Esse capítulo tem conteúdo delicado, sobre violências e cicatrizes mas também sobre recomeços.
(Nele, também temos alguns palavrões)
A leitura não é recomendada em caso de sensibilidade ao tema.
Recomeçar
PV Clara
Acordo assustada, tentando recobrar a consciência enquanto ouço gritos e quando consigo focar a visão na cena que se desenrola em minhas costas, vejo Julia ser arrastada da cama pelos braços enquanto se debate e quem a arrasta é nada mais, nada menos que Flora, minha ex-esposa.
- Você tá louca, car*lho? O que tá acontecendo Clara? - Julia vocifera enquanto se debate e sai das garras da mais velha e me encara.
- Clara, levanta - vejo a morena de olhos âmbar sendo solta no chão e em questão se segundos, Flora volta a segurá-la pelo braço com violência - você tá pensando que eu sou otário*ia? O que pensa que tá fazendo?
Não consigo me pronunciar a princípio, não a tempo de impedir que Clara, que é da mesma altura que a mulher loira que a segura, vira a mão livre com toda a força, disparando um tapa muito bem dado na face da outra mulher que mesmo assim não a solta.
- Eu mandei me soltar, por*a - se dirige à mim agora, me olhando enfurecida, vejo em seus olhos a raiva e a confusão numa briga - não vai falar nada, Clara?
- Flora, o que VOCÊ - me levanto rápido agora, me colocando entre as duas, com uma mão espalmada no colo da mulher - pensa que está fazendo? Quem te autorizou entrar aqui?
- Essa casa também é minha, Ana Clara! De uma vez por todas - percebo que ela observa Julia se vestir rapidamente com o que encontra pela frente, por cima de meu ombro - entende que ainda estamos casadas - segura meu braço com força, me olhando com o mesmo olhar perverso que me encarou durante o último ano do nosso relacionamento - e você é minha!
- Me solta, Flora, você está me machucando.
Sem pronunciar uma palavra, Julia passa por cima da cama, resgata sua mochila ao lado da poltrona de leitura em meu quarto e passa pela porta descalça, usando seu moletom e sai do quarto às pressas.
Não tenho tempo de agir, vejo Bruno e Gustavo entrarem no quarto e partirem pra cima de Flora, pra separá-la de mim e uma discussão acalorada se inicia novamente. Há meses que não a vejo, há quase dois anos nos separamos definitivamente depois que fui agredida por ela a ponto de parar no hospital.
Eu simplesmente travo no tempo, não consigo fazer nada, até que Bruno me abraça pelos ombros e se tranca no banheiro do meu quarto comigo, que não choro, não consigo fazer nada. Só estou em pânico, com medo, com os olhos arregalados e sinto meu coração batendo por todo meu corpo.
- Baby - meu amigo segura meu rosto com as duas mãos, me forçando a focar em seu rosto - fica tranquila, eu estou aqui! Nada vai te acontecer mais! Eu estou aqui.
Ele me abraça e ficamos ali em silêncio, sendo que nem retribuir o abraço eu consigo, sinto todo meu corpo tenso. Não sei quanto tempo ficamos ali, mas em algum momento ele se levanta do chão e abre a porta pra Gustavo, que se abaixa e me pega no colo, me levando pra cama de Bruno, onde os dois deitam comigo, me deixando no meio da cama e colocam algum filme de mulheres loiras pra passar, enquanto me observam de soslaio e fazem comentários do filme.
No meio do filme, sinto minha alma voltando pro lugar e desabo num choro imparável, com soluços e desespero, meu corpo inteiro treme agora e simplesmente não consigo controlá-lo. Os dois me abraçam confortavelmente, Bruno me abriga em seu peito e me agarro a ele, sentindo o cheiro de casa, roupa limpa e sabonete que ele tem.
Ficamos assim até que me acalmo e sorrio com algum comentário do Gustavo sobre como as "jaburacas” ficam mais e mais feias com o tempo.
- Amor, não seria jararacas?
- Isso, vocês entenderam - se justifica, nos fazendo rir um pouco e sinto meu peito ficando mais leve, meu corpo parando de tremer.
Dali em diante, só me levanto pra tomar um banho de banheira que prepararam pra mim, não consigo comer nada além de algumas (poucas) frutas cortadas que me trazem e naquela noite durmo ali com eles.
No outro dia, acordo já de tarde, e Bruno está sentado na cama ao meu lado, lendo alguma coisa em seu kindle quando me percebe despertar.
- Bom dia, vida.
- Bom dia, amigo - me sento ao seu lado e ele me abraça de lado, deixando um beijo no topo da minha cabeça - que horas são?
- Daqui meia hora, acaba a massagem de Gustavo e chega a hora da sua - nos olhamos rapidamente - vai tomar um banho e se preparar, ela estará te esperando lá na sala de TV… não se preocupa, estarei lá.
Me levanto sem falar muito, tomo um banho e coloco só um roupão e uma calcinha, em seguida desço as escadas e encontro Gustavo deitado em uma maca de massagem instalada no centro da sala, enquanto na TV passa algum desenho estranho que ele gosta mas sei que não assiste, porque faz a massagista dar risada de alguma coisa e Bruno a acompanha sentado no sofá.
Os meninos agem em silêncio comigo, simplesmente cuidam de mim e fazem coisas que talvez eu precise mesmo, como um chá quentinho antes da massagem, e a massagem por si só, sei que tudo isso me faz bem mas o que mais vale, é a presença, cuidado e proteção que só eles podem me oferecer.
- Ana - Gustavo inicia a conversa enquanto está colocando o roupão dele - o Renato mandou te falar que chegaram bem em casa…
- A Julia está bem?
De lembrar dela, da cena que ela teve que presenciar fico um pouco tensa e a massagista, que se chama Laura, nota.
- Chega de conversa - informa e sei que olha pros meninos - senão vou acabar machucando seus músculos que já estão tensos como de cavalo!
- Olha, de músculo eu não sei mas de cavalgada, minha amiga entende - Gustavo solta e todos nós rimos um pouco. Ninguém desmente.
Os dias passam sem que eu possa sair de casa. Até que no sexto dia que fico da cama, pro escritório, pra cozinha, pra sala, uma intervenção chega até mim.
Bruno entra em meu quarto com Gustavo e eles me puxam pelos pés e pelos braços, me carregando enquanto faço birra, até o banheiro e me colocam de roupa e tudo na banheira vazia.
- Ou você levanta, toma um banho e faz a terapia que marcamos pra hoje, volta a viver, ou vamos fazer isso todos os dias até que decida fazer por si só - Bruno fala e liga a torneira da banheira, me molhando.
- Calma, calma - me ergo levantando as mãos - eu vou por bem! Prometo - encaro os dois - não precisam me dar banho de novo, guardem suas mãos pra ensaboar um ao outro.
- Estaremos aqui fora te esperando, sua terapia é em 20 minutos.
Tomo banho e saio do banheiro de toalha, com os dois me encarando compassivos.
- Eu não sei o que seria de mim sem vocês - me sento entre os dois, que me abraçam pelos ombros.
- E não precisa descobrir como seria, vida - Bruninho responde - agora vai se arrumar porque faltam 10 minutos.
E eu realmente faço a terapia, ali da cama mesmo, enquanto eles me deixam e fecham a porta do quarto. E essa sessão foi um acalanto, ao mesmo tempo que um chacoalhão.
- Estamos agendadas para segunda no mesmo horário - Rebeca me informa - e se lembre de fazer os exercícios que gosta, Ana! Não se esqueça que tem uma rede de apoio e até semana que vem!
É sexta-feira novamente e eu deveria comparecer à mais uma sessão de discussão do trabalho no cinema mas não poderei comparecer, já avisei a todes e desmarquei, sei que colocaram uma pessoa competente para essa roda de conversa e recebo meu advogado em casa às 15hrs em ponto.
Mais uma vez, tenho meus amigos segurando minhas mãos enquanto o advogado explica que Flora quebrou mais uma vez a ordem de restrição, invadindo minha casa e me colocando em perigo. Ele informa que recebeu fotos que os meninos mandaram de meu braço roxo e das marcas de unha dela em mim, que já abriu um boletim novo e entrou com um processo contra ela no mesmo dia. E comenta que nunca teve um resultado tão rápido de processo como esse, que precisou mexer em muitos favores antigos pra que fosse dessa forma.
- Ela já foi recolhida, aliás - nós três arregalamos os olhos com a informação.
- Calma, o que isso significa, Ribeiro?
- Significa, Clara, que você pode ficar tranquila, está segura e em liberdade, mas a senhora Flora já está presa preventivamente e dessa vez ela não terá a possibilidade de pagar fiança, porque já é a terceira medida contra ela e pelo que descobrimos, outra mulher e uma criança também já têm medidas contra ela.
Meus olhos se enchem de lágrimas e não as seguro nesse momento, o advogado segura minha mão, se agachando em minha frente e noto como ele é parecido com meu pai, mesmo que sejam só primos distantes e fossem melhores amigos.
- Seu pai estaria orgulhoso da mulher forte que criou, Clara! Eu farei de tudo que puder pra te proteger, e para que essa mulher cumpra perante a lei tudo o que te fez passar.
Os meninos o acompanham até a porta e eu fico em estado de euforia, do nada. Sinto meu ânimo voltar e finalmente, sinto que é possível voltar a viver normalmente, sem precisar me esconder ou tomar mil medidas pra viver fora de casa.
Pedimos pizza e ficamos a noite toda conversando, até dormirmos os 3 no sofá e fica decidido que amanhã, vamos até a casa de Julia e Renato juntos, porque devo desculpas aos dois, principalmente à mulher que me tira o ar só em pensamentos. Não sei o que seria de mim sem esses dois, eles já viram o melhor e o pior de mim e nunca, em hipótese alguma, desistiram de me ver de bem a melhor.
Fim do capítulo
Oi, amores! Desculpem a demora de alguns dias, estive na semana de entrega de seminários da faculdade e isso me deu uma desestabilizada, confesso que o inferno astral também mexeu um pouquinho - mentira, um tanto - comigo esses últimos dias mas passamos bem hahahahahah
Essa história inteira é pessoalmente inspirada em coisas que vivi ou são próximas à mim, que me afastaram até mesmo da escrita por muito tempo mas que se tornaram também o motivo de retomar essa paixão que é tão presente em minha vida.
Mas e aí, será que esse casal Clara e Julia dá certo?
A música desse episódio é "Recomeçar de Tim Bernardes", que adoro: https://www.youtube.com/watch?v=mfRj60-MpRU&list=RDmfRj60-MpRU&start_radio=1
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