Sempre peço desculpas pela demora, mas vou escrevendo conforme consigo. Finalmente o ultimo capitulo dessa historia. Agradeço cada leitura e cada comentário, muitas ideias vem dos comentários, do posicionamento de voces. E não existe escrever, se ninguem ler. Então muuuuito obrigada por acompanharem, voces são essenciais.
Deixo meu abraço e o até breve!
Capitulo 72
Capítulo 71
Eu acordei sem vontade de levantar, estava frio e eu cansada. Ao fundo, conseguia ouvir o barulho da Beatriz na cozinha, provavelmente passando um café pelo cheiro. Ontem saímos com alguns colegas da delegacia que estou trabalhando como delegada e chegamos bem tarde. Estamos juntas há quase 2 anos, às vezes eu nem entendo como ela me aguenta. E apesar de tudo, acho incrível como raramente nos desentendemos, quase nunca brigamos, conseguimos nos acertar com conversa, com carinho, a Bia é fantástica. Desci da cama quase me arrastando e segui o aroma do café.
Cheguei na cozinha e encontrei a Bia já vestida com roupa de trabalho, uma calça jeans confortável, uma camisa presa por dentro da calça e um tênis. Posso olhar ela uma vida toda e continuar achando ela a gordinha mais sexy do universo. Me aproximei dela, como todas as manhãs, e abracei por trás!
- Bom dia meu amor - dei um cafungo no pescoço.
- Oi linda! Já ia lá te acordar. Você demorou pra pegar no sono, conseguiu dormir alguma coisa? - falou virando se frente.
- Não dormi quase nada.
- Tá preocupada com o julgamento? - ela me perguntou cuidadosa como sempre.
- Ah, não tem como não ficar pensando. Não é preocupação. Só quero que esses próximos dias acabem o mais rápido possível. Não me sinto nem um pouco ansiosa para ir no julgamento da Mayra.
- Sem contar que demorou 2 anos para o julgamento dela. Costuma demorar assim mesmo?
- O pior que demora mesmo, a justiça brasileira infelizmente tem mais criminosos do que consegue gerenciar. Eu fico pensando que no julgamento do Grilo e do Puca, ainda fazia sentido eu ir, participar, mas no da Mayra? Por mim dava a pena máxima e largava ela lá.
- Oh coração peludo, apesar de tudo, ela tem direito a defesa e a julgamento. Não que eu deseje pena baixa ou absolvição, mas ela tem esse direito - concordei com um aceno de cabeça, querendo acabar com o assunto - Vai pro DP e depois pra lá?
- Não, já vou direto. A chefe não me quer no DP hoje, acha que vou ficar muito distraída. E ela tem razão - falei enchendo uma caneca de café e sentando na mesa, logo seguida da Bia.
- Eu achei ela até que gente boa ontem no bar.
- Ela não é ruim, só é firme. E para comandar os delegados precisa ser mesmo. Eu que sou delegada novata, nem posso abrir a boca para reclamar nada.
- Ah amor, daqui a pouco você pega um caso mais pesado, vai conquistando a confiança. Você foi investigadora por muito tempo, já tem mais experiência que muito delegado por aí. Só dar tempo ao tempo - falou me entregando um pãozinho e sentando para tomar café da manhã - O promotor decidiu se você vai testemunhar contra a Mayra? -
- Ele quer que eu esteja lá em condições. Falou que só vai me apresentar se o caso precisar. Eu particularmente acho que é porque não sabe o que vai fazer, um bom advogado sabe suas estratégias antes mesmo do julgamento comecar. Mas enfim, quem sou eu na fila do pão.
- Ah, vai de coração aberto amor, se precisar você depõe. Faz assim, vai no tribunal, cumpre sua missão, que quando você voltar vou estar aqui de braços abertos te esperando, pode ser? Faço até uma janta melhorada.
- Aí Bia, você é maravilhosa. Por isso te amo tanto. Pode ser às pernas abertas e não os braços? - ela ficou rosa de vergonha, agitada. Sou encantada por essa timidez dela - Adoro você com vergonha! - ficou mais vermelha ainda.
Depois do café, pegamos nossas coisas e eu dei uma carona para a Beatriz até o DP. Continuamos morando no meu apê, super perto da delegacia que eu trabalhava e ela continua trabalhando. Mas a quase 1 hora do DP que fui destinada após a academia, onde fiz o curso de delegada. Estou na zona leste, em uma comunidade perto do estádio, longe de casa, mas sendo delegada, vale a distância. Não custa eu dar uma carona pra ela, pelo contrário gosto dela pendurada em mim na moto. Acho sexy. Ela desceu da moto e me deu um beijo, seguido de um abraço e falou no meu ouvido: termina logo esse dia e pensa que estarei esperando você, sem calcinha! - falou vermelha de vergonha e logo saiu. Dei risada sozinha e acompanhei ela entrar no DP.
O julgamento da Mayra vai acontecer no Foro Criminal Central, também conhecido como Fórum da Barra Funda. Não deixa de ser um caso chamativo, envolve o assassinato de um jornalista conhecido e tráfico de pessoas. Vai ser um tribunal do júri e deve chamar a atenção da imprensa, nada mais correto que o julgamento ocorrer em um fórum grande e preparado para esse tipo de evento.
Em cima da moto e indo em direção à Barra Funda, acabei desligando um pouco da atualidade e pensando na vida. Devo encontrar a Bruna no julgamento da Mayra, e ela é uma pessoa que eu não gostaria de rever. Não por maldade, mas porque não faz mais sentido. Ela acabou sendo processada por ajudar a Mayra a fugir do país, como o esperado foi absolvida. Na ocasião me procurou para ser testemunha de defesa dela, mas eu declinei e não aceitei. Eu sou delegada moderna, nova, na época ainda estava na academia de polícia, não quero e não queria me envolver em mais casos polêmicos e de cunho pessoal. Não ter tomado um processo ético no caso da Mayra foi quase um milagre.
A última vez que eu esbarrei com a Bruna foi na minha formatura da faculdade de direito, isso há 1 ano e meio atrás. E, na boa, preciso falar pra vocês sobre minha colação de grau, por mais que eu seja bruta, eu fiquei emocionada. Não é todo dia que um pobre, bolsista se forma em direito. Eu sou cria dos projetos sociais né?! Sem o programa de leite eu não teria tomado, sem cesta básica da igreja, minha alimentação seria muuuito mais precária, essas ações conseguiram me dar um gás para terminar ensino fundamental, depois o médio. Cursos sociais me ensinaram a mexer no computador, ter boa índole e acho que o mais importante, me mostraram que dava para ser uma boa pessoa, que eu podia estudar e não precisavas era traficante e sem usar drogas. Poucos amigos da minha infância conseguiram isso. Então me formar em direito foi uma conquista não só minha, mas uma conquista social da periferia, da Brasilândia.
Para minha formatura, eu convidei minha mãe. Ela falou que eu não poderia ir pois a Roberta, minha irmã, iria na casa dela, nada diferente do esperado. Convidei o Sr Luiz, pai da Fabi, ele não pode ir, mas me ligou no dia e me parabenizou. A Fabi, por motivos óbvios, não pode comemorar comigo um momento esperado para nós duas. Então na minha colação foi apenas eu e a Bia, que estava radiante. Eu não tinha dinheiro para pagar formatura, baile e tals, mas eu fiz a colação. Acho que se formar sempre traz um alívio do fim, de tirarmos um peso das costas, comemorar conquistas. Eu realmente fico feliz em ter me formado, principalmente porque no finalzinho eu quase reprovei por faltas.
Assim que acabou a cerimônia de formatura, eu fui procurar a Bia, imaginei que estava perto do Cantão, que estava na formatura por conta da Ana Lu. Rodei o espaço todo procurando a Beatriz, mas quem me achou foi a Bruna. Eu não havia convidado ela para a colação de grau, pelo menos eu não. Ela me olhou e sorriu calmamente e eu senti um aperto no peito e um mal estar.
- Parabéns Flavinha! Eu não perderia sua formatura - sorri desconfortável, eu estava procurando a Bia, não a Bruna - Podemos conversar rapidinho?
- Humm, eh… Bru, acho que não temos mais nada para conversar.
- Temos sim Flá. Eu não preciso ser expulsa da sua vida.
- Não te expulsei Bru, só não temos mais nada em comum. É simples.
- Claro que temos, fiquei muito feliz com a sua formatura, queria comemorar com voce - Eu preocupada em achar a Bia, ir embora e a Bruna tentando puxar um assunto do nada. Graças ao universo a Bia me viu, por trás da Bruna e com a delicadeza de um mamute mal treinado, já chegou quase pulando e me abraçando.
- Ah, Bruna, nem te vi - cara de pau Beatriz - tudo bem? - não deu tempo da Bruna responder - Vamos indo formanda, quero te mostrar uma coisa - eu quase ri da Bia, o ciúmes dela é absurdo, mas neste momento foi salutar. Sorri para a Bruna, tentando disfarçar, pedir alguma desculpa. A Bia, com toda a jovialidade dela, me puxou pelas mãos, por entre outros formandos e convidados. Eu ainda de beca fui arrastada até um cantinho do salão - Aqui! Vem cá.
Parei de frente a ela, sorridente e recebi o melhor abraço do mundo. Ela esticou o braço, me encaixando nela e começou a falar no meu ouvido - parabens meu amor, tenho muito orgulho de voce. Finalmente acabou, finalmente acabou - Eu não queria soltar dela, o abraço estava gostoso, calmo e protegido. A Bia puxou da bolsinha dela uma caixinha e um envelope, eu travei, não sabia se queria ser pedida em casamento, sei lá, foi a primeira coisa que eu pensei. Abri a caixinha com medo, mas era um anel dourado com pedra vermelha, ao lado da pedra, nos dois lados, a balança da justiça. Cara, eu achei lindo. Que cuidado que a Bia teve. Além do mais isso deve ser caro, não estamos em condiçoes de gastar muito.
- Bi, não precisava linda. Um anel desse deve ser caro.
- Só nos formamos uma vez na vida, vale a pena - Ela começou a ficar vermelha, envergonhada - E não fui eu que comprei pra você, só estou entregando. Olha o cartão - abri o envelope
“Meu amor, parabéns pela sua graduação.
Não posso estar comemorando com você esse momento, mas saiba que tenho muito orgulho da pessoa que você se tornou e de todas suas conquistas. Desejo todo o sucesso do mundo, pois sei que você pode e vai crescer mais e mais.
Seja a melhor pessoa que puder ser,
De quem sempre te amou,
Fabi”.
Se nesse momento eu já estava emocionada com tudo, depois do cartão eu desabei. Comecei a chorar de um jeito copioso e me permitir ser acalentada pela Bia, pessoa que cada vez mais me conhece e sabe cuidar de mim.
- Calma amor, calma Fla. É para comemorar hoje. Ela está aqui com a gente, está sempre olhando e cuidando de você. Não vamos esquecer ela nunca tá?!
- Obrigada por cuidar de mim Bia. Essa foi a melhor surpresa que poderia ter feito.
- Hahah, a noite nem começou Flávia, tem uma roupa bem pequena de surpresa pra voce - falou rindo, mas com o rosto vermelho de vergonha que ela sempre tem. Depois dessa emoção com o anel maravilhoso que ganhei, acabamos indo jantar fora. Até fomos convidados para ir jantar com o Cantão e a Ana Lu, mas eu e a Bia queriamos algo mais nosso e assim foi, um jantarzinho de massa, só nos duas, comemorando nossa conquista e nosso tempo junto.
Ainda atualizando vocês sobre os dois últimos anos, o caso do Matão do fundo foi um sucesso, perrengue, mas perrengue sucesso, isso vocês já tinham acompanhado. Na época, conseguimos quebrar a quadrilha de tráfico de órgãos, prender o Puca, o Grilo, os companheiros deles. Não posso ser inocente a ponto de achar que não vai mais ter tráfico de órgãos em São Paulo, mas tenho certeza que atrapalhei muito eles. O Puca que já tinha a licença médica cassada, continuou sem poder atuar na medicina e foi condenado a 84 anos. O Grilo respondeu a mais coisas, mais assassinatos, formação de quadrilha, vários delitos, sendo condenado a 140 anos de reclusão. Posso dizer que se os dois ficarem pelo menos 20 anos presos já estamos no lucro do ponto de vista social.
O julgamento dos dois ocorreu há cerca de uns 6 meses, e eu fui testemunha de acusação em ambos. Como investigadora apresentei o caso, as provas, as correlações, como abordamos, todo o processo de trabalho. Sai do julgamento deles gostando mais e mais de direito penal, não me vejo como advogada de defesa na verdade nunca me vi, mas como delegada ou promotora me encaixo bem, gosto mesmo é de mostrar a justiça os problemas, as acusações. Esse julgamento até chamou atenção da imprensa, mas confesso que bem menos do que quando prendemos ele, quando tiramos a Dra Carol do cativeiro. Até acionaram ela para depor, mas ela solicitou que fosse feito um depoimento por escrito e sem a presença física dela, até porque o medo, vergonha e incômodo por ter sido sequestrada não tem que ser alimentado,sem contar que a mulher mora em Portugal. Vir pro Brasil e ainda reviver a dor não é legal.
Estacionei minha CG em uma rua lateral ao forum da Barra Funda e segui em direção a entrada, tinham varios carros da imprensa, previsto mesmo, não deixa de ser o julgamento da mandante do assassinato do MArcius Evangelista, um jornalista bem conhecido. Me identifiquei e passei pelas catracas de segurança, segui em direção ao plenário 7, uma espécie de auditório onde vai ocorrer o julgamento da Mayra. Quando eu cheguei ainda estava bem vazio, com apenas algumas pessoas sentadas. Eu queria mandar uma mensagem para o promotor Domingos, avisando que eu havia chego, mas não há sinal de celular dentro do fórum, por uma questão de segurança.
Cerca de uns 10 minutos depois a Isa chegou também, ela irá depor como delegada do caso. Nos duas ficamos jogando papo fora um tempo, conversando sobre como estou lidando com o fato de ser delegada novata, a delegacia nova, situação criminal de um DP periférico essas coisas. Ela não tocou no assunto julgamento, acho que nos duas queríamos evitar até chegar a hora do depoimento. Espero profundamente que eu não tenha que depor. Enquanto jogávamos conversa fora, o auditório foi enchendo com familiares, estudantes de direito, alguns repórteres, sem câmera, mas que poderão escrever o que aconteceu ali. E na frente da plenária foi aos poucos chegando auxiliar da promotoria, advogado auxiliar, escrevente. E quanto mais próximo a começar as pessoas mais “pesadas”, o promotor e o advogado de defesa
Havia uma porta ao lado do gabinete do juiz e meu olho não desviava de lá. Havia um policial na porta, mostrando que seria por onde a ré entraria. E não tardou muito não, a Mayra entrou na tribuna algemada, usando uma calça social, uma camisa bem formal, cabelos, enfim o uso de roupas civis resguarda dignidade do acusado no julgamento popular. Ela nitidamente estava abatida, apática e ganhou peso. Claro, não dá pra treinar bonitinho no presídio. O cabelo não estava brilhoso e com vida como antigamente, ou melhor como há 2 anos. Assim que ela entrou, levantou o rosto procurando alguém na multidão que iria assistir seu julgamento. Foi conduzida a uma cadeira ao lado do advogado.
Nem um minuto depois, começaram a entrar os membros do júri, afinal se trata de um crime doloso contra a vida, no caso do homicídio do evangelista. Os membros do júri entraram em silêncio, rosto fechado, firmes. Todos olhando direto para a Mayra, ela estava de costas para o público, então não sei se ela mudou sua expressão, se teve medo ou alguma coisa desse tipo. Pouco tempo depois foi anunciada a entrada da juíza e todos ficaram em pé para recepcioná-la, em silêncio, atentos. Os ritos habituais se iniciaram, mantendo um silêncio quase sepulcral na plateia, a juíza perguntou diretamente os dados pessoais da Mayra: qual o seu nome, nacionalidade, estado civil, idade, profissional.
- Sra Mayra, a senhora está sendo julgada pelo crime de trafico de pessoas e mandante do assassinato do Sr Marcius Evangelista. O sr tem o direito de se manter em silêncio, mas se quiser pode usar esse momento para apresentar sua visão. Após ser realizada a leitura das acusações, a sra poderá se posicionar em responder ou não as perguntas. O Ministério Público diz que no dia 19 de julho de 2023, na cidade de São Paulo, a senhora foi responsável por dar a ordem de execução do jornalista Marcius Evangelista após o mesmo investigar e confrontar a senhora sobre atos de tráfico internacional de pessoas. A senhora está sendo acusada também do tráfico de pelo menos 16 pessoas, atos que ocorreram no período de 2022 e 2023, assim como aliciamento de pessoas que posteriormente foram assassinadas e tiveram seus órgãos traficados. A senhora está ciente das acusações?
- Sim - respondeu no microfone com uma voz rouca.
- A senhora irá responder as perguntas feitas por esse júri?
- Sim - a voz saiu menos rouca que a anterior.
- Que fique registrado que a ré responderá às perguntas do Ministério Público, dos jurados, do juiz e de sua defesa - a juíza falou, prosseguindo o trâmite do julgamento e continuou as perguntas: Como a senhora se posiciona frente ao assassinato do jornalista Marcius Evangelista, encontrado dia 26 de julho de 2023 em estado avançado de decomposição em um cemitério clandestino conhecido matão do fundo?
- Inocente - foi uma resposta firme dela. As pessoas atrás comentaram, começou um zum zum zum. A juíza continuou
- E em relação ao tráfico dos órgãos do jornalista Marcius Evangelista, como a senhora se declara?
- Inocente - manteve-se firme, quase bravejando.
- Considerando e constando nos autos o posicionamento da ré, passo a palavra ao Ministério Público, doravante denominado MP - O promotor que parecia estar salivando começou sua oratória: Senhora Mayra, gostaria que nos contasse como conheceu o jornalista Marcius Evangelista e qual a relação de vocês?
O julgamento da Mayra levou o dia todo, confesso que achei até que rápido para a quantidade de crimes que ela estava sendo julgada e pelo detalhamento que o MP provocou. A namorada do Evangelista prestou depoimento, contando sobre os últimos dias dele, a reportagem que ele estava fazendo e as ameaças que ele recebeu. Ela contou sobre como ele voltou do dia que seguiu ela até o aeroporto, desesperado porque não conseguiu impedir que uma pessoa embarcasse com ela, segundo ele para o voo da morte. Era quase palpável a dor que a namorada transmitia, ele estava trabalhando, ajudando a justiça quando foi morto.
A Isa falou como foi o processo investigativo, como os casos do matão do fundo e do Evangelista se cruzaram, o estado em que o corpo do Evangelista foi encontrado. Em conversa com o promotor, acharam que não precisava mostrar as imagens do corpo, só a descrição fiel já fez os jurados enjoar. A Isa descreveu bem os depoimentos, a forma agressiva da Mayra, a forma como lavava dinheiro, sonegava impostos e selecionava as vítimas, aliciando elas.
Por volta das 17 horas, a juíza determinou um recesso de meia hora. Acho que todas as partes precisavam, todos estavam exaustos. Eu estava desejando ardentemente um café, em frente ao forum tem um supermercado, tenho certeza que lá tem uma cafeteria. Mas antes mesmo de me levantar, o promotor me chamou.
- Quero que você deponha. Só temos você para falar como ela foi agressiva e manipuladora a ponto de fugir do país.
- Dr, tem certeza? Eu tenho um envolvimento pessoal nesse caso, vai dar merd*.
- Flávia, não tenho outra testemunha disponível para falar sobre isso. Quem organiza uma fuga do país, não faz isso sem premeditar. Sem ter a maldade. Preciso que fale e que explore isso. A defesa trabalhar sobre o envolvimento emocional é um risco, acontece.
- Tudo bem, o caso é seu, o senhor quem sabe. Tenho tempo de tomar um café?
- Aqui no fórum sim. Não quero que saia. Você e a delegada podem ir na minha sala, tem um lanchinho e café. Fiquem à vontade. Minha secretária está lá - tomamos um café bem rápido, eu estava tensa com o depoimento e a Isa leve de já ter falado. Até tentei mexer no meu celular, mas não tem sinal dentro do fórum. Isso é péssimo, não consigo nem falar com a Bia, avisar que estou bem. Enfim, ossos do ofício e ela sabe que estou no fórum.
Antes do tempo do intervalo terminar, eu e a Isa voltamos para o plenário. O promotor ainda conversou comigo mais algumas orientações e aguardamos o início da seção. Todos respeitosamente levantaram quando a juíza entrou no auditório. Na moral, eu gamo em ver mulheres no poder, em cargos que antes eram só de homens, acho que isso é a evolução social que precisamos. Enfim, todos em suas cadeiras, posicionados e o julgamento voltou a acontecer. A palavra foi dado a promotoria que me chamou para depor.
Eu já testemunhei diversas vezes, mas sobre meu trabalho, minha guerra pessoal, mas dessa vez havia um envolvimento, algo que me incomodava. Mas é isso, arcar com as minhas responsabilidades e meus atos, como se esse julgamento também fosse meu, da minha ética profissional… jura dizer a verdade e apenas a verdade? Delegada? - sai do devaneio e respondi Juro.
Eu estava tão tensa que mesmo sentada de frente para a Mayra, eu não havia repado nela, era como se houvesse apenas uma sombra na minha frente. Mas eu reparei agora. O rosto dela está mais machucado, machucado do tempo. Haviam rugas novas, estava mais redondo, provavelmente não estava mais treinando. Sua expressão me fuzilava, como se eu fosse a responsável pelos seus erros. Apesar de tudo eu ainda olhava ela como alguém que errou por amor, claro que nada justifica, mas na teoria entrou nesse mundo porque precisava de dinheiro pra encantar a Bruna.
- Delegada Flávia, como a Sra se envolveu nesse caso e como tudo se iniciou? - o promotor já meteu uma pergunta aberta pra tentar poupar as palavras.
- Promotor, na época eu atuava como investigadora no 202 DP e fui acionada pelo delegado de plantão para assumir a investigação do caso conhecido como matão do fundo, onde foi identificado um cemitério clandestino na zona sul de São Paulo. Nessa ocasião, foram levantados sete corpos em diferentes processos de decomposição. Dentre esses corpos, um deles teve o processo de morte diferente dos demais, então imaginei que esse seria o elo da investigação. Enquanto eu aguardava o processo pericial de identificação dos corpos, fui procurada pela delegada Isabelle que estava atuando nas buscas pelo jornalista Marcius Evangelista. Nossa hipótese foi que esse corpo com o padrão de morte diferente fosse o Marcius.
- Porque a senhora criou essa hipótese investigativa e qual a participação da Sra Mayra?
- Quando esse corpo diferente foi avaliado pelo legista, foi identificado terra sob as unhas, o que nos trazia que havia sido enterrado ainda com vida e esse era o único corpo com coração e pulmões. Ele também fugia do fenótipo dos demais, era um corpo branco, bem cuidado, um pouco mais velho que os demais. Na época, a delegada Isabelle trabalhava com a hipótese que o jornalista estava em alguma investigação mais agressiva, perigosa. E no decorrer investigatório, foi identificado que ele estava investigando a sra Mayra, sendo que foi visto pelas câmeras do aeroporto ele fotografando ela. Sendo assim, demos prosseguimento a investigação da Sra Mayra.
- Quando a investigação iniciou, como a dona Mayra reagiu? Foi colaborativa? - Apesar da Mayra estar quase de frente pra mim, eu não estava olhando pra ela, olhando por ela, sob ela. Mas eu conseguia sentir o calor dela, conseguia sentir minha pele queimando.
- Por uma ou duas ocasiões a Mayra foi convocada para depoimento, ocasião em que não participei diretamente. Fiquei orientando a delegada. Mas de um modo geral se apresentou sempre reticente, desviando das perguntas. Sobre sua conta bancária, não houve esclarecimentos. Sobre como obteve seus bens também não.
- Delegada, poderia nos expor como se deu a detenção da Sra Mayra, como ela reagiu e os acontecimentos prévios a detenção dela?
- A Mayra foi detida em solo português por uma sorte nossa e azar dela. Eu havia atuado anteriormente no sequestro de uma médica pela quadrilha de tráfico de órgãos. No ano de 2023, essa médica foi abordada em Portugal por uma mulher, chamada Milena, que se dizia mandante do sequestro e que participava de uma quadrilha de trafico de orgãos. Na ocasião, associamos o sequestro da médica com o tráfico de orgão, sendo elo a sra Milena. Eu segui para portugal, acompanhada da Dra Marjorie, delegada da PF para obtermos maiores informações. Durante o interrogatório foi identificado que a sra Mayra era sim um elo da quadrilha no Brasil e se reportava a sra Milena em Londres, local onde a maior parte das viagens da Mayra finaliza e da residência da Milena. Conforme ocorria esses eventos, fui acionada pela delegada Isabelle me afirmando que a Mayra fugiu para Portugal, onde teria abrigo e proteção da Milena. Eu e a delegada Marjorie seguimos para o aeroporto e com o auxílio das forças policiais locais, conseguimos com êxito a detenção da meliante.
- Delegada, pouco antes da sra seguir para Portugal, a sra sofreu um atentado no Brasil, sendo agredida. Como ocorreu esse atentado, quem foi o mandante? - Nessa hora eu olhei com ódio para o promotor, fiquei super incomodada com a pergunta e constrangida pela agressão, como uma grande parte das vitimas ficam, mesmo sem culpa de absolutamente nada.
- A mandante do atentado foi a Mayra através de um outro envolvido com a quadrilha, um delegado da corregedoria Ricardo, que foi o executor. Quando a investigação da Mayra iniciou ela começou a me procurar e me assediar para que eu transmitisse informações da investigação. Quando não teve retorno, começou a ameaçar minha companheira, que era ex namorada desse delegado. Inicialmente minha companheira foi seguida e ameaçada pelo delegado Ricardo, enquanto eu era assediada pela mayra com proposta de receber dinheiro por respostas, depois ameaçada quando a segurança da minha companheira. Um dia antes da agressão eu fui seguida por uma moto com dois indivíduos, eles me fecharam e deixaram bem claro que eu deveria dar as respostas que a Mayra queria, ressalvo que ela era conhecida pelo codinome Das Letras, como os senhores já sabem. Nesse dia eu comecei a ficar bem preocupada com a minha segurança e logo soube das ameaças que minha companheira vinha recebendo, assim me preocupando com ela. No dia seguinte a esse evento eu fui jantar fora, e na hora de ir embora, encontrei a Mayra no restaurante. Eu e minha companheira fomos seguidas, consegui puxar os indivíduos até um local relativamente seguro, uma travessa da consolação, onde finalmente me abordaram e me espancaram em frente a minha namorada.Eu me emocionei em falar sobre esse evento, sei que o promotor perguntou propositalmente para mostrar a maldade da Mayra, mas ainda é uma coisa que me machuca, nesse dia do Ricardo, eu realmente achei que fosse morrer. Respirei fundo e voltei a falar - Quando meu agressor foi detido, ele contou que a mandante foi a Mayra e ela própria, em um surto de raiva no avião retornando ao Brasil, também confirmou que foi a mandante.
- Delegada, a senhora gostaria de acrescentar alguma informação ou vivencia que julga relevante ao caso?
- Não, a dor que tudo isso me causou é uma marca difícil de esquecer - Antes de eu descer do posto do depoente, olhei para Mayra. O ódio era quase palpável, a raiva que ela transpirava não dava para esconder, o franzir da testa era nítido e firme. O advogado de defesa levantou da bancada dele, me mostrando que o depoimento não havia terminado, iriamos continuar.
- Delegada, a senhora conheceu minha cliente em qual contexto?
- Eu fui formalmente apresentada a sua cliente na noite que eu fui atacada.
- Antes desse momento a senhora nunca havia visto minha cliente?
- Já havia visto sua cliente diversas vezes, inclusive no dia em que ela me abordou em uma padaria, me oferecendo o que eu quisesse para sumir com o caso dela.
- E como você soube que se tratava da minha cliente? - ai senhor que pergunta idiota advogado.
- Não sabia. Soube que é sua cliente hoje, não sabia nem que ela tinha advogado.
- Senhora delegada, peço que não caçoe de mim, estamos em um tribunal sério.
- Então o senhor faça a pergunta certa. Me perguntou se eu sabia que a Mayra era sua cliente, a resposta é não, soube hoje.
- Então vou reformular, permitindo melhor entendimento, quando foi a primeira vez que a senhora viu minha cliente? Se ela só foi apresentada um dia antes do seu ataque - o fdp fez entre aspas com o dedo”, quando ela lhe abordou na padaria como sabia que era a MAyra?
- A primeira vez que eu vi a Mayra foi na porta do jornal Doi Notícia. Antes de me abordar na padaria, ela já havia me abordado pelo celular, com mensagens.
- E qual foi ou era seu elo com a minha cliente?
- Nenhum, mal troquei palavras com ela - era nitido que o advogado de defesa estava se segurando e a Mayra na minha frente ficando mais irritada ainda.
- Delegada, a senhora conhece ou conheceu a sra Bruna Raissa? - o promotor, tambem prevendo o futuro lançou um “protesto excelencia. Qual a relevancia?”. A juiza respondeu com protesto negado, defesa prossiga - Delegada, a senhora conhece a sra Bruna Raissa?
- Sim, conheço.
- E qual era seu vinculo com a senhora Bruna?
- Eu namorei com ela por alguns meses no ano de 2023.
- E a senhora Bruna tinha qual vínculo com a senhora Mayra?
- Eu me pergunto isso até hoje. Eu não sei qual era o vínculo delas nesse período.
- Considerando que a senhora não sabia o vínculo entre elas, mas teve um namoro com a Bruna, companheira da Mayra nesse período, a senhora não teria um viés nessa investigação?
- Quando a investigação da Mayra iniciou, eu já não tinha nenhum relacionamento com a Bruna. Sendo assim, eticamente não havia nenhuma interferência. De todo modo, eu estava investigando o caso do matão do fundo, antes mesmo de conhecer a Bruna, então considerando o caso da Mayra como um desdobramento do caso do matão, não houve início a nenhuma investigação no mencionado período. E vale ressaltar que eu e a delegada Isabelle nós consultamos diversas vezes e em decorrência da minha experiência em sequestro e homicídio, eu me mantive sendo importante ao caso.
- Em algum momento a relação da senhora com a Sra Bruna teve interferência da minha cliente? - o promotor levantou novamente e questionou o objetivo da pergunta, pedindo protesto que foi aceito - Em algum momento a Sra investigou minha cliente sem mandato por conta da traição que a Sra sofreu por parte da Bruna?
- Senhor advogado, eu tinha tantas funções naquela época que eu não gastaria meu tempo investigando quem não precisava ser investigado. Mas se investiguei foi por faro e se estamos neste tribunal é porque eu estava certa com minhas hipóteses. Não faça os erros da sua cliente se virarem contra mim, eu estava no exercício da minha profissão. - falei isso em uma intensidade tão forte, tão firme que o advogado sossegou o facho dele e “ deu por encerrado” o meu depoimento.
Após a juíza autorizar, voltei ao meu assento na plateia. Iniciou-se as alegações finais, tanto da defesa como da promotoria. Nesse momento o promotor fechou o caso resumindo ao júri a agressividade da Mayra, como ela foi impulsiva em planejar mortes e como foi inconsequente em evadir fronteiras, ou seja, fugir. Já o advogado de defesa manteve a tese que a cliente dele não apresenta risco à sociedade, é réu primária, possuía emprego fixo e fez escolhas erradas por imaturidade pessoal, já que é uma menina do interior, chegou sozinha na cidade e amou, seu erro foi amar, cometeu erros por amar demais. Quase gorfei ao ouvir a tese dele.
Terminando as alegações de ambas as partes, a juíza determinou que o júri se ausentasse para determinar seus votos e a sentença. Para isso, a juíza também determinou mais uma hora de recesso. Eu novamente fui abordada pelo promotor que ofereceu a sala dele para que tomássemos café, não gosto de pegar as coisas dos outros, mas confesso que um café de graça, não é furto. Eu, a Isa e todos estávamos já cansados, desejando apenas a sentença final e ir embora.
Enquanto estávamos indo para a sala do promotor, eu enxerguei um salto conhecido, ou melhor, enxerguei a Bruna sentada em um banquinho, com um olhar longe, perdido. Eu não vejo ela desde a minha formatura e não é importante mais, mas ela com uma expressão tão quebrada que me chamou a atenção. A Isabelle entendeu e acenou pra mim, sem nenhuma palavra, como se simplesmente falasse: “Vai” - Me aproximei dela, tentando não assustá-la e sentei na cadeira ao lado e soltei rapidamente, sem grandes teatros: “Oi” - ela olhou pra mim, e com uma expressão exausta, olhar fundo e triste, abriu um sorriso como se tivesse achado alguma luz - Oii Flavinha.
- Como você “tá”?
- Ahhh - puxou o ar fundo e soltou - Como eu poderia estar? Ficou bem claro que tudo o que ela fez foi culpa minha. Eu estou quebrada.
- Sua culpa porque? - tive que perguntar.
- Ela se enfiou nessas coisas porque me amava, porque queria dinheiro para me acompanhar. E eu não consigo nem visitar ela no presídio.
- Bruna, não se culpe por nada não. A Mayra que procurou sarna pra se coçar. E ela que continuou depois. Ter pego dinheiro com um agiota é errado, mas até entendo. Mas traficar pessoas, mandar matar outras. Isso já é além de errei porque amei. Não se culpe por isso nunca - encostei a mão no ombro dela, tentando dar algum acalanto, sem me envolver.
- Eu tentei visitar ela no presídio, na verdade eu fui uma vez, mas não consigo mais passar por isso, aquela revista íntima na entrada é deplorável, é nojento. Depois comer naquele espaço sujo, um cheiro de esgoto. Aquelas outras mulheres me olhando, assediando. Eu nunca mais consegui voltar, me sinto tão mal por isso.
- Bru, você sabe o quanto direta eu sou não sabe? - ela confirmou com o rosto - eu acho que você deve ir viver, linda de bonita. Você não pediu dinheiro para nenhum agiota, você não ameaçou ninguém, não aliciou ninguém, porque deveria visitar alguém em presídios, perder sua vida em uma fila de visita íntima. Olha que distorção social. Sinceramente, acho que nem deveria estar aqui, ouvindo esse julgamento. Essa sentença não é sua, não é sobre você. É sobre a Mayra e os erros delas, as consequências que ela deve arcar. A sua punição vai ser se lembrar dela, do seu envolvimento com ela, mas isso não precisa ocorrer dentro de um presídio.
- Não é simples Flávia.
- Nunca foi e nunca vai ser. Eu não sou culpada pela morte da Fabíola, mas por quantos anos não me culpei, não deixei de viver por causa dessa culpa? A culpa é uma sentença que nós mesmos nos aplicamos. Você já cumpriu a sua. Não deixe de viver por conta dos erros dos outros, não merece isso. Puxa o ar fundo, e pensa nas coisas boas que você fez, não acho que precise ver esse fim dela. Eu preciso, eu fui atrás dela, eu prendi ela, mas nem por isso e principalmente por isso, não sou culpada por nada que aconteça com a Mayra. Não pegue essa culpa para você - levantei da cadeira, passei a mão no rosto dela e completei - Você não é uma pessoa ruim Bru, só precisa escolher o lado certo - sorri com calma e serenidade e segui em direção a sala do promotor, dei o apoio que ela precisava, espero que me escute, ao menos uma vez. Não olhei pra trás, não confirmei se ela ainda estava ali.
Uns 40 minutos depois, estávamos eu e a Isabelle já estávamos no plenário, esperando a juíza entrar. O mesmo ritual anterior se repetiu, a sala foi enchendo, os advogados retornaram, depois a Mayra algemada foi trazida ao plenário, depois os membros do júri e por último a juíza. Após as apresentações formais de sua entrada, iniciou a leitura final da sentença penal condenatória.
- Senhores presentes, iniciarei a leitura da sentença Penal Condenatória, peço que não haja manifestação da assistência. Essa é uma decisão provisória, pois cabe recurso às partes. Leitura da Sentença da Sra Mayra Isacatti. Qualificadas no auto, foram denunciadas e pronunciadas pelos artigos penais 129 - lesão corporal; art 351 - fuga; art 121 homicídio e art 149 - tráfico de pessoas, todos do código penal. Na data de hoje submetida a julgamento e tribunal do júri desta comarca, oportunidade que o Ministério Público sustentou a condenação. Nos agravantes de lesão corporal grave, levando a perigo de vida; homicídio duplamente qualificado por motivo fútil e para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime. E requer a somatória das penas máximas previstas nestes artigos. A defesa da sra Mayra sustenta a ausência de dolo, postula a desclassificação dos agravantes e solicita a atenuação por confissão espontânea.
Formulados os quesitos contra a ré e postulado os fatos, os jurados reconheceram a autoria e refutam a tese da defesa de ausência de dolo e negaram a absolvição, assim como reconheceram as qualificadoras de motivo fútil e ocultação para impunidade de outro crime. E negam, portanto, a absolvição. Os jurados reconheceram a existência do fato - a juíza parou para tomar um gole de água para molhar a boca, mas já era nítido o quando a Mayra estava cabisbaixa, com as mãos sobre o rosto, talvez chorando.
Considerando assim a soberana condição do conselho de sentença e acolhendo na integral a acusação, declaro condenados a ré Mayra Isacatti nas sançôes dos artigos 129, 351,121 e 149 - houve um murmurinho da plateia, afinal muitos eram amigos do Marcius Evangelista, agradecendo pela condenação da mandante do assassinato dele - Passo a aplicação da pena: Em relação a re Mayra Isacatti, com base nos atigos de condenação, estabeleço a pena base de totalidade de 63 anos, com os qualificantes defino pena provisória de 30 anos.
Pelo concurso de penas em conformidade com o artigo 69 do código penal, a pena privativa de liberdade é de 29 anos, 11 meses e 29 dias, em regime fechado para a ré Mayra Isacatti. Não podendo apelar em liberdade. Processo estas anotações e publicações no rol dos culpados - A juíza bateu o malhete (martelinho do juiz) encerrando qualquer outra pontuação.
As pessoas em volta esbravejavam felizes, outras ficaram tristes, imagino que algum familiar da Mayra, não sei. A Isa ao meu lado comemorou, passou o braço por mim me sacudindo, mas eu estava desnorteada, como se um peso de mil kilos tivesse saído da minha coluna, dos meus ombros. Acabou! Essa porcaria de caso acabou.
Eu era uma pessoa tão diferente quando tudo isso começou, era uma investigadora, beijando um monte de boca por aí, tentando achar uma boca certa para esquecer a melhor de todas, a da Fabi. Me envolvi com a Bruna, nesse meio tempo me coloquei em confronto direto com traficante, fui conferir corpo no IML, mexi em corpo enterrado, terminei com a Bruna, amadureci e me permiti conhecer Bia, perdi a Fabiola, consegui uma paz tão grande com a partida dela. Ah, cresci tanto tanto desde que esse caso começou que a atonicidade é real, o que será de mim agora? Qual o próximo passo? Não sei, mas quero sair desse fórum e encontrar minha mulher, encontrar a Bia e encher ela de beijos. Nunca me envolveria em tanta sujeira só para ter posses para ser vista por alguém, se a Bia me quiser, será pela minha simplicidade, honra, maturidade e amor.
Ah, e pra finalizar estou sim muito feliz com a pena de reclusão da Mayra! Se ela realmente cumprir essa pena, tiramos um lixo humano das ruas, dos aeroportos e principalmente das comunidades, aliviando jovens. Sinto como se eu tivesse protegendo alguma criança de alguma forma. Sei lá, espero ter ajudado alguma criança, alguém, tirando ela das ruas.
Eu fui sair do fórum já passava das 23:40. Estava tão tarde que eu nem iria mandar mensagem pra Bia avisando que estou indo embora, ela já deve estar dormindo. Mas conforme eu andava em direção a rua, com a Isa falando sem parar do meu lado, meu celular começou a apitar. Claro, mais de 12 horas sem mexer no celular, sem contato. A Isa foi falando e acabei abrindo o celular. Achei estranho 27 ligações da Bia. Ela sabe que estou no fórum. Estranho. Acessei as ligações perdidas e tem ligação da minha mãe, logo de manhã, umas 8h. Minha mãe me ligando? Não fala comigo faz tempo. Eu hein. Enquanto eu olhava para retornar a ligação, o celular tocou, era a Beatriz.
- Amor, tudo bem BI?
- Flávia do céu, que difícil falar com você. Por sorte liguei na tv agora e vi que acabou o julgamento.
- É, acabou agora a pouco. Foi só o tempo de conseguir sair do fórum.
- Como ela estava? Surtou com a sentença?
- Não sei amor, não olhei para ela. Sabe que no final sou uma coração frouxo, por mais que eu esteja bem feliz, recebeu o que era necessário.
- Está vindo pra casa?
- Indo sim amor. Tá tudo bem? Você me ligou várias vezes.
- Ehhh, humm.
- Vai Bi, o que está rolando? Tem ligação da minha mãe, então alguma coisa aconteceu. Ela só me liga quando a Roberta apronta e precisa de ajuda.
- Exatamente.
- Ah, caramba. Ela tá em algum DP? Não vou ir soltar ninguém. Nunca fiz isso.
- Nao Fla, amor, vem pra casa, aqui a gente conversa.
- Se eu chegar em casa, vou tomar um banho, uma xícara de café e dormir. Não saio mais. Então me fala onde ela está.
- Ela está na santa casa. Posso te encontrar lá ou você passa em casa pra me pegar?
- Eu passo lá, você não precisa ir. Me viro lá.
- Te encontro lá Flavinha. Quando você chegar me fala que te encontro.
- Bia, tá tarde. Não precisa ir, eu me ajeito lá.
- Quando chegar me fala. Te amo! - ela me respondeu rápido, acelerado, eu não entendi exatamente o que aconteceu, e principalmente o porque a Bia está envolvida. Estou cansada, feliz pela condenação da Mayra, mas exausta. Me despedi da Isabelle que seguiu para o estacionamento para pegar o carro dela e eu segui para a rua lateral do fórum, onde deixei minha moto estacionada. Espero que continue lá minha motinha velha, CG de guerra.
Subi na moto, apesar de exausta, atenta, coloquei o capacete e pau, acelerei. Peguei a Avenida Abrahão Ribeiro, viaduto Amaral Gourgel. Uns 15 minutos depois eu já estava estacionando na lateral do Hospital Central. Quem um dia vier a São Paulo, vale visitá-lo é quase um castelo medieval, gótico, construído há mais de 100 anos, no centro de São Paulo. Um espaço notoriamente histórico, que acolheu revoltas, grandes catástrofes, atendeu e cuidou de muita gente.
É um quadrilátero gigante, cheio de pequenos pavimentos, e eu a meia noite, sem saber em qual a maluca da Roberta se enfiou e muito menos em qual a Beatriz estava me esperando. Liguei pra Bia, e ela não me atendeu. Fui onde achei óbvio, a recepção do pronto socorro central, eu já havia vindo aqui outras vezes, trazer preso machucado, trazer vítima para atendimento, mas nunca vim por um conhecido, nem dá pra falar que a Roberta é familiar.
- Boa noite, por favor - fui educada, mas como em todo lugar sobrecarregado ou com profissional cansado, fui respondida sem muita calma.
- Fala!
- Eu queria saber de uma paciente, em qual local ela está internada.
- Sabe onde ela deu entrada?
- Não moça, eu estava no trabalho e fui avisada que minha irma deu entrada aqui no hospital. Não sei onde ela está.
- Qual o nome dela?
- Roberta Albuquerque da Silva.
- Tá na ginecologia. Proximoooo - e fui quase que empurrada pela próxima pessoa da fila. Eu, sem eira nem beira, liguei novamente para a Beatriz, que novamente não me atendeu. Então pensei em sozinha achar onde ficava a tal ginecologia. Abordei o segurança que estava na porta do pronto socorro e pedi orientação.
- Boa noite, minha irmã está internada na ginecologia. Saberia me dizer onde é, como faço pra chegar?
- Sim, pega o corredor até o final e dobra a direita, vai sair do prédio, vira a esquerda. Vai parar na recepção - eu na calada da noite, andando por um prédio gótico centenário em São Paulo, ainda bem que não tenho medo dessas coisas. Quando eu parei de frente com o tal pavilhão da ginecologia, encontrei facilmente a Dona Creuza, mirradinha como sempre, parecia que estava com frio. Para quem não lembra, essa é a minha mãe.
- Flávia! Aqui - esticou o bracinho fino e magro me chamando - Oi filha. Tá boa?
- O que está acontecendo com a Roberta? Eu estava no tribunal, não conseguia atender ligação. Quando eu saí a Bia me ligou.
- Eu sei filha - me irrita ela falando em voz aveludada - eu que liguei pra Bia, precisava falar com você.
- Nem sabia que você tinha o contato da Beatriz.
- O Sr luiz que me passou.
- Sr Luiz, o pai da Fabi?
- É Flávia, você não me atendia. Precisava tentar falar com você.
- Tá. Eu to aqui agora, qual a merd* que a Roberta fez e que eu preciso resolver? Eu já aviso e reforço o que eu falo há anos, não vou dar mais dinheiro nenhum pra traficante nenhum. A Roberta que vire com as dívidas dela.
- Eu sei filha, senta aqui, deixa a mãe conversar com você.
- Vai mãe, fala logo, para com esse mel todo, sabe o quanto me irrita. A senhora nunca foi delicada comigo.
- Tá, a sua irmã “tava” grávida.
- Aff, a Roberta não tem noção de nada mesmo. Não tem maturidade pra cuidar dela, como vai cuidar de uma criança? Cadê a criança? Tá viva? Porque assim, estamos em uma maternidade, deve ter nascido.
- É exatamente isso que quero falar com você, filha.. O bebe está vivo, com alguns probleminhas de saúde, mas está bem.
- Probleminhas de saúde? Coitada dessa criança tendo nascido da Roberta. Ela fez alguma consulta de pre natal?
- Não filha, nenhuma. E o bebe nasceu até que bem.
- Humm, tá, mas o que eu e a Beatriz temos a ver com isso?
- Não sente nenhuma pena do que está acontecendo filha? - falou com a voz mais aveludada ainda, calma, amorosa.
- Pára Dona Creuza, não vem me lamber não. Vai querer que eu faça o que? Acomode a Roberta e a criança em casa? Crie a criança? Eu tenho dó da criança, com uma mãe sem noção dessa. A criança não está com síndrome de abstinência não? Porque a Roberta não cheira terra porque não é branca.
- Um dos probleminhas dele é isso, a droga que sua irmã usou na gestação.
- Coitado - realmente fiquei com dó, a criança não tem culpa das merd*s que ela faz - A Beatriz chegou aqui já? Falou que estaria aqui.
- Ela está lá em cima, com o bebe.
- Lá em cima? O que a Bia tem a ver com isso? Me leva lá onde ela está? Ai Beatriz. Cadê a Roberta? - Minha mãe entrou comigo no prédio, subimos uma escada, em silencio, mas eu percebia os olhares dela. Seguimos pelo corredor até um espaço colorido, de cor suave, imaginei que fosse o berçário. Mas não entramos, minha mãe bateu na porta e lá de dentro saiu um jovem, de uns 30, no máximo 35 anos, vestindo um jaleco, deve ser médico. O rapaz cumprimentou minha mãe e ela me apresentou:
- Essa é a Flávia, minha outra filha.
- Tudo bem? Vamos aqui na salinha, podemos conversar um pouco? - eu já estava incomodada com essa ausência de verdade, deixem claro o que está acontecendo. Entrei em uma sala lateral à entrada do berçário, seguido da minha mãe e atrás do médico. Ele indicou a cadeira, mas eu não queria sentar.
- Não precisa doc. Eu quero saber o que está acontecendo? É só vocês pararem com esse lenga lenga e me falar a real - não fui grossa, mas fui firme - Cadê a Roberta? Cadê a Beatriz e cadê o molequinho?
- Dona Flávia, o que a senhora está sabendo da atual situação?
- Eu não sei nada. Eu passei meu dia trabalhando, estava em um tribunal, completamente sem celular. Quando eu consegui atender, minha namorada me ligou, falou que minha irmã Roberta estava internada aqui e eu precisava vir urgente. Quando cheguei aqui, minha mãe falou que a Roberta pariu um molequinho. Depois disso eu não sei mais nada - o médico, bem atencioso, acompanhou minha fala atentamente. Quando eu parei de falar ele logo começou.
- Exatamente. Sua irmã deu à luz a um bebe. Ele está na nossa UTI neonatal em acompanhamento. Eu não consigo dizer muitos detalhes dele, pois quem acompanha é a pediatria e vira daqui a pouco conversar conosco. Quanto a sua irmã, a sra Roberta, ela deu entrada ontem em nossa unidade, sobre importante efeito de droga, provavelmente cocaína. Tentamos reverter o caso dela na emergência, mas a situação dela era bem crítica, conseguimos salvar apenas a criança e em um parto de emergência.
- A Roberta morreu? - perguntei diretamente.
- Infelizmente sim, dona Flávia - Eu puxei um ar de onde não tinha e por muito pouco eu não pulei e comecei a comemorar. Alguma coisa me fez apenas receber a notícia e não exteriorizar. Mas tem ideia da paz que isso me traz, a leveza da redução de problemas?
- Tá.. hum, tudo bem. Isso iria acontecer uma hora, confesso que até demorou muito pelo tanto de droga que ela usava e a vida arriscada que ela levava. E a criança? O que vai acontecer com o molequinho?
- Então, é isso que precisamos falar com a senhora… - o médico estava com medo, tenso, olhou pra dona Creuza.
- Vai, desembucha mãe. Sabem quem é o pai? Alguma coisa do tipo?
- Filha - voltou a falar em voz de veludo - não sabemos quem é o pai. Eu não posso ficar com o bebe, não tenho como ficar com ele.
- A senhora quer o que? Quer que eu fique com a criança. Negativooo.
- Flavia, filha, eu já errei em duas, até com você a mãe errou. A sorte é que você sempre teve uma cabeça boa, estudou, cresceu na vida.
- Cresci por esforço meu, se dependesse da Roberta, eu estava traficando com ela.
- Mas não estava, olha você hoje, casada, delegada, se formou, foi longe. Pode passar isso para esse menino.
- Nossa, não tenho nem o que te responder. Pra você eu sou só um objeto de resolver problemas né?! Ninguém pensa em mim nunca. Me dá licença, vou ligar pra Beatriz. Ela deve estar me esperando.
- A Bia está lá dentro, na UTI neonatal.
- O que?
- A sua esposa está lá dentro, com o bebe, na UTI neonatal.
- Eu não sou casada com ela ainda. Quero falar com ela, por favor - eu estava com dor no peito, uma sensação que não tenho há muito tempo, uma raiva que eu apenas queria gritar, me posicionar, mas sem ser grosseira.
- Vem comigo dona Flávia, vou levar a senhora lá - eu não olhei mais pra minha mãe, eu apenas olhei para o médico e acenei com a cabeça. Segui ele para fora da sala e depois por um corredor pequeno e pude finalmente entrar por trás da porta escrito “berçário”. Era um espaço amplo, separado por uma parede de vidro, isolando dois ambientes. O da direita, que não vi a Bia, era de vários berços, alguns com criança e outros tantos vazios. Mas do lado esquerdo eu enxerguei atrás de uma das incubadoras, sentada na poltrona, minha namorada, a Beatriz. No colo dela, de costas pra mim, uma criança, no caso um recém nascido, ainda com aparelhos de monitorização e um negócio de respirar no nariz. Por cima deles estava uma manta surrada, velha do hospital.
Quando a Bia percebeu minha presença, ela me olhou de um jeito que nunca vi, havia vida nos olhos dela. Os olhos brilhavam de um jeito magnífico. Ela abriu um sorriso ao mesmo tempo que mostrava sua felicidade, me pedia desculpa, isso sem trocarmos uma única palavra. A mão dela estava uma na bundinha da criança, segurando e outra na cabeça, dando apoio.
Meu peito estava para explodir de tensão e de raiva de toda aquela situação. Eu estava me sentindo traído pela Bia, que passou por cima de mim, usada pela minha mãe. Raiva por ter que resolver os problemas da Roberta. Nesse momento eu sou uma bomba de emoções. Após alguns segundos olhando aquela cena e mentalmente me negando, dei alguns passos em direção a Bia, mas sacudindo a cabeça nitidamente em reprovação e negação.
- Oi - foi o que a Bia me disse, tirando a mão da cabeça dele e esticando pra mim. Apesar de toda a minha raiva, eu não sou grosseira, agachei ao lado dela, tentando manter a mesma altura do olhar - Olha ele.
- Bia, porque você está aqui?
- Amor, quando sua mãe falou, eu não consegui não vir. É seu sobrinho.
- Beatriz, Beatriz, não podemos fazer isso. Não tem como criar esse menino. Não faz sentido isso - falei baixinho, segurando a mão dela e não olhando para a criança.
- Claro que faz sentido amor. Ele não tem ninguém pra amar ele, e nós podemos amá-lo.
- Bi, a gente nunca conversou sobre isso, nunca falamos sobre maternidade, não somos nem casadas. Eu não sei nem cuidar de mim, como vou cuidar dele. Sem contar que ele vai ter problemas de saúde, o tanto de droga que deve ter nele. Não dá Bia, não faz sentido.
- Amor, nunca falamos sobre filhos, porque eu não achei que fosse possível, porque eu tinha medo de falar com você sobre isso. E casar é o de menos, a gente já mora juntas, a gente só não tem papel escrito, mas você é minha esposa. Ele precisa de uma família, podemos ser nós. Eu não quero entregar ele pra adoção.
- Bia, não é assim, as coisas não são simples assim. Deve ter mil documentos, não temos nada em casa. Ah Bia, não dá cara - levantei, continuei fazendo não com a cabeça.
- Vem cá, olha ele. Está dormindo no meu colo, um sono leve, gostoso. Só olha ele amor.
- Não quero olhar ele. Não quero. Cara, preciso dar uma volta, preciso respirar, preciso respirar - Não respondi, nem falei nada com a minha mae que estava vendo a cena toda, muito menos para o medico que estava olhando tudo. Só sai pelo mesmo caminho que entrei, desci as escadas. Eu queria um lugar aberto, puxar um ar gelado da noite paulistana. Que ideia mais maluca, eu mãe? Qual a chance disso dar certo. Fui andando pelo quarteirão, dentro do hospital ainda, andei meio sem destino, mas acabei esbarrando em uma lanchonete. Imagina o preço, lanchonete de hospital. Logo minha própria mente falou: Você pode, delegada!
Entrei na lanchonete, fui direto no balcão e pedi um café expresso e um pão de batata. Sentei na mesinha pra poder consumir. Olhei no relógio batia 2 da manhã, eu estava exausta, cansada, estressada, nervosa. Nem tive o prazer de comemorar a condenação da Mayra. Que caos.
O rapaz entregou o café e o pão. Dei uma mordida, estava quentinho. Depois um gole do café sem adoçante, puro. Abri meu celular e procurei uma foto da Fabíola, tenho tanta saudade dela. Ela saberia me acalmar nesse momento, talvez já tivéssemos um filho nosso, era nosso sonho, inseminação. Nunca marcamos uma data específica, até porque queríamos nos casar antes de morar juntas, fazer tudo bem antigo, bem cafona como ela dizia. Achei uma foto dela em uma excursão que fomos para Campos do Jordão, aqui em São Paulo mesmo. A Fabi era tão linda, tão companheira
Mas a Fabi morreu e eu tenho apenas saudade e saudosismo. Não posso nem devo deixar de viver por conta da falta dela. Hoje tenho a Beatriz, linda, olhão caramelo, cabelo nos ombros e como ela estava encantada com aquela criança. Nunca vi ela com um olhar tão delicado, tão maternal. Talvez nunca tenhamos conversado sobre isso por eu não ter aberto esse espaço, eu e meus medos, minhas verdades absolutas. Sem contar os próprios medos da Beatriz, talvez ela própria nunca tivesse se permitido por conta de toda a violência que viveu. Não sei.
Eu não olhei o menino, nem sei a situação dele, mas realmente será que eu deixaria ele lá abandonado para outro adotar? Se eu consegui crescer na vida, superar o meio, estudar, não devo abrir caminho para os outros como outros abriram pra mim? A Roberta cometeu tantos e tantos erros na vida, será que eu como cuidadora dessa criança, não posso ajudar ele a não repetir os erros da mãe dele. E eu seria o que? Mãe, tia, cuidadora? Nem sei que posto eu assumiria.
E a casa? Como dá para organizar? Hoje o espaço que era o quarto da Bia é um escritório, duas escrivaninhas. Vamos precisar esvaziar esse quarto e ir atrás de berço, comoda. Nem sei o que uma criança dessa idade precisa. Apesar que, se pensarmos no floreado, vai ter o que realmente precisa, uma casa, comida e família. Será que eu e a Beatriz conseguimos criar uma criança? Mas se pensar que minha mãe conseguiu criar três em condições de baixa renda, sozinha, até dá pra criar bem uma criança.
E eu, toda bruta, toda acelerada, consigo orientar alguém? Consigo dar carinho para alguém? Até duas horas atrás eu estava comemorando uma condenação? Ou será que no fundo só estou com medo de seguir em frente? Medo de finalmente ter atingido aquilo que sempre procurei, segurança, família, carreira. Será que esse bebe não é só o coroamento de uma grande evolução pessoal minha? De tudo que lutei para poder ter a Bia e um pequeno ao meu lado? São tantas dúvidas, tantas pontuações. Se a Fabíola estivesse comigo, ela mesma falaria para eu parar de problematizar e simplesmente sentir e se eu sentisse saberia da resposta, ela sempre me disse isso.
Peguei um pão de batata e um café para Bia, minha companheira, minha apoiadora. Paguei a conta e voltei para o local da maternidade, respirando um ar mais leve que quando sai. Minha mãe estava no corredor novamente, no mesmo lugar que eu havia visto antes, mas não falei com ela, subi direto. Toquei a campainha do berçário e quando autorizado, entrei.
A Beatriz estava praticamente na mesma posição que eu havia deixado ela. Observei ela por alguns segundos, a distância mesmo. Seu olhar estava mais apreensivo que antes, ela fazia carinho nele, mas estava com o olhar pensativo, um pouco franzido na testa. Eu entrei em silêncio, mas acabei chamando a atenção dela. Quando ela levantou o rosto, me olhou buscando uma resposta, mesmo que eu não quisesse, jamais poderia decepcionar essa mulher linda, companheira. Conforme fui andando, acenei a cabeça para cima e para baixo, sem trocar palavras. Quando ela entendeu o significado, os olhos encheram de lágrimas e ela abriu um sorriso calmo, suave e verdadeiro.
Agachei novamente do lado dela, ainda sem palavras nenhum, só atos. Dei um beijo na testa dela, demorado, selando nosso acordo. E finalmente olhei para ele, ainda todo pequeno, baixo peso, franzino, com cano no nariz, cheio de trecos hospitalares. Eu posso orientar ele, posso amar ele, sendo sincera, acho que já amo. Ali passei a mão pelo ombro dela, a Bia encostou a cabeça no meu peito e ele ficou encaixado nela, com os olhinhos fechados sentindo o calor, sentindo o calor da nova família dele. Flávia, Bia e o pequeno.
Fim do capítulo
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