Entre linhas por CarolF
Capítulo 1 – Primeiros Toques
O barulho da bola quicando ecoava pelo ginásio vazio. As luzes ainda estavam acesas, mesmo com o treino encerrado fazia mais de vinte minutos. Algumas meninas já tinham ido embora, outras se trocavam no vestiário, rindo alto e comentando sobre o fim de semana que se aproximava. Mas eu continuei ali, chutando a bola sozinha, de um lado para o outro, sentindo o impacto nas chuteiras como se fosse a única coisa que ainda me conectava com alguma coisa real.
A quadra era meu refúgio. Sempre foi.
Meu nome é Cristiane, mas todo mundo me chama de Cris. Tenho dezessete anos, estou no último ano do ensino médio e, se tem uma coisa que eu sei desde pequena, é que sou melhor com uma bola nos pés do que com palavras na boca. Nunca fui de falar muito. Meu mundo sempre foi o futsal. É onde eu respiro, onde tudo faz sentido.
Pelo menos fazia.
Ultimamente, nem isso parecia funcionar direito.
— Vai dormir aqui hoje, Cris? — gritou Júlia, uma das jogadoras do time, já com a mochila nas costas.
Sorri de canto e levantei o olhar.
— Tô indo. Só mais uns minutos.
Ela me mandou um tchau exagerado e saiu. Quando a porta do ginásio fechou, fiquei sozinha com a bola. Fiz embaixadinhas, girando em torno de mim mesma. Me concentrei no som do impacto repetido, como se ele pudesse silenciar o turbilhão dentro da minha cabeça. Mas não podia.
Dei um chute mais forte, a bola bateu no canto da trave e voltou. Corri para pegá-la e, quando me abaixei, ouvi passos se aproximando.
— Treino extra?
Levantei os olhos e vi Daniele encostada na trave, de braços cruzados, olhando pra mim com aquele meio sorriso que ela tinha. Um sorriso que parecia que sabia de algo que eu não sabia.
Dani era a nova do time, tinha chegado há poucas semanas, vinda de outra cidade. Jogava como ala direita, rápida, inteligente, e com um passe preciso que deixava qualquer zagueira desnorteada. Era o tipo de jogadora que parecia flutuar na quadra. E isso me irritava um pouco. Não o talento dela, mas o quanto eu ficava consciente demais da presença dela desde o primeiro treino.
— Só me distraindo — respondi, limpando o suor da testa com a manga da camisa.
Ela entrou na quadra, chutou a bola de leve com o pé e se abaixou para pegá-la.
— Posso me distrair com você?
Assenti e joguei pra ela. A gente começou uma troca de passes rápida, só de primeira. O som dos tênis arrastando no chão, o toque seco da bola no pé. Nenhuma palavra. Só o jogo.
Foi estranho como tudo parecia se encaixar entre nós, mesmo sem termos treinado muito juntas ainda. Nossos movimentos se entendiam. Não era só entrosamento — era outra coisa. Algo que eu ainda não sabia nomear.
Depois de alguns minutos, ela deixou a bola rolar e parou, ofegante.
— Amanhã tem treino de novo, né?
— Aham. Sete da manhã.
— Droga. Detesto acordar cedo — ela riu. — Mas vale a pena.
Sentei no chão, cruzando as pernas, e ela fez o mesmo. Ficamos ali, respirando fundo, suadas. O silêncio entre nós não era incômodo. Era confortável.
— Você joga desde quando? — perguntei.
— Desde dos oito. Meu irmão jogava e eu queria ser melhor que ele — respondeu, rindo. — E você?
— Desde dos seis. Meu pai jogava futsal amador. Queria um filho que seguisse os passos. Acabou vindo uma filha. Acho que ele se acostumou.
Ela me olhou por alguns segundos, séria.
— E ele apoia?
— Ele morreu faz uns anos — respondi, encarando o chão. — Mas sim. Quando estava aqui, apoiava.
Dani fez uma expressão suave e tocou levemente no meu braço.
— Desculpa. Não sabia.
Assenti, sem dizer nada. O toque dela ficou na minha pele mesmo depois que a mão já tinha voltado pro colo.
Ela respirou fundo e murmurou:
— Você joga com raiva.
Levantei os olhos.
— Como assim?
— Dá pra ver. Tem algo pesado em cada movimento seu. Como se quisesse provar alguma coisa o tempo todo. Não é ruim. Mas... é intenso.
Aquilo me atingiu mais do que qualquer treino puxado. Ninguém nunca tinha falado algo assim. Ninguém tinha lido isso em mim.
— E você joga como se estivesse fugindo de alguma coisa — respondi, seca. A frase saiu antes que eu pudesse pensar.
Ela me encarou, surpresa. Depois soltou uma risada baixa.
— Toquei num ponto, né?
—E eu também — completei.
Ficamos um tempo em silêncio de novo. Até que ela pegou o celular no bolso e olhou para a tela.
— Meu namorado já mandou umas dez mensagens. Melhor eu ir.
Aquilo me travou por dentro, mas não deixei transparecer.
— Leandro, né? — perguntei, mesmo sem saber se esse era o nome certo. Eu tinha ouvido uma das meninas comentando.
Ela assentiu.
— Ele é gente boa. Tá um pouco ciumento desde que entrei no time, mas vai passar.
Fiquei em silêncio, apenas observando ela se levantar e bater a poeira da calça.
— A gente se vê amanhã? — perguntou, com aquele sorriso de novo.
— Claro — respondi, tentando soar natural.
Ela saiu, deixando um rastro de perfume leve no ar.
Fiquei ali sentada por mais alguns minutos. O som da porta se fechando atrás dela ecoou no ginásio vazio.
E eu percebi que o problema não era o treino, nem o time, e muito menos o sono, o problema era ela. E o que eu estava começando a sentir.
No dia seguinte
O treino de sábado começou com o sol ainda nascendo, espalhando luz laranja pelas janelas do ginásio. Eu estava de fone de ouvido, sentada na arquibancada, amarrando as chuteiras com calma. As outras meninas chegavam aos poucos, bocejando, tomando café em copos descartáveis ou simplesmente encarando o chão com ódio do despertador.
Dani chegou entre as últimas. O cabelo preso em um coque mal feito, uma blusa larga por cima do uniforme da sua antiga equipe, e o rosto meio inchado de sono. Mas mesmo assim, ela estava linda.
Tentei não encarar por muito tempo, tentei parecer indiferente como se o treino fosse a única coisa importante.
Mas, quando nossos olhos se cruzaram, ela sorriu de novo. Aquele sorriso fácil, mas com intenção. E eu soube que tinha alguma coisa ali. Eu não sabia se ela percebia, se sentia, ou se estava apenas sendo gentil. Mas o sorriso dela mexia comigo de um jeito que ninguém mais conseguia.
O técnico Júnior, começou o aquecimento e dividiu o time em duplas. Sem que eu pedisse, Dani veio direto pra mim.
— Vamos repetir a dose de ontem?
— Só se for agora.
Ela riu e começamos os exercícios.
Durante o treino, a gente jogou no mesmo lado da quadra. Foi automático tanto que as outras meninas até notaram — uma delas comentou que “pareciam que vocês já jogavam juntas”. Eu não sabia se ria ou se fingia que não ouvi.
Na segunda parte do treino, jogamos o famoso rachão e eu estava mais centrada do que nunca, mas ao mesmo tempo distraída de um jeito estranho. Não errava um passe, não perdia uma dividida, mas era como se cada jogada fosse uma desculpa pra me aproximar dela.
Teve uma hora em que ela caiu numa disputa de bola. Estendi a mão pra ajudar, e quando nossos dedos se tocaram, ela demorou meio segundo a mais pra soltar esse meio segundo que queimou a minha pele.
Depois do treino, todas estavam exaustas. Dani veio até mim enquanto eu tomava água na beira da quadra.
— Tá fazendo alguma coisa hoje à tarde?
— Não. Por quê?
— Pensei em passar no centro da cidade, comprar umas coisas. Quer ir comigo?
Fiquei paralisada por um segundo. Eu e ela. Sozinhas. Isso podia ser tudo ou nada.
— Pode ser — respondi, tentando parecer natural. — Me manda mensagem.
Ela sorriu, pegou a mochila e saiu. Vi quando ela parou lá fora, pegou o celular e digitou algo rápido. Logo meu celular vibrou no bolso. Mensagem dela: “Às 15h, na praça central. Não fure comigo.”
Sorri sozinha, como uma idiota.
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As horas passavam lentas. Eu tomei banho, troquei de roupa, vesti um short curto jeans e uma camiseta preta básica e repassei conversas imaginárias na cabeça. Estava tão nervosa quanto antes de uma final. E por quê? Não era um encontro. Era só uma tarde com uma amiga do time. Certo?
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Certo.
Cheguei na praça central às 14h50. Ela já estava lá, sentada em um banco da praça, mexendo no celular. Usava uma calça jeans rasgada e uma camiseta branca de alça. Tinha preso o cabelo num rabo de cavalo alto. E, de novo, estava linda.
— Chegou cedo — comentei.
— Você também.
Começamos a andar, meio sem rumo. Entramos numa papelaria, depois numa loja de tênis. Falamos sobre música, sobre as matérias do colégio, sobre os treinos. Conversas comuns. Mas tudo entre as pessoas parecia ter uma tensão implícita, como se cada palavra fosse uma tentativa de manter uma normalidade que já estava escapando pelos dedos.
Fomos na sorveteria, enquanto tomávamos milk-shake, ela largou o canudo e me olhou com os olhos mais sérios do dia.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Pode.
— Você acha errado sentir alguma coisa por uma pessoa mesmo estando com outra?
Fiquei paralisada. O coração batendo alto no peito. Eu não sabia se aquilo era uma armadilha, um teste, uma confissão.
— Depende — respondi. — Sentir, a gente não controla. O que a gente faz com isso... aí é outra história.
Ela ficou em silêncio por um tempo. Olhou pro copo.
— Às vezes eu me sinto sufocada com o Leandro. Ele é legal, me trata bem, mas parece que... eu não sei. Que eu tô tentando me encaixar num molde que não me serve mais.
Meu coração estava batendo tão rápido que eu tinha medo dela ouvir.
— E você sente alguma coisa por outra pessoa? — perguntei. A pergunta saiu num sussurro.
Ela levantou os olhos, e nossos olhares se prenderam por alguns segundos que pareceram uma eternidade.
— Sinto.
Eu não sabia o que dizer. Nem o que fazer. Tudo ao meu redor sumiu. Só existia aquele momento. Aquela confissão muda entre olhares.
Ela abaixou o olhar de novo e mudou de assunto rapidamente. Como se nada tivesse acontecido.
— Preciso ir. Leandro vem me buscar daqui a pouco.
E foi isso.
Ela se despediu com um beijo no rosto que demorou mais do que o normal. E me deixou ali, sozinha, tentando entender o que, exatamente, tinha acabado de acontecer.
Fim do capítulo
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CarolF Em: 01/08/2025 Autora da história
Muito obrigada espero que continue acompanhando