Boa noite, leitoras!
Sei que demorei muitoooo, mas pelo menos consegui fazer o que prometi: Entregar esse capítulo antes do ano de 2024 acabar!
Feliz ano novo, e boa leitrua!
Capitulo 46 – Um brinde a essa família estranha? (CAPÍTULO FINAL)
Sofia
Basta avistar o totem de temperatura marcando 29º, no canteiro central da Avenida Hercílio Luz, para me fazer pegar a minha presilha de flor rosa e prender o cabelo em um coque rápido.
O ar quente e abafado me transporta para o início do ano, e para todas as vezes que fiz aquele mesmo trajeto, sem nunca imaginar que em algum momento eu estaria fazendo aquilo pela última vez.
Pelo menos sendo funcionária do Sebo do Imperador.
Meu coração acelera no instante em que paro, do outro lado da rua, no canteiro, e avisto o letreiro iluminado e a vitrine perfeitamente decorada com discos de vinil e artigos colecionáveis.
Mas o que aquece mesmo o meu coração é a imagem do homem grisalho se tornando cada vez mais palpável, conforme atravesso a rua.
– Seu Afonso! – Me jogo nos braços dele assim que o vejo, devolvendo alguns livros em uma das prateleiras.
– Querida... – Ele me envolve em seus braços, e preciso me concentrar bastante para não começar a chorar naquele momento. – Senti sua falta. – Ele fala, ainda envolto no nosso abraço, e aquilo é o suficiente para fazer água acumular dentro dos meus olhos.
– E eu senti a sua. – Me desvencilho um pouco do seu abraço, antes que começasse a chorar de vez e fosse tarde demais para me afastar.
– Quero te apresentar a uma pessoa. – Ele se apressa em dizer, com um certo tom de urgência enquanto aproveita para limpar a garganta. – Essa é a Michelle. – Ele exibe, com satisfação, uma garota morena com cabelos castanhos encaracolados. Parecia ser mais ou menos da minha idade, talvez um ou dois anos mais nova. – A nossa nova funcionária.
“A nossa.”
O meu coração aperta com aquela menção, e com a sua dificuldade em não me incluir, mesmo que eu não fosse mais a sua funcionária, ou que não trabalhasse aqui há uns bons meses.
– Muito prazer, Michelle. – Aperto a sua mão, com um sorriso. – Fico feliz em saber que o Seu Afonso não ficou aqui sozinho. – Digo, com sinceridade.
– Prazer... – A garota procura por um nome.
– Sofia, Sofia Maria. – Digo o meu nome completo de forma involuntária.
A garota sorri, tímida, e depois se afasta, se perdendo em meio a um corredor qualquer daquele labirinto perfeito que é esse lugar.
– Foi tão fácil assim encontrar uma garota pra colocar no meu lugar? – Provoco, fingindo um ressentimento enquanto apoio o cotovelo direito no seu balcão.
Quer dizer, não vou mentir, era estranho ver uma menina ali no cargo que fui eu a responsável por fazer com que existisse. Mas seria completamente egoísmo da minha parte não admitir que eu o deixei na mão, querendo ou não, e que ele tinha todo o direito do mundo de colocar alguém no meu lugar.
– Você sabe que não. – Ele sorri mais com os olhos do que com a boca, na mais pura sinceridade, e sinto os meus olhos começarem a querer lacrimejar, mais uma vez.
Beleza, Sofia Maria, segura a sua onda.
– Nos primeiros dois meses, eu estava resistente em contratar outra pessoa, mas aí eu me lembrava de como você deixava tudo organizado, e achei injusto deixar o Sebo naquela zona. – Ele diz, com um sorrisinho, mais emotivo do que gostaria. – Mas você é insubstituível, Sofia Maria, saiba disso.
Meus olhos lacrimejam, mas respiro fundo.
– Foi pra isso que você me chamou? – Contorno alguns DVDs com a ponta dos dedos, tentando parecer desinteressada. – Pra me chamar de Sofia Maria e para me dizer o quanto eu sou insubstituível? – Brinco com ele, fazendo graça, enquanto parecíamos dois bobos aqui, emotivos.
– Na verdade, tem algo que chegou aqui há uns dois ou três meses, que eu queria te dar. – Ele diz dando a volta em torno do balcão.
Pega uma das pequenas escadas que usávamos para alcançar as estantes mais altas e tira um pacote de presente lá do alto.
– Não queria que a Michelle o encontrasse. – Ele se justifica. – Não queria que ela pensasse que faço distinção entre meus funcionários. – Ele termina de falar aquilo com um meio sorriso. – Mas a verdade é que só existe uma Sofia Maria. – Ele me chama pelo meu nome completo pela segunda vez e, por estranho que pareça, eu não acho ruim, nem sinto vontade de corrigi-lo.
Na verdade, acho que eu até sentia falta daquilo, e com certeza sentiria ainda mais falta de todas as vezes que precisei corrigi-lo, enquanto fingia estar com raiva, tentando segurar o meu riso.
– Pra mim? – Pego o pacote quando ele finalmente o entrega, e pelo peso, deduzo que seja um livro, o que eu estranho, a princípio, porque eu sabia que ele tinha o conhecimento de que eu preferia os filmes.
– Para você usar na faculdade. – Ele diz assim que rasgo o pacote, revelando o que eu já suspeitava: um livro grosso e pesado. Mas o que eu não podia imaginar era o seu conteúdo: “Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror.”.
– Seu Afonso... Isso é... – Tento me encontrar nas palavras, ainda bastante emocionada. – Eu te disse que ainda não saiu o resultado do vestibular... e eu não sei se... – Me perco na linha de raciocínio enquanto dou uma fungada, envolvida demais por aquele seu gesto, que me pega completamente desprevenida.
– Acredite, Sofia. – Ele faz uma pequena pausa, segurando e me puxando pelos ombros. – Já saiu. – Diz olhando nos meus olhos, confiante.
E aquela sua confiança – mais do que isso, aquela forma diferenciada de dizer um: “eu acredito eu você” – me desconcerta e me desmonta por completo.
– Eu vou sentir falta daqui. – Confesso, com a voz engasgada.
Não havia sido tão difícil da primeira vez, quando fui para Nashville, até porque eu não tinha me despedido, ou pedido demissão. Não havia dado tempo e acho que eu também não teria coragem. Mandar uma mensagem, dias depois, dizendo que viajei com a Júlia e que tive que sair às pressas foi tudo o que consegui fazer. Não me orgulhava, mas também era melhor do que não mandar notícias e simplesmente sumir – que foi basicamente o que eu fiz, em um primeiro momento.
Bem, o fato é que provavelmente era por isso que estava sendo mais difícil agora. Admitir que minha vida tinha mudado, vinha mudando, e que nada mais seria como antes: que eu não acordaria todas as manhãs desejando não encontrar a minha mãe quando descesse para tomar o café da manhã, antes de ir para o trabalho, antes de vir para cá, que estava mais para pura paixão do que qualquer outra coisa.
A verdade é que eu tinha me acostumado com o limbo que a minha vida tinha virado, entre o ensino médio e a faculdade, entre a adolescência e a vida adulta, um limbo perfeito dentro da bolha perfeita que foram todos esses últimos meses, com a Júlia.
Claro que tivemos momentos ruins durante esse ano, principalmente no começo, desde o momento em que minha mãe me contou que a Júlia tinha voltado com o Clóvis. E todos os meses que vieram depois também não foram nada fáceis, tendo que lidar com os seus próprios conflitos, nos mantendo em segredo. Depois, com minha mãe descobrindo sobre nós duas, onde eu jurei que havíamos perdido tudo.
Mas nós tínhamos conseguido superar tudo isso. Estávamos em uma outra página agora, uma página assustadoramente em branco, pronta para ser preenchida por coisas que eu nem imaginava.
– Sei que provavelmente você nunca mais vai voltar a trabalhar aqui. – O seu Afonso me tira daqueles meus pensamentos. – Mas saiba que pode vir aqui sempre que precisar. – Ele me conforta com as suas palavras, como se compreendesse muito bem aqueles meus sentimentos. – Eu ainda estarei aqui, com os meus livros empoeirados e os meus DVDs antigos.
Ele sorri, com olhos marejados, e acabo deixando escapar as lágrimas que tanto tentei segurar desde que botei os meus pés aqui.
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– Você conseguiu acertar as coisas com o seu patrão? – Meu pai pergunta assim que chego no nosso apartamento.
– Com o Seu Afonso? – Questiono de volta, estranhando aquele termo. – Ele me deu isso aqui. – Entrego o livro a ele, que está sentado em sua poltrona preferida, verde musgo.
A única coisa – além de roupas e itens pessoais – que meu pai tinha feito questão de levar da antiga casa.
– Vai poder usar no curso de Cinema. – Ele sorri, e depois fica um pouco mais sério. – Eu estava falando com a sua mãe, no telefone. – Estremeço assim que escuto aquela palavra: mãe. – Eu comentei com ela sobre a faculdade.
– Não deveria, ainda é só uma possibilidade, que ficou com suas chances reduzidas em 90% depois que ela ficou sabendo. – Digo, contrariada, já imaginando aonde ele queria chegar com aquela conversa.
Tinha sido assim durante os últimos dias: meu pai e a Júlia tentando me convencer de que seria uma ótima ideia aceitar o convite do tal “almoço em família” que minha mãe queria dar. O que era meio ridículo quando ela nem tinha me convidado pessoalmente, ou telefonado, apenas mandado um convite em um envelope perfumado, por Uber Moto, como se realmente não morássemos na mesma cidade.
Meu pai me disse que a fez jurar que não surtaria, e que ela estava se esforçando muito, que até tinha começado a fazer terapia. O que, sinceramente, não acho que seja o suficiente. Acho que o caso da minha mãe era irreversível, tipo, sem cura.
– Era só isso? – Provoco ele, com uma boa dose de mau humor.
– Na verdade... tem uma coisa que eu quero que você saiba. – Ele anuncia, um pouco mais sério do que o normal, e as minhas pernas me levam até o sofá, de forma automática.
– Aconteceu alguma coisa? O seu coração... – Pergunto, preocupada, sentindo a garganta ficar apertada.
– Eu já disse, Sosô, o meu coração vai bem. – Ele termina de falar aquilo com um sorriso, apoiando a mão sobre a minha perna, gentil.
Fazia muito tempo que ele não me chamava por aquele apelido, acho que de tanto eu dizer que achava brega, quando tinha uns doze ou treze anos. Agora me sentia um pouco estúpida por pensar assim.
– Eu tive uma conversa com a terapeuta da sua mãe. – Ele me adianta o assunto, mas para.
– E...? – Pergunto, temerosa, a voz falhando conforme sinto o coração acelerar. Não sei porque me sinto tão nervosa.
– No início ela não quis me contar muita coisa, sabe como é, sigilo profissional de confidencialidade e essas coisas. – Ele leva a mão na cabeça por um segundo ou dois. – Mas então eu dei um resumo de tudo o que passamos com a sua mãe, principalmente, sobre tudo o que você passou. – Ele faz uma pequena pausa. – Então a Dra. Joana abriu uma exceção e me revelou que tem uma suspeita de que a sua mãe tenha NPD. – Ele faz uma nova pausa, esperando que eu processe a informação ou algo do tipo. – Transtorno de Personalidade Narcisista. – Ele diz depois de encontrar algo na minha expressão.
Queria não estar surpresa, mas eu estava. É claro que eu já tinha falado ou pensado naquilo várias vezes, quero dizer, quando dizia que minha mãe era egoísta ou que pensava só nela, mas isso era diferente, ouvir aquilo era diferente.
– Mas ela me reiterou que não pode confirmar... que a Marta precisaria se consultar com um Psiquiatra, e que ela até já sugeriu que a sua mãe o fizesse, mas que ela...
– Mas que ela possivelmente não vai procurar. – Completo aquilo por ele, muito mais ressentida do que gostaria.
– Acho que tem algumas coisas que não precisamos ouvir de um terapeuta pra saber, não é? – Ele dá um meio sorriso. – Eu sei que a sua mãe é difícil, filha. – Ele continua depois de algum tempo. – Mas eu acho que esse reencontro pode ser uma forma de mostrarmos que estamos fazendo a nossa parte. – Volta a tocar naquele assunto, como eu suspeitava.
– Você quer que eu passe pano para tudo o que ela já me fez, só por causa de um diagnóstico? – Pergunto, sem conseguir esconder o meu aborrecimento por estarmos tendo aquela conversa, e pior ainda: por eu estar quase que 99% convencida de ir nesse maldito almoço que com certeza não acabaria bem.
– Não, é claro que não... mas achei que talvez você gostaria de saber que ela faz o que faz por algum motivo. Claro que nem tudo é justificável, mas... uma parte delas, quem sabe? – Ele joga aquilo no ar, calmo e tranquilo, como sempre, me fazendo parar para pensar.
– Faz tempo que você colocou essas fotos aqui? – Pergunto, olhando para os porta-retratos enfileirados na estante, ao lado da TV.
Eram todas as fotos que tínhamos tirado na Cerimônia de Crisma do João: uma foto de toda a família reunida (incluindo a Júlia), outra apenas de nós quatro, sem a Júlia, uma minha com o João e a mais linda de todas, na minha humilde opinião: eu e a Júlia, apenas nós duas, lado a lado enquanto ela apoia a mão no meu ombro e eu a seguro com a minha própria mão. A nossa primeira foto “oficial” estando juntas como um casal, digamos assim.
– Desde que comprei esse apartamento... basicamente depois que vocês foram para Nashville. – Ele responde, com um sorriso nostálgico. – Vocês já pareciam um casal... como não percebi? – Ele volta a sorrir com um pouco mais de felicidade, enquanto encara a foto de nós duas, e eu sinto minhas bochechas corarem.
– Não entendo porque você ainda tem essa foto do casamento. – Mudo de assunto, fitando uma das raras fotografias que parecia conseguir registar uma felicidade genuína dos dois juntos. – A Kiara pode não gostar. – Sugiro.
– Acho que eu não posso... acho que eu simplesmente não consigo fingir que a sua mãe não faz parte da nossa família. Além do mais... A Kiara entende. – Ele compartilha um sorriso. – Assim como a Júlia entende como a Emma é importante na sua vida, e que ela jamais pediria para você se afastar dela. – Ele me dá um “soco de realidade”, me convencendo com as suas palavras.
Ele não disse aquilo, mas eu não conseguia deixar de completar mentalmente a sua frase com um: “assim como você deveria entender que a sua mãe também é importante para a Júlia, ou para você”
Mais uma vez meu pai estava certo, sobre tudo.
Sorrio com satisfação para a minha última unha pintada. Estou escutando – talvez pela terceira vez dentro de uma hora – o álbum que a Júlia tinha gravado, em Nashville, sem conseguir acreditar que em poucos dias o resto do mundo vai estar ouvindo também.
Apesar de ela me dizer que estava insegura, e que provavelmente o álbum todo teria poucos views, de início, eu sentia na minha alma que algo muito bom esperava por ela, no próximo ano.
Nesse mesmo instante o meu celular toca, e o meu coração dá um sobressalto, animado.
– Jules... – Digo antes que ela diga qualquer coisa.
– Sim... você esperava que fosse quem? A Xuxa? – Ela debocha, animada.
– Não... pensei que fosse a versão mais gostosa dela, sabe? – Brinco de volta.
– Te liguei porque tava assistindo aquele filme que você compartilhou no nosso drive, Below Her Mouth, e sabe... fiquei querendo te ver. – Ela diz aquilo com a voz já rouca e sinto uma onda de calor lá embaixo, querendo se empoçar.
– Só depois que o meu esmalte secar. – Assopro o dedo mindinho de forma involuntária, torturando-a um pouquinho.
– Claro, porque Sofia Maria sem suas unhas coloridas...
– Não é a Sofia Maria. – Completo aquela velha frase por ela, que sorri do outro lado da linha.
É claro que eu não podia ver, mas era capaz de sentir.
– Eu estava falando com o meu pai sobre a minha mãe, um pouco antes de você me ligar. – Um silêncio se forma apenas com a menção àquela palavra, e ela para tudo para me ouvir atentamente, talvez até de respirar. – Você estava sabendo sobre isso de ela ser narcisista? – Sondo.
– Bem, acho que eu já sabia há algum tempo. – Ela desconversa, fazendo graça, aproveitando aquilo para aliviar a tensão.
– Você sabe do que eu tô falando... Quero dizer, sobre o transtorno...
– Sim... – Ela volta a ficar séria mais uma vez. – Eu já sabia sobre o possível diagnóstico.
– Claro que sim. – Repito aquilo, mais para mim mesma.
– O Olavo me perguntou o que eu achava sobre ele querer te contar, e eu incentivei. Acho que você é a pessoa que mais merecia ficar sabendo.
Fico em silêncio, provavelmente consentindo.
– Bem... ele também voltou a falar sobre esse encontro familiar bizarro que ela quer fazer. – Acrescento.
– E então? – Ela pergunta com a voz suave, fazendo de tudo para que eu não ache que está me pressionando. O que não era preciso, porque eu sabia que ela não estava.
– E então que... se vocês acham que é mesmo uma boa ideia... quero dizer... não quero que ninguém pense que eu não fiz a minha parte. – Digo, por fim.
– Eu sabia que você ia repensar. – A sua voz se alegra.
– Mas isso não significa que vamos passar o natal juntos, ou o ano novo, como uma família perfeita. – Digo rapidamente. – É só um almoço.
Uma coisa de cada vez.
– Estou tão orgulhosa de você, Sofi. – Diz com a voz calorosa e eu derreto um pouco por dentro.
– Se você acha que está pronta, eu... acho que também estou. Você faz com que eu me sinta mais forte. – Confesso.
– Se você me acha forte hoje, saiba que foi porque você passou um pouco da sua força pra mim. – Ela me abraça com suas palavras, coisa que somente ela sempre foi capaz de fazer.
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– Não solta a minha mão. – Peço enquanto a gente cruza o portão principal, passando pelo caminho de pedras cercado por árvores que vai até o jardim central.
– Eu tô aqui com você, Sofi. – Ela aperta um pouco mais a minha mão, que já sinto suar frio. – Eu não vou a lugar nenhum. – Ela sorri, me passando um pouco mais de confiança.
Sorrio de volta para ela, sentindo o meu coração se acalmar um pouquinho mais.
Era engraçado como era eu quem costumava a falar isso para ela antes. Lembro de ter dito algo muito semelhante assim que ela teve aquela crise de ansiedade, na noite que antecedeu aquele jantar que minha mãe deu para receber o Clóvis.
Mas é como dizem, estamos em constante mudança, e acho que isso era uma das coisas mais lindas da nossa relação: nos permitirmos trocar de papeis sempre que fosse necessário, ou sempre que uma de nós duas precisasse mais daquilo do que a outra.
Não precisamos ir muito longe para avistarmos o que eu temia: o Clóvis e a minha mãe parados no último degrau da escadaria da casa, nos esperando.
Dou uma risada nervosa, quase inaudível. Não que eu estivesse achando graça. Quer dizer, eu até acharia, em outras circunstâncias, talvez, se não estivesse me sentindo tão nervosa.
– Olha só pros dois... Estão parecendo aqueles casais de vilões de novela mexicana. – Não consigo deixar de debochar, é mais forte do que eu.
– Sofia... – A Júlia bem que tenta me repreender, mas não demora muito para o seu sorriso aparecer.
Ele não dura ali por muito tempo, no entanto, já que ela logo volta a firmar a postura do meu lado, como se estivesse pronta para me defender de leões, se fosse necessário.
Acho que eu também estava.
Nós paramos a alguns passos de distância deles. Uns quatro ou cinco segundos se passam – que estavam mais para uns cem anos – sem que ninguém consiga dizer uma palavra.
– Que bom que vocês vieram. – O Clóvis toma a frente e decide falar por nós quarto, mas, principalmente, por ela, o que me deixa mais incomodada. – Nós dois estamos muito gratos por isso, não é, meu bem? – Ele lança um olhar para a minha mãe.
Por algum motivo louco, acho que ela realmente nos queria aqui, o que não significa que estava sendo mais fácil para ela. E a sua postura rígida, ou a forma com que olhava para nós duas, principalmente para as nossas mãos, unidas, comprovava essa minha teoria.
– Júlia... Eu queria te mostrar o que fizemos no jardim. – O Clóvis corta o silêncio constrangedor que havia se instaurado novamente.
– No jardim...? – A Júlia parece confusa por um momento, enquanto olha para os lados, até os dois se olharem de uma forma cúmplice que, até então, não entende direito. – Ei, eu já volto. – Ela lança um olhar rápido para a minha mãe, mas é nos meus olhos que ela decide parar.
Só com aquele olhar, eu sabia o que ela estava querendo me dizer, e era algo como: “vocês duas precisam desse momento, sozinhas."
Ótimo.
– O seu cabelo... – Minha mãe começa a ensaiar depois de me encarar por um ou dois segundos, conforme o Clóvis leva a Júlia para qualquer canto do “nosso” jardim. – Essa cor... – Ela se perde um pouco nas palavras enquanto examina o meu cabelo ruivo, mais do que isso, é como se estivesse tentando se livrar de outra coisa que queria vir no lugar. – Ficou bonita em você. – Ela consegue dizer, por fim.
Não tinha soado nada espontâneo, é como se ela tivesse dizendo apenas por estar com uma ou duas armas apontadas em sua cabeça, mas ainda assim, ouvir aquilo, mesmo que não fosse verdadeiro, era melhor do que ouvir algo depreciativo da própria mulher que te colocou no mundo.
Eu acho.
– Obrigada, mãe. – Podia não ser genuíno, ou algo da sua própria vontade, mas eu também não podia simplesmente não reconhecer os seus esforços.
Um novo intervalo de silêncio se forma e eu desvio o olhar para o jardim, procurando a Júlia, olhando-a quase como se pedisse socorro. Mas ela não me olha de volta, parece muito ocupada rindo de qualquer coisa que aquele idiota estava falando.
Era um palhaço mesmo.
– A Júlia e o seu pai me disseram que você tem boas chances de passar no vestibular desse ano. – Ela corta o silêncio mais uma vez, chamando novamente a minha atenção para ela, o que convenhamos que ela sabia fazer muito bem.
Era a sua especialidade.
– Já saiu o resultado? – Ela insiste em querer conversar.
Minha mãe não combinava muito com o silêncio, sempre tinha que preencher com alguma coisa. Para a minha falta de sorte, normalmente era uma coisa com um grande potencial de destruição.
– Deve sair nas próximas horas. – Dou de ombros, já desejando sumir dali quando o meu bote salva-vidas aparece.
– Tudo bem por aqui? – A Júlia se aproxima de nós duas, preocupada, como se verificasse se ainda estávamos inteiras, pelo menos fisicamente. Acho que agir daquela maneira sempre seria algo mais forte do que ela, de qualquer maneira.
– Se me dão licença, eu vou checar se estão preparando o rosbife do jeito que eu ensinei. – Minha mãe dispara para dentro da casa, como se não suportasse ver nós duas juntas no mesmo metro quadrado.
Mais Marta Furtado impossível. Ela podia até fingir, ou encenar ser uma outra pessoa, por alguns minutos, mas não conseguia fazer aquilo por muito mais tempo.
– O que o babaca do ano queria com você? – Pergunto, assim que voltamos a ficar a sós.
– Ciúmes, dona Sofia Maria? – Ela me provoca, sorrindo.
– Claro que não, eu sei que não tenho com o que me preocupar. – Pisco para ela, segura de mim, afinal, eu tinha mais do que certeza de que ele nunca fez com que a Júlia se sentisse do jeito que ela se sentia quando estava comigo, dentro ou fora de uma cama. – Mas acho que Sr. Perfeito barra Segredos não foi uma relação que deu muito certo. – Acrescento, por fim.
– Acha mesmo que eu teria um segredo com ele? E que eu o esconderia de você?
Bem, não, mas o segredo já foi ele um dia, e não saber que ela tinha voltado com o Clóvis, no início do ano, quase destruiu tudo o que tínhamos construído juntas, em anos.
– Não... Só gostaria de saber o que ele te falou de tão engraçado. – Desconverso um pouco, ainda de braços cruzados.
– Algo sobre ele ser o meu quase sogro agora. – Ela disfarça uma risada.
– Nem fodendo. – Digo, irritada, e ela finalmente solta a risada que estava tentando segurar.
– Foi mais ou menos o que eu disse pra ele.
– Sofia.... – O dito cujo aparece atrás de nós e sinto o meu corpo se contrair, meu sorriso desaparecendo em questão de segundos. – Se não se importa, eu gostaria de falar com você, a sós. – Ele olha de mim para a Júlia, como se estivesse pedindo autorização.
Até poderia achar aquele gesto fofo, mas no momento eu só conseguia me sentir irritada.
– Na verdade, eu me importo bastante. – Digo, sem paciência.
– Eu vou colocar as suas bebidas pra gelar. – A Júlia me diz, fazendo aquilo de novo, e eu olho para ela de mau humor. – Qualquer coisa é só me chamar. – Ela diz segurando as minhas duas mãos com as dela, um pouco antes de sair.
Já estava sendo difícil estar aqui, agora ter uma conversa individual com cada integrante da família... não sei se eu aguentaria.
– Sofia, sei que não começamos bem... – Ele começa a dizer assim que paramos ao lado de alguns arbustos metodicamente cortados, no jardim. – E sei que já te disse isso antes. – Ele se apressa em dizer, provavelmente avaliando a expressão na minha cara, que com certeza não está das melhores. Sim, ele já tinha me falado aquilo antes, quando foi atrás de mim, no Sebo, e nós continuávamos não indo bem. – Mas quero que você esqueça tudo o que veio antes.
Dou uma risada engasgada.
– Esquecer o que veio antes, tipo que você tirou a virgindade da minha namorada e que agora está trans*ndo com a minha mãe? – Não pego leve nas palavras, mas também não consigo me arrepender.
– Isso e o fato de a minha ex-namorada ter me dado um pé na bunda pra dar pra filha da mulher que eu estou trans*ndo agora.
Ele também não pega leve nas dele, só que eu não fico incomodada, pior do que isso, sinto vontade de rir.
Só o que me faltava mesmo, rir da nossa desgraça familiar com esse imbecil.
Essa situação toda, mais o fato de faltar umas duas semanas para o ano acabar, juntamente com hoje ser o dia em que eu vou saber do resultado do vestibular e assistir o clipe da Júlia completamente finalizado, pela primeira vez, só pode estar afetando o meu cérebro.
Não vejo outra explicação.
– Viu? Nós não precisamos ser inimigos. – Ele diz possivelmente notando que eu baixei um pouco a minha guarda. Mas que maravilha. – E pega leve com a Marta, a sua mãe realmente está se esforçando bastante. – Reviro os olhos de uma forma quase que teatral.
Quem ela acha que era pra me falar essas coisas?
– Tá, Clóvis, só não esquece que você não é o meu pai. – Digo o óbvio.
– Não, mas eu estou com a sua mãe agora, e eu gosto dela. Gosto dela de verdade. – Ele me diz com uma sinceridade que me causa arrepios. – E eu sou o seu padrasto, goste você ou não. – Ele não perde a oportunidade de me provocar.
– Ok, vai sonhando. – Digo, irritada.
Um silêncio constrangedor se forma enquanto ele olha para mim, e eu só desejo cavar um buraco grande e fundo o suficiente para parar em outro país.
– João! – Aproveito a deixa quando vejo o meu irmão sair da casa. – Eu estava com saudade de você. – Digo conforme atravesso o jardim, caminhando em sua direção.
– Ei, maluca, a gente se viu ontem.
– Shhh... – Peço assim que chego perto o suficiente. – Não tá vendo que estou tentando me livrar de alguém? – Pergunto, irritada, e ele começa a rir quando olha por cima dos meus ombros, provavelmente encontrando o alguém.
– Ele não é tão ruim assim, vai. – Ele diz e eu começo a entender porque ainda estava morando aqui, e não comigo e com o nosso pai.
Bem filho da mãe dele mesmo.
– Não, realmente, ele é pior. – Digo por fim, bagunçando o seu cabelo. – Tá, agora me deixa sair daqui, ou vou acabar surtando.
O João Pedro ainda está sorrindo quando eu me afasto, cruzando o jardim até começar a pisar no travertino que contorna a área da piscina.
Sento em uma das cadeiras que cercam a mesa preferida da minha mãe, a que ela adora usar para beber chá ou tomar café da tarde na beira da piscina. Fico olhando tudo por um momento: o bar molhado, a cozinha externa e a jacuzzi.
Eu não sentia falta do luxo dessa casa, quero dizer, da sala enorme e da cozinha de conceito aberto imensa, ou dos vários banheiros e do jardim perfeitamente aparado e decorado como se viesse um jardineiro aqui toda a semana, o que de fato acontecia.
Mas acho que sentia falta da nossa piscina, muito mesmo, e não consigo deixar de pensar em como ela já havia sido protagonista de tantos momentos, ou testemunha de tantas outras coisas, também.
Sorrio, pensando naquilo.
– Ei, aí está você. – Sua voz me arranca das minhas recordações.
– Você não disse que eu teria que ter uma sessão de tortura com cada membro da família. – Provoco.
– Ah, Sofi, você não acha que é melhor falar com eles de uma vez? – Ela se senta do meu lado, em uma das cadeiras que circunda a mesa. – Eu também não estou amando, vai. – Ela empurra as minhas pernas, com um sorrisinho. – Mas é isso ou um clima estranho durante o almoço e o restante do dia inteiro.
Durante o almoço que ela fez questão de que viéssemos, mas não digo aquilo.
Eu a tinha e era com ela que eu sairia daqui, e acho que aquilo era tudo o que importava, e algo maravilhoso o bastante para me fazer passar por tudo isso.
– Posso me sentar com vocês? – A minha mãe aparece, e nós duas nos olhamos, desconfiadas.
Mas, como não emitimos uma única palavra – aposto que a Júlia está tão tensa quanto eu – ela apenas se senta ao nosso lado.
– Não vou mentir, foi muito difícil pra mim no início, ainda está sendo... mas eu já estou sabendo lidar com essa situação muito melhor do que antes, podem acreditar. – Ela nos pega um pouco de surpresa com aquilo.
– Não foi isso o que pareceu há tipo dois minutos atrás. – Ou quando ela nos viu chegar aqui, de mãos dadas. Ela me olha de um jeito ranzinza. – Sabe, você não precisa fazer isso. – Eu não estava segura de que aquela conversa nos levaria para um bom lugar.
– Não... Eu acho que preciso. – Ela suspira. – Vocês duas eram as minhas meninas, eu conheci a Júlia quando ela tinha a sua idade, era só uma menina, assim como você... Você também é só uma... uma menina. E agora... eu estou perdendo as duas de uma só vez.
Franzo o cenho na mesma hora, e acredito que a minha reação é a mesma que eu teria se ela tivesse dito que a casa havia sido invadida por elefantes voadores mutantes. Da onde veio aquilo, meu Deus? Queria poder sentir sinceridade nas suas palavras, mas eu sinceramente não consigo acreditar que seja o caso.
E o Oscar de melhor atriz de filme de drama vai para:....................
– Você não está nos perdendo. – Decido entrar na sua loucura. – Pelo contrário, você está ganhando a Júlia, mãe, como parte da sua família. Não era isso o que você sempre quis?
A Júlia me olha com um olhar de reprovação. Ela deve estar pensando que eu estava querendo provocar, mas não é verdade, eu só estava sendo sincera.
Fico esperando por alguma resposta atravessada da minha mãe, por algum daqueles seus shows que ela adora dar, mas a sua reação é outra. Ela começa a rir, gargalhar mesmo, na verdade.
Sério, assustador.
Olho para a Júlia e ela também começa a rir e eu fico tipo “mas que porr* é essa?” e acabo não conseguindo segurar o meu próprio riso.
Se alguém olhar aquela cena agora poderia pensar – com certeza pensaria – que estávamos super bêbadas, ou então que tínhamos fumado um, mas nós estávamos tipo super sóbrias, o que era bem humilhante.
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– Você pretende ter filhos, Kiara? – A minha mãe pergunta depois de algumas conversas banais que antecederam o prato principal.
Mas para ser bastante sincera, acho que estávamos no lucro, levando em conta que tínhamos passado pela metade daquele almoço, ilesos.
Nós não estávamos mais nas entradas agora, o que provavelmente significava que as conversas não seriam mais tão superficiais, também.
– Marta... – Meu pai adverte.
Ele provavelmente estava desejando que a Kiara não saísse daqui pensando que somos um bando de lunáticos, ou completamente arrependida por ter se enfiado no meio dessa família macula.
Não o julgo, eu estaria querendo o mesmo, no seu lugar.
– Não, tá tudo bem. – Ela responde, de forma educada. – Acho que ainda é muito cedo para pensarmos em filhos, mas o Olavo com certeza é a pessoa com quem eu gostaria de tê-los. – Ela responde de forma direta, deixando minha mãe sem palavras. Se a Dona Marta achou que iria conseguir desconcertá-la, errou feio.
Ter um irmão ou irmã mais nova, nessa altura da minha vida? Seria um pouco estranho... mas confesso que eu gostaria. Afinal, o que não era estranho naquela família?
– E vocês duas? – O Clóvis pergunta, olhando para mim e para a Júlia. – Pretendem ter filhos? – Ele surpreende a todos com aquela pergunta, ainda mais por tê-la feito na frente da minha mãe, sem cerimônias.
Acho que ele realmente tinha virado a página, estava em outra estação, e fazia questão que todos soubessem disso.
– Não vai demorar muito, eu espero. – A Júlia diz aquilo abertamente pela primeira vez, e eu não consigo deixar de sorrir.
– Vocês têm pressa, então? – O Clóvis pergunta novamente, parecendo verdadeiramente interessado.
– Não... quero dizer, é claro que a Sofia vai terminar a faculdade primeiro e que nós duas iremos nos estabilizar nos nossos novos empregos... – Ela parece querer tranquilizar alguém, principalmente o meu pai, deduzo. – Eu só não quero que os nossos filhos tenham que sair por aí dizendo algo como “ela não é a minha avó”, enquanto apontam pra mim. – Diz, de um jeito brincalhão, e todos da mesa começam a rir.
Todos, talvez com uma única exceção.
– Vocês já pararam pra pensar no quanto tudo isso é maluco? – Meu irmão solta, de repente. – A Sofia com a nossa tia... A mamãe com o ex-namorado da Júlia, que agora é basicamente o nosso padrasto... E o papai namorando alguém que tem basicamente a idade da Júlia... – Ele parece realmente constatar tudo aquilo apenas nesse momento, e a sua ingenuidade, mais o fato dele nunca ter precisado se preocupar com nada daquilo, não de verdade, me causam uma inveja tremenda, mas também me deixam feliz.
– Sabe... acho que ninguém aqui nunca tinha parado pra pensar sobre isso, muito bem observado. – Respondo, de forma debochada, e a mesa inteira volta a cair na risada, até a minha mãe, dessa vez.
Era mesmo o fim dos tempos.
– Mané. – Termino de dizer aquilo bagunçando o seu cabelo, e o garoto me olha atravessado. – E já deu de chamar a Júlia de tia, né? – Reviro os olhos, e vejo a Júlia disfarçar o riso quando coloca um pedacinho de rosbife na boca.
– E como você quer que eu chame ela? De cunhamadrinha? – Ele provoca, e sinto minhas bochechas esquentarem quando reviro os olhos.
– Pra você, eu continuo sendo a sua madrinha. – A Júlia adverte, sorrindo. – E aos olhos da igreja, sou a sua madrinha duplamente, lembra?
– Bem, e já que estamos falando sobre essas novas configurações... – Começo, um pouco contra a minha vontade. – Você não é casado com a minha mãe, Clóvis, então não espere que eu vá te chamar de padrasto algum dia. – Digo aquilo na frente de todos, para que fique bem claro a minha posição.
– Na verdade... Sobre isso. – Ele levanta, colocando a mão dentro do bolso da calça, e eu, meu pai e a Júlia trocamos um olhar, desacreditados. – Eu pedi a Marta em casamento essa manhã. – Ele anuncia, olhando para todos da mesa, mas especialmente para nós três. – E ela aceitou. – Ele termina de dizer aquilo com um sorriso, olhando para a minha mãe conforme abre uma caixinha e tira um anel dourado com uma pedra branca em destaque, projetada para fora do aro.
Ela entende a mão esquerda para ele, e rapidamente o anel vai parar no seu dedo.
– Cacete! – O meu irmão dispara, mas não disfarça o sorriso.
– Você não arremessou nada em mim dessa vez? – O Sr. Perfeito brinca comigo, voltando a se sentar em sua cadeira enquanto passa a mão pela camisa polo. Tão idiota. – Acho que estamos progredindo. – Ele sorri, por fim.
– Acho que você está comemorando cedo demais. – Provoco ele, pegando a minha taça. – Mas hoje eu vou deixar passar. – Bebo um gole da minha bebida e a gente troca um sorriso.
Não acredito que estou sorrindo depois de o Sr. Perfeito acabar de pedir minha mãe em casamento. Pelo menos não era a Júlia e ele tinha finalmente se conformado que ela é minha agora.
Tudo o que eu posso desejar agora é que os dois façam um bom proveito com essa perfeição de quinta.
– Bom, viva os novos noivos. – Meu pai levanta a sua taça, numa sensatez e discernimento admiráveis.
– Um brinde a essa família estranha? – Ergo a minha taça, propondo aquilo, e rapidamente todos fazem o mesmo, sem uma única exceção.
– A mais estranha de todas. – A Júlia completa, sorrindo.
xxx
– Droga. – Exclamo, nervosa.
Estamos nas minhas cadeiras preferidas da área da piscina: eu na roxa e a Júlia na rosa. Tínhamos vindo para cá desde que o meu pai e a Kiara tinham ido embora.
– O que foi, amor? – Ela ergue o corpo e segue o meu olhar, atentamente preocupada, como sempre.
– Saiu o resultado do vestibular. – Minhas mãos tremulam enquanto rolo a tela do celular.
– Você já...
– Não. – Respondo, nervosa, antes mesmo que ela complete a sua pergunta. – Eu não sei se quero ver agora, Júlia. – Digo, angustiada.
Não consigo deixar de lembrar da última vez que tinha vivido aquilo, ou de como a minha mãe ficou nos meus ouvidos, dizendo que não fazia diferença se eu passasse ou não, já que era um curso de merd*; ou de como ela reagiu, ao ver que eu não tinha passado, falando que nem para um curso de merd* eu conseguia passar, e que não ficaria bancando uma desocupada em casa.
Era um contexto completamente diferente agora. Acredito que a Júlia jamais a deixaria falar comigo daquele jeito e, na verdade, nem eu mesma deixaria. Mas ainda assim, não podia deixar de pensar no sentimento horrível que veio naquela hora, e de que eu não queria sentir aquilo de novo.
– Você pode não ter passado da outra vez, Sofi, mas não se esqueça da infinidade de coisas boas que vieram depois. Você começou a trabalhar no Sebo, e...
– E a gente começou a se pegar. – Sorrio para ela.
– É, isso aí também. – Ela sorri daquele jeito tímido, olhando levemente para baixo, e sinto o meu coração acelerar.
Acho que eu iria até o fim do mundo por aquele sorriso.
Então clico na lista de aprovados e começo a rolar as páginas para baixo, a procura da letra “S”.
“SAMANTHA”
“SANDRO”
“SÉRGIO”
“SILVANA”
E uma infinidade de outros nomes começam a subir e a desaparecer no topo da tela.
Deus, nunca vi tantas “Silvanas”, até chegar no nome Sofia, que acreditem ou não, tinham muitas.
– Merda, será que a minha mãe não podia ter me dado um nome mais incomum? – Reclamo, impacientemente nervosa conforme ouço o meu coração martelar.
– Mais incomum que Sofia Maria? – A Júlia brinca, tentando me deixar menos nervosa enquanto coloca o meu cabelo para trás. – Impossível. – Sua voz suave preenche os meus ouvidos, mas ainda assim, eu não podia deixar de pensar que...
– Júlia, eu não acho mesmo que eu ten... – Começo, a voz embargada prestes a desmoronar quando eu finalmente vejo o que esperei pelo o que pareceu uma vida inteira:
“SOFIA MARIA FURTADO”
“APROVADA”
– Merda... eu... eu passei. – Digo, ainda sem acreditar, as lágrimas caindo numa mistura estranha de alívio, orgulho, felicidade e medo.
– Eu sempre soube, meu amor. – Ela me abraça forte e eu a abraço de volta, enterrando o meu rosto que já está um estrago, me segurando nela como se ela fosse a coisa mais importante do mundo, coisa que ela sempre foi. – Eu sabia que você ia conseguir... – Sua voz também falha.
– João, a Sofia passou! – Ela exclama para o meu irmão, e o vejo pegar uma caixa de papelão atrás de um dos grandes vasos do jardim.
– Ah não, Júlia! – Digo, já começando a rir de nervoso, pressentindo o que está por vir.
– Ah sim, Sofia Maria. – Ela diz, com a voz animada, e aquilo é o suficiente para eu sentir algo pegajoso e gelado nas minhas costas.
Fico desejando que não seja o que estou pensando, mas o odor de gema de ovo cru logo invade o meu nariz, comprovando a minha teoria.
– Puta que pariu, vocês me pagam! – Exclamo, levantando da cadeira enquanto tento assumir uma postura de ataque, mas tudo vai por água abaixo quando um pó branco sobrevoa pelo meu corpo, caindo diretamente na minha cabeça e nos longos fios do meu cabelo ruivo.
– Agora sim você tá uma delícia. – A Júlia ri, com um pacote de farinha nas mãos.
Desgraçada.
– Pronta para ir pro forno. – Meu irmão completa, me zombando.
Ele deve estar amando tudo aquilo.
– Só acho que ela precisa de uma corzinha. – Ela troca um sorriso com o João, erguendo uma sobrancelha.
– Jules... Por favor... – Suplico, quase fazendo um beicinho, mas acabo deixando escapar um sorriso.
A verdade é que estou feliz demais para simular qualquer tipo de tristeza.
– Me chamar assim não vai te salvar... – Ela sorri de volta para mim. – Não hoje, baby girl. – Ela diz instantes antes de jogar boa parte do conteúdo de uma lata de tinta rosa em cima de mim.
– Tá, agora já chega... – Roubo a lata dela, enérgica, e coloco a mão, sujando-a um pouco com a tinta.
– Nem pense nisso... – Ela coloca as mãos na frente da sua regata branca, se defendendo.
E apesar de ela estar uma grande gostosa agora, aquilo não me impede de seguir com o meu plano: passo as mãos tingidas pelo tecido branco, descendo para a sua barriga, que está sempre a mostra.
– Ei, isso não vale! – Ela diz, se divertindo.
– Não é minha culpa se você gosta de andar de barriga de fora. – Provoco. – E você ainda tá muito branquinha. – Sorrio, voltando com a lata de tinta mais uma vez.
– Nem pensar! – Ela sorri e dispara pelo jardim.
Eu vou atrás dela, nós duas correndo como se eu tivesse voltado a ter uns quatro anos, e ela, uns vinte e um. Até que ela se joga na piscina, me pegando de surpresa.
Paro na borda de travertino, nas pontas dos pés, esperando-a emergir.
– Vem me pegar... – Ela provoca, com um sorriso tímido, a blusa branca já ficando completamente transparente sobre os seus seios.
Deus.
– Júlia, eu tô toda suja... a minha mãe... – Me encolho um pouquinho, olhando para os lados.
– Banho de piscina! – Meu irmão se atravessa na minha frente, se juntando a ela em um pulo que faz a água respingar sobre as minhas pernas.
– Pula! – Ela me encoraja, com um sorriso, e eu apenas faço isso sem pensar duas vezes, dando um pulo para a minha nova vida.
– Não acredito que vocês estão sujando toda a piscina que eu mandei limpar. – A imagem da minha mãe aparece quando volto para a superfície, e aquilo é o suficiente para ela sair da personagem que tanto se empenhou para manter durante o dia todo.
– Ei, querida, deixa os meninos aproveitarem um pouco. – O Clóvis para, ao seu lado, enquanto lança um olhar cúmplice para a piscina, especialmente para a Júlia. – Parabéns, Sofia. – Ele direciona o olhar para mim, dessa vez.
Não sei se fico feliz por ele estar nos defendendo, ou irritada por estar bancando o pai de novo, ou o “homem da casa”. Mas não tenho muito tempo de pensar naquilo quando sinto algo estranho e denso acertar a minhas costas novamente.
É a Júlia, com um pouco mais de tinta, e logo o rosa se mistura com o azul da piscina.
Sorrio para ela, sem conseguir expressar nenhum tipo de raiva, nem de brincadeirinha.
Era exatamente assim que eu havia imaginado esse momento. Muito antes de eu ter qualquer relação com a Júlia, eu a imaginei bem aqui, ela não poderia estar em um outro lugar, e eu não poderia estar celebrando essa conquista com outra pessoa.
Sinto algumas lágrimas se juntarem com as gotas de água da piscina, e ao resto de farinha e ovo que provavelmente custaria para sair do meu rosto.
– Ei, amor... o que foi? – Ela percebe isso.
– Nada... É só que esse ano eu cheguei a acreditar que nunca viveria isso. – Algumas lágrimas voltam a escorrer, lavando a minha alma. – Primeiro porque achei que eu nunca ia conseguir, segundo porque cheguei a pensar... depois de tudo... – Vacilo um pouco nas palavras. – Que a gente nunca fosse ter isso de novo.
Ainda não sei exatamente dizer o que “isso” significava, mas eu tinha certeza de que ela sabia exatamente do que eu estava falando.
Não era necessariamente sobre o nosso relacionamento, era sobre a nossa conexão, o nosso encontro de almas, que veio muito antes desse ano, ou muito antes de eu completar dezoito anos. Provavelmente, tinha acontecido assim que eu nasci. Um sentimento sem interesses, apenas o amor e o cuidado mais genuínos que alguém poderia sentir por uma outra pessoa. Era isso o que eu sentia por ela, era isso que eu sabia que ela sentia por mim.
– Isso nunca iria acontecer. Sabe por quê? – Ela pergunta enquanto uma lágrima insiste em escorrer no meu rosto molhado. – Porque nós estávamos destinadas, era pra ser assim. – Ela coloca as duas mãos em torno do meu rosto.
– Merda, eu te amo tanto. – Me agarro nela novamente, apertando-a forte, e depois me afasto o mínimo o suficiente para alcançar a sua boca.
Ela me pega pela nuca e me beija na frente de todo mundo, mas, ainda assim, sinto como se fosse apenas nós duas aqui, nós duas contra um mundo inteiro.
Como sempre foi, e como sempre seria.
xxx
Saio do banheiro do corredor ainda enxugando os fios de cabelo molhado com a toalha e acabo fazendo uma careta quando encontro um nó, ainda grudado com gema e farinha.
Fiquei pelo menos uns quarenta minutos só tirando a sujeira do meu cabelo e pelo o que tudo indica, não tinha sido o suficiente.
Droga, a Júlia me paga, espera só nós ficarmos sozinhas de novo.
Estou pensando nisso quando cruzo o corredor, prestes a pisar no primeiro degrau da grande escadaria, mas a porta do meu antigo quarto, entreaberta, no final do corredor, desacelera os meus passos e faz o meu corpo girar para o lado contrário.
Não sei se deveria fazer isso, mas não consigo evitar, no entanto. E, em menos de uns quatro segundos, abro ainda mais a porta e entro.
Meu coração acelera, e algo dentro do meu peito aperta. Está basicamente vazio, como eu já esperava, afinal, o meu pai tinha levado a maioria das coisas para o meu quarto novo, no seu apartamento. Exceto a cama, que ele havia comprado uma nova e, portanto, continuava aqui.
– Sente falta desse quarto? – A Júlia para do meu lado, me pegando distraída, e passa a acompanhar o meu olhar.
– Acho que eu sinto falta do que eu já vivi aqui. – Falo olhando para as paredes vazias. Algumas ainda com as marcas dos posters de filmes que eu insistia em colocar, mesmo contra a vontade da minha mãe, principalmente por isso. – É claro que eu vivi muitas coisas ruins nesse lugar... – Confesso, me lembrando brevemente de todas as discussões que eu tinha tido com a Dona Marta dentro dessa casa, principalmente nesse quarto. De todas as vezes que ela disse algo duro o suficiente para me destruir por dias inteiros. – Mas também teve coisa boa. – Minha voz engasga, um pouco saudosa, uma mistura de felicidade e tristeza que me deixa confusa.
– É claro que teve. – Ele se aproxima de mim, me abraçando, por trás. – A primeira vez que eu ganhei de você no Super Mario. – Ela deixa escapar um sorriso. – Quando a gente se entupiu de doces, no final da festa de aniversário de dez anos do seu irmão. – É a minha vez de sorrir. – A última noite de ano novo... – A sua postura muda, e sinto sua respiração ficar cada vez mais pesada, atrás de mim. – A vez que eu me toquei pensando em você, nesse banheiro, e quando repetimos isso... juntas – Sinto os seus lábios se esticando no meu ouvido, em um sorriso excitado. – A vez que você se tocou pra mim, nessa cama... – Ela faz uma pequena pausa, como se dizer aquilo tivesse lhe feito sentir coisas que a impediam de continuar. – Deus, acho que nunca vou ser capaz de me esquecer. – Ela me abraça e me apalma com um pouco mais de intimidade, e me sinto esquentar, aquela onda de calor gostosa se infiltrando pelas minhas pernas.
– Jules... – Sussurro de modo involuntário, tentando reprimir um gemido.
– Estou com tanta saudade de você, Sofi... – Ela sussurra atrás de mim, bem no meu ouvido, na medida em que passa a mão pela minha cintura, que estremece e se arrepia de imediato.
– Júlia, estamos juntas durante o dia inteiro. – Brinco com ela, provocando, empinando minha bunda nela com um pouco mais de vontade.
Apesar de estarmos juntas hoje, e termos nos encontrado em vários momentos, durante a semana, fazia dias que não passávamos um tempo realmente a sós, o que era uma tortura quando paro para pensar que ficávamos juntas em quase toda a parte do dia, enquanto estávamos em Nashville.
Então eu sabia exatamente aonde ela queria chegar.
– Você sabe do que eu tô falando. – Ela me provoca de volta. – Estou com saudade do que não podemos fazer com pessoas olhando. – Ela passa a mão por cima da minha bocet*, de um jeito tão sutil que só me faz desejar abrir as pernas para ela e sentir muito mais do que aquilo.
Merda...
– Jules... A Emma e o pessoal devem estar chegando. – Digo aquilo enquanto me viro, finalmente encarando os seus olhos ardentes, depois de algum tempo.
– Isso nunca nos impediu, impediu? – Ela sorri, perversa. – E eles que esperem. – Ela me empurra para a minha antiga cama e monta em cima de mim em questão de segundos.
– Tão, tão gostosa... – Ela me saboreia com a boca, passando pelo meu pescoço, contornando minha mandíbula e finalmente chegando no meu queixo, onde morde e ch*pa, intercalando entre uma coisa e outra até me deixar completamente molhada.
– Amor... eu me esfreguei bastante, mas é provável que eu ainda esteja fedendo a ovo. – Digo, tímida.
– Uma puta gostosa... Isso que você está. – Ela desabotoa a camisa que estou vestindo e puxa o meu sutiã para baixo, e então abocanha o meu mamilo, cheia de vontade.
– Oooh... Jules... – Jogo a cabeça para trás, a minha bocet* pisca e não consigo mais segurar o gemido.
– Achei vocês! – A voz de uma garotinha invade o quarto, acompanhada do ruído da porta, que bate na parede atrás de nós.
– Merda. – A Júlia arfa e eu começo a abotoar a minha camisa, apressada, ao mesmo tempo em que ela dá um pulo, saindo de cima de mim.
– Vocês estavam... hm... namorando? – A Lili pergunta, rindo.
– Não... Claro... que... não. – Me engasgo um pouco com as palavras. – A Júlia só estava me ajudando a...
– Limpar o resto de tinta que ela não conseguiu tirar durante o banho. – Ela completa aquilo por mim.
– Isso.
Me ajudando a limpar com a boca.
Deus.
– Lili! – A versão mais velha da garota entra no quarto, parecendo aflita. – Eu disse pra você não subir. – A Emma repreende a irmã, olhando para mim e para a Júlia com uma certa dose de vergonha. – Nos espera lá embaixo. – Diz para a garotinha, que sai correndo em poucos instantes.
– Tá tudo bem, Em, e acho que ela provavelmente vai aprender a não entrar em um quarto fechado depois do que ela viu hoje. – A gente troca um sorriso. – Aliás, o que ela deve ter visto antes disso pra deduzir que estávamos namorando, hein, sua safada? – Brinco com ela e ela finalmente me abraça. – Estava com tanta saudade, Em. – Digo, por fim.
– Eu também... de vocês duas. – Ela lança o olhar sobre os meus ombros.
– Essa franja ficou linda em você. – A Júlia constata, ao olhar para o seu cabelo.
Sigo o seu olhar e não posso deixar de concordar. A garota ficou ainda mais linda nessa versão um pouco menos bad e mais soft girl.
– Eu tenho uma coisa pra te contar. – A Emma fala pra mim, parecendo animada.
– Eu também tenho. – Digo, pensando no resultado do vestibular. – Mas fala você primeiro. – Peço.
– Eu fiz algumas simulações no Sisu, e vou conseguir passar pra Oceanografia... Na federal. – O seu olhar se ilumina em uma leveza que nunca tinha visto antes, não ali.
– Em... – Eu a abraço mais uma vez, sem conseguir esconder a minha felicidade. – Estou tão, tão feliz por você. – Digo com a mais pura sinceridade.
Se alguém merecia tudo o que estava acontecendo de bom na sua vida, esse alguém é a Emma.
– O que você queria me contar? – Ela pergunta, se soltando um pouquinho do nosso abraço. – Não vai me dizer que... – Ela parece decifrar o tipo de felicidade que está estampado no meu rosto.
– Eu passei pra Cinema, também na federal. – Dou uns pulinhos de felicidade. – O que significa que vamos ser colegas de faculdade!
A gente pula juntas, como se tivéssemos uns quinze anos, mas eu não me importo.
– Estou feliz por você, Emma. – A Júlia nos faz lembrar de sua presença, não que houvesse a possibilidade de esquecer.
– Nós vamos fazer a faculdade juntas, e depois você vai ser a nossa madrinha de casamento. – Digo, sonhadoramente animada. – E madrinha das nossas futuras filhas... – Começo a dizer uma coisa atrás da outra, mas paro em um pensamento. – Só não vale se apaixonar por nenhuma delas, tá? – Brinco.
– Nossa, Sofi, como você é péssima. – A Júlia me recrimina, com um sorriso.
– Fechado, até porque eu acho que não curto esse lance de ser papa-anjo, sabe? – Ela alfineta a Júlia e termina com uma risada.
– Vai nessa. – A Júlia volta a sorrir, e a gente compartilha um segundo sorriso, só nosso. – Mas eu espero que seja verdade, seria no mínimo estranho se isso acontecesse, e acho que essa família não suportaria mais nenhuma configuração bizarra.
Nós três terminamos rindo, mais uma vez.
– O quer que a Lili tenha visto lá em cima, significa que as coisas continuam pegando fogo entre vocês duas, hein? – A Emma sonda, na medida em que terminamos de encher a última piscina.
Essa parte tinha ficado sob a nossa responsabilidade, enquanto instalar o “telão” e pedir as pizzas havia ficado para o Vini e o Murilo, e para a Júlia, respectivamente.
– É... Sabe, às vezes a Júlia faz eu me sentir como se estivesse no cio. – Confesso aquilo com um sorriso.
Às vezes, quase sempre.
– É... eu posso imaginar. – Ela me lança um sorrisinho. – E vocês andam experimentando coisas diferentes?
– Diferentes...? – Pergunto, receosa.
Era estranho ter aquela conversa com a Emma, porque acho que sempre fiz de tudo para protegê-la, mas se ela se sentia confortável e fazia questão de me perguntar aquelas coisas, não seria eu quem acharia ruim, pelo contrário, era tão bom poder falar daquilo pra alguém.
– Ah, sei lá, tipo... vocês já deram o caju?
– Em! – Repreendo, um pouco envergonhada. – Garota... – A gente troca uma risada.
Acho que retiro o que disse, tem certas coisas que talvez eu ainda não esteja pronta para dividir com alguém além da Júlia, nem mesmo se esse alguém for a Emma.
– O telão está pronto. – A Júlia aparece, nos interrompendo, e eu e a Em nos entreolhamos, tentando segurar a risada. – Vocês estão com umas caras... – Ela nos encara, desconfiada. – Pelo menos terminaram de encher as piscinas, ou ficaram só conversando?
– Sim... Três piscinas infláveis cheinhas no capricho. – A Emma diz, abrindo os braços para as piscinas.
Fazia muito tempo que não colocávamos uma espécie de telão nas nossas noites de filmes na piscina – talvez desde quando eu era criança. Mas aquela não era qualquer “noite de filmes”, era a primeira vez que assistiríamos a um clipe da Júlia, o primeiro de muitos, tenho certeza, e queria que fosse especial, que ficasse na memória.
Os meninos haviam pendurado uma espécie de lona branca em um dos muros do jardim, o que tinha uma maior visibilidade de dentro da grande piscina, as pizzas haviam chegado, o que faz a gente se concentrar no que faltava: colocar tudo dentro das piscinas infláveis.
O Vini divide a piscina com o Murilo, a Emma com a Lili, e eu com a Júlia, obviamente. Acesso o canal profissional da Júlia pelo meu celular, no youtube, e ficamos aguardando o vídeo se tornar disponível. Era estranho como a tecnologia chegou a tal ponto que, bastava o Jake dar alguns cliques, a oceanos de distância, e esperar finalmente carregar para “bum”, podermos assistir daqui do Brasil.
– Vai começar a contagem regressiva. – Anuncio, nervosa, já devidamente posicionada dentro da nossa piscina, as três enfileiradas, lado a lado.
10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...
– Pronta? – Pergunto, tão nervosa quanto a Júlia.
Nós já tínhamos visto o vídeo quase pronto algumas vezes, mas com as modificações que mandei o Jake fazer, de última hora, seria a primeira vez, e a Júlia não fazia nem ideia desses acréscimos.
– Sim. – Ela aperta minha mão, e ambas estão bem geladas.
– Gostosa! – Grito assim que ela aparece na tela, e o jardim inteiro se enche de risos, até que...
A Júlia franze o cenho por um segundo, confusa, e depois vejo uma lágrima escorrer pelo seu rosto, provavelmente compreendendo.
– Espera... Eu não acredito... Isso é... – Ela diz, enquanto tenta processar, e já não sou capaz de segurar as minhas próprias lágrimas, também.
– As filmagens que eu fiz no nosso Pub preferido, no primeiro fim de semana do ano. – Completo por ela, confessando aquilo.
“Só alguns vídeos para o dia que você lançar o seu primeiro clipe.” Lembro de ter sido exatamente isso o que respondi quando ela me perguntou o que eu estava fazendo, com o celular apontado para ela.
– Sofi... – Ela procura o que dizer, ainda parecendo bastante emocionada quando as filmagens dela sorrindo e mostrando a língua (ou fingindo que está cantando alguma coisa) preenchem a grande tela, em uma mistura perfeita com tudo o que tínhamos gravado, em Nashville.
– Eu sempre acreditei em você, Jules, sempre acreditei onde você podia chegar.
– Merda... – Ela tenta enxugar as próprias lágrimas, sem ter muito sucesso. – Olha pra tela, tem uma coisa que eu quero que você veja. – Ela diz e eu faço o que ela me pede.
– Você me colocou nos créditos finais do seu clipe? – Pergunto, sem acreditar, enquanto o meu nome aparece como “codiretora”, ao lado de uma fotografia minha, em preto e branco.
– Nosso clipe. – Ela me corrige. – Não é só você que gosta de fazer surpresas, além do mais, não poderia ser diferente.
– Eu te amo. – É tudo o que consigo dizer, e eu sei que é o suficiente.
– Eu te amo. – Ela diz de volta e me beija, ao som de aplausos e gritos animados.
Se estivéssemos dentro de um filme, ou de uma série, ela provavelmente acabaria nesse momento.
Mas aquilo era a vida, e a vida apenas continua.
xxx
– Sofi... – A Júlia levanta um pouco a cabeça do meu ombro, quebrando o silêncio, depois de algum tempo.
Estava tão silencioso que até pensei que estivesse dormindo.
Já são quase uma da manhã, tínhamos voltado para a nossa piscina inflável assim que todos haviam ido embora.
Podíamos até não assumir, mas acho que nós duas sentíamos muita falta daqui, e provavelmente era por isso que ainda não tínhamos ido embora, queríamos aproveitar ao máximo, até o último segundo.
– O que foi? – Pergunto, enquanto acaricio o seu pulso, brincando com a friendships bracelets que eu tinha feito e dado a ela anos atrás, a que tinha o meu nome.
– Promete que se alguma mulher mais velha quiser fazer os trabalhos da faculdade com você, você vai se afastar? – Ela ri, mas não consigo deixar de pensar que aquilo tem um fundo de verdade.
– Medo de ela ser narcisista e eu virar melhor amiga dela? – Provoco.
– Não, porque eu sei que você tiraria de letra, mas eu não quero correr o risco de ela ter uma filha incrível e de você se apaixonar por ela daqui uns tipo... dezoito anos. – Ela diz e a gente ri, por já sabermos como essa história termina.
– Jules... – Digo depois de algum tempo, e ela me olha, atentamente. – O que você falou hoje, no almoço... É verdade? Você pensa mesmo em se casar comigo? Ter filhos?
– É claro que eu penso, Sofi. – Ela acaricia o meu cabelo. – Você tem alguma dúvida disso?
– Não... – Minto um pouco. – É só que você acha cedo morarmos juntas, então... – Imagina casar, ou ter filhos.
Mas não digo aquilo, apenas completo a frase nos meus pensamentos.
– Sobre isso, eu... – Ela parece procurar por algo dentro de um dos bolsos do seu short jeans. – Queria te entregar uma coisa. – Termina de dizer aquilo me alcançando uma chave com o chaveiro de claquete, tão a minha cara...
– O que é isso? – Pergunto, confusa.
– Isso é a cópia da chave da minha casa. – Ela fala, e o meu coração dispara na frente de qualquer pensamento.
– Espera, você tá... tipo... me chamando pra ir morar com você? – Pergunto com o coração batendo mais rápido, ainda tentando processar.
– Não, claro que não. – Ela nega, rindo. – É que é um saco acordar molhada todas as manhãs, e sabe, ter que lidar com isso sozinha. – Ela me provoca, com aquele olhar, e sinto a minha bocet* latejar. – Então acho que não seria nada mal acordar com você, na verdade. – Ela morde o lábio.
Deus, como podia ser tão gostosa?
– Ah, é...? – Subo em cima dela, em um movimento reflexo, e começo a beijar o seu pescoço, o seu cheiro me invade e é quase impossível parar.
– Sofi... – Ela sussurra, já um pouco zonza. – O Clóvis e a Marta estão lá dentro e eles...
– E eles devem estar fazendo a mesma coisa agora. – Sorrio. – Ou pelo menos tentando.
– Idiota. – Ela revira os olhos para mim, risonha.
– Jules... – Olho nos olhos dela. – Você não é a minha tia. – Sorrio para ela, um mar de coisas desaguando naquela frase, e nos meus pensamentos. – Mas aquele amor que eu dizia que sentia por você quando pensava que você era, ainda tá aqui, em algum lugar, e eu não quero me desfazer dele. – Digo aquilo pela primeira vez.
– Eu sei... E acho que eu também não. Não precisamos, uma coisa não impende a outra. – Ela volta a me beijar. Um beijo suave, de início, até virar uma outra coisa, assim como todos os nossos sentimentos.
Júlia Almeida. Ela já foi a minha quase madrinha, a minha tia, minha confidente, a minha melhor amiga. Minha amante, cúmplice, um segredo, uma paixão antiga, meu primeiro amor...
Já somos muito mais do que isso agora, mas sempre haveria uma infinidade ainda maior de possibilidades dentro do que a gente não é.
Fim.
Fim do capítulo
Boa noite, Sojuers!
Como muitas de vocês já sabem, pelas minhas redes sociais, eu estava prometendo entregar esse capítulo ainda esse ano (2024). Não foi fácil, não vou mentir, mas eu queria muito "fechar" esse ciclo antes do ano acabar, devia isso a vocês, e principalmente, a mim mesma. E devo dizer que estou muito satisfeita com o que eu consegui fazer.
Mas quero saber de vocês: o que acharam desse último capítulo?? Esperavam? Surpreendeu?
Qual foi o melhor momento do capítulo, pra você?
Quero muito saber!
Então:
Não esqueçam de comentar!
De me favoritar como autora, e de favoritar a história!
Ainda pretendo fazer uma nota só de agradecimento, porque vocês merecem mais do que apenas algumas poucas frases, no final de um capítulo.
Mas, sendo breve: muito obrigada a todo mundo que chegou aqui e viveu "Ela não é a minha tia" junto comigo, independentemente do momento em que começou a acompanhar. Nada disso seria possível se eu não tivesse vocês, que me ajudaram a tornar ENEAMT o que ela é hoje.
Como comentei, ainda pretendo fazer uma "nota" agradecendo e explicando tudo o que vou fazer daqui para a frente, quais serão os meus novos passos, e os novos desdobramentos dessa história, mas se você ficou curiosa/o, não deixe de me acompanhar no meu Instagram: @alinavieirag, onde vou dar todas as informações, em primeira mão.
Ah, e se você é maior de 18 anos e quer entrar no nosso grupo do WhatsApp, onde a gente conversa sobre a história e eu atualizo tudo pra vocês, é só ir nos destaques do meu Instagram (Grupo Whats), ou então me chamar lá por DM!
Então é isso, gente, não vou me alongar por hoje, mas eu volto! Um feliz 2025, de verdade, pra todos que estão lendo isso agora.
Obrigada por terem feito parte disso!
Até breve!
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Em: 31/03/2025
Parabéns, uma excelente história, bem escrita. Com um enredo muito bom e interessante, com uma dose certa de humor. Parabéns!
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Sem cadastro
Em: 23/02/2025
Parabéns escritora!
Amei acompanhar essa história. Espera que faça um spin off da Emma, sigo sendo team Emma, hahahah... Ansiosa para a sua próxima história.
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EriOli
Em: 27/01/2025
Havia algum tempo que não lia aqui no site, passeei por alguns títulos até encontrar o seu e que bom que li. Que história deliciosa (ênfase no deliciosa hahaha). Tem vezes que costumo pular os hots em algumas histórias por achar que em certos momentos não são relevantes. Na sua história, no entanto, são todos bem a propósito, eu diria. Então, parabéns pela história, pela escrita. Sei que muitas vezes nos falta tempo para revisão, mas é sempre importante dedicar algum tempo, só um toque.
Há braços!!
P. S.: Espero que escrevas mesmo um spin-off com a Emma, a personagem merece ser protagonista e de quebra nos dar um vislumbre de como anda a vida de SoJu!
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N@ty
Em: 24/01/2025
Querida autora, primeiramente quero lhe agradecer por nos presentear com tua escrita e essa história cativante.
Eu demorei para ler o último capítulo porque não queria aceitar o fim da história.
Foi muito gostoso voltar ao lettera depois de 7 anos e se deparar com Sofi e Jules.
Sem dúvidas ficarão na memória
Você é uma inspiração, espero um dia também colocar minha escrita aqui nesse cantinho tão querido.
Gratidão que muitas histórias venham das tuas mãos.
Queremos mais!!!!!!
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S2 jack S2
Em: 18/01/2025
Alina, que história e que final maravilhosos!
Foi incrível acompanhar sua narrativa capítulo por capítulo. Aquela ansiedade e a espera semanal por cada novo capítulo valeram muito a pena. Você tem um talento enorme para a escrita, e espero que possamos ter o prazer de ler outras histórias suas.
P.S.: Se essa história virar livro, já quero! Amo reler boas histórias, e essa, com toda certeza, vou ler de novo!
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Mansur
Em: 05/01/2025
Parabéns pela obra! Obrigada por compartilhar conosco.
Bem desenvolvida, coerente, sem erros de gramática ou de continuidade.
Esperei ela estar concluída para ler de uma vez e não me arrependo da espera, mas acredito que tem espaço para mais coisas caso você resolva nos agraciar com uma parte dois. Gostaria de ler mais sobre elas.
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HelOliveira
Em: 01/01/2025
Parabéns autora por essa história super gostosa de ler, e feliz 2025 que venha outra em breve
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