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Capitulo 1
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Capítulo 1 – Sofia
O som dos galhos se quebrando sob os cascos dos cavalos era a trilha sonora das manhãs de Sofia. O vento soprava suave sobre o capim dourado, e os primeiros raios de sol tocavam os telhados de zinco dos galpões da fazenda como se abençoassem o trabalho que estava prestes a começar. A vida no campo seguia seu ritmo — constante, silencioso, exigente. E agora, mais do que nunca, tudo estava sob a responsabilidade dela.
Sofia ajeitou o chapéu de couro sobre a cabeça, passou os dedos pelos cabelos presos em uma trança frouxa e respirou fundo. A brisa carregava o cheiro de terra molhada, de bosta de vaca e de liberdade — tudo que ela conhecia desde que se entendia por gente. Aquela terra não era apenas o legado do pai, era uma extensão do próprio corpo dela. Cada cerca construída, cada cavalo domado, cada muda plantada, cada colheita... tudo tinha a mão dele. E agora, ela precisava ser essa mão.
Já fazia seis meses desde que seu pai, Anselmo, falecera. Uma queda do cavalo. Ironia do destino. Homem experiente, dos mais firmes, conhecedor de tudo o que dizia respeito ao campo. Mas o destino não se importava com experiência. Não perguntou se ela estava pronta. Só levou. Assim, de um dia pro outro, Sofia se viu com uma fazenda inteira nas mãos, uma mãe enlutada e um vazio que parecia não ter fim.
Eunice, sua mãe, tentava manter-se forte. Às vezes, era ela quem segurava a filha, outras vezes era o contrário. As duas se alternavam entre lágrimas e silêncios. Mas mesmo nos piores dias, havia café quente na mesa, pão assado no forno à lenha e a firmeza nos olhos de quem sabia o quanto aquele pedaço de chão tinha custado. Sofia havia aprendido com o pai a respeitar a terra, com a mãe a respeitar o tempo. Era essa mistura que agora a sustentava.
Ela caminhou até o curral, onde João, um dos peões mais antigos, dava comida ao gado. Acenou com a cabeça em cumprimento e seguiu para verificar os cavalos.
— Tudo certo, dona Sofia — disse ele, com a voz rouca e cansada, mas carregada de respeito.
Ela ainda se acostumava com o "dona". O título doía. Era sinal de ausência. Mas ela não reclamava. Aquilo era dela. Com esforço, suor, noites mal dormidas e privações. Mas era dela.
De volta à sede da casa, sentou-se na varanda com uma xícara de café. O olhar perdido no horizonte, onde as colinas se encontravam com o céu. Pensava no pai. Em como ele sorria quando ensinava a laçar. Em como brigavam porque ela insistia em subir no cavalo sem sela. Em como ele dizia que um dia ela teria que ser mais do que filha — teria que ser líder. E agora era.
Mas por dentro, ainda havia a filha. A mulher que se escondia por trás da rigidez da lida. Que amava em silêncio. Que já entregou o coração e saiu ferida. Que jurou nunca mais se permitir. A dor do passado era uma cicatriz profunda, invisível a quem olhava de fora. Sofia era firme, decidida, mas guardava feridas que ninguém via. Seu último amor fora como um vendaval: entrou sem pedir licença, virou tudo de cabeça pra baixo e foi embora deixando destruição. Desde então, ela erguera muros — altos, frios, seguros.
As lembranças da antiga relação eram flashes. Sorrisos rápidos, toques furtivos, promessas não cumpridas. A outra mulher partira sem aviso, sem explicação. Apenas um bilhete. "Você merece mais do que posso te dar." E isso bastou para que Sofia enterrasse de vez a ideia de se apaixonar de novo. Amor era bom só nos livros. Na vida real, machucava.
Mas nem tudo era dor. Sofia tinha Júlia, sua melhor amiga desde os tempos da escola. Júlia era o oposto dela: falante, expansiva, cheia de energia. Trabalhava na escola da cidade como professora de história e, sempre que podia, aparecia na fazenda com novidades, fofocas e bolo de cenoura. Era com ela que Sofia desabafava — ou tentava.
Naquela manhã, Júlia chegou com o cabelo preso num coque bagunçado e um vestido estampado de flores.
— Bom dia, minha fazendeira preferida! — disse, entrando na varanda sem cerimônia.
— Trouxe bolo?
— Claro. E fofoca.
Sofia sorriu pela primeira vez no dia.
— Senta. Tô precisando dos dois.
As duas conversaram por horas. Júlia contava sobre a cidade, os preparativos para a festa de aniversário do município, os novos moradores, as mudanças no hospital. Sofia ouvia mais do que falava, como sempre. Mas a presença da amiga era um alívio. Um lembrete de que, apesar de tudo, ainda havia vida pulsando.
Quando Júlia finalmente foi embora, o dia já se inclinava para o fim. Sofia caminhou até o estábulo, acariciou o pescoço de Ventania, seu cavalo preferido, e sussurrou palavras que nem ela mesma sabia direito.
— Mais um dia... a gente vai seguindo, né?
De volta ao quarto, encarou o espelho. Os olhos castanho-escuros refletiam cansaço, mas também força. O rosto levemente bronzeado pelo sol, os traços firmes, o queixo erguido. Era bonita, embora não se visse assim. Pegou uma fotografia do pai na prateleira. Ele estava rindo, com um chapéu torto na cabeça e um copo de café na mão.
— Espero que esteja orgulhoso de mim — murmurou.
O silêncio respondeu. Mas era um silêncio diferente. Não o da ausência, mas o da memória.
Sofia deitou-se, o corpo exausto, a mente inquieta. Pensou na festa que se aproximava. Pensou nas contas que precisava pagar, nos bezerros recém-nascidos, nas mangas amadurecendo. Pensou em como tudo parecia grande demais para ela. Mas também pensou em como já tinha vencido tanta coisa. No fundo, havia uma chama acesa. Pequena, tímida, mas viva. A chama de quem ainda acredita — mesmo que em segredo.
E então, antes de dormir, olhou pela janela uma última vez. O céu estava limpo, cheio de estrelas. E ali, naquele infinito pontilhado de luz, Sofia sentiu uma presença. Como se seu pai ainda a observasse, ainda a guiasse.
Ela fechou os olhos. Amanhã seria outro dia.
Fim do capítulo
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Zanja45
Em: 26/04/2025
Já deu para perceber que Sofia tinha uma ligação muito forte com o pai. E a partida dele fez com assumisse muitas responsabilidades. - mesmo não se sentindo pronta - No entanto, parece que ela tem dado conta do recado, apesar das preocupações contante em relação as questões da fazenda.
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