento.
- Desculpe-me, amor. Entenda que vocês são iguais, eu acabei de confundido...
- Eu e a Maria Emília somos completamente diferentes!
- Eu quis dizer na aparência, Lia - tentei acalmá-la.
- Não tente justificar o que é injustificável, Vivian. Se você disse o nome dela, é porque estava pensando nela. Aproveite a sua sopa, acabou a minha fome. Quem sabe eu não devo chamar aquela inútil no quarto para você ter a companhia que no fundo deseja?
Não respondi, nem ela esperou mais explicação. O que eu posso fazer se elas são iguais? Pelo menos na aparência.
Fim do capítulo
Por essa semana é isso. Volto semana que vem. É aquele esquema 1 ou 2 capítulos por semana :).
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HelOliveira
Em: 17/11/2025
Adorando a história esse mistério sobre o que aconteceu entre as irmãs, posso estar enganada mais já sou time Maria Emília....
Vivi é o amor do passado da Emília? Tem mais um mistério aí, pq a moça não apareceu no encontro...
Ansiosa pelos próximos capítulos
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