"Comece, termine
Quebre um voto, faça um novo
Me ligue se precisar de um amigo ou nunca mais fale comigo
Mas por favor, fique."
Quente e pesado
O relógio da cozinha tocava a cada uma hora. Era um bipe, mostrando que mais um momento havia se passado. Todo dia, a mesma coisa. Tocava, e a vida seguia. Aquilo tinha se tornado insignificante para os donos da casa, mas não para Helena, que encarava o ponteiro maior saindo em fração de segundos do número que marcava sete horas.
Café na mesa. Ovos cozidos, pão tostado, café preto, um pedaço de mamão, bananas sempre dispostas no meio da mesa, assim como as laranjas que ninguém costumava pegar daquela cristaleira que sua tinha havia ganho no casamento. Quando estavam maduras demais, Fátima as pegava, as cortava no meio e as espremia no espremedor que tinha a única função de entregar o suco fresco de laranja para o café de seu marido e, se sobrasse, para as duas.
Estava fazendo aquilo enquanto Helena encarava a hora se esvaindo a cada segundo. Seu esposo, conhecido pelo nome Assis, não era um mau homem, ou pelo menos era o que a nova companhia do casal concluía. Só era um homem.
Ele se deitava por último e se levantava por último. Todo dia, a mesma coisa, tal qual como as horas que iriam tocar no relógio dali a cinquenta e sete minutos. Ele chegava do trabalho no final da tarde, tirava as botas sujas de poeira, colocava na sapateira, colocava o boné no suporte ao lado das chaves, desfivelava o cinto, abria três botões da camisa escolhida do dia e ia para a cozinha. Se Fátima estivesse na cozinha, ele falaria com ela sobre seu dia, e se estivesse só Helena, ele gesticularia se ela estava bem e se precisava de alguma coisa. Se estivesse as duas, ele primeiro cumprimentaria a esposa, depois Helena, e então falaria com a mulher para saber se a sobrinha estava bem.
Então pegaria sua toalha do lado de fora da casa, onde havia um quintal descuidado sem nenhum atrativo além da grama amarelada do sol, colocava no ombro esquerdo e iria tomar banho no único banheiro da casa. Sairia de lá com um short do seu time de coração, colocaria a toalha na cadeira se sentaria no sofá, assistiria o jornal e esperaria pelo jantar. Depois, colocava uma regata já gasta – azul, a sua preferida – falava que ia ali e voltava já no final da noite. Jogava dominó com os amigos na frente da casa do homem que morava na primeira casa da rua todos os dias, com exceção dos domingos. Helena ainda não havia decorado o nome dele, mas tinha quase certeza que era Sebastião.
Ao se levantar, ele pegava a toalha que já havia sido estendida do lado de fora, iria tomar banho e a roupa da empresa já o esperava por ele passada em cima da cama. Ao se vestir e pentear o cabelo para o lado e passar o indicador e o polegar no bigode até que ficasse de uma forma que o deixava satisfeito, ele se sentava na cadeira da cabeceira da mesa de quatro lugares. Só assim é que poderiam tomar café. Fátima do lado direito, Helena do lado esquerdo. A televisão com as notícias matinais tocando de fundo, criando o ruído branco que embalava a única refeição que faziam juntos no dia. Nas demais, ficavam só Fátima e Helena.
Terminando o café, ele se levantava, desejava um bom dia, colocava o cinto, os sapatos já limpos, o boné, a chave no trinco, duas viradas pra esquerda, um passo para fora, duas viradas pra direita. Abria o portão e o fechava no mesmo passo, olhava para a direita e seguia a lentos passos, aproveitando a brisa matinal.
Assis era uma figura conhecida naquele bairro. Desde que havia se casado com Fátima, sempre morou na mesma casa e na mesma rua, assim como a maioria que ali viviam. O trajeto era repleto de cumprimentos, uma piada interna ou um breve aceno de cabeça. Alguns saíam da sua casa naquele horário para trabalhar, como foi o caso de Isidoro, que acabava de sair da sua casa quando encontrou com a figura amiga. Um sorriso, um aperto de mãos seguido de um meio abraço de algumas batidas no ombro.
“E aí, como estão as coisas?” Eram as perguntas rotineiras que sempre eram respondidas com um animado “bem, estão bem” de ambas as partes, mesmo que a recíproca não fosse verdadeira por alguns dias. Só que, naquele dia, Assis ia acabar estendendo para além das meras formalidades.
Enquanto conversavam, uma mão feminina tocava o ombro daquele que estava de costas para a casa. Era Sueli, carregando a sua marmita, avisando que ele havia esquecido. Sua resposta foi um acenar de cabeça e o voltar para a conversa, atento. Assis havia perguntado ao amigo e vizinho de longa data se tinha a disponibilidade de ter uma vaga no trabalho de Daniele, já que a sobrinha da esposa já havia manifestado interesse em trabalhar e ajudar nas despesas da casa, mas, principalmente, que seria bom para ela ocupar a mente com alguma coisa e se distrair um pouco.
“Helena é uma boa menina. Só é bastante calada.”
Passos apressados seguiram para dentro da casa. A panela de pressão chiava, e Sueli só havia lembrado por conta do chiar que invadiu a casa chamando sua atenção. Porém, somente a sua, porque, em um quarto fechado no cômodo ao lado, escuro e previamente abafado, Daniele ainda dormia debaixo de um fino lençol sem estampas. A janela, bloqueada por uma cortina onde não permitia que os raios de luz do sol que insistia em aparecer em meio ao clima nublado da cidade invadisse o quarto, batia lentamente por conta do ventilador, disposto em cima de sua escrivaninha, em uma lenta velocidade. O chiado sumiu, e se seguiram batidas na porta.
Sem resposta. Abriu lentamente, e se deparou com a filha ainda em um profundo sono. Provavelmente, deveria ter passado a noite acordada. Sueli balançou a cabeça em reprovação. Para ela, Daniele nunca ia tomar jeito, a não ser que intervisse da forma mais direta que pudesse.
Abriu as cortinas rispidamente, mas aquela que estava deitada sequer reagiu com o sol no rosto. Seguiu abrindo as janelas e desligando o ventilador antes de balançar o ombro, tentando acordar. Ficou chamando por seu nome e seguindo o mesmo movimento por pelo menos cinco minutos, que foi onde sua paciência permitiu, e a deixou para lá, fechando a porta. Logo o clima faria o serviço de acordá-la por desconforto.
Abriu a janela da cozinha, seguiu para o armário e, atrás dos entalados, puxou uma carteira de cigarro. Puxou um, guardou minuciosamente no mesmo lugar e o acendeu na boca acesa do fogão. Parou para ouvir as notícias no rádio local, costume que havia herdado da mãe. Só conseguia fazer as tarefas domésticas se estivesse ouvindo qualquer coisa, fosse música, notícias. Precisava de um plano de fundo que a motivasse. Por vezes, se perguntava se isso não havia sido uma péssima influência para Dani.
Quando terminou o cigarro e escondeu a bituca na caixa que ficava debaixo do armário – e o material descartado quando estava longe dos olhares do marido – pegou o pote de cravinho que ficava junto as especiarias da cozinha e mastigou dois deles. Lavou as mãos, cantarolou a música que tocava – que sabia qual era, mas não sabia dizer o nome – e voltou a cozinhar. A comida tinha que estar pronta, a mesa posta e a roupa lavada antes que saísse para a casa de uma cliente.
Mas, assim que colocou a roupa na máquina de lavar e olhou para o quarto com uma Daniele ainda apagada, seu telefone tocou. Era Fátima. Sua amiga fez logo questão de perguntar como estava as coisas em casa e se a sobrinha estava melhor. Diferente dos amigos que naquele momento cada um se encontrava em seu respectivo trabalho, a conversa era tomada de maiores sinceridades.
“Ela está melhor. Está interagindo muito bem com a gente. Não temos o que reclamar, só que... Fico preocupada.”
Era a frase que mais ouvia vindo da boca dela. Sueli voltou a sugerir que ela deveria sair mais, interagir com outras pessoas, fazer amizades. Que viesse à sua casa para que conhecesse Daniele e fomentasse uma amizade entre ambas, mas a tia de Helena relutava constantemente. Tinha medo do que podia acontecer, mas, não que achasse que Daniele fosse uma má influência ou coisa do tipo, mesmo que a mesma parecesse ter desinteresse sobre o que seguir no futuro. Conhecia-a desde a tenra infância e sabia de todos os seus defeitos e qualidades ditos com constância no decorrer dos anos, mas, ainda assim, temia. Não sabia como ela podia reagir ou se a falta de tato de uma pessoa que não soubesse o que tinha acontecido podia causar.
Desde que o filho tinha ido embora de casa e constituído a própria família em outro lugar longe dali, sentia no ninho vazio por tanto tempo alguém para cuidar. Mesmo que Assis insistisse que Helena “não era feito de vidro e saberia se virar muito bem”, Fátima temia por tudo que pudesse machucá-la.
E, enquanto contava suas inquietações para a amiga e confidente, Helena, a pauta daquelas palavras, andava a pés descalços na grama gasta do quintal. De calças de moletom cinza e uma camisa sem mangas marrom, encarava ao redor. O galho da casa do vizinho balançava, e se podia ouvir a vibração dela no ar. O sol já aparecia entre as nuvens, e os raios encontraram seu rosto, assim como o resto da sua pele. Sentou-se na grama, e esfregou a palma da mão sobre a grama devagar, sentindo-a pinicar levemente, assim como fazia com os pés. Sua tia a encarava.
Do outro lado da linha, Sueli virou em direção ao quarto. Daniele havia se levantado, de olhos cerrados, latente mau humor. Bocejava enquanto andava a passos lentos em direção a cozinha, pegando a garrafa de café, balançando-a. Ainda restava alguma coisa. Pegou a xícara e encheu até a metade. Sonolenta demais para interagir e reparar que a mãe falava ao telefone à sua amiga que deveria se preocupar menos com Helena, concordando com o que o esposo afirmava nos momentos em que se encontravam sozinhos.
O relógio tocou outra vez do outro lado. Helena não se virou quando ele tocou. Pelo contrário, pegou um pedaço de grama e, com a ponta dos dedos, o esfregou até o mesmo desintegrar, olhando para o musgo que se acumulava na parede que outrora já havia sido verde.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 16/10/2024
Estou curiosa como vai ser o encontro de Daniele e Helena.
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