Parte IV - Lisboa
A noite passou tranquilamente com o som aconchegante da chuva batendo na janela. As duas conversaram por horas a fio até pegarem no sono, tal como faziam pelo celular quando estavam longe uma da outra. Só que dessa vez, dormiram juntas e emaranhadas no pequeno colchão de solteiro no chão da sala. As cenas de terror que haviam testemunhado horas atrás agora pareciam distantes, o fato de estarem juntas finalmente, era o que realmente ganhava importância naquele momento.
Quando Maya acordou, sentiu o calor do corpo de Beatriz colado atrás de si, encaixado no seu em uma conchinha perfeita. Quase como se uma fosse extensão da outra, moldadas como se tivessem sido feitas para se entrelaçarem dessa maneira. Aquela conversa antiga que ela nunca tinha levado a sério de encontrar a tampa da panela ou a metade de laranja parecia, de repente, fazer total sentido.
Antes de se encontrarem pessoalmente, Maya já tinha uma leve intuição de que se dariam super bem. E agora, naquele momento, pessoalmente, ela não podia estar mais certa.
Beatriz então se mexeu levemente, seus braços a trouxeram ainda mais pra perto, enfiou a cabeça no vão do seu pescoço.
- Bom dia. - Disse baixinho.
- Bom dia.
- Vamos levantar? – Bia perguntou.
- Pra ser bem sincera, queria passar o dia todo grudada em você.
- Acho que minha cama é bem mais confortável pra fazermos isso. - Então disse baixinho em seu ouvido: - Entre outras coisas que to louca pra fazer com você.
- Vestidas ou não, estou entrando - Dandara anunciou entrando como uma bala na sala. Usava um conjuntinho de pijama de algodão confortável, estava descalça. – Desculpe interrompê-las, de novo! Mas vocês precisam ver isso!
Ela ligou a televisão, e, na principal emissora do país, uma matéria cobria os acontecimentos da noite anterior:
A Escola Estadual Professor Galdério da Silva foi cenário de uma noite de terror durante a reunião de ex-alunos realizada ontem, na capital paulista. A responsável pelo ataque foi presa e encaminhada ao Centro de Detenção Feminino. Em seu celular e computador, as autoridades encontraram conteúdos criminosos ligados a grupos de extrema direita, incluindo apologia ao naz1smo, fóruns extremistas, planejamento de ataques e discursos de ódio direcionados a minorias.
Outros quatro envolvidos, entre eles um menor de idade, também foram detidos e levados à delegacia. O pai da jovem responderá por porte ilegal de arma de fogo e por omissão de cautela, já que a arma utilizada no crime estava ao alcance da filha. Dependendo da investigação, ele ainda poderá ser responsabilizado por negligência no armazenamento do armamento.
Felizmente, não houve vítimas fatais, mas o impacto psicológico do ataque preocupa especialistas. A Secretaria de Educação anunciou que oferecerá suporte psicológico contínuo para alunos, funcionários e familiares afetados, incluindo atendimento emergencial e acompanhamento terapêutico a longo prazo. Equipes de psicólogos e assistentes sociais já foram mobilizadas para a escola, oferecendo apoio imediato e desenvolvendo estratégias para lidar com os traumas resultantes da violência.
Beatriz soltou um suspiro pesado, esfregando o rosto com as mãos.
- Nossa, que pesadelo...
Dandara desligou a televisão.
- O mais importante é que nós estamos bem. - Maya disse, embora sua voz ainda carregasse um peso invisível.
Dandara balançou a cabeça devagar, ainda processando a notícia.
- Eu nunca vou entender esse tipo de gente… - murmurou, cruzando os braços. - É como dar um tiro no pé defender esse tipo de merd*. É muita burrice. Eles pensam o que? Que num campo de concentração estariam do lado dos guardas?
Beatriz soltou um som de desgosto.
- Pois é… E o pior é que esse tipo de pensamento extremista tem se espalhado igual doença.
O silêncio que se seguiu foi breve, mas carregado. Maya pigarreou, como quem quisesse afastar o peso do assunto.
- Bom… O que nos resta agora é seguir em frente.
Dandara assentiu e suspirou.
- É... Falando em seguir em frente, estou passando um café pra gente. Vocês podem dar um pulo na padaria aqui do lado?
Beatriz trocou um olhar com Maya antes de responder:
- Claro.
Do lado de fora, as duas caminharam de mãos dadas, sentindo as gotículas de chuva refrescando suas peles.
- Você fica até quando? - perguntou Bia.
- Não sei. Para ser sincera, pensei que nunca mais voltaria.
- E sua família? Sei que vocês não se dão bem...
Maya soltou um suspiro baixo.
- Depois que minha mãe morreu, eu deixei de ter uma família. Acho que eles só fingiam me tolerar por causa dela. Meu pai é revoltado com o fato de eu ter “virado mulher para ficar com mulher”. Como se eu tivesse escolhido sofrer preconceito por “opção”. Como se eu não tivesse nascido exatamente assim.
Beatriz apertou suavemente sua mão.
- Você não está sozinha. Tem a mim, tem a Dandara… Tem quem realmente se importa com você.
- Eu sei… - Maya desviou o olhar. - Mas fiz minha vida longe daqui. E agora estou de volta. - Ela fez uma pausa antes de completar, em um tom mais baixo: - E agora tem você.
Beatriz parou de andar e virou-se para encará-la.
- O que tem eu?
- Você nunca tinha deixado claro, até ontem, que me via como mais do que uma amiga.
- E você também não.
- Então estamos empatadas.
Elas sorriram, mas Maya logo abaixou a cabeça, sua expressão ficando mais séria.
- Eu... eu quero, Bia. Mas tem toda essa história que eu carrego comigo, tudo o que passei para chegar até aqui. Às vezes, me pergunto se vou ser o suficiente para você.
Beatriz puxou-a para debaixo de uma marquise.
- Você não é “menos” em nada, entende? Tudo o que nós estamos construindo aqui é real. Sei que pode soar piegas, mas me apaixonei por você não só pelo seu rostinho bonito. O que mais me atrai em uma mulher é na verdade o que ela tem por dentro. Todas as conversas que tivemos, as risadas, os momentos... isso é o que importa no final das contas.
Maya permaneceu em silêncio, os olhos fixos em Beatriz, como se tentasse absorver cada palavra. O momento parecia eterno. Então, Bia acrescentou, tentando aliviar o peso daquela conversa.
- Mas, claro, um belo par de seios também ajuda.
Maya riu, sentindo a tensão se dissipar. Beatriz aproveitou o instante para puxá-la mais perto e sussurrou:
- Mas, falando sério… Você sabe o que eu realmente quero dizer. - Ficaram em silêncio. - Nem sei como isso tudo começou, esses sentimentos todos, mas sei que não vou suportar você dizer que vai embora desse país sem mim.
Maya sentiu um aperto no peito. Sem pensar duas vezes, envolveu Bia pela cintura e a abraçou forte.
- Eu não vou a lugar algum sem você.
Fim do capítulo
Oi pessoas lindas :D
Escrevi esse capítulo escutando a música “Lisboa” de Ana Vitória. Essa música está ecoando em minha cabeça há algumas semanas e acho que ela encaixa bem nesse romance.
Espero que eu tenha conseguido passar o que eu realmente queria, gosto muito de abordar a representatividade trans nas coisas que eu escrevo e mostrar que o amor pode ter infinitas formas.
Fico feliz por vocês terem chegado até aqui comigo. Agradeço a todos os comentários e a todas as visualizações!
Nos vemos na próxima!
Bjs!
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Zanja45
Em: 18/03/2025
Dandara está de marcação, sempre chegando nos momentos nada oportunos.
Quanto as meninas que bom que foi esclarecido os pontos entre elas, não era só amizade o que rolava nas longas conversas delas, porém um amor camuflado. Perfeita decisão de Maya de querer caminhar junto a Bia.
thays_
Em: 23/03/2025
Autora da história
Fico feliz que tenha gostado! :D
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Cristiane Schwinden
Em: 15/03/2025
Conto fofíssimo! Vc conseguiu passar o sentimento delas com palavras doces e bem colocadas, parabéns!! E obrigada por participar
thays_
Em: 23/03/2025
Autora da história
Eu que agradeço por ter lido, Cris! Fico feliz que tenha gostado!! :D
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Zaha
Em: 09/03/2025
Oie, Thays!
Seu conto foi muito bonito de ler. As 1000 palavras ficaram curtas, queria mais, porém, voce fez um ótimo trabalho, nao deixando nenhum furo. E gostei de cada abordagem feita. Sobre a questao de genero e como Maya disse no final como se sentia sobre ser uma mulher trans, a qual representa como se sente muitas e muitos. Foi curto, mas deu o recado. Também sobre os grupos extremistas e falta de senso críticos de muitos que nao sabem realmente o que pedem e diz....de tudo um pouco, né?!
Entao, é isso, belo conto e final lindo e feliz!
Beijos e até a próxima
PS:Quando puder, lerei as que me indicou, estou um pouco justa com os tempos, mas em algum momento verá meu comentário!!
thays_
Em: 13/03/2025
Autora da história
Oi Zaha! Agradeço por ter chegado até o final dessa leitura! Gosto muito de dar finais felizes pras minhas personagens, sabemos que na vida real as coisas às vezes não conseguem ser tão leves quanto na ficção. Mas por aqui ao menos tenho controle rsrs
Obrigada pelo carinho! Vou adorar receber algum comentário seu em alguma delas! Mas fique tranquila e vá no seu tempo!
Bjs!!
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keique
Em: 06/03/2025
Que lindo!
Adorei seu conto por toda a relevância que trouxe, não somente por questões de gênero mas abordar o preconceito, a violência que está dominando as pessoas e nos fazendo incapazes de reagir. Meus parabéns pelo trabalho. Abraço
thays_
Em: 06/03/2025
Autora da história
Oi Keique!
Sei que sou suspeita pra falar, mas achei bem lindinho o final das duas s2
Obrigada pelo carinho!! :DDD
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thays_ Em: 23/03/2025 Autora da história
Fico feliz que tenha gostado! :D