TERRA SECA por Thaa
Tenham uma boa leitura, meninas.
Até o próximo.
Bjsss, Thaa :)
Capitulo 3
Capítulo 3
Os dias passaram arrastados, como se o tempo tivesse perdido seu ritmo natural, estagnado num silêncio pesado e sufocante. Alexandra dormia pouco, o sono fugia-lhe dos olhos inquietos. Ao mesmo tempo que desejava ir embora, também desejava ficar a cada vez que pensava em Íris sozinha ali. Apesar de ter consciência de que para ela sua presença não passava de algo indesejado. Ela adorava a capital, adorava João Pessoa, mas ainda se lembrava de quando fora embora alguns anos atrás, sentiu um aperto tão forte no coração, àquela época parecia inexplicável, mas agora, depois que voltou ali, depois que pisou os pés aqueles batentes da fazenda, acabou se dando conta de que talvez não fosse medo ou raiva que sentia por Íris, mas sim outra coisa, coisa essa que fazia medo até pensar.
Lembrava Alexandra que, durante a faculdade, costumava sair com a prima Adélia, as duas tinham amizade grande e cheia de confidencialidades, eram cortejadas por vários rapazes, trocavam beijos com eles, às escondidas, claro, bebiam conhaque e depois terminavam em carícias na cama, mas no dia seguinte aquele vazio inominado sempre voltava a invadir o peito dela, e era tão forte. Vivia sempre atormentada por fantasmas do passado, por uma ausência que preenchia cada canto do seu coração com um vazio que doía.
Ainda estava na adolescência quando Íris chegou àquela fazenda pela primeira vez, sempre com aquela postura intocável, inabalável, parecia uma torre de aço que ninguém poderia alcançar ou destruir. Aqueles olhos escuros ainda tinham brilho, naquela época, mas com o passar dos dias, após o casamento, aquele brilho sumiu, era como se os sonhos um dia sonhados dentro daqueles olhos lindos tivessem sido destruídos pela prisão na qual ela vivia e tentava esconder isso a todo custo. Poucas foram as vezes que ela olhou dentro dos seus olhos, mas quando o fazia causava um reboliço em sua cabeça de adolescente, na época achava que era mesmo coisa de um jovem que queria ter a mesma garra da madrasta de enfrentar o mundo de maneira fria como ela sempre fazia, mas agora, depois de seis anos, quando a viu de novo no dia que chegou à fazenda, o passado parecia ter retornado com veemência, açoitando todas as suas certezas irredutíveis de antes.
Alex não sabia bem explicar o motivo, mas de repente sentia um grande vazio em seu interior. Queria mudar as coisas, quem sabe se aproximar mais de Íris, ser amiga dela. Mas o problema era, não sabia como fazer isso, já que ela não permitia, lhe dava raiva de tanta formalidade, da indiferença com que ela sempre lhe tratava. Isso ficava preso em sua garganta, chegava até a causar um furor em seu peito.
Então, para escapar daquele vazio e daquelas sensações estranhas que a atormentava, buscava refúgio nas horas que dedicava à vila. Caminhava pelas ruas poeirentas, atendendo aos moradores com um cuidado quase maternal. Recebia as crianças febris em seus braços, auscultava tosses e lágrimas, visitava as casas humildes, onde as paredes de taipa mal isolavam o frio da noite, cuidando de febres altas, infecções incipientes, ou dos velhos frágeis que sofriam com a pressão descontrolada. Era o que sabia fazer, o que a mantinha com os pés no chão e a mente longe do abismo que tentava arrastá-la para a escuridão. A medicina era sua âncora, seu jeito de não se perder. Mas, apesar das horas gastas com outros, sempre retornava à fazenda antes do sol desaparecer no horizonte, como se houvesse ali um imã invisível que a puxasse de volta, talvez fosse o peso das coisas sentidas e que não conseguia admitir.
***
Enquanto Alex tentava lidar com seus próprios fantasmas e descobertas, Íris seguia com a rotina administrativa da fazenda, mantendo a ordem e os papéis que sustentavam aquele mundo de terra e suor. Ela não se intrometia nas atividades da enteada, mas a observava de longe, com olhos atentos e silenciosos. Percebia a delicadeza com que a herdeira do falecido coronel se dedicava ao cuidado das pessoas, um contraste com sua própria postura firme e reservada. Não sabia por que razão precisamente, mas lhe atormentava o juízo que ela tivesse voltado. Não deveria estar ali, mas sim deveria ter permanecido lá pras bandas da Capital, como já vinha fazendo há seis anos. O velório do pai já tinha passado então por que ela não ia embora? Não havia razão qualquer para ela ficar. Até onde se lembrava ela nunca foi de gostar daquelas terras, daquela casa que parecia agoniá-la.
Encostada presunçosamente numa porteira de madeira envelhecida, observando os cavalos no campo meio seco, Íris se lembrava dos olhares longos que trocavam e nos silêncios pesados entre elas, e dentro de seu interior crescia um incômodo difícil de nomear, uma inquietação que mexia com seus pensamentos. Sempre tratou de manter Alexandra bem longe de sua vida, e naquela época fora mais fácil, ela não passava de uma adolescente rebelde, a quem algumas vezes já pegara pelos braços e afastara do seu caminho, mas agora não, agora era uma mulher.
Íris comprimiu os lábios com força.
Trataria de manter as coisas como sempre foi, tratando-a com a mesma indiferença e rigidez de antes. Não havia razão para fazer as coisas de maneira diferentes por ali.
Não importava se ela agora se tornara uma mulher, não a queria por perto e se acabou. Ponto final.
Chamou um cavalo marrom de pelos brilhantes. O bicho se aproximou e ela lhe acariciou a crina, como se aquele gesto pudesse fazê-la abstrair aqueles pensamentos perturbadores.
— É mais fácil de lidar com bicho do que com gente, visse? — Riu para o cavalo, depois ficou a contemplar o céu por alguns instantes, deixando-se ser agraciada por aquele matiz de cores ao pôr do sol.
***
Alex entrou em casa suada e exausta. O braço esquerdo trazia um corte profundo, vermelho e sujo, consequência de um tropeço numa cerca malfeita enquanto tentava ajudar um vaqueiro ferido na beira do pasto. Sem sequer trocar de roupa, foi direto para o lavatório, tentando limpar o ferimento, mas a dor e a dificuldade a impediram de fazer isso direito.
— Deixe que eu faço isso. — A voz de Íris surgiu por trás, calma, firme, com aquele timbre profundo e meio rouco que causava mil e uma sensações em Alexnadra.
Sem hesitar, Alexandra esticou o braço, aceitando a ajuda silenciosa. Íris lavou o corte com cuidado quase cirúrgico, usando sabão e um pano limpo, enquanto os dedos precisos tocavam a pele machucada, a mão firme disfarçava um leve tremor contido, que não passou despercebido pela médica.
— Vai precisar de pontos. — disse a Alex com a voz leve.
— Eu sei costurar. — respondeu Íris, com naturalidade que escondia uma tensão sutil. — Já fechei muita ferida de bicho.
Alex a olhou de cima a baixo, percebendo o quanto os anos somente acentuaram ainda mais a boniteza daquela mulher. Achava estranho que ela usasse calças, o que a diferenciava de todas as outras mulheres por ali. As más línguas rasgavam comentários maldosos, principalmente masculinas, mas ela parecia nem dar importância a isso. Só sabia que ela ficava muito linda dentro daquelas calças jeans surradas e aquelas camisas de manga e botões, bem passada, arregaçadas até os cotovelos.
— E de gente? — Alex arriscou um sorriso dolorido, embora sentisse a dor aguda.
— Hoje vai ser a primeira vez. — Íris desviou o olhar por um instante, um breve instante que falou mais do que mil palavras.
Alexandra riu baixo, um som quase tímido.
— Eu confio em você.
— Confias mesmo? — Franziu uma das sobrancelhas como que a desafiando.
— Sim. — Respondeu com aquela mesma altivez de quando era adolescente.
— Tudo bem então, vamos lá.
Com mãos cuidadosas, Íris pegou linha e agulha na maleta que Alexandra trouxera da cidade, e começou a costurar o braço da enteada, sua respiração curta, concentrada. No final, colocou uma atadura leve e, antes de se afastar, fixou os olhos nos de Alex por um segundo que pareceu se estender demais, carregado de algo que nenhuma delas ousou dizer.
— Íris... — murmurou Alexandra sem deixar de olhar nos olhos dela, achava-os tão lindos, aquele rosto, aquela expressão, aquele jeito como costumava rir com os olhos, isso era raro, muito raro, mas às vezes acontecia como naquele momento.
— Como médica, você sabe quais remédios tomar para não infeccionar. — Interrompeu de pronto, virou-se e saiu da cozinha apressada, seus passos rápidos denunciando que queria fugir não do ambiente, mas de si mesma.
Alexandra ficou parada, observando a madrasta se afastar, o andar sereno, como quem sabe exatamente aonde está indo, mesmo que fosse para um lugar de sombras internas.
Por que será que sempre que olhava para Íris sentia uma impotência profunda diante daquela frieza controlada? Por que tinha a sensação de que a outra guardava segredos inconfessáveis, passados sombrios demais para serem revelados? Um tremor percorreu seu corpo ao pensar na possibilidade de desvendar aqueles mistérios que a faziam hesitar.
Sabia que Íris viera de uma rica família holandesa, cujo declínio se dera após a morte do pai. Os irmãos e a mãe, incapazes de administrar a fortuna, haviam empobrecido naquela terra. A única saída para preservar um resquício de status fora casar a irmã mais nova com um coronel viúvo, rico e fazendeiro da região.
Talvez fosse essa mágoa, esse ressentimento silencioso, que Íris carregava no peito. Ela nunca se abria, raramente sorria, mas quando o fazia, o sorriso era belo, branco e bem alinhado, com lábios carnudos e rosados, que contrastavam com a perfeição dos traços finos e o rosto marcado por uma beleza intensa e, ao mesmo tempo, impenetrável.
Alexandra algumas vezes já chegou a achar que Íris odiava o pai e, por consequência, também a odiava. Mas não foi isso que viu nos olhos dela, enquanto mexia em seu braço há pouco.
Deu um sorriso largo, mas logo sacudiu a cabeça com força como querendo repreender a si mesma.
— Vai dormir e deixa de besteira, Alex. Deixa de ver chifre em cabeça de cavalo, criatura, logo tu, tão precisa, tão objetiva com as coisas e que detesta fantasias, fábulas, seja lá o que for. — Sacudiu de novo a cabeça. — Íris pode não ter amado o teu pai, mas também podes ter certeza de que uma mulher como ela, certamente, amou outro homem.
Sentindo uma dor aguda no braço, seguiu para o seu quarto. Precisava descansar, tivera um dia longo na vila e que bom, assim o dia passou rápido e não fritou seu cérebro pensando em asneira.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]