Capítulo 6 — Conselho de Guerra
Capítulo 6 — Conselho de Guerra
“Droga, droga, droga!”
“Onde eu estava com a cabeça para ter deixado essa venda passar?”
“Desde quando não presto mais atenção ao que estou fazendo?”
Isabela estava sentada a cabeceira da sala de reuniões da Agritec, praguejava baixinho olhando para o rombo de mais de 300 mil no balancete mensal. Pegou o telefone.
— Aline, peça para Carlos vir à sala de reuniões.
Desligou.
Não teve que esperar nem 5 minutos para que Carlos surgisse esbaforido pela porta.
— Me chamou, senhrita Mendes? — perguntou assim que conseguiu respirar.
Seu rosto estava lívido, provavelmente já imaginava o motivo de sua presença ali. Isabela pediu que ele sentasse.
— Acredito que já tens o balancete atualizado em mãos. E deves ter notado que, segundo ele, o Vasconcelos agora tem mais de 300 mil motivos para me encher a paciência — disse Isabela calmamente.
Carlos, incapaz de dizer qualquer coisa, apenas assentiu. Isabela respirou fundo.
— Eu disse que essa negociação só poderia ocorrer depois que todas as verificações sobre a empresa interessada fossem concluídas, lembro que te deixei responsável por isso. Então, quero saber, por quê ela aconteceu, quem realizou e principalmente por quê não passou pelas minhas mãos?
— Senhorita Mendes...
— Pelo amor de Deus, Carlos, já passamos dessa fase a muito tempo, estamos a sós e somos amigos.
Isabela interrompeu ríspida.
— Eu sei Bela, mas ainda és minha chefe!
— Tá, tá, só quero saber que merd* que aconteceu?
— Eu não sei Bela, o seu Lorenzo disse que tu havias aprovado, por isso liberei a venda!
— Porr*, Carlos! Desde quando confias na palavra do meu tio? Mais do quê ninguém sabes que ele trabalha incansavelmente para me derrubar.
— Eu sei, eu sei. Eu posso ter deixado passar porque estava um pouquinho ocupado quando ele me procurou.
Carlos coçou a cabeça desconfortável e Isabela entendeu.
— PQP! Quem é periguete da vez?
— Hey, a Alessandra não é nenhuma periguete! Tô apaixonado, Bela!
Isabela caiu na gargalhada.
— Apaixonado? É uma piada, né? E eu que pensei que a Alessandra fosse mais seletiva!
— Hey, também não esculacha!
Carlos protestou.
— A Agritec inteira sabe que tu és o maior galinha!
— Olha quem fala!
— A diferença, meu caro, é que eu, sei ser discreta!
Isabela piscou sorrindo de lado.
Carlos se remexeu na cadeira, tentando recuperar a compostura. Isabela, ainda com o balancete em mãos, olhava para ele como quem tentava decifrar se o amigo era cúmplice ou apenas um idiota apaixonado.
— Tá, vamos por partes — disse ela, mais séria. — Lorenzo te procurou, disse que eu havia aprovado a venda, e tu simplesmente acreditastes?
— Eu sei que parece absurdo agora, mas ele apareceu com os papéis, tudo preenchido, com tua assinatura digital. Achei que tu só não tinha me avisado.
— Onde ele conseguiu minha assinatura digitalizada? — Isabela arregalou os olhos. — Tu achastes normal uma assinatura digitalizada num contrato de venda de alto valor?
Carlos encolheu os ombros.
— Eu tava com a cabeça em outro lugar, Bela. Achei que era só burocracia.
— Burocracia é o que vai te enterrar se o Vasconcelos resolver abrir uma auditoria. E eu junto!
Ela se levantou, começou a andar pela sala como uma fera enjaulada. Carlos sabia que o pior ainda estava por vir.
— E o comprador? Quem é?
— Uma empresa chamada AgroNorte. Pequena, aberta a não mais que 5 anos. Não tem histórico de dividas, mas também nem tem um site decente. Só um CNPJ e uma promessa de pagamento.
— Promessa? — Isabela parou de andar. — E você me diz que vendemos soja no valor de 380 mil reais com base numa promessa? A regra da Agritec sempre foi, primeira compra igual a PAGAMENTO A VISTA!
Carlos engoliu em seco.
— Eles deram uma entrada de 80 mil. O resto seria pago em 30 dias.
Isabela riu, mas foi um riso seco, sem humor.
— Carlos, assinastes a sentença da Agritec. Lorenzo armou isso direitinho. E tu caíste como um pato.
— Eu sinto muito, Bela, é tudo culpa minha.
— Olha só, estou aqui te culpando, mas a verdade é que a CEO sou eu e por causa dos problemas com a Cooperativa eu deixei a desejar também, não fiz uma análise sequer nas últimas semanas.
— Estávamos distraídos e Lorenzo usou isso a favor dele. — Carlos completou e Isabela assentiu.
— Eu vou ter que reverter isso. Cancelar a venda, acionar o jurídico, dar baixa como prejuízo, o problema é que um rombo desse tamanho pode deixar a Agritec em maus lençóis. Enfim, de todo jeito farei o que puder, talvez até envolver a imprensa se for preciso. Mas antes...
Ela se aproximou de Carlos, olhos fixos nos dele.
— Vais me ajudar a descobrir quem está por trás dessa tal AgroNorte. Quero nome, endereço, histórico, até o CPF do porteiro se tiver. E se tiver qualquer ligação com o Lorenzo, eu juro que ele vai se arrepender de ter nascido.
Carlos assentiu, já sacando o celular do bolso.
— Vou começar agora.
Isabela voltou à cabeceira da mesa, pegou uma caneta e começou a rabiscar no balancete como se traçasse um plano de guerra.
— Conselho de guerra, Carlos. E acabastes de ser promovido a espião.
***
Quase um mês havia se passado e as investigações continuavam. A luz do fim da tarde atravessava os vidros espelhados da sede da Agritec, tingindo a sala de reuniões com tons dourados e sombras longas. Isabela estava sentada à cabeceira da mesa, com os braços cruzados e o semblante firme. À sua frente, Heitor e alguns assessores folheavam o relatório do projeto piloto da Cooperativa e o relatório da área de plantio acelerado da Agritec com expressão carregada.
— Isso aqui é um risco — disse ele, batendo levemente na tabela de custos com a compra de insumos. — A área de plantio acelerado está consumindo mais do que o previsto. E não temos garantias de retorno.
— Já discutimos isso, Heitor. O retorno não é imediato, mas é escalável — respondeu Isabela, sem alterar o tom.
— E quanto a Cooperativa, houve muitos gastos com manutenção, peças e mais peças, não me parece que eles estejam dando conta do trabalho. E também não entendo porque a Agritec tem arcado com essas despesas? Não somos uma empresa de filantropia, minha querida prima.
— A Agritec está arcando com as despesas de manutenção da Cooperativa porque faz parte do negócio e é estratégico para que a produção não pare.
— Estratégico pra quem? Porque pra mim, isso parece mais uma jogada emocional do que uma decisão empresarial.
Isabela se inclinou para frente, os olhos fixos nos dele.
— Você está insinuando que estou misturando sentimentos com gestão?
— Estou dizendo que desde que essa engenheira apareceu, você tem tomado decisões que não condizem com seu histórico. Você sempre foi racional. Precisa voltar a ser.
O silêncio na sala ficou denso. Os assessores se entreolharam, desconfortáveis.
— A racionalidade que você defende é a mesma que nos fez perder oportunidades por medo de inovar — disse Isabela, com voz baixa, mas cortante. — E se você acha que apoiar um projeto sustentável, com impacto social real, é fraqueza... talvez esteja na empresa errada. Além disso, preocupe-se com o setor de Compras, afinal é o seu cargo aqui na Agritec.
Heitor se levantou, jogando o relatório sobre a mesa.
— Posso ser apenas o diretor de Compras, mas estou aqui pra proteger o capital da Agritec, que não pertence só a você e sim a nossa família. E esse projeto, do jeito que está, ameaça nossa margem. Se continuar assim, vou levar isso ao conselho.
Isabela também se levantou, sem pressa.
— Leve. Mas saiba que se esse projeto falhar, não será por falta de visão. Será por sabotagem interna.
Heitor a encarou por um segundo, depois saiu da sala sem dizer mais nada.
— A reunião está terminada. — Ela dissera aos demais.
Isabela ficou ali, sozinha, olhando para os papéis sobre a mesa. Sentia o peso da responsabilidade, mas também a certeza de que não podia recuar.
“Se eu desistir agora, tudo o que construí vira número. E eu não sou feita só de números.”
A reunião com o conselho se aproximava e havia uma possibilidade de Isabela ser afastada da presidência. Sequer teve tempo de voltar a Cooperativa ou acompanhar o trabalho de Fernanda na Agritec. Como haviam contratado ela vinha duas vezes na semana e pelo que Helena informara, o trabalho estava fluindo muito bem.
A verdade é que apesar dos problemas na Agritec, Isabela sentia falta da engenheira. Perguntou a Aline se Fernanda estava na empresa e decidiu vê-la.
Ao chegar ao galpão de produção hidropônica — o setor que ela insistira em manter, apesar das objeções do conselho — parou em frente ao vidro fosco que revelava a linha de cultivo suspensa. Alfaces cresciam em canais plásticos, verdes e sem manchas. Bonitos demais. Quase estéreis.
Fernanda estava lá, atenta ao que fazia. Vestia calça cargo, camisa jeans e uma prancheta nas mãos. Os cabelos loiros insistindo cobrir seus olhos, enquanto suas mãos lutavam para deixá-los atrás da orelha. “Linda”, pensou Isabela. Sorriu para si mesma com o pensamento.
Concentrada, Fernanda não viu a aproximação de Isabela.
— Parece que realmente sabe o que está fazendo, afinal. — Isabela disparou, a voz provocativa.
Fernanda assustou-se com a voz rouca tão próxima, sentiu a aproximação de Isabela ás suas costas e os pelinhos de sua nuca se arrepiaram. Conteve-se. Continuou a revirar os papéis na prancheta com calma, mas dentro do peito o coração corria feito trator.
— Que bom que percebestes e concordo, sei mesmo o que estou fazendo. E não estou sozinha nisso, mesmo que você finja estar.
Isabela silenciou, mordendo o lábio. Algo na resposta a tocara mais do que gostaria. Gostava de provocar Fernanda, no entanto, não gostava de como a engenheira a desarmava com tanta facilidade e de como acabava se expondo demais.
— Você não faz ideia do que é carregar o nome de quem destruiu metade dos sonhos das pessoas dessa região. Afinal os Mendes tomaram cada centímetro de terra que puderam.
— E você quer que eu sinta pena? A verdade é que você não faz ideia do que é reconstruir sua vida depois de ela quase ser arrancada com sangue.
Isabela piscou, o rosto contido, como se quisesse dizer algo mais. Mas virou as costas, deixando apenas o cheiro do perfume marcante que usava como resposta.
Fernanda encarou o caminho pelo qual Isabela desaparecera. O barulho das engrenagens do sistema de irrigação se propagava como um lembrete suave: algo novo e inesperado sempre precisa de paciência para lidar.
“Que droga, Fernanda, também não precisava agir como se tivesse todas as respostas do mundo”. Pensou suspirando e voltou ao trabalho.
Fim do capítulo
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