Capitulo 1
O cheiro de cerveja barata, peixe frito e diesel impregnava o ar pesado do The Salty Siren, o bar mais ruidoso de Unalaska. Risadas roucas se misturavam ao tilintar de copos, e uma jukebox cansada rangia uma velha canção country ao fundo. Heather ergueu o copo de whisky on the rocks, deixando o gelo tilintar contra o vidro antes de engolir um gole generoso. O líquido âmbar queimou sua garganta como um abraço áspero, um lembrete de calor em meio ao frio cortante que se infiltrava pelas frestas das portas.
Ao seu lado, Xiao Wang gargalhava, os olhos semicerrados e o sorriso largo iluminando seu rosto, como sempre acontecia com o seu melhor amigo quando ele achava algo genuinamente engraçado. A piada vinha de Boris, o chefe do convés do Queen Seas, um homem de ombros largos e barba ruiva desgrenhada, onde parecia estar guardada a memória salgada de todas as tempestades do Mar de Bering. Boris era um dos tripulantes mais antigos do barco da família Collins. Ele trabalhou com o pai de Heather e agora trabalhava para ela.
Heather era capitã do barco de pesca da sua família desde os seus vinte e dois anos. Hoje com trinta anos, ela era a mais nova e única mulher da frota. Sua paixão pelo trabalho e talento para achar os caranguejos, fez com que sua fama se espalhasse pela ilha e atraísse olhares de admiração e inveja.
- E aí, capitã. - Disse Xiao, pousando o copo na mesa com um sorriso largo. Adivinha quem voltou para a nossa gelada ilha? - Apesar de trabalhar em um escritório na cidade, Xiao a chamava de capitã, assim como os seus tripulantes.
Heather ergueu uma sobrancelha, os olhos azuis semicerrados pela fumaça do cigarro de Boris.
- Se for mais um turista perdido, não estou interessada, Xiao. - Seu amigo sempre jogava turistas para cima dela.
- Não, sua cabeça dura. É a minha irmãzinha, Mei.
A mão de Heather parou a meio caminho do copo. Mei. O nome a atingiu com uma surpresa inesperada. Faziam oito anos desde que a garota de olhos escuros e sorriso doce embarcara naquele avião rumo a Califórnia. Elas eram bem próximas quando mais jovens. Apesar da pouca idade de Mei, Heather sempre a envolveu nas brincadeiras com Xiao. Era uma época divertida.
- Mei voltou? - Sua voz saiu mais rouca do que pretendia. - A pequena Mei?
Xiao assentiu, o rosto iluminado.
- A Mei tem vinte e dois anos agora. Ela chegou hoje cedo. Nossos pais estão radiantes. Parece que a garota se tornou uma engenheira daquelas.
Um turbilhão de imagens invadiu a mente de Heather. Não apenas a Mei criança correndo pelo quintal dos Wang, mas uma lembrança em particular, tão nítida que parecia ter acontecido na semana passada. Mei tinha nove anos de idade, ela e Xiao brincavam perto do cais enquanto o pai de Heather descarregava os caranguejos. Mei, sempre curiosa, se aproximou demais da borda. Um escorregão. A pequena garota soltou um grito, a mãozinha tentando se agarrar a um dos cabos. Heather, com dezessete anos na época, viu tudo. Lançou-se para a frente, ignorando o pai que gritava, e agarrou a Mei pelos ombros, puxando-a para a segurança. O medo no rosto da menina e a gratidão no olhar dos pais, que a agradeceram com tigelas de bolinhos de arroz feitos à mão. Uma pontada de orgulho e uma urgência protetora que Heather sentia sempre que a via.
- Engenheira. - Heather repetiu, um sorriso nostálgico curvando seus lábios. - O tempo voa.
- Você lembra como a Mei era esperta para a idade dela? Meus pais ficaram tão orgulhosos quando ela passou para fazer o ensino médio na califórnia. E depois ela passou para a Universidade de Stanford. - Xiao sempre teve orgulho da irmã. Ele e Heather cuidavam e protegiam a pequena Mei. Heather sempre soube que a ilha de Unalaska era limitada demais para uma mente como a de Mei.
A noite avançou com mais risadas e histórias de alto mar. Heather tentava focar na conversa, mas a notícia do retorno de Mei pairava em sua mente como a névoa densa que frequentemente encobria a ilha. Uma ponta de curiosidade, algo que ela não sentia há tempos, cutucava sua fachada de capitã durona. A caçula dos Wang sempre sonhou grande, como será que ela estava agora? Heather lembrava de ter ficado triste quando Mei, aos 14 anos foi estudar fora. Apesar da diferença de idade, elas eram amigas.
(---)
Mas tarde naquela noite, Heather se despediu de Xiao e da tripulação, a promessa de um café da manhã reforçado no dia seguinte pairando no ar. Xiao, não morava mais com os pais ao lado da casa de Heather. O amigo tinha casado com Jie e os dois aumentaram a família com o pequeno Hao, que fez quatro anos há algumas semanas. Mas o Senhor e senhora Wang ainda eram seus vizinhos. O casal, apesar de rígidos com a criação e estudo dos filhos, sempre a acolheram. Eles eram uma típica família chinesa de imigrantes. Diferente dela e do seu pai viúvo.
A brisa gelada da noite açoitou seu rosto enquanto ela caminhava pela rua mal iluminada em direção à sua casa. As luzes piscavam em algumas janelas, testemunhas silenciosas da vida noturna de Unalaska. Os poucos moradores da ilha movimentavam o ramo da pesca, o que fazia com que a cidade se destacasse como o principal centro pesqueiro dos EUA. Todos ali contribuíram para a economia da ilha, mas poucos eram os que se importavam com a vida alheia. Era uma cidade tranquila para se viver.
Uma voz áspera cortou o pensamento da capitã, familiar e indesejada como um resfriado em pleno inverno.
- Heather! Espere!
O estômago dela se revirou, os ombros instintivamente tensos. Connor MacLeod. O nome soou dentro dela como ferrugem rangendo. Ele avançava pela rua com aquele sorriso arrogante, o olhar predatório preso nela, como se tivesse todo o direito de atravessar seu espaço.
- O que você quer, Connor? - A voz de Heather era fria, sem qualquer resquício da camaradagem que um dia existira entre eles.
- Ora, só queria saber como minha capitã favorita está. - Ele se aproximou mais, o cheiro de álcool forte.
- Eu não sou sua capitã, Connor. E nunca fui. - Heather tentou desviar, mas ele bloqueou seu caminho.
- Qual é, Heather? Aqueles três meses foram bons. Podemos tentar de novo. -A mão dele tentou alcançar seu braço, mas ela se afastou bruscamente.
- Não, Connor. Já te disse mil vezes. Acabou, você sabe desde o início que era algo casual. Me deixe em paz. - Sua paciência, já escassa depois de uma noite de bar, estava se esgotando rapidamente. Connor era insistente e tinha mania de perseguição.
- Qual é o problema, Heather? Tá com medo de admitir que sente minha falta? - O tom dele se elevou, a agressividade latente sob a fachada de conquistador.
A discussão começou a atrair os poucos olhares curiosos de quem passava. Heather sentiu o rosto esquentar de raiva e constrangimento. Ela só queria ir para casa. Connor foi um arrependimento em sua vida. Até hoje ela não entendia porque tinha cedido as investidas constantes daquele brutamontes mau educado. Devia ser pela escassez de opções na pequena cidade. Já não bastava as provocações do capitão Connor durante as temporadas de pesca, agora ele tinha começado a lhe perseguir nos lugares que ela frequentava.
- Você não entende, Connor? Não sinto sua falta. Nunca senti. Agora, por favor, vá embora.
Connor se aproximou ainda mais, o hálito carregado de álcool roçando o rosto dela. Seus dedos se fecharam em torno do braço de Heather com força desnecessária, obrigando-a a encará-lo.
- Você vai se arrepender disso, Heather. - o tom era baixo, quase um rosnado. - Ninguém dispensa Connor MacLeod.
A vontade de Heather era de cravar o punho no queixo dele, mas se manteve rígida, como uma rocha prestes a enfrentar a maré.
Foi nesse instante tenso que uma voz interrompeu a discussão.
- Com licença. - A voz veio suave, mas firme, carregada de uma calma que desarmava.
Heather virou a cabeça, confusa. A primeira coisa que notou foi o timbre: doce, mas surpreendentemente seguro. Depois, a silhueta esguia contra a luz do porte.
- Heather, está tudo bem?
A jovem carregava algumas sacolas de compras, o aroma sutil de frutas frescas quebrando a atmosfera carregada de álcool e ameaça.
Os olhos escuros da jovem se fixaram em Connor, transmitindo uma segurança surpreendente.
- Parece que a Heather não está interessada na sua companhia. - A capitã não sabia da onde a jovem lhe conhecia, mas seu rosto era muito familiar.
Connor hesitou, avaliando a recém-chegada. A presença dela parecia tê-lo pego de surpresa. Ele lançou um olhar furioso para Heather, mas recuou um passo.
- Isso não é da sua conta, garota.
- Talvez não. - Respondeu a jovem, a voz mantendo a mesma firmeza. - Mas eu me preocupo com os meus vizinhos. - Ela se aproximou de Heather, colocando uma mão leve em seu braço. - Vamos, Heather. Já está tarde.
Heather, ainda atordoada pela intervenção inesperada, assentiu mecanicamente. Enquanto a jovem a guiava para longe de Connor, Heather lançou um olhar rápido por cima do ombro. O capitão do Killer Crab as observava partir, a raiva estampada no rosto.
Enquanto caminhavam lado a lado, o silêncio era preenchido apenas pelo som de seus passos na calçada gelada. Heather olhou para a jovem ao seu lado, tentando decifrar a familiaridade que pairava no ar, agora que a luz estava mais forte. Havia algo em seus olhos, na sua aparência que lhe lembrava Xiao.
- Obrigada. - Heather finalmente disse, a voz ainda um pouco trêmula.
A jovem sorriu levemente, um brilho suave nos olhos escuros.
- Não foi nada. - Ela hesitou por um instante antes de falar novamente. - Você não se lembra de mim, Heather?
Heather a observou com mais atenção agora, tentando encaixar aquele rosto adulto na memória da criança que conhecera. Os traços eram mais definidos, o corpo mais esguio, mas havia algo inegavelmente familiar no formato dos olhos, na doçura daquele olhar.
- Eu... eu não tenho certeza... - Heather admitiu, a confusão estampada em seu rosto.
- Sou eu, Heather. A Mei.
A ficha caiu como um raio. Mei. A irmã de Xiao. A vizinha que ela protegera quando criança. Aquela menina tímida havia se tornado essa mulher segura e gentil ao seu lado. Porque só alguém segura de si enfrentaria Connor como ela fez.
- Mei? - Heather exclamou, a incredulidade misturada com uma alegria repentina. - Meu Deus, Mei! Você... você cresceu tanto!
Mei riu, um som melodioso que Heather não ouvia há anos. Ela tinha esquecido de como gostava da risada da pequena Mei. Que agora, não tinha nada de pequena.
- Oito anos fazem diferença. - Mei arqueou um sorriso. - Você está ainda mais linda do que me lembrava.
Heather sentiu o sangue subir-lhe ao rosto, queimando como se o clima tivesse ficado subitamente quente demais. O coração acelerou no peito, uma vulnerabilidade desconfortável, inesperada. Ela, que enfrentava tempestades sem piscar, não sabia o que responder a um simples elogio.
Ela caminhou ao lado de Mei pelas últimas quadras antes das suas casas vizinhas, agora sob uma nova luz, Heather não conseguia parar de olhar para a mulher ao seu lado. Mei havia voltado. E de alguma forma, naquele encontro inesperado e na forma como ela a ajudara, Heather sentia que o seu retorno traria mais do que apenas lembranças da infância, talvez elas pudessem ser amigas de novo. Mei estava totalmente diferente, mais madura. Ela já era bonita na adolescência, mas agora, tinha se tornado uma mulher muito atraente.
- Você está ótima. - Heather finalmente disse e continuou sorrindo, um sorriso que raramente mostrava para qualquer um.
- É, acho que sim - Mei respondeu, o seu sorriso espelhando o de Heather. - E você, bem, continua corajosa e enfrentando qualquer um que entre no seu caminho?
O sorriso de Heather desapareceu, substituído por um rubor sutil. O olhar dela desviou-se para os pés, o queixo abaixado. A capitã do Queen Seas, que comandava homens e enfrentava as tempestades do Mar de Bering sem pestanejar, parecia uma adolescente pega no flagra.
- Não foi nada - Ela murmurou, mas a voz não tinha a mesma convicção de quando falava com Connor. - Ele é só... insistente.
Mei parou por um instante, a luz fraca da noite iluminava o seu rosto sério.
- Quem era ele? E por que te tratava daquele jeito?
Heather suspirou. Não havia como escapar da pergunta. Ela não era íntima de qualquer pessoa, mas a Mei, desde pequena, conseguia tudo que queria de Heather. E isso, aparentemente, não mudou.
- Connor. Capitão do Killer Crab. Já tivemos um... um caso, há alguns meses. Não durou. Ele nunca aceitou o fim.
- E por isso ele te persegue? - A voz de Mei era calma, mas com uma borda de aço que Heather não se lembrava de ter visto na garota antes.
- Ele não é uma ameaça. - Heather tentou garantir, mais para si mesma do que para Mei. - Ele é só um idiota.
Mei levantou uma das sacolas que segurava.
- Idiota ou não, ele te fez sentir desconfortável. É bom tomar cuidado com ele.
Heather não se abria com ninguém, e muito menos deixava que os outros ditassem o que ela devia ou não fazer, mas com Mei, não sentia a repulsa que sempre vinha acompanhada das ordens de caras inconvenientes e machistas que a paqueravam.
A caminhada continuou, e um novo silêncio se instalou entre elas, um silêncio diferente do anterior. Não era constrangedor, mas preenchido com a curiosidade e o peso de anos perdidos.
- O que você fez nesse tempo todo? - Heather perguntou, mudando o rumo da conversa. - Xiao disse que você virou engenheira.
- Sim. Engenheira Naval. E você, como tem sido a vida de capitã? Seu pai está bem? - Heather notou que a mulher não estendeu o assunto sobre si mesma.
- Na verdade, é sempre uma correria no trabalho. Meu pai tem alguns problemas de saúde, você sabe. Ele não se cuidava quando era capitão. Mas eu cuido dele agora.
- O seu Andrew sempre foi teimoso, mas sei que você consegue dobrar ele. - Mei falou com a confiança de quem conhecia a mais velha. - Ao mesmo tempo que elas não conversavam há tanto tempo, parecia que nada tinha mudado.
As duas continuaram a conversar, com Heather contando sobre as temporadas de pesca, as dificuldades e as vitórias no mar, enquanto Mei falava sobre a faculdade e os desafios de viver em uma cidade grande. A timidez inicial de Heather lentamente cedeu lugar a um conforto familiar, e ela se pegou rindo das histórias de Mei. As lembranças do passado se misturavam com o presente, preenchendo a longa distância que as separava.
Chegando na porta da casa de Heather, elas pararam.
- Bem, chegamos. - Disse Mei, apontando para a sua casa logo ao lado. - A gente se vê por aí, Heather.
- Sim... - Heather assentiu. - Seja bem-vinda de volta, Mei. É bom te ver.
O olhar de Mei se suavizou, e ela sorriu.
- É bom estar de volta, capitã. - disse Mei, o título soando em sua boca, era diferente de qualquer outra.
Não era respeito profissional, nem ironia; era um carinho doce, íntimo.
O coração de Heather deu um salto, surpreendendo-a. A capitã, endurecida por anos de mar, sentiu a muralha dentro de si rachar diante de uma única palavra dita por aquela voz. Mas logo ela abafou aquela reação estranha.
Fim do capítulo
Instagram: escritora.kelly
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line7
Em: 24/10/2025
Nossa eu fui procurar sobre as suas histórias autora e eu já li 2 delas e amei :) e vou ler mais uma hehhehe amando também essa e achei tão injusto não ter nenhum comentário que resolvi comentar como forma de agradecimento pela a sua dedicação.
Raquel Santiago
Em: 29/10/2025
Autora da história
Obrigada Line, eu amo responder e ler os comentários.
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